Estudos e Pesquisas em Psicologia
2023, Vol. 03. doi:10.12957/epp.2023.79270
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
Questionário Sobre o Jeitinho Brasileiro: Proposta de uma Versão Infantil (QJB-INF)
Marília Mendes Moreira de Sousa*, I; Walberto Silva dos Santos**, II
; Estefânea Élida da Silva Gusmão***, II
; Sophia Loren de Holanda Sousa****, II
I Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, São Paulo, SP, Brasil
II Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, CE, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O jeitinho brasileiro é uma estratégia social que visa a resolução de problemas por negociações. Não obstante a relevância do desenvolvimento dessa habilidade desde a infância, há carência de instrumentos de avaliação para crianças. O objetivo deste estudo foi adaptar o Questionário sobre o jeitinho brasileiro - Versão individual para o âmbito infantil, apresentando evidências de validade e precisão. Inicialmente, contou-se com uma amostra de 131 participantes. Contudo, procurando acessar predominantemente crianças, excluíram-se, por apresentarem idades superiores a 13 anos, oito participantes. Assim, o estudo contemplou uma amostra de 123 crianças, maioria menina (61,2%), com idade média de 10,5 anos (DP = 1.78), distribuídas do 1º ao 7º ano do Ensino Fundamental, sendo: 7,4% do 1º e do 2º ano; 39,9%, do 3º e do 4º ano; 37,4%, do 5º e do 6º ano; e 15,4% do 7º ano. Após a realização de análises fatoriais exploratórias, os resultados indicaram ser coerente uma estrutura composta por dois fatores, cujos itens representam conteúdos relacionados à compreensão do jeitinho por comportamentos antissociais (11 itens) e criatividade (5 itens). Conjuntamente, esses fatores explicaram 37,5% da variância e apresentaram consistência interna considerada satisfatória, promovendo uma medida útil para pesquisas e avaliação do construto com amostras infantis.
Palavras-chave: Brasil, infância, criatividade, comportamento antissocial.
Questionnaire About the Brazilian Way - Proposal for an Infant Version (QJB-INF)
ABSTRACT
The Brazilian Way ("jeitinho brasileiro", in Potuguese) is a social strategy that aims to solve problems through negotiations. Despite the importance of developing this skill from childhood, there is a lack of assessment tools for children. The objective of this study is to adapt the Questionnaire on the Brazilian Way - Individual Version for children by presenting evidence of validity and accuracy. Initially, we have worked with a sample of 131 participants. However, in an effort to primarily access children, eight participants were excluded due to being over the age of 13. Thus, the study works with a sample of 123 children, with a majority being girls (61.2%), with a mean age of 10.5 years (SD = 1.78), distributed from 1st to 7th grade of Elementary School, as follows: 7.4% from 1st and 2nd; 39.9% from 3rd and 4th; 37.4% from 5th and 6th; and 15.4% from 7th grade. After conducting exploratory factors analysis, the results indicate a coherent structure composed of two factors, whose content related to understanding the Brazilian Way ("jeitinho") runs through antisocial behaviors (11 items) and creativity (5 items). Together, these factors explain 37.5% of the variance and show satisfactory internal consistency, providing a useful measure for research and assessment of the construct with children samples.
Keywords: Brazil, childhood, creativity, antisocial behavior.
Cuestionario sobre el "Jeitinho" Brasileño - Propuesta de uma Versión Infantil (QJB-INF)
RESUMEN
El "jeitinho" brasileño es una estrategia social que busca resolver problemas a través de negociaciones. A pesar de la importancia de desarrollar esta habilidad desde la infancia, existe una falta de herramientas de evaluación para niños. El objetivo del estudio es adaptar el Cuestionario sobre el "jeitinho" brasileño - Versión individual, para el ámbito infantil, presentando evidencias de validez y precisión. Inicialmente, se con una muestra de 131 participantes. Sin embargo, con el objetivo de acceder principalmente a niños, se excluyeron ocho participantes porque tenían más de 13 años. Por lo tanto, el estudio incluyó una muestra de 123 niños, la mayoría de ellos niñas (61.2%), con una edad media de 10.5 años (DE = 1.78), distribuidos desde el 1º hasta el 7º grado de Educación Primaria, de la siguiente manera: 7.4% del 1º y del 2º; 39.9% del 3º y del 4º; 37.4% del 5º y del 6º; y 15.4% del 7º grado. Después de realizar análisis factoriales exploratorios, los resultados indicaron una estructura coherente compuesta por dos factores, con ítems que representan contenidos relacionados con la comprensión del "jeitinho" a través de comportamientos antisociales (11 ítems) y creatividad (5 ítems). En conjunto, estos factores explicaron el 37.5% de la varianza y mostraron una consistencia interna considerada satisfactoria, proporcionando una medida útil para la investigación y evaluación del constructo con muestras infantiles.
