Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e79055, doi:10.12957/epp.2024.79055
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

"Antes que a Bala Perdida me Ache": Saúde Mental da População Negra e Violência Policial

 

"Before the Stray Bullet Finds me": Black People's Mental Health and Police Violence

 

"Antes que la Bala Perdida me Encuentre": Salud Mental y Violencia Policial

 

Geovana Afonso do Nascimento a, Ana Paula Medeiros b

a Fundação Hermínio Ometto, Araras, SP, Brasil
b Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

A violência policial se constitui como um fenômeno marcado por discriminações quando voltados para corpos negros, visando o controle desses corpos através da violência. A pesquisa buscou compreender como se configura a saúde mental da população negra frente à essa violência, bem como sua relação com o racismo. Como método, numa perspectiva qualitativa, utilizou-se a revisão narrativa de inspiração cartográfica, que consistiu na utilização de fontes de informações bibliográficas para fundamentar teoricamente o trabalho, de forma a possibilitar a compreensão do "estado da arte" do objeto estudado. A arte, sobretudo as letras de rap, auxiliaram nesse processo de apreensão do fenômeno. Com isso, pôde-se analisar a raça como um fator primordial na construção da desigualdade, que se materializa na polícia militar enquanto instituição. A militarização da polícia se revela como um aparato de opressão seletiva da população negra, possuindo forte influência em sua saúde mental. Além da adoção de medidas tecnológicas para o enfrentamento do problema, observou-se que a arte se apresenta como uma forte aliada na conscientização, pertencimento, refúgio e luta para quem se encontra em meio ao campo de batalha.

Palavras-chave: racismo, rap, polícia, militarização.


ABSTRACT

Police violence is a phenomenon marked by discrimination when it targets black bodies, aiming to control these bodies through violence. The research sought to understand how the mental health of the black population is configured in the face of this violence, as well as its relationship with racism. From a qualitative perspective, the method used was a cartographically-inspired narrative review, which consisted of using bibliographic sources of information to provide a theoretical basis for the work, in order to make it possible to understand the "state of the art" of the object studied. Art, especially rap lyrics, helped in this process of understanding the phenomenon. As a result, it was possible to analyze race as a key factor in the construction of inequality, which materializes in the military police as an institution. The militarization of the police reveals itself as an apparatus of selective oppression of the black population, with a strong influence on their mental health. In addition to the adoption of technological measures to tackle the problem, it was observed that art is a strong ally in raising awareness, belonging, refuge and struggle for those who find themselves in the middle of the battlefield.

Keywords: racism, rap, police, militarization.


RESUMEN

La violencia policial es un fenómeno marcado por la discriminación cuando se dirige a los cuerpos negros, con el objetivo de controlarlos mediante la violencia. La investigación buscó comprender cómo se configura la salud mental de la población negra frente a esta violencia, así como su relación con el racismo. Desde una perspectiva cualitativa, el método utilizado fue una revisión narrativa de inspiración cartográfica, que consistió en utilizar fuentes bibliográficas de información para fundamentar teóricamente el trabajo, con el fin de permitir la comprensión del "estado del arte" del objeto estudiado. El arte, especialmente las letras de rap, ayudaron en este proceso de comprensión del fenómeno. Como resultado, fue posible analizar la raza como factor clave en la construcción de la desigualdad, que se materializa en la policía militar como institución. La militarización de la policía se revela como un aparato de opresión selectiva de la población negra, con fuerte influencia en su salud mental. Además de la adopción de medidas tecnológicas para enfrentar el problema, se observó que el arte es un fuerte aliado en la sensibilización, pertenencia, refugio y lucha de aquellos que se encuentran en medio del campo de batalla.

Palabras clave: racismo, rap, policía, militarización.


 

 

O problema da violência policial no Brasil

A violência policial constitui-se como um fenômeno marcado por preconceitos e discriminações quando voltados para corpos negros, sobretudo quando a raça é determinante na produção da desigualdade de tratamento e critérios de suspeição dos policiais, o que evidencia a necessidade de estudos acerca da temática, considerando também a complexidade e interseccionalidade do problema. Brasil, Santiago e Brandão (2020) apontam para a banalização das práticas dessa violência, que muitas vezes também é letal para determinadas pessoas ou grupos sociais, como é o caso da população negra, jovem e periférica. Segundo os autores, a literatura tem demonstrado que a violência policial é uma prática constantemente aceita e até mesmo encorajada por uma camada considerável da sociedade brasileira, considerando também a influência da cultura autoritária na constituição histórica dos dispositivos policiais para a manutenção da ordem e na orientação do seu modus operandi, principalmente em suas abordagens seletivas e abusivas com a população negra.

Não só a suspeição e a abordagem policial indicam a discrepância racial frente à violência policial e institucional, como também os fatores de morte em decorrência da ação policial e encarceramento da população negra. Quanto maior o encarceramento, mais ele se concentra sobre jovens e negros e, quanto maior a frequência das ocorrências de letalidade policial, mais essa letalidade também os afeta, indicando a importância desses fatores para a compreensão das relações entre violência e racismo (Sinhoretto & Morais, 2018).

