Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e78490, doi:10.12957/epp.2024.78490
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

O Filho Adulto com Síndrome de Down (SD): Percepções Paternas

 

The Adult Child with Down Syndrome (DS): Paternal Perceptions

 

El Niño Adulto con Síndrome de Down (SD): Percepciones Paternas

 

Marilise Ferreira a, Rayssa Reck Brum a, Anelise Foletto de Araújo a, Bruna Fragoso Rodrigues a, Caroline Rubin Rossato Pereira a

a Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Considerando-se o crescente reconhecimento do papel do pai (homem) para as relações familiares e o avanço na qualidade de vida e na longevidade da pessoa com SD, este estudo teve como objetivo compreender a percepção de pais sobre a adultez do filho com SD e sobre a relação pai-filho nesta etapa da vida. Participaram desta pesquisa qualitativa quatro pais de adultos com SD, que responderam a um questionário de dados sociodemográficos e a uma entrevista semiestruturada. A partir de uma análise de conteúdo temática, os resultados foram organizados em três categorias: O filho adulto com SD "como um anjo grande"; Proximidade e envolvimento na relação pai-filho; e Dependência x Independência na relação pai-filho. Os pais indicaram dificuldades de reconhecerem a adultez dos filhos devido a não percepção de transformações socioemocionais e identitárias que identificassem esta etapa da vida. Destaca-se a proximidade, o envolvimento e a dedicação como parte importante da relação pai-filho, bem como o desafio de encontrar um equilíbrio entre fornecer apoio e limitar a independência dos filhos. Ressalta-se a relevância de estudos e de intervenções com pais de filhos adultos com SD, proporcionando espaços de apoio e de reflexão, e a construção de conhecimento nesse contexto.

Palavras-chave: paternidade, síndrome de Down, adultez.


ABSTRACT

Considering the growing recognition of the father's (man's) role in family relationships and advancements in the quality of life and longevity of individuals with Down Syndrome (DS), this study aimed to understand parents' perception of their adult child with DS and the father-child relationship at this stage of life. Four fathers of adults with DS participated in this qualitative research, responding to a sociodemographic questionnaire and a semi-structured interview. Through thematic content analysis, the results were organized into three categories: The adult child with DS "like a big angel"; Proximity and involvement in the father-child relationship; and Dependency vs. Independence in the father-child relationship. The parents indicated difficulties in recognizing their children's adulthood due to a lack of perception of socioemotional and identity transformations that would identify this stage of life. The importance of proximity, involvement, and dedication as significant parts of the father-child relationship is emphasized, as well as the challenge of finding a balance between providing support and limiting the independence of the children. The relevance of studies and interventions with parents of adult children with DS is highlighted, providing spaces for support and reflection, as well as the construction of knowledge in this context.

Keywords: paternity, Down's syndrome, adulthood.


RESUMEN

Considerando el creciente reconocimiento del papel del padre (hombre) en las relaciones familiares y el avance en la calidad de vida y longevidad de las personas con SD, este estudio tuvo como objetivo comprender la percepción de los padres sobre la adultez de su hijo con SD y sobre la relación padre-hijo en esta etapa de la vida. Cuatro padres de adultos con SD participaron en esta investigación cualitativa, respondiendo a un cuestionario de datos sociodemográficos y a una entrevista semiestructurada. A través de un análisis de contenido temático, los resultados se organizaron en tres categorías: El hijo adulto con SD: "Como un ángel grande"; Proximidad y participación en la relación padre-hijo; y Dependencia vs. Independencia en la relación padre-hijo. Los padres indicaron dificultades para reconocer la adultez de sus hijos debido a la falta de percepción de transformaciones socioemocionales e identitarias que identificaran esta etapa de la vida. Se destaca la importancia de la proximidad, la participación y la dedicación como parte importante de la relación padre-hijo, así como el desafío de encontrar un equilibrio entre brindar apoyo y limitar la independencia de los hijos. Se resalta la relevancia de estudios e intervenciones con padres de hijos adultos con SD, proporcionando espacios de apoyo y reflexión, así como la construcción de conocimiento en este contexto.

Palabras clave: paternidade, sindrome de Down, edad adulta.


 

 

A literatura sobre paternidade, nas últimas décadas, demonstra significativas modificações na relação construída entre pais (homens) e filhos. Revela-se, atualmente, por parte do pai, a tendência a um envolvimento mais próximo e afetuoso com os filhos, diferentemente do que ocorria nas famílias até meados do século passado, nas quais o pai se apresentava mais distante, muitas vezes autoritário e ocupando um papel meramente disciplinador. Nesse tocante, percebe-se um pai mais participativo na vida dos filhos e nos seus cuidados, representando uma nova forma de vivenciar o papel paterno (Campeol et al., 2022).

