Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e82334, doi:10.12957/epp.2025.82334
ISSN 1808-4281 (online version)
TRADUÇÃO
Quais contradições? Sobre Piaget, Vigotski e Marx
What contradictions? About Piaget, Vigotski and Marx
¿Qué contradicciones? Sobre Piaget, Vigotski y Marx
Lucien Sève 1
Clamart, França
Endereço para correspondência
RESUMO
O texto versa sobre o problema da contradição a partir do resgate de três pensadores: Piaget, Vigotski e Marx. Se em Piaget a contradição é sinônimo de oposição, inserindo-se no arcabouço de uma epistemologia genética, em Vigotski a contradição é uma categoria dialética e uma força motriz, que move o mundo e dinamiza o próprio indivíduo, o que conduz este autor a uma nova concepção de desenvolvimento. Ao contrário de Piaget, o desenvolvimento para Vigotski não é um processo linear e genético, mas um complexo processo dialético. Nesse sentido, Lucien Sève demonstra a presença de Marx na origem do pensamento vigotskiano, destacando a inflexão realizada pelo pensador alemão em relação à filosofia idealista. Identifica ainda os motivos pelos quais o pensamento marxiano não é uma espécie de universal sem contribuições em matéria psicológica, tampouco um sistema abstrato de verdades absolutas ao feitio tradicional, mas um estatuto teórico com determinações e nexos categoriais que partem da própria matéria tratada. A partir da análise dos textos desses três autores, Sève fornece contribuições bastante originais acerca das aproximações e distanciamentos entre eles, enfrentando um tema bastante atual e ainda pouco explorado.
Palavras-chave: contradição, psicologia histórico-cultural, desenvolvimento, psiquismo.
ABSTRACT
The text discusses the problem of contradiction by examining the work of three thinkers: Piaget, Vigotski, and Marx. In Piaget, contradiction is synonymous with opposition, fitting within the framework of genetic epistemology. In Vigotski, however, contradiction is a dialectical category and a driving force that propels the world and energizes the individual, leading him to a new conception of development. Unlike Piaget, for Vigotski, development is not a linear and genetic process but a complex dialectical process. In this sense, Lucien Sève highlights Marx's influence on Vigotski's thought, emphasizing the shift made by the German thinker from idealist philosophy. He also identifies why Marxian thought is not a kind of universal devoid of psychological contributions, nor an abstract system of absolute truths in the traditional sense, but rather a theoretical framework with categorical determinations and connections that emerge from the very subject matter. Through an analysis of these three authors' texts, Sève provides highly original contributions on the convergences and divergences between them, addressing a contemporary topic that is still underexplored.
Keywords: contradiction, cultural-historical psychology, development, psyche.
RESUMEN
El texto trata el problema de la contradicción a partir de la recuperación de tres pensadores: Piaget, Vigotski y Marx. En Piaget, la contradicción es sinónimo de oposición, encuadrada en la epistemología genética. En cambio, en Vigotski, la contradicción es una categoría dialéctica y una fuerza impulsora que mueve el mundo y dinamiza al propio individuo, lo que lleva a este autor a una nueva concepción del desarrollo. A diferencia de Piaget, el desarrollo para Vigotski no es un proceso lineal y genético, sino un proceso dialéctico complejo. En este sentido, Lucien Sève muestra la presencia de Marx en el origen del pensamiento de Vigotski, destacando el cambio realizado por el pensador alemán con respecto a la filosofía idealista. También identifica las razones por las cuales el pensamiento marxista no es un tipo de universal sin contribuciones en materia psicológica, ni un sistema abstracto de verdades absolutas en el sentido tradicional, sino un marco teórico con determinaciones y nexos categoriales que surgen de la propia materia tratada. A partir del análisis de los textos de estos tres autores, Sève aporta contribuciones muy originales sobre las aproximaciones y distancias entre ellos, abordando un tema muy actual y aún poco explorado.
Palabras clave: contradicción, psicología histórico-cultural, desarrollo, psique.
"Contradições e desenvolvimento na obra de Vigotski e outros" - tal tema de reflexão e investigação autoriza, sem dúvida, o filósofo a manifestar sua posição no intercâmbio com psicólogos. Isto porque a contradição no desenvolvimento, quando analisada numa perspectiva transdisciplinar, constitui uma aquisição do pensamento filosófico, muito precisa e exigente: é uma categoria dialética.
Certamente, em uma época deste século em que a dialética esteve até certo ponto na moda, vimos um florescimento, tanto na psicologia quanto em outras partes, das formulações ditas dialéticas, simplesmente porque elas levavam em conta a interação e o desenvolvimento de contextos que eram rapidamente considerados como apartados e imóveis. Um interacionismo evolucionista desse tipo dificilmente assume qualquer diferença com os termos que a linguagem cotidiana utiliza mais ou menos como sinônimos, como contradição e oposição. Mas um modo de pensar que pretenda ser rigoroso não pode, de forma alguma, confundir uma coisa com a outra, se ao menos tiver aprendido a lição de Kant: duas coisas são opostas quando uma suprime o que é postulado pela outra; duas proposições são contraditórias quando uma exclui a própria posição da outra. Há, portanto, oposições reais, como a de duas forças dirigidas de forma oposta, e contradições lógicas, como a de postular a existência de "um corpo que, sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, estaria e não estaria em movimento" (Kant, 1980, p. 265). Mas não pode haver contradição real: sendo a contradição um absurdo, o contraditório é o não-ser 2. Assim, quando observamos atentamente os aspectos da realidade comumente considerados contraditórios, vemos, na maioria das vezes, que se trata de oposições que não implicam em contradição, como no caso de ação e reação, indivíduo e ambiente, análise e síntese, etc.
Alguns esclarecimentos preliminares sobre a dialética
A dialética, no sentido moderno, nasceu da crítica radical de Hegel e de sua profunda reformulação. O que Kant não conseguiu ver e, no entanto, o que é evidente em toda parte, tanto na natureza quanto no pensamento, é a existência de opostos que não estão externamente face a face, mas internos uns aos outros, a identidade dos contrários que eles então manifestam: assim como o alto, que não é o baixo, contém em si mesmo o baixo, ou a identidade, como uma relação entre eu e eu, que contém a diferença. Nesse sentido, existem contradições reais, ou seja, relações e processos que só podem ser assumidos em enunciados formalmente contraditórios: o idêntico é diferente, o objetivo é subjetivo, a vida é a morte... Irredutível à pura oposição, por exemplo, à oposição mecânica, a contradição dialética, portanto, tem como conteúdo essencial, em primeiro lugar, a unidade indissolúvel dos contrários e, em segundo lugar, a força motriz desempenhada pelo "trabalho do negativo": a contradição entre o idêntico e o diferente, por exemplo, não significa a inerência estática de um negativo (o diferente) e um positivo (o idêntico) mas, acima de tudo, uma dinâmica de negação da negação (aqui, a diferenciação do idêntico) onde ocorre sua superação (diferenciado, o idêntico se eleva ao determinado).