Palabras clave: Brasil, infancia, creatividad, conducta antisocial.
A sociedade brasileira traz como uma de suas características a construção e a manutenção de um perfil cultural que prioriza interesses pessoais em detrimento das leis que regem a comunidade (Barlach, 2020). Diariamente, meios de comunicação noticiam matérias relacionadas à corrupção, falam-se em lavagem de dinheiro, abuso de poder, empréstimo de nome em transações financeiras fraudulentas, entre outras situações. As tentativas de burlar leis, desviar de regras impostas em prol de benefícios individuais estão enraizadas e, em muitos casos, configuram-se como práticas culturais rotineiras ou até consideradas despercebidas, identificadas como o "jeitinho brasileiro" (Wachelke & Prado, 2017). Este fenômeno, atrelado à cultura brasileira desde os tempos coloniais, reforça a ideia do desenvolvimento de uma sociedade sob a égide de um julgamento baseado no afeto, na flexibilidade e nas exceções (Gomes et al., 2015).
A concepção do jeitinho brasileiro potencializou-se e assumiu diferentes perspectivas. É possível compreender esse jeito como uma estratégia social, que consiste em atenuar, por meio de negociações, o excessivo rigor e seriedade das leis e normas do país (Wachelke & Prado, 2017). Tal fenômeno se mostra de uma ação criativa, rápida e improvisada do sujeito, a fim de solucionar problemas e controlar situações. Utiliza-se da simpatia, das circunstâncias em comum com o interlocutor e ainda da influência de meios externos, como a intervenção de um amigo importante ou uma ajuda financeira para atingir tais fins (Araújo et al., 2020).
Desse modo, o jeitinho ocorre quando determinações (leis, normas, regras, ordens, entre outros) impossibilitam ou dificultam a ação pretendida pelo sujeito, sendo assim realizada por meio da personalização da situação para que seu objetivo seja alcançado (Motta & Alcadipani, 1999). Nesse caso, procura-se focar no aspecto pessoal, prejudicando a ordem universal da situação. Se, por um lado, o jeitinho pode trazer à tona características positivas dos brasileiros, como improvisação, flexibilidade, pensamento resolutivo, habilidades sociais assim por diante, por outro, pode evidenciar uma tendência à corrupção, às inadequações às normas, à alienação, ao jogo de poder, entre outras características negativas (Barlach, 2020).
Há divergências entre as concepções, quando se avalia o jeitinho como um fenômeno que se operacionaliza a partir de comportamentos pró ou antissociais. O jeitinho pode ser visto facilmente como uma prática simpática, espirituosa e espontânea do brasileiro, na qual o interlocutor se solidariza e se coloca em uma posição igualitária ao sujeito praticante (Barbosa, 2006). Em um restaurante lotado, com fila de espera, por exemplo, o praticante do jeitinho buscaria conversar com um garçom, demonstrar simpatia, criar conexão afetiva com o fim de alcançar seu objetivo: conseguir um espaço, mesmo que oficialmente não haja mais.
Alguns autores reforçam pontos positivos, ao diferenciar os termos jeitinho brasileiro e malandragem, afirmando que o último se expressa como um fenômeno que prejudica o próximo ou garante algum tipo de benefício sobre o interlocutor, ao passo que o jeitinho não promove dano ao próximo de forma direta (Motta & Alcadipani, 1999). Contudo, há concepções que associam o jeitinho ao traço cultural voltado à esperteza, à caracterização de alguém difícil de ser ludibriado, mas que possui facilidade em enganar, como a malandragem. Ainda mais, tal fenômeno está atrelado à malandragem e à trapaça pelo fato de a desonestidade ser levada à tona, mediante a desvalorização de regras impostas à sociedade (Gomes et al., 2015; Wachelke & Prado, 2017).