As múltiplas transformações da paternidade demandam a realização de novas investigações sobre essa temática em diferentes contextos e realidades familiares. Contudo, ao considerar a parentalidade em famílias com filhos com alguma deficiência ou desenvolvimento atípico, como a Síndrome de Down (SD), verifica-se que a maior parte dos estudos tem privilegiado a figura materna, entendendo-a como aquela que sofre um impacto maior em decorrência do diagnóstico do filho (Ferreira et al., 2019). Nesse panorama, percebe-se uma lacuna no que diz respeito às vivências paternas e à relação pai-filho com SD (Sheldon et al., 2021).

Entende-se que as particularidades do diagnóstico e as características da síndrome podem influenciar as relações familiares, a vivência da paternidade e a relação construída entre pais e filhos. A SD refere-se a uma síndrome caracterizada por uma alteração genética no par cromossômico 21, decorrente da existência de um cromossomo a mais e, por essa razão, a conceituação Trissomia 21 (Marriaga et al, 2018). Essa síndrome ocasiona modificações fisiológicas, cognitivas e motoras. Ademais, há a possibilidade de complicações médicas na vida de pessoas com SD, crescimento físico mais lento, tendência aumentada para o ganho de peso, atraso no desenvolvimento motor pela menor tonicidade muscular (hipotonia), bem como, a presença de deficiência intelectual (Capone et al, 2018).

As famílias com filhos que têm SD necessitam, então, construir uma rotina de vida que responda às demandas de tratamento, intervenções e adaptações (Ferreira et al., 2019). Estas demandas requerem uma reorganização da família em termos de planos e estilos de vida, bem como, uma organização particular nos papeis familiares (Arango et al., 2015). Apesar da necessidade de adaptações e dos diversos investimentos descritos, é importante considerar que isto não significa uma associação entre a deficiência e um prejuízo no funcionamento familiar. Em relação à adaptação de famílias de indivíduos com SD, Van Riper et al. (2023) afirmam que, embora pais e mães tendam a perceber a descoberta diagnóstica como estressante e difícil, com o passar do tempo e adaptação familiar, apesar dos desafios, identificam potencialidades e aspectos positivos em se ter um indivíduo com SD na família. A esse respeito, verifica-se que, apesar dos esperados desafios emocionais e práticos que acompanham a parentalidade de uma criança com SD, pais e mães podem se ajustar positivamente a esse papel (Ridding & Williams, 2019).

Ao considerar os sentimentos dos pais e a experiência da paternidade de um filho com SD, estudo de Marshak et al. (2018), realizado com 311 pais da Pensilvânia, Estados Unidos, demonstrou que a descoberta diagnóstica foi um momento que fez emergir diferentes sentimentos como lamentação, tristeza e preocupações quanto ao futuro do filho. Ao mesmo tempo, alguns pais relataram a vivência de um vínculo imediato ao conhecerem seus bebês, outros, por sua vez, descreveram alívio à medida que seus filhos se desenvolviam e alcançavam marcos que temiam nunca serem alcançados. Em comum, os pais relataram a experiência da paternidade de forma singular, bem como crescimento pessoal, incluindo percepção de mudanças positivas em seus sistemas de valores e de personalidade.

Com a evolução de tratamentos e intervenções, tem-se identificado um aumento considerável na expectativa e na qualidade de vida de pessoas com SD (Van Riper et al., 2023), o que leva os pais a vislumbrarem uma relação mais prolongada com seus filhos. Nesse cenário, com a adultez dos filhos, embora esses experienciem um gradativo processo de independência e diferenciação com relação à família, ainda se visualiza a necessidade de pais e mães desempenharem um papel de auxiliares no desenvolvimento em termos de crescimento e de independência. Nesse contexto, a transição para a adultez do filho tende a ser acompanhada pela incerteza sobre suas possibilidades de assumir novos papeis sociais e por angústias dos pais e mães frente à necessidade de prepará-lo para esse momento de transição. A esse respeito, a pesquisa brasileira de Brito et al. (2023) realizada com mães e jovens com SD demonstrou dificuldade das mães em permitirem o desempenho da autonomia de seus filhos em outros contextos, para além do ambiente doméstico. Os jovens, por sua vez, expressaram desejo de vivências comuns a essa etapa da vida, como estudar, namorar e trabalhar. Nesse mesmo sentido, o estudo de revisão de Kanthasamy et al. (2024) identificou a preocupação de pais e mães a respeito do distanciamento entre a falta de independência, percebida por eles em seus filhos, e a busca de independência e de autonomia por parte dos filhos com SD.