Se formos contar, então, como diz Hegel, o movimento dialético compreende quatro momentos ao invés de três: o imediato inicial, o mediatizado com o qual ele forma um par, seu redobramento pela mediatização e o novo momento no qual todo o processo é resumido. Isso mostra como é superficial e até mesmo irrelevante a representação inerradicável da dialética na aparência escolhida da tríade tese-antítese-síntese, na qual o elemento essencial, anterior à "síntese", permanece oculto: o ato produtor da negatividade, constantemente em ação na contradição, até superá-la, para utilizarmos a tradução dominante de hoje do verbo alemão aufheben.
Há ainda um terceiro ponto a ser enfatizado, mesmo que apenas o mais essencial para o que se segue seja brevemente mencionado aqui. A unidade dos opostos e o trabalho do negativo são características necessárias de qualquer dialética digna desse nome. Mas, na perspectiva fundamentalmente idealista de Hegel, o movimento universal do pensamento que produz todo o sistema de essencialidades puras na Lógica abrange, na verdade, um modelo particular da dialética: o do desdobramento genético, cuja metáfora preferida é a geração do carvalho a partir da bolota 3, em outras palavras, o processo circular impulsionado por uma necessidade interna que o orienta previamente para um fim. Mas a inflexão materialista à qual Marx submeteu a dialética de Hegel não apenas subverte seu status - ela não é mais a autora, mas a tradutora da realidade -; como também se engaja em uma reformulação radical de seu conteúdo, cujo primeiro ato é opor a essa figura hegeliana da dialética a contradição irreconciliável, antagônica em um novo sentido do adjetivo, cujo principal exemplo é a luta de classes: aqui, o trabalho do negativo prepara não a superação dos dois opostos em uma unidade superior, mas a reversão do domínio entre eles, até a abolição de um e a emancipação do outro. Aqui nasce uma dialética, não mais de desdobramento genético circular, mas de desenvolvimento transformador no qual é tecida uma história de caráter aberto. Uma inovação decisiva, a partir da qual se tornam possíveis - exigindo uma elaboração muito além do que foi feito não apenas por Marx e Engels, mas pelos marxistas até agora - outras formas inéditas da dialética, combinando de muitas maneiras o funcionamento repetitivo e as evoluções irreversíveis, processos de essência interna e externa, e onde a fortuidade das circunstâncias, a aleatoriedade das possibilidades e a novidade dos horizontes estão intimamente interpenetradas com a necessidade de lógicas invariantes.
"Dialética" e "contradição" na obra de Piaget
À primeira vista, se há algum trabalho psicológico que enfatiza a concepção dialética da contradição, esse trabalho é o de Piaget, que, em meados deste século, era frequentemente considerado pelos seus seguidores - e não pelo próprio Piaget - implicitamente hegeliano, ou mesmo marxista. Mas o próprio termo de estruturalismo genético, que ele constante e exclusivamente reivindicou para sua visão geral, lança sérias dúvidas sobre o assunto, uma vez que a corrente de pensamento a qual o estruturalismo é vinculado sempre se apresentou como oponente desdenhosa ou mesmo deliberada da dialética. Portanto, é importante dar uma olhada mais de perto, particularmente nos muitos trabalhos de síntese piagetiana sobre o estruturalismo e a chamada epistemologia genética 4, bem como nos trabalhos feitos em equipe publicados sob seu nome, que tomam a dialética e as contradições diretamente como seu objeto (cf. principalmente Piaget, 1974, 1980). Ao fazê-lo, não se tratará, evidentemente, de avaliar o valor científico do trabalho de Piaget - isso ultrapassa o âmbito da abordagem filosófica, tal como a vejo - mas apenas de verificar se, no domínio que nos interessa aqui, a compreensão real das categorias de pensamento que ele utiliza corresponde efetivamente à sua designação nominal.
Se estudarmos os textos, e sem subestimar a sua diversidade - e por vezes a sua imprecisão -, o que é que encontramos essencialmente? Em primeiro lugar, que o que é apresentado sob o nome de contradição não contempla totalmente esta identidade de contrários onde reside em primeiro lugar a sua essência dialética. Assim, Piaget define a "contradição entre ações, comportamentos ou atitudes" da seguinte forma: "a ação X será tida como contraditória em relação à ação Y se esta última impedir a realização de X ou vice-versa…" (Piaget, 1967, p. 1269, grifo nosso). Essa afirmação mostra claramente que aquilo é chamado de contradição, ou mesmo contradição dialética, não tem outro conteúdo que não seja a oposição real no sentido kantiano. Para que se possa falar legitimamente de contradição (dialética), a oposição entre X e Y teria de englobar também a sua identidade, algo que a definição em questão nada diz. Assim, a conduta inteligente de desvio pode ser, com razão, julgada dialética, no sentido em que só o próprio movimento que me afasta do meu objetivo me aproxima dele. Mas entre dois movimentos diferentes, um que me aproxima e outro que me afasta, há apenas uma oposição sem contradição. Na obra de Piaget e de seus colaboradores, quase sempre se trata dessa oposição sem contradição 5, mesmo que o vocabulário utilizado possa criar a ilusão contrária. Dizem-nos, por exemplo, que toda a atividade positiva é ao mesmo tempo portadora de aspectos negativos, uma formulação dialética cujo conteúdo real acaba sendo que a ação positiva se opõe ao que não é ela e produz um estado de coisas que substitui o anterior (Piaget, 1974, pp. 171-172). Nada justifica aqui o recurso à linguagem da contradição dialética no seu verdadeiro sentido. O que mostra, aliás, até que ponto o enorme preconceito ao qual a dialética foi submetida, na França mais do que em qualquer outro lugar, desde Hegel, comprometeu a sua correta compreensão, ou mesmo o seu simples conhecimento, mesmo entre as melhores mentes.