Os dados apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 (FBSP, 2022) revelam que, mesmo com a redução da letalidade policial, a mortalidade de negros se acentuou em 2021. O documento indica que a taxa de mortalidade entre vítimas brancas teve uma queda de 30,9% no ano de 2021, enquanto a mesma taxa em vítimas negras teve um aumento de 5,8%, evidenciando essa discrepância. A pesquisa revela que os dados coletados precisam de melhoria na qualidade do preenchimento dos boletins de ocorrência, uma vez que, em 2020, 36,4% dos registros não tinham o registro de raça/cor/etnia, caindo para 31,1% no ano de 2021. Apesar da qualidade da informação ter melhorado nesse período, o percentual de pretos e pardos vítimas de intervenções policiais é mais alto que o esperado, sendo 84,4% de todas as ocorrências com raça/cor/etnia identificados. Em vista disso, observa-se que as políticas de segurança pública revelam o racismo institucional em seus resultados: a prevalência de jovens negros mortos, mais presos e com mais vulnerabilidade com relação à violência (Sinhoretto & Morais, 2018). Isso indica que o problema está além dos atributos individuais e de discriminação racial por parte dos policiais, mas que há uma institucionalização do racismo na polícia.

Pesquisas sobre o fenômeno da morte violenta mostram que a racialização dos jovens negros torna essas mortes plausíveis e inconsequentes, uma vez que os desumaniza (Sinhoretto & Morais, 2018). Isso também se estende no alto grau de impunidade dos agentes da violência, visto que, segundo a Justiça Global, MNMMR e OMCT (2009, p. 33), "casos de execuções sumárias e outros atos de violência raramente são levados à Justiça, e quando alguma vítima ou familiar decide denunciar os abusos praticados pela polícia, via de regra torna-se alvo de mais ameaças e retaliações.". Com isso, a rara condenação dos policiais não é comprovação de justiça, no entanto, pode ser significativa para quem fica, e, assim, oferecer uma mínima resposta do Estado diante da brutalidade ocorrida.

Dito isso, a violência policial não cessa com a morte de suas vítimas, pois existem aqueles que sobrevivem, os pais que perdem seus filhos, os amigos, a família e a comunidade que ficam. Portanto, torna-se necessário compreender como funcionam essas dinâmicas de desumanização, que além de legitimar a morte e a violência, operam na saúde mental da população negra, uma vez que violência policial se revela enquanto um aparato de opressão seletiva dessa população.

 

Metodologia

Esta pesquisa insere-se numa perspectiva qualitativa de inspiração cartográfica, a partir do método de revisão narrativa. A pesquisa qualitativa responde a questões particulares e a uma realidade que não pode ser quantificada (Minayo, 1994). Proposta por Deleuze e Guattari (1995), a cartografia, como método de pesquisa, é inserida nos princípios do que se compreende por rizoma. Opondo-se à racionalidade cartesiana-positivista, "[…] o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga" (Deleuze & Guattari, 1995, p. 32). Cartografar é propor outros modos de (des)construir compreensões acerca dos fenômenos, no tecer da rede de afetos e nas articulações rizomáticas das relações e do mundo.

Em vista disso, a presente pesquisa lança mão da revisão narrativa, que, de acordo com Rother (2007), utiliza fontes de informações bibliográficas ou eletrônicas para fundamentar teoricamente o trabalho e seu determinado objetivo, por meio de pesquisas de outros autores. As revisões narrativas não informam, de modo sistemático, as fontes de informações utilizadas, a metodologia de busca e os critérios utilizados para a seleção das referências, constituindo-se pela análise da literatura a partir da interpretação e análise crítica do autor.

Ao entender os limites do conhecimento científico, a arte surge como um aporte para a construção deste trabalho. Inserido no campo da arte, e, também, por florescer nos campos habitados pela população negra e periférica, o rap nacional tornou-se um dos principais instrumentos utilizados nesta pesquisa. O rap se apresenta como um meio outro de se educar para a resistência, apreensão das representações da violência e também como um modo de transformação dos sujeitos excluídos, sendo possível investigar, a partir das letras, as possibilidades de existir em meio à violência e adentrar o campo das subjetividades de quem vivencia e resiste aos dispositivos de racialidade presentes na sociedade brasileira (Gomes, 2019). Com isso, busca-se evidenciar que tipo de relações são essas no contexto proposto de investigação, e de que forma elas desenham a realidade social de pessoas negras que, inseridas em um sistema racista, "[…] são sistematicamente desqualificadas; consideradas como conhecimento inválido; ou então representadas por pessoas brancas que, ironicamente, tornam-se "especialistas" em nossa cultura, e mesmo em nós" (Kilomba, 2019, p. 51).

Cor, raça e racialização na "terra das coincidências"

"Costa Barros, coincidência, Guadalupe, coincidência
Mesma cor em incidência, na terra das coincidências
Preto é sempre cor tendência pra essa fria sentença
Que não busca um ponto final, vai cooperar com as reticência"
(Cesar MC & Emicida, 2021)

É nítido que a coincidência é simples demais para dar conta da complexidade presente nas relações que perpassam o que esta pesquisa se propõe a investigar. Se há uma tendência no negro a ser sentenciado, de que forma isso se dá? Como a raça é determinante na produção de desigualdade? Ou melhor, de que raça é essa que estamos falando?

No século passado, "raças" eram entendidas como subdivisões da espécie humana, classificadas de acordo com características morfológicas como cor da pele, formato do nariz, tipo de cabelo e formato do crânio, juntamente com particularidades morais, psicológicas e intelectuais, que determinavam o potencial de cada raça para a civilização (Guimarães, 1999). Essas são doutrinas que compõem o racialismo, cujo fundamento se dá pela existência de certa hereditariedade das características dos humanos, de modo que seja possível a divisão entre raças que possuem essas características em comum, constituindo uma espécie de "essência racial" (Appiah, 1997). É a partir dessas doutrinas que se justifica o tratamento diferencial nas sociedades, que se mostram em diversas configurações ao longo do tempo.