Ademais, ainda é possível avaliar que o jeitinho brasileiro, por não possuir qualquer ganho relacionado a valores monetários, diferencia-se da corrupção (Barbosa, 2006). Entretanto, deve-se ponderar que tal fenômeno se encontra em uma área hachurada entre o favor, compreendido como aquelas ações que não são condenáveis, fundadas na empatia e ajuda ao próximo (Almeida, 2015) e a corrupção, em que a conduta praticada traz prejuízos para terceiros, sejam pessoas físicas, seja o próprio Estado (Gomes et al., 2015). Nessa perspectiva, um estudo realizado por Barbosa (2006), o qual avaliou a adesão social ao jeitinho brasileiro, observou que 66.7% da população estudada já fez uso de tal comportamento. A pesquisa apontou que a sociedade procura fazer uma distinção entre favor, jeitinho e corrupção. Porém, quando se fala em corrupção e jeitinho, a diferença torna-se menos consensual, ao reforçar uma ideia turva do que seria certo ou errado, visto que metade dos participantes da pesquisa considera o jeitinho uma prática correta (Almeida, 2015).
A concepção do jeitinho como prática cultural reconhecida e aceita pela comunidade brasileira (Almeida, 2015), permite conjecturar que esse fenômeno se apresenta como um traço aprendido e naturalizado a partir das relações sociais, cuja assimilação ocorre desde a infância. A criança, ao longo do desenvolvimento, por meio do processo de socialização, assimila a dimensão cognitiva da moralidade e os desdobramentos de valores emitidos pela família, a qual constitui sua primeira instituição de convívio (Oliveira et al., 2019). Para o indivíduo na fase da infância, o que é imposto pelo outro é reproduzido, mas também criado e reinterpretado, seja na ênfase de valores socioeconômicos, culturais, entre outros. Essa vivência é uma reorganização processual necessária para a criação de uma identidade outra; trata-se do próprio sujeito retomando e refazendo o processo recebido a partir de suas próprias relações (Lima & Santos, 2018).
Esse aspecto ressalta a compreensão de que a avaliação do jeitinho brasileiro em crianças pode acarretar diversos e significativos benefícios. Em primeiro lugar, possibilitaria uma compreensão mais aprofundada da influência cultural e social na formação da identidade infantil brasileira, especialmente no que se refere à influência de fatores culturais na construção de comportamentos desde as fases iniciais de desenvolvimento. Ademais, essa avaliação permitiria a análise da concepção de justiça, da compreensão de regras e da tomada de decisões éticas, ou seja, a exploração do desenvolvimento moral das crianças. Tendo em vista a associação do jeitinho brasileiro ao desenvolvimento de habilidades sociais, seria factível considerar a capacidade de interação das crianças, assim como a investigação de habilidades como negociação, persuasão e empatia, por exemplo. Por fim, levando em consideração as características negativas do jeitinho brasileiro, tais como corrupção e incompatibilidade com as normas estabelecidas (Barlach, 2020), é possível conjecturar que a avaliação pode incitar discussões acerca de valores e ética, propiciando o desenvolvimento, na criança, de um senso de responsabilidade social, empatia e compreensão dos impactos de suas ações sobre os outros.
A carência de instrumentos com foco na avaliação do jeitinho brasileiro em crianças limita a compreensão de diversas questões nesse público, pois as medidas existentes restringem a avaliação do jeitinho brasileiro aos adultos, ao operacionalizá-lo a partir de situações descontextualizadas do público infantil. Este estudo tem como objetivo adaptar o Questionário sobre o jeitinho brasileiro - Versão individual para o âmbito infantil, contextualizando seus cenários e apresentando evidências de validade e precisão.
Método
Participantes
Inicialmente, contou-se com uma amostra de 131 participantes, a maioria do gênero feminino (59,5%), com idades entre 6 e 16 anos (M = 10.7; DP = 2.00). Contudo, a fim de contemplar predominantemente crianças, excluíram-se, por apresentarem idades superiores a 13 anos, oito participantes. Em função desse critério, a amostra do estudo se configurou com 123 crianças, meninos (38.8%) e meninas (61.2%), com idade média de 10.5 anos (DP = 1.78), distribuídas do 1º ao 7º ano do Ensino Fundamental, sendo: 7.4% do 1º e do 2º ano; 39.9%, do 3º e do 4º ano; 37.4%, do 5º e do 6º ano; e 15.4% do 7º ano. Trata-se de uma amostra não probabilística, em que participaram exclusivamente as crianças que assinaram o Termo Livre de Assentimento (TALE) e obtiveram o consentimento dos seus responsáveis, conforme detalhado no procedimento.