Como não há nenhuma contradição real nos textos que examino aqui, é claro que também não há nenhuma ação do negativo. Em geral, nos trabalhos piagetianos, o negativo é pensado de forma unilateralmente negativa e não ao mesmo tempo de forma positiva. Por exemplo, a "falta" de atenção a certas implicações da ação, a "negligência" de certos aspectos das coisas, é tida como negativa, dando origem à distorção que "engendra a contradição" (Piaget, 1974, p. 172-173). O que se designa por contradição não abrange de nenhuma forma, portanto, a presença ativa da negatividade no âmbito do positivo - como para Hegel a do desaparecimento incessante que, na sua unidade com o surgimento, eleva o ser ao devir - mas uma simples carência a partir da qual o positivo é desequilibrado. Por isso o tema, sem dúvida mais central, do geneticismo piagetiano: "a contradição consiste em compensações incompletas" (Piaget, 1974, p. 164), ela é desequilíbrio, e a dialética, intervindo apenas esporadicamente, acrescenta o que é necessário para restabelecer o equilíbrio. "A dialética constitui o aspecto inferencial de qualquer processo de equilibração" (Piaget, 1980, p. 10). Isto define um interacionismo dinâmico que pode ter os seus méritos científicos - não o contesto - mas que, em todo o caso, é desprovido da essência do processo dialético hegeliano, a não ser que o reduzimos, como Piaget faz expressamente, ao ritual tese-antítese-síntese (Piaget, 1967, p. 25, 594.), cujo caráter mecanicista Hegel já criticou.
Pode argumentar-se que um autor tem o direito soberano de utilizar a palavra dialética em um sentido não-hegeliano e não-marxiano. Mas evidentemente, sejamos claros quanto a isso, ao invés de prosseguir de modo complacente com o equívoco 6. Digamos que reivindicamos uma dialética deliberadamente enfraquecida à maneira de um Hamelin ou de um Bachelard 7, nos referindo à "complementaridade" e à "conciliação" dos "opostos" 8 e já não a identidade de contrários, a fortiori o conflito dos antagonistas. Mas, na verdade, se assim for - e ao menos que estejamos à procura de um efeito de moda de um tempo, já há muito esquecido, em que todas as correntes de pensamento significativas insistiam em ter a sua própria dialética -, haverá realmente necessidade de desviar desta forma o vocabulário de origem hegeliana? O debate mencionado por Piaget é instrutivo a esse respeito, que provocou os participantes do Centro de Epistemologia Genética de Genebra com a pergunta: existe uma lógica dialética? A resposta de alguns foi que tal lógica, que era "necessária", exigiria uma "forma axiomática" que não existia "ainda" - o ponto principal da dialética a partir de Hegel é, sem invalidar a lógica formal, ir radicalmente além de sua estrutura -, e a de outros, que, para permitir uma maneira de pensar sobre a complementaridade dos opostos, não havia necessidade de "mudar a lógica" (Piaget, 1967, p. 595). Não há melhor maneira de dizer que a dialética reduzida dessa forma não tem nada de essencialmente original em comparação com as abordagens de um entendimento não dialético. Isso nos ajuda a entender o tipo de contradição nos termos envolvidos na identificação da dialética piagetiana com "um estruturalismo genético generalizado." 9 Mas também leva a uma conclusão de maior importância para meu propósito: nessa forma de acepção, a afirmação fundamental de Hegel, "o que move o mundo é a contradição" (Hegel, 1970, p. 554-555), perde todo o sentido. A dialética piagetiana não é mais uma força motriz. Isso é o que a conclusão de Recherches sur la contradiction diz em seus próprios termos: como "uma sucessão de desequilíbrios e reequilíbrios", as contradições dialéticas "são apenas a expressão e não a fonte desses desequilíbrios" (Piaget, 1974, p. 176). Portanto, parece legítimo afirmar que, embora Piaget tenha uma visão genética de todos os processos, ele não tem um conceito dialético de desenvolvimento, ao contrário do que tem sido dito com muita frequência, e que talvez ele mesmo acreditasse em parte 10.
Vigotski: uma nova concepção de desenvolvimento
Um exame categorial da obra de Vigotski é muito recomendado pelo fato do tema do desenvolvimento a partir das contradições ocupar um lugar central em seu pensamento, que, ao contrário de Piaget, está inclinado a denunciar as "ilusões" da filosofia, Vigotski está sempre contrário ao positivismo: a psicologia é "toda agitada por problemas filosóficos", e a filosofia, por sua vez, pode, em mais de um caso, buscar soluções na psicologia 11. Mas não é fácil obter uma visão geral da abordagem de Vigotski sobre a questão, primeiro porque atualmente apenas uma parte limitada 12 de sua obra está disponível em francês, embora seja certamente significativa em termos de qualidade, e segundo porque as obras e os artigos já traduzidos oferecem reflexões de uma impressionante riqueza e diversidade sobre o desenvolvimento e suas contradições. Não pretendo aqui esgotar o assunto, mas fornecer uma visão geral que, se possível, revelará o essencial.
Tomarei como fio condutor a análise - sem dúvida, a mais fundamental e a mais explícita à qual Vigotski se dedicou - apresentada no quinto capítulo de História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores [l'Histoire du développement des fonctions psychiques supérieures] 13. "Somos obrigados a explicar o próprio conceito de desenvolvimento" (1931/1983, p. 134), afirma de início Vigotski, pois seu significado permanece "múltiplo e confuso" na psicologia. Mais grave ainda, um aspecto crucial para pensar o desenvolvimento cultural da criança ao adulto é claramente incompreendido. Devemos, é claro, descartar os resquícios das antigas visões pré-formistas, ou seja, fixadoras; devemos também ir além do evolucionismo raso, para o qual há apenas um "acúmulo gradual e lento de mudanças isoladas" (Vigotski, 1931/1983, p. 136), excluindo as transformações "críticas e revolucionárias que ocorrem aos trancos e barrancos" (Vigotski, 1932/1983, p. 146). Teremos, então, aberto o caminho para uma abordagem autenticamente desenvolvimentista do psiquismo como um todo, em outras palavras, para aquela "explicação causal-genética" da qual Piaget foi pioneiro (Vigotski, 1934/1997, pp. 58 e 67). Mas há ainda por esclarecer um grande equívoco. Isto porque, nor7malmente, tomamos como modelo o "desenvolvimento embrionário", ou seja, "aquele que depende menos do meio externo", ao qual "é justo atribuir o nome de ‘desenvolvimento' no sentido literal da palavra: o desdobramento das potencialidades contidas em germe" (Vigotski, 1931/1983, p. 137). No entanto, isto não pode servir de modelo geral do desenvolvimento psíquico, porque, embora as crianças passem certamente por processos mais ou menos estereotipados de crescimento e maturação desse caráter, um lugar mais importante é ocupado por uma forma inteiramente diferente em seu desenvolvimento cultural, no qual "o novo estágio surge não do desdobramento de potencialidades ocultas na etapa precedente, mas do conflito real entre o organismo e o ambiente e da adaptação viva ao ambiente" (Vigotski, 1931/1983, p. 137). Ao que se deve acrescentar que, quando surge um nível superior de desenvolvimento, "o precedente não desaparece, mas eleva-se a um novo, negando-se dialeticamente nele, no qual passa e subsiste": trata-se precisamente da Aufhebung, a superação hegeliana (Vigotski, 1931/1983, p. 140).