A mesma cor em incidência denuncia a necessidade de afirmar a raça como uma dimensão capaz de explicar os limites da coincidência. A racialização constitui-se "como um sistema de dominação que produz a diferença como desigualdade" (Sinhoretto, 2020, p. 14). Racializar, portanto, significa transformar um grupo de indivíduos em uma categoria racial subalterna, a partir de determinados marcadores físicos e biológicos, de modo arbitrário, mas ideologicamente justificados por um discurso um tanto quanto consistente, muitas vezes apoiado em bases consideradas científicas (Guimarães, 2016).

A racialização se mostra como um mecanismo que determina o negro como cor tendência para o que é tratado aqui como sentença. Logo, entende-se que existe um outro, ao qual esse grupo racializado torna-se subalterno. Isso porque, historicamente, para haver raça negra, há que se haver raça branca. Ou seja, na perspectiva individual, "[…] quando racializa um outro está-se ao mesmo tempo racializando-se a si mesmo, visto que classificar alguém como negro significa quase imediatamente classificar-se a si como branco, pardo, amarelo, ou outra designação" (Guimarães, 2016, p. 165).

Em contrapartida à racialização, a tentativa de negação da existência das raças e da discriminação racial passa a ser ponto central na discussão trazida aqui, alegoricamente, como coincidência. Guimarães (1999) sublinha a forma como o ideário anti-racialista de negação da existência dessa categoria une-se com uma política de negação do racismo como fenômeno social, como se o fato de negar um, extinguisse o outro. É com base nesse conjunto de crenças que se consolidou o que se conhece por democracia racial, pressuposta como a harmonia entre as raças através da mestiçagem, em contraponto aos conflitos étnicos e raciais que resultaram em grandes guerras e violências extremas, especialmente na Europa (Sinhoretto, 2020). Essa doutrina, ao mesmo tempo que nega, também afirma as diferenças, num movimento de produzir a diferença como marcador biológico e a desigualdade como diferença de classe social, e não de raça (Sinhoreto, 2020).

Compreende-se que a democracia racial e o branqueamento são utilizados como estratégias políticas das elites brancas, a fim de evitar e encobrir conflitos e o processo de identificação da discriminação racial brasileira. Guimarães (2016) afirma que, no Brasil, também devido ao forte discurso da democracia racial, a racialização malogrou em relação à formação de coletivos com forte atuação política, isto é, por ter emergido de uma mistura racial, entende-se que não existem mais raças "puras" e, sim, níveis diversos de clausura.

Diante disso, a sociologia lança mão da teorização de "raças" no Brasil, constituídas como formas de produzir comunidades e modos de agir e pensar individuais, para revelar condutas políticas e instituições que, sistematicamente, levam à discriminação e à desigualdade entre os grupos raciais (Guimarães, 1999). Esse torna-se um fator decisivo que ultrapassa a dimensão econômica, justificada pelo discurso da democracia racial no que diz respeito à causalidade da desigualdade, produto de uma rede complexa entre o plano econômico, político e cultural, além da multicausalidade das relações sociais. Logo, a desigualdade entre negros e brancos se deve à diferença entre negros e brancos, a saber, o racismo, tornando necessário discutir esses processos, fenômeno que será tratado a seguir.

As diferentes faces do racismo e suas implicações

É nítido o modo como experiências negras são visíveis através do olhar do sujeito branco. Kilomba (2019) aponta para essa questão como uma desimportância do negro como sujeito político, na medida em que são negligenciados e colocados como coadjuvantes de suas próprias experiências. Nesse sentido, torna-se indubitável a importância de discutir o racismo a partir da perspectiva de quem o vivencia, para também entender suas implicações nas subjetividades desses sujeitos.

Kilomba (2019) elenca três características simultaneamente presentes no racismo. A primeira é a construção da diferença, justamente porque a branquitude é engendrada como ponto de referência, de modo que todos os outros se tornam diferentes por meio do processo de discriminação. A segunda refere-se ao modo como essa diferença é inseparavelmente ligada a valores hierárquicos, que implica um processo de naturalização da diferença articulada ao estigma e à inferioridade. Essas duas características constituem o que é chamado também de preconceito. Por fim, esses processos também estão associados ao poder: histórico, social, político e econômico. É a partir da relação de poder em conjunto com o preconceito que o racismo se estabelece, constituindo-se como uma supremacia branca, de tal forma que nenhum outro grupo racial pode ser racista, uma vez que não possuem esse poder. O branco encontra-se no cerne da problemática do racismo pela via do poder.

Tendo isso em vista, entende-se que o racismo se dá de maneira complexa e multifacetada, uma vez que envolve relações de poder em diversas esferas da vida. Então, faz-se necessária a discussão sobre o racismo em suas múltiplas faces, como o racismo estrutural, institucional e o que Kilomba (2019) entende por racismo cotidiano, que representa experiências coloniais reiteradas, como um processo de experiências contínuas, e não pontuais, que se repetem constantemente ao longo da história de vida e do cotidiano da pessoa negra. É no cotidiano, nas pequenas falas e gestos, a partir de constantes invenções, muitas vezes disfarçadas e em sua maioria depreciativas e discriminatórias, que o racismo se apresenta e se enraíza, de modo que o negro seja reiteradamente subalternizado, em detrimento de uma visão branca. Compreende-se que pessoas negras se tornam "[...] um depósito para medos e fantasias brancas do domínio da agressão ou da sexualidade" (Kilomba, 2019, p. 78). A pessoa negra é reprimida e reprojetada, permitindo com que o sujeito branco se isente do seu lugar histórico de opressão e se construa enquanto um sujeito "civilizado", impondo ao outro a posição de "incivilizado" e "selvagem" (Kilomba, 2019).