Instrumentos
As crianças responderam a versão preliminar Questionário sobre o jeitinho brasileiro - Versão Infantil (QJB-INF). Esse instrumento se configura como uma versão adaptada do Questionário sobre o jeitinho brasileiro - Versão individual, considerado um dos principais instrumentos para avaliar o Jeitinho Brasileiro. Nele, o jeitinho brasileiro é operacionalizado por meio de 19 cenários, distribuídos em três fatores, nos quais a pessoa que responde deve identificar-se com o protagonista de cada cenário (Ferreira et al., 2012). O primeiro, nomeado de "corrupção", agrupa seis cenários; o segundo, "criatividade", nove; e o último, "quebras de normas sociais", seis. As respostas são dadas em escala de 11 pontos, sendo 0 = muito improvável (me comportar como a pessoa descrita) e 10 = muito provável (me comportar como a pessoa descrita). No estudo original, a consistência interna (alfa de Cronbach) desses fatores foram, respectivamente, 0.90, 0.83 e 0.85; com correlações entre eles de 0.12 (corrupção e criatividade), 0.65 (corrupção e quebra de normas sociais) e 0.46 (quebra de normas sociais e criatividade). A versão infantil consiste em 19 itens, cada um correspondendo a um cenário do cotidiano infantil, composto por um ou mais personagens. Especificamente, descreve-se uma história possivelmente vivenciada pela criança ou que ela, mesmo não tendo vivido, consiga compreender. As respostas são apresentadas em escala com intervalo de 1 (nada provável) a 6 (muito provável) pontos; a criança deve ler a situação e indicar qual a probabilidade dela, estando na situação da/do personagem principal, agir da mesma forma. Para facilitar a compreensão, os números da escala foram acompanhados pelos lados de um jogo de dados, que indicavam a numeração respectiva.
Além do QJB-INF, os participantes responderam ao Questionário de Valores Básicos - Infantil (QVB-I), mas, para os fins específicos deste estudo, esse instrumento não foi utilizado (Gouveia et al., 2011). Para caracterização da amostra, incluíram-se questões de caráter bio-socio-demográfico, tais como: idade, gênero, escolaridade, religião, com quem a criança mora, com quem ela passa a maior parte do tempo e aspectos socioeconômicos.
Procedimentos
A aplicação dos instrumentos foi realizada em sala de aula, em horários cedidos pelas escolas, após a devolutiva dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), enviados previamente para os responsáveis pelas crianças. Os instrumentos foram aplicados coletivamente em sala de aula e respondidos individualmente. Para tanto, contou-se com a colaboração de dois aplicadores devidamente treinados que, antes de iniciar cada coleta, destacavam para as crianças, com linguagem apropriada: o caráter voluntário da participação; os objetivos da pesquisa; os procedimentos aos quais seriam submetidos e suas possíveis consequências; e como as informações recolhidas seriam utilizadas.
Ademais, a pesquisa passou pela autorização Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Ceará (Parecer: 3.644.853), seguindo os princípios determinados pela Resolução 466/12 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2013).
Análise de Dados
Além das estatísticas descritivas (tendência central e dispersão), realizaram-se por meio do Software Factor 12.01 (Ferrando & Lorenzo-Seva, 2017) Análises Fatoriais Exploratórias (AFE), empregando o estimador Robust diagonally weighted least squares (RDWLS), a matriz de correlações policóricas e a rotação Robust Promin (Lara, 2014); contudo, antes de efetuar as análises, observaram-seos indicadores KMO (Kaiser-Meyer-Olkin) e teste de Esfericidade de Bartlett, a fim de checara pertinência da matriz de dados. Ao mesmo tempo, considerando as possíveis limitações do tamanho amostral, empregou-se a técnica de bootstrapping, com simulação de 500 novas amostras. Para o possível número de componentes a extrair, teve-se em conta os critérios de Cattell, Kaiser, Análise Paralela e Hull (Damásio, 2012). Por fim, utilizando o Software Jamovi (2023), calcularam-se os índices de consistência interna alfa de Cronbach (α) e Ômega de McDonald (ω).