Ao considerar a manutenção da necessidade dos cuidados parentais na idade adulta, conforme estudo de Ribeiro et al. (2016), apesar de maior estabilização nos problemas clínicos, mães de adolescentes e adultos com SD participantes da pesquisa continuavam a se dedicar de forma integral aos cuidados dos filhos. Em estudo australiano com 12 adultos jovens com SD, Scott et al. (2014) identificaram que pais e mães eram percebidos como muito preocupados em prestar assistência, apoio e proteção a seus filhos adultos jovens com SD. Os próprios jovens com SD apontaram as relações com a família como necessárias para a busca de sua independência, ao mesmo tempo em que identificaram que a família pode tornar-se também limitadora dessa busca. Com isso, atenta-se para a necessidade constante de negociações e ajustes entre pais e filhos adultos com SD (Scott et al., 2014).

Com base nestas considerações, o presente estudo objetivou compreender a percepção do pai sobre a adultez do filho com SD e sobre a relação pai-filho nesta etapa da vida. Pretendeu-se, com isso, compreender algumas das singularidades da relação pai-filho com SD e examinar os sentimentos e a percepção dos pais quanto ao filho nesta fase de suas vidas.

 

Método

Participantes

Participaramdo estudo quatro pais (homens) de filhos adultos com SD. Os pais tinham idades entre 52 e 73 anos e os filhos tinham idades entre 27 e 37 anos, sendo três homens e uma mulher (conforme Tabela 1). Todos residiam em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul.

 

Tabela 1

Caracterização dos participantes da pesquisa

 

Caso

Idade do Pai

Ocupação do Pai

Idade do Filho

Sexo do Filho

Com quem mais residiam

Irmãos

P1

59

Motorista

27

Masculino

Mãe

1

P2

52

Aposentado

31

Masculino

Mãe e vó materna

1

P3

73

Aposentado

37

Masculino

Mãe

1

P4

52

Autônomo (pintor)

30

Feminino

Madrasta e 2 irmãs

4

 

No que tange às configurações familiares dos participantes, três pais moravam com as mães do filho com SD, como um casal, e um pai (P4) era viúvo e vivia com uma nova companheira. Como indicado na tabela, todos os filhos participantes tinham um(a) irmão/irmã que não residia mais com a família, sendo que apenas no caso 4 havia outros filhos na casa além do filho(a) com SD.

Os participantes foram acessados por meio de duas instituições da cidade, bem como, por indicação. Uma das instituições referia-se a uma associação de pais e amigos das pessoas com SD, e a outra referia-se a uma escola que disponibilizava serviços às pessoas com deficiência e suas famílias. As duas instituições citadas estavam localizadas na cidade de moradia dos participantes.

Delineamento e Procedimentos

Este estudo apresenta natureza qualitativa e caráter exploratório-descritivo. A abordagem qualitativa, de acordo com Moré (2015), busca compreender o sujeito em sua singularidade, atentando ao contexto em que está inserido, a partir dos significados atribuídos por esse a suas experiências e valores.

Em termos de procedimentos, após a obtenção das autorizações institucionais, a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Maria. Após a aprovação, sob o número CAAE 51624415.0.0000.5346, realizou-se contato telefônico com os pais, com vistas a convidá-los a participar da pesquisa e explicar seus procedimentos e objetivos. Foi agendado, então, um encontro presencial com aqueles que demonstraram disponibilidade e interesse, ocasião em que se explicou detalhadamente a pesquisa e seus aspectos éticos, bem como, obteve-se as assinaturas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram realizadas de forma individual, em uma das salas da instituição frequentada pelo filho, tiveram duração média de setenta minutos, e foram gravadas em áudio, sendo, posteriormente, transcritas na íntegra. A partir da análise das entrevistas, delinearam-se categorias temáticas que serão apresentadas e discutidas como resultados desse estudo.

Instrumentos

Os instrumentos utilizados na pesquisa referiram-se a um questionário de dados sociodemográficos da família e a uma entrevista semiestruturada sobre a percepção dos pais acerca dos filhos adultos com SD e da relação pai-filho. Esta entrevista envolveu os seguintes eixos: construção da relação pai-filho, características da relação pai-filho, marcos ao longo do desenvolvimento do filho, rotina, envolvimento/participação paterna, possíveis singularidades na relação diante da deficiência, perspectivas futuras e sentimentos envolvidos.