Trata-se, de fato, de uma forma de desenvolvimento totalmente diferente. Mas, em última análise, o que ela tem de original em relação a tantas considerações psicológicas de longa data inspiradas na biologia ou na sociologia? De que forma a oposição externa entre indivíduo-meio pode ser considerada como uma contradição interna que abarca a identidade de contrários? Onde está, então, o que poderíamos caracterizar como trabalho do negativo? É precisamente esse o cerne da questão, a descoberta considerável de Vigotski - que com a sua habitual grandeza de espírito, assinala o que já ia nesta direção em alguns dos seus contemporâneos, de Adler a Janet, embora sem que estes tenham conseguido pensar a nova concepção com rigor e amplitude: o externo - "o meio social" - não é aqui verdadeiramente outra coisa diferente do interior - o psiquismo individual -, como acontece na relação natural entre o animal e o seu meio; no desenvolvimento cultural da criança, há fundamentalmente uma identidade destes dois polos contrários de uma mesma realidade, o psiquismo humano, que existe e se desenvolve tanto no interior dos indivíduos como no exterior de cada um deles tomado separadamente, movendo-se incessantemente do exterior para o interior e vice-versa. "No processo do seu desenvolvimento", escreve Vigotski, "a criança começa a empregar em relação a si própria as mesmas formas de conduta que os outros empregaram em relação a ela" (Vigotski, 1931/1983, p. 141). Isto é tão verdadeiro, por exemplo, para o pensamento lógico como para o uso de sinais. "As formas superiores de pensamento se manifestam primeiro na vida das crianças no âmbito do coletivo, na forma de discussão, e só então levam ao desenvolvimento da reflexão na conduta da própria criança" (Vigotski, 1931, p. 141). As funções psíquicas superiores são, antes de tudo, relações reais entre os homens. Portanto, estamos lidando com o mesmo psiquismo em suas duas formas, na aparência opostas, externa e interna. 14
Vigotski dá outro exemplo: o da aquisição pela criança do uso consciente do signo no sentido mais amplo do termo, um processo cujo desdobramento formal é, além disso, uma excelente ilustração da "sequência de Hegel" (Vigotski, 1931/1983, p. 143). Primeiro, o bebê tenta agarrar objetos fora de seu alcance; seu braço e seus dedos se movem na direção deles, constituindo uma "indicação em si." Mas essa indicação se torna um "gesto para os outros", que dão significado ao movimento interrompido de agarrar. A criança se dá conta disso e "aqui a própria função do movimento muda": o movimento em direção ao objeto é transformado em um movimento em direção às pessoas, torna-se uma ferramenta para as relações. O agarrar torna-se então uma indicação: é um "gesto para si mesmo." Expressa em uma "forma puramente lógica", a conclusão de tais análises é que "a pessoa se torna para si mesma o que ela é em si mesma, por meio do que ela representa para os outros" (Vigotski, 1931/1983, p. 144). Entendemos "porque tudo o que hoje é mais interno nas formas superiores era necessariamente externo": é porque em sua origem elas têm uma "função social." "É aí que reside o cerne de toda a questão do externo e do interno na conduta." (Vigotski, 1931/1983, p. 144). Sem dúvida, podemos falar de "internalização", "mas temos algo mais em mente quando falamos de um estágio externo na história do desenvolvimento cultural da criança. Para nós, dizer que o processo é "externo" é dizer que ele é "social", em outras palavras, que antes de ser "propriamente psíquico" ele era "uma relação social entre pessoas" (Vigotski, 1931/1983, p. 145). Essa transição de um único processo do interpsíquico para o intrapsíquico é absolutamente geral; ela se aplica tanto à atenção voluntária ou à memória lógica quanto à formação do pensamento e da linguagem. Em toda parte, e incessantemente, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores implementa essa "divisão em dois daquilo que atualmente está fundido em um", até o "drama que se desenrola entre as pessoas" (Vigotski, 1931/1983, p. 145). 15
O que move o psiquismo é a contradição
Estamos lidando aqui com um conceito dialético completamente novo de desenvolvimento, concebido como uma identidade entre contrários: a oposição puramente externa do indivíduo e do meio, válida para a psicologia animal, mas sem relevância real para a compreensão do desenvolvimento cultural, deve ser substituída pela contradição interna de dois momentos indissociáveis, porém distintos, do psiquismo humano em suas formas mais elevadas. No primeiro capítulo metodológico de sua Psicologia da Arte, Vigotski expressa a mesma ideia de maneira diferente: por um lado, não existe uma "psicologia social" que seja estranha aos indivíduos e, por outro, não existe uma "psicologia individual" que seja estranha à sociedade. "O objeto da psicologia social está precisamente no psiquismo do indivíduo", e essa é social; "não há outro psiquismo" (Vigotski, 1925/1987, p. 17-19). Onde há identidade entre contrários, há também o trabalho do negativo: cada uma das duas formas do psiquismo se manifesta ativamente como negação da outra; o psiquismo individual está constantemente reformulando as relações reais entre os homens, que não menos constantemente fazem o próprio psiquismo individual se reformular. Essa é, por exemplo, a base da análise de Vigotski sobre a criança com deficiência intelectual, que foi tão inovadora em sua época e que ainda é tão instigante em nossa. "Sua anomalia", escreveu ele, "é uma negatividade, uma limitação", mas que também cria "estímulo para a construção de compensações": "o déficit estimula um desenvolvimento reforçado e intensificado" (Vigotski, 1994, p. 37). Trata-se de uma "supercompensação", um processo eminentemente dialético, em que a fraqueza se converte em força, seja ela bem ou mal-sucedida: "o desenvolvimento da personalidade é dinamizado pela contradição" (Vigotski, 1994, p. 90).