Resultados
Inicialmente, buscaram-se analisar os 19 cenários do instrumento original, com a finalidade de entender, além do fator já classificado, a ideia central de cada item. Ao identificar o núcleo, considerou-se adaptar o cenário em um contexto infantil, como o escolar e o familiar, contemplando os ambientes de interação de cada criança. Por exemplo, para o cenário original "Paulo bate com seu carro e não tem seguro contra colisões. Para não ter um prejuízo muito grande, ele consegue fazer um seguro com data anterior ao acidente, de modo que a seguradora possa cobrir os danos provocados pelo acidente", o fator destacado é o de corrupção (Ferreira et al., 2012). Nesse sentido, o núcleo da ideia seria a falsificação de contexto em benefício próprio. A partir dessa demanda, elaborou-se o cenário infantil: "Caio tirou uma nota muito baixa na prova e está com medo de mostrar para o pai, que é muito rígido e sempre pede para ver suas provas. Caio então muda sua nota de 3 para 8 com a caneta para que não fique de castigo e possa jogar bola".
Os itens foram submetidos à análise de juízes e à validação semântica. Nesta etapa, contou-se com um grupo de cinco profissionais e peritos em desenvolvimento infantil, que conseguiram identificar os cenários indicados e analisar se as situações condiziam com a proposta teórica do instrumento adaptado, avaliando, por meio dos procedimentos indicados por Borsa et al. (2012) e Cassepp-Borges et al. (2010), a clareza, a pertinência e a relevância, e indicando a que fator pertenciam. Após a análise de juízes, o instrumento também passou por validação semântica, mediante a contribuição de dez crianças com idades entre seis e oito anos. Esse procedimento considerou o fato de que se as crianças mais novas compreendessem os itens, as de idade e série escolar mais avançadas também compreenderiam. No primeiro momento, as respostas foram dadas de maneira autônoma e, se as crianças tivessem dúvidas, poderiam perguntar para a aplicadora. Para cada questão, indicou-se se as instruções, o feedback que a criança proporcionou, a interpretação de texto e a gramática estavam de fácil, média ou difícil compreensão. Com base nos resultados da análise de juízes e da validação semântica, o conteúdo dos itens e das instruções do instrumento foram revistos e, quando necessário, reformulados para deixar o instrumento com linguagem acessível ao público-alvo.
Em seguida, com os dados coletados, procurou-se avaliar a estrutura fatorial do QJB-INF. Nessa direção, antes de prosseguir, checou-se a adequabilidade da matriz correspondente para a realização de análises fatoriais, observando resultados favoráveis: Kaiser-Meyer-Olklin (KMO = 0.651) e o Teste de Esfericidade de Bartlett [χ 2 (171) = 833.2; p<0.001]. Na sequência, a fim de conhecer as possíveis soluções fatoriais, observaram-se os critérios de Kaiser, Cattell (scree-plot), análise paralela e Hull. O critério de Kaiser, como esperado, inflacionou o número de fatores, indicando ser possível a extração de até seis componentes da matriz. Por outro lado, tanto o scree-plot como a análise paralela sugeriram uma estrutura composta por dois fatores, ao passo que o critério de Hull apontou a possibilidade de um modelo unifatorial.
Em função disso, optou-se por efetuar análises fatoriais considerando modelos compostos por um, dois e três fatores. Segundo os resultados, o primeiro (unifatorial) reuniu apenas 12 itens com cargas fatoriais iguais ou superiores a 0.30, apresentando consistência interna de 0.76, para o alfa de Cronbach (α), e 0.77 para o ômega de McDonald (ω). O segundo modelo agrupou 11 itens no primeiro fator, com cargas fatoriais entre 0.41 (item 9) e 0.82 (item 17), e 5 itens no segundo, variando de 0.33 (item 5) a 0.72 (item 4); excluíram-se os itens 1 e 3, por apresentarem saturações abaixo de 0.30, e o item 14, por saturar acima do ponto de corte (≥ 0.30) nos dois fatores. Nesse modelo, os valores do α foram 0.77 e 0.62, e do ω 0.77 e 0.66, para o primeiro e o segundo fator, respectivamente. O último modelo envolveu a estrutura originalmente proposta, mas os resultados se mostraram confusos, dado que os itens 1 e 14, eliminados nas análises anteriores, foram os únicos a saturar acima de 0.30 exclusivamente no terceiro fator, enquanto os demais (11, 12, 16 e 18) demonstraram saturações superiores no primeiro ou no segundo fator.