A nível de estrutura, Kilomba (2019) entende o racismo estrutural na medida em que pessoas negras são excluídas de estruturas políticas e sociais, que privilegiam sujeitos brancos e colocam grupos racializados em uma desigualdade visível, excluindo-os dessas estruturas que são dominantes. A música Da lama/Afrontamento, de Tássia Reis (2016), expressa esse lugar de inferioridade que está na estrutura das relações: "Vejo pedras preciosas no meio do lamaçal/Muita gente conformada com o serviço braçal/Só conseguem se enxergar na posição de serviçal/ Sendo pau mandado de um ser humano boçal". A conformidade com a posição desigual expressa na música demonstra a forma como o racismo estrutural é cravado na sociedade. Por mais preciosa que seja a pedra e por mais que tenha potencial para estar em um lugar diferente do lamaçal, a conformidade é o que resta em meio à injustiça e desigualdade social. A lama se torna um lugar no qual o negro deve estar e se afundar, evidenciando os mecanismos de discriminação produzidos e operados pelas estruturas, que também são reforçados e materializados pelas instituições.

Desse modo, o racismo não se limita a um fenômeno ideológico, pois também é institucionalizado (Kilomba, 2019). O racismo institucional refere-se à desigualdade de tratamento no cotidiano das instituições, como a polícia. Enquanto o negro é, frequentemente, alvo de suspeição de policiais, o branco facilmente se "livra" dessa posição, uma vez que o racismo institucional opera de modo a colocar o branco em visível vantagem em relação aos grupos racializados. Trata-se de uma discriminação racial executada pelo Estado através de políticas públicas que se materializam nas instituições, atuando de forma desigual em relação a esses grupos e firmando quem deve viver ou morrer, como uma espécie de limpeza étnica (Kilomba, 2019). A seguir, a pesquisa discorre sobre as relações sociais, as concepções de violência e da militarização da polícia como via para o racismo institucional no Brasil.

A militarização da polícia como um aparato de opressão seletiva da população negra

Do ponto de vista democrático, a polícia, enquanto instituição, deveria atuar para garantir os direitos dos cidadãos. No entanto, sua prática no Brasil tem sido firmada na sustentação da segurança do Estado, em detrimento do encarceramento, execuções extrajudiciais e criminalização dos movimentos de jovens e negros, reproduzindo, aprofundando e promovendo desigualdades sociais (Soares, 2019). Esse comportamento também remonta a ideia de reiterar experiências coloniais, de modo que a polícia militar assuma esse papel de discriminação e repressão dos corpos negros na contemporaneidade.

A prevalência do perfil social e de cor nas operações policiais e no crescimento da população carcerária desde 2002 deve-se ao arranjo institucional da segurança pública, à organização da própria polícia, ao caráter militar da polícia ostensiva e às políticas de segurança sustentadas pela lei de drogas (Soares, 2019). As desigualdades e o racismo estrutural condicionam esses fatores, combinados ao modelo policial, política de segurança seletiva e política criminal apoiada no proibicionismo da lei de drogas.

No imaginário coletivo, o medo em relação ao crime está atrelado a essa construção de certo perfil social de criminoso em potencial, que é frequentemente associado à população negra (Adorno, 1995). Além de serem relegados à delinquência, o autor reforça que são suspeitos de serem os principais responsáveis pelo crescimento da criminalidade violenta nas cidades, também efeito das relações histórico-culturais do país. A música Racistas otários (Racionais MC´s, 1993) exprime essa seletividade em relação à polícia, que já possui um alvo padrão: "Enquanto você sossegado foge da questão/Eles circulam na rua com uma descrição/Que é parecida com a sua/Cabelo cor e feição/Será que eles veem em nós um marginal padrão". A letra da música coloca em evidência não só a construção de um perfil "marginal", mas sua perseguição, ou seja, esse determinado perfil, mesmo que sem ocorrência, já se apresenta como um suspeito em potencial. Contudo, não há estudo que comprove o maior número de negros em relação aos brancos no que se refere ao cometimento de crimes, sendo que estudos americanos, desde 1920, já denunciavam a influência do racismo na neutralidade dos julgamentos e na universalidade da aplicação das leis penais (Adorno, 1995). A pesquisa ainda indica que, dentre os "delinquentes" brancos e negros, não há discrepância de potencial para o crime violento. Não obstante, essa discrepância aparece quando negros são mais perseguidos pela vigilância policial, possuem mais dificuldade no acesso à justiça e ao direito de ampla defesa, tendo um tratamento penal mais rigoroso e maior probabilidade de serem punidos, comparados aos réus brancos (Adorno, 1995).

"Cor, cabelo e feição" de pessoas negras são vistos como potenciais dispositivos de discriminação utilizados na distribuição da justiça, revelando o modo como o funcionamento do sistema de justiça criminal é racista. Soares (2019) traz como exemplo o fato de a lei brasileira não estabelecer uma determinada quantidade no porte de droga ilícita para ser considerada como tráfico, de forma a dar margem para exercer a liberdade interpretativa das autoridades, via para a manifestação do racismo e reprodução das desigualdades raciais. Em vista disso, a liberdade interpretativa por parte da polícia representa um dentre os vários fatores ligados à seletividade violenta dessa instituição. Como dito anteriormente, seu arranjo também corrobora com esse fenômeno, na medida em que seu bom funcionamento é premissa para o bom funcionamento da segurança pública.