Análise dos dados

Para a análise dos dados foi empregada a técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2006). Segundo a autora, essa análise é composta por três fases que seguem a seguinte ordem: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação. A fase pré-análise é caracterizada pela organização do material, em que se intuem algumas questões, buscando tornar operacionais e sistematizadas as primeiras ideias, traçando um esquema dos passos seguintes. Na fase da exploração do material, aplicam-se as decisões tomadas de modo sistemático, em que se codifica, decompõe os dados nas categorias formuladas. Já na última fase, realiza-se o tratamento dos dados, interpretando-os e lançando inferências a partir deles.

 

Resultados e Discussão

Com base na análise de conteúdo, emergiram três categorias temáticas que indicam aspectos singulares da percepção dos pais acerca dos filhos adultos com SD e da relação pais-filhos nesta etapa de vida: O filho adulto com SD: "Como um anjo grande"; Proximidade e envolvimento na relação pai-filho; Dependência x Independência na relação pai-filho. A seguir, os resultados são apresentados, utilizando-se das falas dos participantes para sustentá-los.

O filho adulto com SD: "Como um anjo grande"

Ao considerar que os filhos dos participantes do estudo tinham idade entre 27 e 37 anos, torna-se relevante compreender como os pais perceberam a passagem do tempo, o crescimento e o amadurecimento de seus filhos, conforme estes avançaram da infância para a adolescência, assim como para a idade adulta. Ao serem questionados acerca das mudanças percebidas com a passagem para a adolescência e, posteriormente, para a vida adulta, as mudanças físicas associadas à puberdade nos filhos homens e a menstruação (no caso da filha mulher) foram tomadas como principais indicadores de desenvolvimento dos filhos: "O adolescente diz que fica revoltado, né. Ela não, nunca ficou. Ela só ficou quando começou a, ficou moça [referindo-se à menstruação]. Até hoje, ainda é complicadíssimo essa parte aí. É um trabalho contínuo. (P4)."

Não foi tão marcante. A fase de adolescência dele, o corpo se tornou…, mas a idade mental dele era pequena ainda. O neurologista que ele tinha antigamente que dizia a idade mental dele. Agora não sei te dizer certo. […] O instinto sexual dele que aflorou, foi por base dos 14, 15 anos, por aí. (P1)

No relato dos pais, os marcos biológicos foram os sinais mencionados como indicativos de passagem da infância para a adolescência, visto que, na visão deles, o desenvolvimento físico não foi acompanhado de uma mudança marcante no amadurecimento cognitivo ou socioemocional dos filhos. Da mesma forma, no estudo de Bastos e Deslandes (2009), os autores referiram que pais e mães de adolescentes com SD apresentaram dúvidas quanto a esse momento do ciclo vital, considerando que reconheciam algumas características associadas à adolescência, tais como transformações corporais, mas não consideravam seus filhos como adolescentes, devido à pouca autonomia que apresentavam.

Ao abordar as mudanças advindas da puberdade, os pais indicaram buscar auxiliar os filhos a manejarem as mudanças corporais, ensinando, instruindo, preparando-os para seu desenvolvimento e para as outras fases do ciclo vital:

Quando ele cresceu, até quando ele foi ficando mais homenzinho, eu ia explicando pra ele: ‘Olha, tu tá homenzinho. Tu não é mais nenenzinho, tu é um rapaz. Tá mudando a tua voz. Tu não fala mais assim, agora tu é um homem. (P1)

Ao mesmo tempo em que alguns pais notaram uma passagem pouco marcante para a adolescência, outros pareceram não a identificar de modo algum. P2, por exemplo, relatou não notar qualquer marca de desenvolvimento, muito menos da sexualidade, indicando também dificuldade de lidar e de aceitar a sexualidade do filho, considerando-o como uma criança ou um "homenzinho".

Nunca notamos nada. Claro que os órgãos dele são normais, mas nunca se viu ele tomar qualquer atitude. Nada, porque ele é uma criança. […] Sobre a evolução dele como um filho ou como um homenzinho, eu queria que tivesse a oportunidade de tentar explicar pra ele muita coisa. Uma, que não tinha coragem, outra, que não sabia como me expressar. Então, como a gente nunca notou nada diferente nele, a gente foi deixando o tempo passar. (P2)

O amadurecimento sexual se refere a uma marca importante do desenvolvimento na adolescência, temática que, para muitas famílias, incluindo aquelas com filhos com SD, pode ser um tema delicado ou mesmo um tabu. Nas narrativas dos pais P1 e P2 percebeu-se que a sexualidade se associou à masturbação, uma característica que marcou a adolescência dos filhos.