Em síntese, os resultados indicaram ser coerente uma estrutura composta por dois fatores; com efeito, o primeiro reuniu onze itens relacionados à comportamentos antissociais (por exemplo, "Léo é o líder da turma e, junto com sua sala estava organizando doações de comidas para um abrigo de idosos. Na organização dos alimentos, Léo percebeu que tinha doações de seu biscoito favorito. Léo então, sem ninguém perceber, levou alguns pacotes do biscoito para casa"), e o segundo agrupou cinco itens com conteúdos relacionados à criatividade (por exemplo, "Guilherme estava precisando de nota boa em História. Como não estava se concentrando para conseguir estudar, ele inventou uma música para decorar a matéria e não esquecer nada na hora da prova. Como tem facilidade com melodias, a estratégia foi um sucesso"). Os resultados detalhados para essa estrutura são apresentados na Tabela 1.
Como se observa, os dois componentes explicaram conjuntamente 37,5% da variância e demonstraram consistências internas consideradas, para o propósito deste estudo, satisfatórias. Desse modo, a versão final do QVB-INF ficou composta por 16 itens distribuídos em dois fatores: comportamento antissocial e criatividade.
Discussão
Este estudo teve como objetivo principal adaptar o Questionário sobre o jeitinho brasileiro - Versão individual para o âmbito infantil, contextualizando seus cenários e apresentando evidências de validade e precisão. Com base no estudo original de construção daversão individual(Ferreira et al., 2012), a estrutura fatorial esperada era de três fatores, os quais se definiam por corrupção, criatividade e quebra de normas sociais, medindo atitudes e crenças referentes ao jeitinho brasileiro. Após análise para a versão infantil do instrumento, optou-se por considerar uma estrutura de dois fatores. Como foi possível constatar nos resultados, os fatores corrupção e quebra das normas se fundem em um único fator. Essa estrutura apresentou índices de fidedignidade considerados satisfatórios para o propósito do estudo. Apesar de um dos fatores não ter apresentado consistência interna acima do recomendado, que é 0,70 (Nunnally, 1991), deve-se observar dois aspectos: o número de itens que contempla o fator e o tamanho da amostra, além de considerar o propósito da medida (pesquisa).
O uso de uma medida multifatorial é justificado na perspectiva de que as pessoas possuem distintas definições de jeitinho brasileiro, que configuram, portanto, os três fatores na escala original (Ferreira et al., 2012). Contudo, é possível pensar que, em função do contexto infantil, no qual a criança adquire concepções morais com oposições antagônicas bastante claras, no sentido de muitas vezes possuírem definições dicotômicas, tais quais bem e mal ou certo e errado (Lima & Santos, 2018), os dois fatores percebidos encaixam-se na teoria do jeitinho brasileiro.
O construto "jeitinho" caracteriza-se, muitas vezes, conforme a polaridade entre sua definição positiva e negativa. No âmbito positivo, em que não há intenção de ferir o próximo ou prejudicar algum código social, a criatividade mostra-se um fator de destaque, em que dá espaço para a inovação na resolução de problemas, espontaneidade relacionada ao bom humor e à cordialidade (Barlach, 2020). No universo infantil, o "jeitinho" pode ser visto como uma manifestação da engenhosidade das crianças, em que elas podem buscar soluções lúdicas para os desafios que enfrentam. O "jeitinho" então pode aparecer como uma ferramenta de expressão de afeto ou de interesse (Miranda & Mamede, 2023). Itens que trazem a iniciativa atrelada à proatividade ganham ênfase no instrumento, por exemplo: "É dia das mães e Isabela não sabia como presentear a sua. Para não pedir dinheiro ao pai, Isabela resolveu acordar sua mãe tocando flauta, seu instrumento favorito". Considerado este conceito, torna-se pertinente defini-lo enquanto um fator de criatividade, o qual se verifica enquanto um aspecto positivo do jeitinho brasileiro.