Ora, se a segurança pública é ineficiente, em que ponto a polícia está falhando? Como se dá o funcionamento da polícia e como isso afeta a população negra? Essas e outras questões também lançadas pela música Lágrimas de sangue, de Facção Central (1998), irão conduzir o percurso da discussão:

"Se não existe a pena de morte no Brasil
Por que a PM mata tanto? (...)
Seja bem-vindo ao espetáculo da contradição
Tortura sempre foi crime hediondo na constituição
E, no entanto, a polícia sempre matou
Sempre torturou, sempre mandou pro caixão"

A música traz a questão da pena de morte, que, a princípio, não existe no Brasil. No entanto, as execuções feitas por policiais indicam que a pena de morte só não é prevista pela lei, mas é praticada contra a população negra. Se a polícia é uma instituição destinada a garantir a segurança da população, por que é ela quem tortura, agride e mata? O espetáculo da contradição começa, então, pela sua organização. Por essa razão, vale começar pelo que são e como funcionam as polícias militares (PMs) no Brasil.

A princípio, polícias são instituições que visam

[…] garantir direitos e liberdades dos cidadãos, que estejam sendo violados ou na iminência de sê-lo, por meios pacíficos ou por uso comedido de força, associado à mediação de conflitos, nos marcos da legalidade e em estrita observância dos direitos humanos. (Soares, 2019, p. 39).

Já as PMs são forças auxiliares e reservas do Exército, conforme o artigo 144, parágrafo 6º (Brasil, 1988), e se subordinam a duas instâncias: ao Exército, que é responsável pelo "controle e pela coordenação", e às secretarias de Segurança dos estados, que têm autoridade sobre sua "orientação e seu planejamento" (Soares, 2019, p. 38). Assim, há assimetria na hierarquia das estruturas organizacionais, apesar de a principal cadeia de comando ser a do Exército. Uma vez que as PMs não são estruturadas como polícias, responsáveis por garantir a segurança dos cidadãos, mas como "pequenos exércitos desviados de função", há a formação de ambiguidades que inviabilizam mudanças e sustentam confusões (Soares, 2019, p. 39). Além de condições de trabalho desumanas, ausência de apoio psicológico e de qualificação, o fato de serem proibidos pela Constituição (Brasil, 1988) a realizar investigações acarretam uma maior pressão para produção e prisões em flagrante (Soares, 2019).

É a partir daí que os grupos sociais mais vulneráveis se tornam alvo dos policiais, posto que existe um determinado perfil a ocupar este lugar. Nos territórios mais vulneráveis, o enfrentamento tende a ser mais conflituoso, no sentido de ocupação e disputa, que resultam nas execuções extrajudiciais que, com o aval da Justiça e omissão da mídia e parte da sociedade, são arquivados sob o sórdido título de "autos de resistência" (Soares, 2019).

O documentário intitulado Auto de Resistência, de Natasha Neri e Lula Carvalho (2018), acompanha alguns casos de homicídios cometidos pela PM no Rio de Janeiro e demonstra o evidente padrão de imprudência ao arquivar inquéritos antes mesmo da sentença ser emitida. A obra discute o modo como "autos de resistência" são rotineiramente utilizados para isentar policiais da responsabilidade pelos homicídios, alegando "legítima defesa". Assim, quando a construção de um alvo padrão não for o suficiente para isentar policiais de qualquer responsabilidade sobre os assassinatos cometidos, as provas forjadas se tornam um mecanismo que sustentarão o discurso que mantém o negro como culpado, até mesmo pela sua morte.

No decorrer de mais de cem anos de República, a violência se manteve enraizada, institucionalizada e até mesmo encorajada para a solução de conflitos resultantes das desigualdades sociais, reafirmando o caráter autoritário da sociedade brasileira. O controle legal da violência, a responsabilidade penal dos agressores e o controle efetivo do aparato repressivo não lograram no contexto de transição política, fazendo com que a violência se tornasse uma questão pública (Adorno, 1995). Assim, a história da sociedade brasileira, para Adorno (1995), pode ser considerada como uma história social e política da violência, uma vez que conflitos decorrentes das diferenças de etnia, classe, gênero e demais aspectos foram se multiplicando e constantemente solucionados pelas mais desumanas formas de violência. O controle violento por meio do Estado foi utilizado para conter esse crescimento da criminalidade, contendo-se a violência a qualquer custo, mesmo que custe a vida de indivíduos suspeitos (Adorno, 1995).

Para Adorno (1995), a violência policial aumentou exponencialmente e, a partir da ideia de que esses episódios se tornaram rotineiros e com o consentimento de diferentes camadas da sociedade, houve uma inclinação para a normalização dessa prática para a resolução de conflitos. A violência passa a representar um mecanismo no qual se restabelece as hierarquias de poder e os policiais que não reproduzem essa violência são questionados sobre a qualidade de seu trabalho. Essa legitimidade da violência é justificada como manutenção da ordem e pré-requisito para uma sociedade democrática, em um paradoxo, pois o monopólio da violência leva ao impedimento da livre circulação da violência através da violência (Porto, 2015).