O próprio Vigotski torna perfeitamente clara a oposição diametral que existe entre a sua concepção autenticamente dialética do desenvolvimento e a que está subjacente nos aportes de Piaget. "Ao contrário de Piaget", diz ele, "temos como pressuposto que o desenvolvimento não conduz à socialização, mas a uma metamorfose das relações sociais em funções psíquicas" (Vigotski, 1931/1983, p. 146). No primeiro caso [de Piaget], estamos perante um desenvolvimento biológico que é socializado; no segundo [de Vigotski], pelo contrário, estamos perante um desenvolvimento cultural que é naturalizado. O que Piaget não mede, para Vigotski, é a profundidade do abismo que separa o "tipo zoológico [zoologique] de desenvolvimento" do "tipo histórico" (Vigotski, 1931/1983, p. 151). "Não creio que a evolução da inteligência seja de outra natureza que não a da evolução biológica", afirma Piaget de modo exemplificado (Piaget, 1959/1965, p. 54). Está tudo aí, nesta perspectiva naturalista, onde a essência histórico-cultural do desenvolvimento psicológico superior não pode ser plenamente apreendida. Se seguirmos Vigotski, temos que compreender que esse desenvolvimento não é genético, para tomar o adjetivo à letra; não é da ordem de uma maturação baseada na naturalidade, mas de uma assimilação a partir da socialidade. Assimilação: ao utilizar este termo 16, Vigotski redescobriu, sem o saber, a abordagem de Marx em A ideologia alemã, quando este falava da apropriação (Aneignung) pela qual os indivíduos fazem de seus "poderes sociais" objetivados - forças produtivas, formas de consciência, relações, etc. - suas capacidades subjetivas 17. O desenvolvimento das formas psicológicas superiores não é genético, mas apropriador de um psiquismo historicamente acumulado sob a forma de relações sociais humanas: uma afirmação como esta resume o que não seria excessivo considerar como a inversão copernicana de Vigotski na forma como a psicologia pensa as relações entre o interno e o externo, o individual e o social, o natural e o cultural. A obra de Vigotski, na aparência ultrapassada, não têm como obsoletas uma série de análises que ainda estão sendo pensadas para além da revolução conceitual que ele produziu.
Mas Vigotski estava muito consciente da complexidade do psiquismo humano para se contentar com o fato de ter posto em evidência esse aspecto inédito da questão, por mais decisivo que fosse. Então o vemos questionar se podemos chamar de desenvolvimento o processo de apropriação, quando, afinal, poderíamos afirmar que se trata apenas de aprendizagem. A resposta é, de início, que "não chamamos desenvolvimento uma mudança que não está de modo algum ligada a qualquer processo interno" (Vigotski, 1931/1983, p. 149). Todo desenvolvimento se refere ao crescimento interno, ou é apenas um abuso de linguagem. Se virmos as coisas deste ponto de vista, será que o desenvolvimento que se apropria do exterior não é um verdadeiro desenvolvimento? Mas esse é o mais profundo mal-entendido. "Tradicionalmente, costumávamos dizer: o que vem de dentro pode ser chamado de desenvolvimento, enquanto o que vem de fora é habituação, educação..." (Vigotski, 1931/1983, p. 150). Não se trata de uma visão dialética das coisas: a apropriação cultural, embora se processe com base nas relações sociais, não vem "simplesmente de fora" (Vigotski, 1931/1983, p. 150): é um processo de desenvolvimento interno de origem externa! Assim, sem a relação decisiva com o adulto, a criança nunca formaria o conceito científico, e jamais dominaria o uso científico do conceito se esse não determinasse, na sua forma pessoal de pensar, a superação do conceito do cotidiano. Sem o exterior, poderíamos dizer, parafraseando uma frase de Kant, o interior seria cego, mas sem o interior, o exterior permaneceria vazio. É por isso que "mesmo uma criança prodígio" não pode alcançar um estágio superior de pensamento sem ter passado pelos mais elementares (Vigotski, 1931/1983, p. 151). O desenvolvimento apropriador deve, portanto, ser entendido menos como oposto do desenvolvimento genético, e mais profundamente, como a negação da negação, a superação dialética desta oposição.
Também aqui se interpenetram os contrários e surge todo um novo campo de contradições motrizes entre os aspectos genéticos e os aspectos apropriativos do desenvolvimento, todo um campo de intervenções também para uma pedagogia do espírito dialético, como entre funções já adquiridas e zonas proximais de desenvolvimento, handicap e compensação, cultura spinozista das paixões e liberdade da vontade… Três anos antes da sua morte, Vigotski deu-nos uma visão geral do conceito de desenvolvimento a que chegou:
um processo dialético complexo, caracterizado por uma periodicidade que é em si mesma complexa, uma desproporcionalidade no desenvolvimento de funções consideradas isoladamente, metamorfoses ou transformações qualitativas em outras formas, um complexo entrelaçamento de processos de evolução e involução, complexos entrelaçamentos de fatores internos e externos, uma complexa sucessão de adaptações e vitórias sobre as dificuldades (Vigotski, 1931/1983, p. 136).
Por trás do desenvolvimento das funções, vêm diretamente à tona também as questões da complexificação da personalidade e do curso da vida em sua totalidade. Raramente a psicologia foi tão elaborada teoricamente e, no sentido mais forte do termo, tão concreta.
Vigotski e Marx
É impossível aprender sobre uma abordagem psicológica tão inovadora sem se perguntar de onde ela vem. Poderia ser simplesmente mais uma elaboração em meio a um conjunto crescente de perspectivas presentes nos trabalhos psicológicos inovadores que marcaram o final do século XIX e o início do século XX? Parece que sim, se nos concentrarmos apenas nas numerosas referências de Vigotski a uma ampla gama de autores, de Piaget à Köhler, de Freud à Claparède e, mais especialmente, no caso da questão que estamos tratando aqui, à Pierre Janet, sendo que em mais de um texto já parece se destacar uma visão histórico-cultural do psiquismo. Mas vamos recuperar, por exemplo, L'évolution psychologique de la personnalité, um conjunto de palestras de Janet em 1929, dois anos antes da redação de História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores: desde as primeiras páginas, encontramos o tema do desdobramento da bolota em um carvalho e do desenvolvimento embrionário (Janet, 1929, p. 3sq.), o que coloca toda a obra de Janet, mesmo quando vai além dela, sob o sentido reducionista de um geneticismo - é verdade que a referência filosófica do autor não é Marx nem Hegel, mas Bergson. A generosidade, que não exclui o distanciamento crítico, com a qual Vigotski aponta o menor de seus créditos aos psicólogos de seu tempo não deve nos enganar: embora esteja claro que o tema polissêmico do desenvolvimento é onipresente nas obras psicológicas que Vigotski lê, nenhuma delas apresenta o conceito dialético no sentido mais rigoroso da palavra, como ele constrói por meio de uma abordagem fundamentalmente original.