Por outro extremo, o lado negativo do jeitinho brasileiro é caracterizado pela indisciplina, pela esquiva social, por atitudes coercitivas ligadas ao interesse próprio acima do coletivo e pela depredação de regulamentos. Tais condutas podem identificar esse lado do construto como um comportamento antissocial, nome utilizado para definir um dos fatores do instrumento. No contexto infantil, a criança pode utilizar essa habilidade para benefício próprio reforçando tais atitudes citadas. Essa prática pode despertar discussões sobre a importância da honestidade, da cooperação e do respeito às regras estabelecidas no grupo infantil. Portanto, é relevante perceber como as crianças compreendem as implicações negativas do "jeitinho brasileiro" e como são incentivadas a adotar condutas mais éticas e socialmente responsáveis (Waller et al., 2019). Um item de exemplo seria: "Carlinhos estava prestes a completar o seu álbum de figurinhas da copa. Juca tinha a figurinha que faltava, mas não interessava a ele nenhuma que Carlinhos tinha. Carlinhos então, para conseguir a que faltava, trocou as figurinhas enquanto Juca estava no banheiro. Assim, Carlinhos completou seu álbum de figurinhas".
O QJB-INF é uma ferramenta válida para perceber o construto do jeitinho brasileiro em uma perspectiva infantil. O instrumento consegue abarcar uma definição válida para o contexto por meio dos dois fatores propostos, ao compreender a realidade da criança em situações do cotidiano, além de possuir linguagem compreensível e coerente à circunstância. Tal escala poderia ser utilizada em diversos contextos, como pesquisas acadêmicas, estudos em saúde mental e intervenções educacionais, com a possibilidade de informações sobre as habilidades e iniciativas e, ainda mais, como uma ferramenta para análise de comportamentos disruptivos, proporcionando um auxílio no estabelecimento do perfil dessa criança em casa, na escola ou entre outros contextos. Com essa possibilidade, o QJB-INF poderia auxiliar no desenvolvimento de estratégias e intervenções específicas para estimular a criatividade de maneira saudável, além da identificação e, possibilidade de prevenção de comportamentos antissociais ao longo da vida em um contexto brasileiro.
Não há nenhuma versão com essas definições no Brasil, e os instrumentos existentes, apesar de robustos, não abarcam o contexto infantil por não apresentarem a realidade e a rotina percebidas pelas crianças, mas a realidade adulta, sendo ela coletiva ou individual (Ferreira et al., 2012).
Considerações Finais
É importante destacar algumas limitações deste estudo. Primeiramente, o QJB-INF com dois fatores, avaliando a criatividade e o comportamento antissocial, pode ser considerada uma medida subjetiva e dependente de autorrelato. Isso significa que os resultados podem ser influenciados pela percepção e interpretação das crianças, bem como pela precisão e sinceridade de suas respostas. Além disso, é importante considerar que a amostra utilizada neste estudo foi restrita a uma determinada região geográfica, o que limita a generalização dos achados para outras populações de crianças brasileiras. Ainda mais, a adaptação dos cenários do Questionário sobre o jeitinho brasileiro - Versão individual ao QJB-INF não é literal devido a contextos que não eram possíveis de serem comparados diretamente. Portanto, futuros estudos devem buscar uma maior diversidade de amostras e abordagens metodológicas para obter resultados mais abrangentes e confiáveis.
Os principais achados deste estudo revelaram que a escala de jeitinho brasileiro infantil com dois fatores, enfocando a criatividade e o comportamento antissocial, pode fornecer informações importantes sobre o perfil comportamental das crianças mediante processos socioculturais em sua fase de desenvolvimento, com a possibilidade de trabalhar na escola o senso de moral e ética, habilidades sociais, resolução inovadora de problemas, entre outros. Ainda mais, esse estudo traz a possibilidade de expandir novas pesquisas atreladas ao "jeitinho brasileiro", como a possibilidade de transmissão de valores no processo de aprendizagem dessas crianças.
Investigações futuras enfrentarão desafios, como a necessidade de abordar as limitações metodológicas, ampliar as amostras para representar diferentes regiões e faixas etárias, mas também possibilitarão explorar intervenções educacionais que possam promover uma abordagem saudável e positiva do jeitinho brasileiro, estimulando a criatividade e prevenindo comportamentos antissociais.
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Recebido em: 02/08/2022
Reformulado em: 06/07/2023
Aceito em: 10/07/2023
Notas
* Psicóloga, graduada pela Universidade Estadual do Ceará, doutoranda em Psiquiatria e Psicologia Médica pela Universidade Federal de São Paulo.
** Doutor em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Associado da Universidade Federal do Ceará. Coordenador do Laboratório Cearense de Psicometria.
*** Doutora em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Universidade Federal do Ceará. Coordenadora do Núcleo de Avaliação Psicológica em Saúde.
**** Psicóloga, graduada pela Universidade Federal do Ceará. Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Professora da Faculdade Princesa do Oeste.
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