Pensar a definição de violência, justamente por ser um fenômeno tão complexo, é uma tarefa árdua, mas necessária para buscar compreender as implicações na subjetividade de pessoas negras. Diante disso, cabe trazer a concepção de Porto (2015, p. 31), de modo não definitivo e conclusivo, que compreende que há violência "[…] sempre que o outro fosse desconsiderado como sujeito e, em função disso, tratado como objeto, inviabilizando, em última instância, a interação social, seja ela de natureza consensual ou conflituosa.". Com base nessa concepção de negação da alteridade e de um "não lugar" pretende-se, no próximo tópico, compreender como o que foi discutido se relaciona com a saúde mental da população negra e os modos de gerir o sofrimento e enfrentar a violência através da arte.

"Necrotério dos vivos": violência e saúde mental da população negra

"Quem não tem o padrão de vida estabelecido na constituição federal
Já tá em estado avançado de putrefação
Quem tem a probabilidade de uma morte violenta
Por sua condição financeira e cor de pele
Já sobrevive dentro de um túmulo
A coroa de flor é só um detalhe para nós
Que caminhamos sem vida na escuridão da indigência"
(Eduardo Taddeo, 2020)

O genocídio da população negra não se limita à morte propriamente dita das vítimas. O que é viver para quem habita um lugar de tamanha violência? (Sobre)viver dentro de um túmulo, já em estado de putrefação, então, seria uma das, se não a única possibilidade, para quem já tem seu destino traçado, sobretudo por sua condição financeira e cor da pele.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 (FBSP, 2022), desde quando o número de mortes em intervenções policiais passou a ser monitorado, no ano de 2013, pelo menos 43.171 pessoas foram vítimas de intervenções policiais militares e civis no Brasil. Vale ressaltar que esses dados não incluem as ações de polícias federais e rodoviárias federais que, apesar de serem menos comuns, ganharam destaque depois que Genivaldo de Jesus Santos foi brutalmente assassinado por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), por meio de uma espécie de câmara de gás improvisada no porta-malas de uma viatura, na cidade de Umbaúba/SE. As taxas de mortalidade por ações policiais persistem em vários estados, revelando que as práticas institucionais das polícias ainda se caracterizam por abusos e execuções, somados ao uso legítimo da força, além da permanência da desproporcionalidade racial na letalidade policial, uma vez que o perfil das vítimas se concentra em homens, adolescentes e jovens, pretos e pardos (FBSP, 2022).

Os dados apresentados apontam para a urgência de se pensar a evidente morte endereçada aos corpos negros e jovens. Não só isso, como as consequências de conviver e estar na mira da violência e da morte que, infelizmente, fazem parte do cotidiano dessa população, que se encontra extremamente vulnerável. Diante disso, defende-se a importância de resgatar o significante genocídio, partindo do pressuposto que a nomeação possui efeitos políticos (Bispo, Silva & Francisco, 2022). O genocídio da população negra não se limita à morte: Abdias do Nascimento (1978) apresenta duas definições deste conceito. A primeira, retirada de um dicionário de língua inglesa: "O uso de medidas deliberadas e sistemáticas […], calculadas para a exterminação de um grupo racial, político ou cultural, ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo" (p. 14). A segunda, de um dicionário brasileiro: "Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos" (p. 15). Com isso, é possível compreender o genocídio da população negra em suas múltiplas faces.

Nascimento (1978) traz o genocídio como efeito de um racismo que, embora mascarado, é proveniente de políticas deliberadas de recusa do negro, como o branqueamento da população, através da mulatização, apoiada na exploração sexual de mulheres negras, e, também, nas leis de imigração, com o propósito da erradicação da "mancha negra" na população brasileira. O autor evidencia que isso se intensifica com o mito da democracia racial, visando desmascarar um racismo que era negado pelo governo brasileiro e como por intelectuais da época, denunciando seus efeitos letais de extermínio da população negra.

Bispo, Silva e Francisco (2022, p. 2) acrescentam que, em termos psicanalíticos, "[…] sua tese era de que o mito da democracia racial viria justamente recalcar esse racismo que, embora tivesse se tornado progressivamente velado, prosseguia com seus efeitos mortíferos". Além disso, Nascimento (1978, p. 93) também traz a perseguição da cultura afro-brasileira, como a religião, por exemplo, sobretudo por parte de agentes da polícia, como estratégias de genocídio da população negra. Nesse sentido, a violência também se constitui como um aspecto fundamental no genocídio do negro brasileiro. A música Ismália, de Emicida (2019), ilustra a ideia de violência dirigida e articulada à população negra, desde a colonização, até os dias atuais: "Primeiro, sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles/Nega o Deus deles, ofende, separa eles/Se algum sonho ousa correr, cê para ele/E manda eles debater com a bala que vara eles, mano". Emicida (2019) elenca ações voltadas para a população negra, que firmam a violência exercida e estimulada por uma sociedade racista. O sequestro, a mentira, a negação da cultura e a separação da população negra e indígena remetem à colonização, que até hoje reverbera nos mecanismos violentos dirigidos ao grupo.

No documentário Auto de Resistência (2018), o Caso Favela do Rola, que ocorreu em agosto de 2012, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, apresenta uma operação da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil, na qual policiais atiraram de um helicóptero a caminho da comunidade, matando cinco homens. Nas imagens, ao pousarem o helicóptero, os policiais moveram os corpos mortos com lençóis, alterando a cena do crime e justificando as mortes como "autos de resistência". O piloto Adonis Lopes, após a audiência, diz que, na operação, "só traficantes morreram". Isso demonstra o impacto do racismo e o modo como as diversas formas de desumanização produzem a naturalização da violência, como se policiais possuíssem o direito, ou até mesmo o dever, de tirar a vida dos considerados "traficantes" e "bandidos" que, em sua maioria, se resumem à população negra, pobre e periférica. Nesse sentido, é fundamental abordar os efeitos devastadores à saúde mental da população negra, bem como a construção de uma subjetividade subalternizada, desumanizada e alvo de constante violência e extermínio.