Devemos, portanto, chegar à conclusão óbvia, tão estranhamente subestimada até agora: a obra na qual Vigotski encontrou as referências teóricas mais essenciais para elaborar sua concepção histórico-cultural do desenvolvimento psíquico não é a de um psicólogo, mas a de Marx. Está em Marx - aquele dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (2010), de A ideologia alemã (1846/1976), e mais ainda, o que quer que diga uma lenda persistente, aquele d'O capital (2013; 2014; 2017)- que formulou pela primeira vez a novidade chocante da ideia de que as funções psíquicas e as relações sociais são os dois lados, interno e externo, da mesma realidade: a mesma realidade que a antiga filosofia especulativa chamava de "essência humana." Até onde tenho conhecimento, em nenhum lugar Vigotski cita essa fórmula marxiana: "o homem é o mundo do homem" (Marx, 1843/1975, p. 197), mas é claramente um tema extraordinariamente sugestivo que, como leitor precoce e assíduo de Marx, ele buscou refletir desde sua juventude. Quanto a mim, não foi sem emoção que, no esforço de ler o capítulo cinco de História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, deparei-me no texto com essa passagem: "modificando uma tese conhecida de Marx, poderíamos dizer que a natureza psíquica do homem representa a totalidade das relações sociais, transpostas internamente em funções da personalidade e formas de sua estrutura. Não queremos dizer que esse é o significado da tese de Marx, mas vemos nela a expressão mais completa de tudo que conduz a história do desenvolvimento cultural." (Vigotski, 1931/1983, p. 146). Essa "tese conhecida de Marx" é, claro, a 6ª das Teses sobre Feuerbach, que ele esboçou em 1845, e que Vigotski não teve conhecimento em sua época, me inspirou sobretudo nos anos 1960, quando eu estava escrevendo Marxismo e a teoria da personalidade: "a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais" (Marx & Engels, 1846/1976, p. 3) 18. Essa é, sem dúvida, a origem da visão antropológica do todo, que o imenso mérito de Vigotski não buscava traduzir abstratamente em fórmulas psicológicas sem provisão, mas, que de uma forma distinta, buscava fazer concretamente frutífera no campo de pesquisa sobre o psiquismo humano.
Ao dizer isso, não estou motivado pela preocupação irrisória de reivindicar para Vigotski o rótulo de "marxista" com base em alguma compulsão propagandística em favor de uma causa que é, de qualquer forma, bastante anacrônica, pelo menos sob essa fórmula: ele mesmo, como sabemos, considerava com grande cuidado a ideia, comum em seu círculo cultural, de "psicologia marxista", como é demonstrado, entre outras coisas, a partir de uma leitura de O significado histórico da crise em psicologia. Por outro lado, está claro que, em escala internacional, há uma relutância persistente, aqui e ali, em reconhecer até hoje um fato que é tão importante quanto óbvio: o pensamento de Vigotski é extremamente marxiano em sua profundidade. Aqueles que relutam em medir isso, devido a uma repressão que também é altamente anacrônica, infelizmente estão se privando da oportunidade de refletir sobre isso, embora esse trabalho filosófico esteja se mostrando um dos mais esclarecedores para a própria psicologia. Dizer que o pensamento dialético de Vigotski é marxiano é enfatizar que ele não se reduz de forma alguma a um pensamento hegeliano. Isso não quer dizer que Vigotski não estivesse familiarizado com Hegel: embora ele obviamente tenha praticado muito menos do que Marx, ele o conhecia e o entendia bem o suficiente para citá-lo e, muitas vezes, para reconhecer sabiamente seus bons resultados 19. Mas a dialética de Hegel não pode ser sua principal referência, especialmente por esse grande motivo: sob sua poderosa universalidade de princípio, ela de fato abrange essencialmente uma forma particular de desenvolvimento - precisamente a forma genética, na qual todo o sistema de "essencialidades puras" é gerado na Ciência da lógica, de acordo com um desdobramento interno e necessário. Mas é uma dialética completamente diferente que Vigotski pretende revelar no desenvolvimento cultural do psiquismo humano: tão essencialmente externa quanto interna, tão historicamente aberta quanto psicologicamente repetitiva e idêntica em cada indivíduo - uma dialética que não é mais meramente genética, mas apropriadora.
Vigotski encontrou a figura básica dessa dialética, fundamentalmente transformada em relação à de Hegel 20, em Marx: precisamente em O capital, que ele leu aos vinte anos. Por que, em resumo, a era do capitalismo é uma era de desenvolvimento superior das forças produtivas? Marx mostra que não é em virtude de uma simples necessidade interna do progresso técnico que se desdobra por si mesmo de forma pré-programada com a constante expansão da produção de mercadorias. A força motriz por trás da enorme expansão do capitalismo é muito mais externa do que interna aos valores de uso das mercadorias. Pois, a partir do valor de uso concreto, a economia da mercadoria separa o valor de troca abstrato, a medida universal do tempo socialmente necessário de trabalho, que, sob o disfarce do dinheiro e depois do capital, se torna a força motriz por trás de todo o processo, de seus ritmos e de suas contradições. Trata-se, portanto, de uma relação social que, por assim dizer, sustenta, a partir de fora, o desenvolvimento interno das forças produtivas elevadas a um nível mais alto. Com base nessa análise dialética inovadora do valor econômico, reflitamos sobre a analogia, embora todas essas coisas sejam diferentes, do signo linguístico à abstração que ele abrange, o papel motor que ele também desempenha do lado de fora como uma relação social no desenvolvimento superior das funções psicológicas: a inspiração inicial é dada à concepção histórico-cultural elaborada por Vigotski. É, portanto, fácil compreender que quando Vigotski escreveu em 1926, em O significado histórico da crise em psicologia, que "a psicologia precisa escrever o seu Capital", ele estava empregando muito mais do que uma metáfora para indicar de uma forma geral que esta ciência estava ainda à espera de uma forte teorização global. Essa fórmula deve ser tomada em um sentido mais atual: a psicologia precisa de uma concepção dialética do desenvolvimento comparável à exemplificada, em outro domínio, pelo O capital. Assim, a abordagem psicológica de Vigotski não pode ser totalmente compreendida, se começarmos considerando como irrelevante a contribuição de Marx para sua abordagem filosófica. Sem dúvida, como dissemos, Vigotski explorou apenas de forma desigual todas as possibilidades oferecidas por essa abordagem, dentro dos limites de um corpo de trabalho tão rapidamente interrompido. Por exemplo, ele trabalhou pouco o desenvolvimento propriamente histórico das funções psicológicas, a sua variabilidade em função das diferentes formações sociais e lógicas biográficas 21. O vigotskismo não é uma doutrina fechada, é um campo aberto. Mas não será esta abertura, em última análise, a de uma dialética liberta da clausura do sistema hegeliano pela transformação revolucionária de Marx?
Isso me leva a fazer finalmente uma observação geral sobre o destino da obra de Vigotski em escala internacional, desde a sua morte até os nossos dias. Destino extravagante, de fato. A sua inspiração teórica, tão criativamente extraída de Marx, é precisamente a mesma que recebeu a proibição agressiva do stalinismo na URSS, numa altura em que o pensamento baseado em Marx já era considerado subversivo. Mas se a proibição da obra de Vigotski começou a ser realizada no Leste nos anos 1960, foi no Ocidente que a sua incipiente divulgação foi desde logo entravada por uma espécie de censura à ascendência claramente marxiana da sua abordagem, fazendo de Marx uma espécie de universal sem contribuições em matéria psicológica. Desde a edição americana de Pensamento e linguagem, publicada em 1962, na qual o texto original, reduzido em quase dois terços, foi despojado de quase todas as suas referências marxistas, edição esta que foi utilizada como base de muitas outras traduções, como a espanhola e a italiana - ao contrário das edições alemã, e depois da francesa, que mantiveram o texto integral - contribuiu para que um grande número de leitores de Vigotski no Ocidente tenham sido, muitas vezes, levados a ignorar esta dimensão fundamental do seu pensamento - uma circunstância que hoje facilita mesmo interpretações que podem ser distorcidas ou mesmo mutilantes, por exemplo em um sentido cognitivista. É por isso que o esforço coletivo para promover uma melhor compreensão das contribuições vigotskianas coloca, para além do problema - ainda agudo em França - da acessibilidade aos textos, a questão ainda mais crucial da autenticidade conceitual de sua leitura. Nos anos 60, Luria pensava que estava tornando Vigotski mais acessível aos psicólogos ocidentais, mas sentiu que devia dar o seu apoio moral à operação internacional que consistia em obscurecer largamente tudo que provinha de Marx. 22 Poderíamos nos perguntar para quem ela foi mais humilhante, mas me limitarei a dizer, em todo caso, que ela deveria ser unanimemente considerada obsoleta hoje em dia. Dado o atual interesse mundial por essa grande obra e o intenso debate que ela provocou, anseio pelo desenvolvimento decisivo de uma abordagem em sentido inverso: devolver finalmente à Marx o lugar que lhe cabe no pensamento vigotskiano e, assim, devolver mais plenamente esse pensamento a si próprio.
Referências
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Endereço para correspondência
Luiza Miranda Furtuoso - mirandafurtuoso@gmail.com
Recebido em: 27/02/2024
Aceito em: 07/06/2024
Agradecimentos: À Matilde Agero Batista pela revisão e à Yves Clot por autorizar a tradução.
Nota do tradutor: este texto é uma versão traduzida ao português do texto Quelles contradictions? À propos de Piaget, Vygotsky et Marx (no original), que compõe o décimo segundo capítulo da coletânea organizada por Yves Clot intitulada Avec Vygotski (Éditions La Dispute, 1999, p. 245-264). A tradução foi realizada por Luiza Miranda Furtuoso (Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei), com revisão de Matilde Agero Batista (Professora da Universidade Federal de São João del-Rei). Para a presente tradução foram mantidas as notas de originais sempre antecedidas por N.A. (nota do autor). As notas oriundas da tradução, por sua vez, aparecem com N.T. O conteúdo entre parênteses é de autoria de Lucien Sève, enquanto as inclusões entre colchetes são oriundas da tradução. Os resumos são de autoria da tradução, a fim de adequar o texto às normas da revista.
Notas
1 Lucien Sève (Chambéry, 9 de dezembro de 1926 - Clamart, 23 de março de 2020) - filósofo francês, cuja obra versa em grande medida em torno do pensamento de Marx, tendo se ocupado de temas como indivíduo, personalidade, essência humana, alienação, emancipação humana etc. Enquanto diretor da Éditions Sociales, entre 1976 e 1982, assumiu o projeto de lançamento de uma coleção completa das obras de Marx e Engels em francês. É autor de diversas obras, dentre elas, Marxismo e teoria da personalidade, publicada pela primeira vez em 1969.
2 N.A.: Em uma passagem-chave de Crítica da razão pura, Kant parece adotar o conceito de "contradição real", pelo menos de acordo com as traduções clássicas de Tremesaygues e Pacaud ou Alquié, o que faria dele o pai da dialética hegeliana... É claro que esse não é o caso, pois a palavra que Kant usa aqui não é Widerspruch (o termo aceito para contradição), mas Widerstreit (que poderia ser traduzido como antagonismo ou conflito). Dada a importância considerável desse ponto, esse é um erro grave de tradução que, como veremos, não deixou de ter efeitos.
3 N.T.: O autor se refere à passagem contida na Fenomenologia do espírito: "Quando queremos ver um carvalho na robustez de seu tronco, na expansão de seus ramos, na massa de sua folhagem, não nos damos por satisfeitos se em seu lugar nos mostram uma bolota" (Hegel, 2014, p. 29).
4 N.A.: Em particular sua contribuição de 1959 aos encontros de Cerisy em Genèse et structure (1965), p. 37-61, e os capítulos que ele redigiu para a Encylopédie de La Pléiade, tomo XXII, Logique et connaissance scientifique (Piaget, 1967), em particular p. 118-131, 589-596, 1259-1271.
5 N.A.: Cf. por exemplo Les formes élémentaires de la dialectique (Piaget, 1980, p. 227), onde se lê que "aquilo que os dialéticos chamam de contradição" só abrangeria geralmente "situações opostas." Em Logique et connaissance scientifique, op. cit., pp. 357-374, o capítulo de Léo Apostel intitulado "Logique et dialectique" começa por atribuir à Kant a ideia de contradição real com base na tradução equivocada de Tremesaygues e Pacaud (cf. nota 6 [nota 2 no original]), e sem verificação do texto alemão. Todo este capítulo, aliás erudito e muito desenvolvido no que diz respeito à questão extremamente controversa da possível formalização da dialética, está, no entanto, viciado desde o início pela confusão, nunca dissipada, entre contradição dialética e simples oposição dinâmica.