Krenzinger et al. (2021) apontaram para os impactos da violência armada na saúde física e mental da população. Os dados da pesquisa sugerem que 20% dos entrevistados acreditam que o contexto de violência prejudica a saúde física e 31% da população diz o mesmo sobre a saúde mental ou emocional. Também indicam que essa exposição está associada à maior ocorrência de sintomas relacionados à saúde mental, como pensamentos sobre morte, perda de apetite, indigestão e dificuldades para dormir e até mesmo ideações suicidas, sinalizando o potencial destrutivo e traumático dessas experiências.

Um dos efeitos de todo esse conjunto de fatores, como a exposição à violência armada, restrição de acesso aos serviços, aspectos socioculturais, é a automedicação, na intenção de aliviar sintomas e problemas de saúde (Krenzinger et al., 2021). Os autores ainda destacam que as condições desiguais acentuam os problemas associados à violência, de modo que o uso prejudicial de álcool e outras drogas sejam saídas para as condições em que vivem. Em vista disso, existiriam outros meios de tornar a vida suportável?

Erguendo barricadas: estratégias para re-existir e resistir no campo de fardas

"Domado eu não vivo, eu não quero seu crime
Ver minha mãe jogar rosas
Sou cravo, vivi dentre os espinhos treinados com as pragas da horta
Pior que eu já morri tantas antes de você me encher de bala
Não marca, nossa alma sorri
Briga é resistir nesse campo de fardas"
(Emicida, 2015)

Diante do caminho percorrido até aqui, entranhado em pragas da horta, como ser cravo e resistir entre os espinhos? Quais as formas de enfrentar o racismo, o autoritarismo na segurança pública, a violência e seus efeitos na saúde mental da população negra? É possível erguer barricadas no campo de fardas e mantê-las de pé?

No que diz respeito à violência policial, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 (FBSP, 2022) mostrou que, após alcançar níveis recordes de letalidade policial em abril de 2020, houve uma série de intervenções com foco na gestão e adesão de novas tecnologias para a redução dessa taxa. Dentre essas medidas, encontram-se a adoção de equipamentos menos letais (como tasers) e câmeras corporais nas fardas dos policiais (Programa Olho Vivo), que, apesar de não ser uma experiência nova, obteve bons resultados em São Paulo (FBSP, 2022). Nesse sentido, as câmeras são um importante aliado no monitoramento e, também, nas investigações em casos de violência policial, como as imagens mostradas no documentário Autos de Resistência (2018), cruciais para os casos que provavelmente seriam arquivados e os policiais envolvidos sairiam impunes. No entanto, vale ressaltar que essas medidas devem estar aliadas ao desenvolvimento de políticas públicas e ações que reduzam a desigualdade social e o impacto da violência.

Além disso, Poortinga (2012, apud Krenzinger et al., 2021) contribui com a ideia de resiliência comunitária, processo no qual é favorecido pelo capital social, como redes de apoio informais (amigos, vizinhos, familiares) ou instituições, como serviços sociais e ONGs. Segundo a autora, "Este capital social se reflete na confiança social, nas teias de reciprocidade e na participação civil, sendo relacionado a altos níveis de saúde psíquica e à redução dos efeitos adversos provocados por precárias condições de vida" (Poortinga, 2012, citado por Krenzinger et al., 2021). Alguns desses exemplos são os coletivos de mães e familiares de vítimas da violência policial, como o Movimento Independente Mães de Maio, e os demais movimentos sociais que lutam pelas vidas da população negra, pobre e periférica.

O Movimento Independente Mães de Maio se constitui como uma rede autônoma de mães, familiares e amigos de vítimas da violência do Estado, formada em São Paulo, a partir dos Crimes de Maio de 2006, nos quais, no período de uma semana, mais de quinhentas pessoas foram assassinadas por agentes policiais e grupos de extermínio. Desde então, na tentativa de superação e luta frente ao trauma atroz que assolou as famílias, a missão do movimento tem sido a organização nas comunidades e redes políticas possíveis para frear a disseminação da violência estatal que tem se fortalecido no país (Silva & Dara, 2015).

O próprio lema deste movimento, "Os nossos mortos têm voz!", reforça a luta cotidiana desses sobreviventes que carregam consigo as vozes dos que tiveram suas histórias interrompidas. Silva e Dara (2015) mencionam que, sem apoio de qualquer instituição, as ações do movimento fortalecem a rede de acolhimento mútuo, incentivam os seus a seguirem em frente, auxiliando no enfrentamento ao medo e às humilhações, no fortalecimento da autoestima e da busca por justiça, além de ajudas materiais às famílias.

Para que seja possível a construção e permanência desses movimentos de mães, familiares e amigos, na linha de frente da batalha, há uma forte luta composta por companheiros, coletivos e movimentos outros, que formam a contenção e a retaguarda, para a construção conjunta de novos horizontes possíveis na atual conjuntura (Silva & Dara, 2015). Em meio a essa rede de mobilização, o movimento de juventude negra adentra o campo da luta contra o genocídio de forma a recuperar as relações raciais como centrais para a compreensão da realidade desigual do país (Sinhoretto & Morais, 2018).