6 N.A.: É o que fazem, por exemplo, Lucien Goldmann em Genèse et structure (Entretiens de Cerisy, 1965, p. 57), Czeslaw Nowinski em Logique et connaissance scientifique (Piaget (org.), 1967, pp. 878-880), e ocasionalmente o próprio Piaget, por exemplo em relação à "síntese", cf. Piaget, 1967, passagens citadas acima, p. 25, 594 etc.
7 N.A.: Piaget cita-o favoravelmente em várias ocasiões, por exemplo em Logique et connaissance scientifique (Piaget org., 1967, p. 595). Sobre o enfraquecimento fundamental da dialética em Bachelard, cf. Michel Vadée, Bachelard. Le novel idéalisme épistémologique (1975, p. 165-194). N.T.: Gaston Bachelard (1884-1962) - filósofo e poeta francês. Seu pensamento está focado principalmente em questões referentes à filosofia da ciência.
8 N.A.: De acordo com os termos que encontramos na obra de Piaget, por exemplo, em Logique et connaissance scientifique (Piaget, 1967, p. 594-595).
9 N.A.: A fórmula é de Lucien Goldmann, em Piaget (1967, p. 1015).
10 N.A.: Note-se este importante esclarecimento de Maurice de Gandillac (1965, p. 338) sobre o significado do adjetivo "genético" [génétique]: "contrariamente ao que por vezes se supõe, gênese não é a transcrição do grego génésis, de génesthai (tornar-se), mas do grego génnèsis, de génnao (gerar)." Etimologicamente, a genética refere-se ao processo fechado de construção de uma estrutura, e não à sua história aberta. Sobre todas as questões dialéticas que trato neste texto, cf. Sève (1998, p. 25-247). A passagem de Kant referida nas notas 2 e 6, e as suas referências, aparecem nas p. 32-33.
11 N.A.: Lev Vigotski, Théorie des émotions (1998, p. 155 e 395). Cf. as observações críticas de Vigotski sobre Piaget em Pensée et langage (1934/1997, p. 69-70, 113-114, 126-127). Cf. também a passagem no final do décimo segundo capítulo de História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores: "nesse ponto de nosso estudo, uma perspectiva filosófica se abre diante de nós. Pela primeira vez, no curso da pesquisa psicológica, surge a possibilidade de resolver problemas propriamente filosóficos por meio da experimentação psicológica e de mostrar empiricamente de onde vem a liberdade da vontade humana. Não podemos discorrer em toda a sua extensão essa perspectiva aqui. Propomos fazer isso em outro estudo dedicado especificamente à filosofia." (Tradução nossa. As referências ao trabalho são dadas abaixo, nota 15 [no original em francês trata-se da nota 11]. O estudo em questão parece ser Théorie des émotions, uma obra amplamente dedicada à discussão das teses de Descartes e Spinoza).
12 N.A.: Essa avaliação permanece válida mesmo depois de publicações importantes, como La Signification historique de la crise en psychologie (Delachaux e Niestlé) e o próximo Psychologie de l'art, atualmente em tradução pela La Dispute.
13 N.A.: Obra escrita em 1931 e publicada pela primeira vez em 1960. O texto russo aparece no tomo III de Sobranié sotchiniénii (Œuvres choisies) em seis volumes (Moscou, Pédagogika, 1983). Joëlle Lepot tentou uma tradução do Capítulo V, embora com graus de confiabilidade variáveis, na sua dissertação para o título de tradutor, na Université de l'État de Mons (Bélgica), ano académico 1987-1988. A tradução das passagens citadas acima é de minha responsabilidade.
14 N.A.: Também é muito importante que o tradutor compreenda que o termo utilizado várias vezes por Lev Vigotski, okroujaïouchéié, não se refere às características do ambiente, mas às pessoas ao redor.
15 N.A.: Lev Vigotski, que parecia conhecer tudo sobre a literatura psicológica de seu tempo, leu Politzer e citou-o várias vezes. O uso da palavra "drama" aqui é muito provavelmente uma citação implícita.
16 N.A.: A palavra em russo é ousvoiénié, literalmente "fazer a si próprio"
17 N.A.: Marx e Engels, L'idéologie allemande [A ideologia alemã] (1946/1976, p. 70-73). Essa obra, que Marx e Engels não editaram em 1846, foi publicada pela primeira vez em 1932, um ano após a redação de História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores por Lev Vigotski.
18 N.A.: Tradução modificada por mim.
19 N.A.: A abordagem histórico-cultural vigotskiana pode encontrar um rico substrato em Hegel, para quem "a boca que fala, a mão que trabalha" são manifestações integrais da individualidade humana (cf. Fenomenologia do Espírito, V,a, a, 3c). Assim, a reflexão sobre estes mediadores, o utensílio e o signo, é antes de tudo mais preocupada com a análise que Hegel faz do "termo médio", uma realidade que aparece de início "quebrada" entre a objetividade da coisa e a subjetividade que coloca fins, mas também um "ardil da razão" que postula a sua unidade duradoura (Encyclopédie des sciences philosophiques, I, La science de la logique, §208 e 209, 1970, p. 444-445). "Nesta medida", o meio - por exemplo, o arado - é "algo mais elevado do que os fins finitos da finalidade externa" (Science de la logique, tome II, 1981, p. 263). Para Hegel, a análise da ferramenta ilumina a lógica mais essencial da vida (Science de la logique, 1981, p. 290 sq).
20 N.A.: Examino longamente esse assunto em Sciences et dialectiques de la nature (1998), pp. 164-222.
21 N.A.: Embora, como é óbvio, o assunto não lhe seja estranho. Cf. por exemplo a indicação, em uma passagem de Défectologie et déficience mentale (Vigotski, 1994) dedicada à Lewin, das diferenças de sistemas psicológicos entre crianças russas e chinesas, p. 206.
22 N.A.: A. Luria, cuja contribuição é importante para a corrente vigotskiana na psicologia - e mais particularmente na "neuropsicologia", para usar o seu termo - estava bem ciente de que o pensamento de Marx "desempenhou um papel essencial na formação da psicologia experimental das funções psicológicas superiores", tal como Lev Vigotski as concebeu (Luria, 1979/1982, p. 46).
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