Os autores apontam para a potencialidade desse movimento que possibilita a construção de intervenções em novos espaços políticos-institucionais participativos, buscando reivindicações e propostas para acabar com a desigualdade racial na segurança pública, além de iniciativas de valorização da cultura jovem negra periférica, como a cultura do hip-hop. Assim, a arte, que também é instrumento de denúncia e apreensão da realidade, torna-se um refúgio para quem vivencia a violência. Além disso, o rap também se constitui como uma possibilidade de resistir, enfrentar e gerir o sofrimento, como Criolo (2022), em sua música intitulada Diário do Kaos, diz:

"Pra desabafar meu rap vai me levar
Aos confins do mundo pra dizer
Que só o amor pode te afastar do canhão
De um doze, de um tiro, de uma arma, de uma desilusão
Quem sofre, Pai, eu sei, abra seu coração
Aqui quem fala é um sobrevivente, Pai
A música vem e me traz emoção
Um milagre divino, Senhor
Na biqueira eu não vou, vários irmãos, morrer em vão"

Além de ser um sobrevivente e usar da sua música como um desabafo, espalha a mensagem para milhares de jovens negros, conscientizando-os sobre a iminência da violência. É a partir dessas estratégias, e outras mais que, enquanto as políticas públicas não dão conta da problemática, a população negra se utiliza para resistir, re-existir, (sobre)viver e tornar a dor inerente à violência um pouco mais suportável.

 

Considerações Finais

No caminhar desta pesquisa foi possível compreender que a violência policial se constitui como um fenômeno marcadamente racista quando voltado para a população negra. Esse problema está para além do âmbito individual de cada policial, articulado a uma série de fatores históricos e sociais que engendram o racismo em suas diversas faces. Aponta-se para a necessidade de compreender a raça como um fator primordial na construção da diferença no mundo social. A racialização adentra esse mundo de forma a produzir essa diferença como desigualdade, firmando-se como um instrumento de subalternização da população negra, apoiado em discursos historicamente construídos e na colonização violenta dessa população.

A democracia racial surge como tentativa de negação da existência de raças e da discriminação racial. Em conjunto com a política de negação do racismo, configura-se como estratégia política para dificultar a identificação dos dispositivos de subalternização e discriminação da população negra, além de obstaculizar o processo de construção de uma identidade racial positiva e coletivos com forte atuação política. A discussão sobre o racismo se torna mais imprescindível para compreender as dinâmicas de violência que o atravessa, por se apresentar como um mecanismo fundamental de poder, multifacetado e inseparavelmente articulado a preceitos hierárquicos, a partir de uma supremacia branca. Esse mecanismo é utilizado para regular vidas negras, que opera de modo a identificá-las como alvo de controle através da violência, como meio de estabelecer uma linha entre o que deve viver e morrer.

O racismo estrutural e institucional evidencia o modo como os mecanismos de discriminação são produzidos e operados pelas estruturas, materializados por instituições como a polícia militar. A militarização da polícia se constitui como um aparato de opressão seletiva da população negra: no lugar de assegurar e garantir os direitos dos cidadãos, se volta para a segurança do Estado, em detrimento da criminalização dos movimentos negros, do encarceramento e das mortes desse grupo. Identifica-se que o arranjo da polícia militar, como sua estrutura, seu funcionamento e as condições de trabalho desumanas dos policiais, sustentados pelas desigualdades, pelo racismo e pela cultura autoritária do país, contribuem para a manutenção da seletividade violenta das ações policiais e da legitimação da violência policial dirigida à população negra. Analisa-se que as mortes endereçadas aos corpos negros e a atmosfera violenta em decorrência de intervenções policiais possuem forte influência na saúde mental desta população. O genocídio do negro brasileiro não se reduz à morte das vítimas, mas diz respeito à violência dirigida e articulada à essa população desde a sua colonização.

Como estratégias de enfrentamento ao racismo, à violência e ao autoritarismo na segurança pública identificou-se a adoção de medidas tecnológicas, como equipamentos menos letais e câmeras corporais nas fardas dos policiais, como importantes caminhos para a redução das taxas de letalidade policial e, também, no auxílio às investigações dos casos decorrentes de violência policial. Além disso, a arte é uma ferramenta de denúncia de um sistema racista e violento e contribui para a apreensão da realidade. O rap torna-se um recurso com caráter crítico capaz de unir a juventude negra e fazer com que se sintam pertencentes a um grupo e se entendam como sujeitos ativos, que possuem direitos e, principalmente, voz.

A partir disso, esta pesquisa buscou contribuir para as discussões acerca da saúde mental da população negra frente à violência policial, além de trazer a importância da utilização da arte como via para analisar a realidade e dar visibilidade aos protagonistas das histórias, que não são únicas. Com isso, rompe-se também com um conhecimento colonizador, representado por pessoas brancas e limitado à academia, entendendo a não neutralidade e a subjetividade como fator primordial na construção do conhecimento.

Aponta-se para a necessidade de estudos empíricos sobre a temática da saúde mental em relação à violência policial e para que se amplie a discussão para a interseccionalidade do problema, considerando categorias como classe, território e gênero, em interação com as questões raciais. Compreende-se a necessidade de se estender a discussão para a construção de políticas públicas de enfrentamento ao problema, ressaltando o importante papel da arte e da organização social nas formas de re-existência e resistência no campo de fardas.

 

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Endereço para correspondência
Geovana Afonso do Nascimento - geoanpsi@gmail.com

Recebido em: 09/09/2023
Aceito em: 04/03/2024

 

 

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