Ele até se escondia pra se masturbar, mas depois ele precisou tomar um remédio e eu acho que a libido dele desapareceu um pouco. Aí, a gente não via mais. Ele se escondia, mas a gente não vê mais. Não sei se os remédios são tão fortes. (P1)

Até hoje, muitas vezes, ele sai e vai no banheiro, mas não tem toque nenhum, nenhum […]. Entra e sai. Então, a gente que nota que o órgão dele tá, né?, diferente. Ele ir pro banheiro, ficar no banheiro ou coisa parecida, não. Basta que ele não fecha a porta do banheiro. A gente não deixa, porque ele não sabe abrir. (P2)

De modo semelhante, mães participantes do estudo de Ribeiro et al. (2016) referiram dificuldades de lidar com a sexualidade dos filhos. Apesar de compreenderem a sexualidade como parte normal do desenvolvimento, elas demonstraram não saber como agir frente a essa questão, bem como, não serem orientadas por profissionais que atuavam com seus filhos sobre como proceder. Ainda, em pesquisa de Bastos e Deslandes (2012), ao ser abordado o tema sexualidade, a masturbação foi uma manifestação muito referida, embora os pais parecessem não estar capacitados para lidar com esta. Nesse sentido, com poucos recursos para manejar esta temática, é comum a superproteção e infantilização dos filhos (Ambrosio et al., 2019).

Destaca-se que, de modo geral, os estudos se centram na figura materna como aquela que comunica aos filhos questões relacionadas à sexualidade. A comunicação sobre sexualidade com os filhos está associada ao gênero dos pais e dos filhos. A exemplo disso, os diálogos entre pais (homens) e filhas tendem a se centrar em temáticas como infecções sexualmente transmissíveis e gravidez não planejada, enquanto a comunicação entre mães e filhas tende a ser diretiva e centrada nos valores e na moral. Já com os meninos, os pais tendem a dar aprovação implícita para iniciarem a atividade sexual (Sevilla et al., 2016), o que não aconteceu entre os pais participantes deste estudo e seus filhos, o que pode estar relacionado ao próprio contexto da deficiência. Ao mesmo tempo, a literatura demonstra uma lacuna no processo de comunicação sexual entre pais e mães e seus filhos e filhas adolescentes, marcada, muitas vezes, pela dificuldade de comunicação e pelo constrangimento, o que se acentua no caso de filhos com deficiência.

Nesse sentido, entende-se a educação sexual como parte relevante do processo de educação global do adolescente e do adulto com SD, a partir de meios adequados à sua faixa etária e capacidade cognitiva, envolvendo um trabalho que inclua o fortalecimento da autoestima e da responsabilidade para o exercício de uma sexualidade saudável (Oliveira et al., 2018). Destaca-se que adultos com SD não diferem de adultos com desenvolvimento típico no que se refere a experiências como apaixonar-se, desejo de se relacionar e sentimentos em relação à pessoa amada, contrapondo visões sociais de que a pessoa com SD possui uma "sexualidade infantilizada" (Luiz & Kubo, 2007). Tal visão reflete um preconceito social direcionado a pessoas com algum tipo de deficiência ou que, de algum modo, se diferenciam do padrão dominante da "normalidade". A esse preconceito dá-se o nome de capacitismo, compreendido como uma forma de opressão que define e marginaliza a partir da crença de que pessoas com deficiência (nesse caso, SD) são incapazes de realizar determinadas atividades, devido ao fato de apresentarem características ou formas de estar no mundo fora do compreendido como normal ou esperado (Lage et al., 2023).

Nota-se que, mesmo quando os pais tentavam reconhecer o filho como alguém já crescido, estes ainda não eram percebidos como tal, fato exemplificado pelo uso de termos no diminutivo, como, por exemplo: "homenzinho", "roupinha" (P1 e P2). Desse modo, verifica-se que, para esses pais, o filho cresceu, mas em alguns aspectos continua o mesmo, sendo visto, muitas vezes, como uma "criança grande" ou, ainda, um "anjo grande": "Bota a roupinha e tal, conversando e pronto. Terminou ali. Nunca se viu, assim, a gente desconfiar que ele procurou fazer qualquer coisa, sabe, diferente [referindo-se à sexualidade]. Como um anjo grande. (P2)"

Segundo Cardoso (2003), é comum que pessoas com SD sejam vistas como cordatas, afetuosas, meigas, portadoras de lições de vida, como aquelas que transformam a família, ou "anjos" em muitas situações. Nesse caso, verifica-se uma visão infantilizada do filho, ao qual se nega o direito à vivência da sexualidade, refletindo uma imagem social que percebe que pessoas com SD "não tem sexualidade" ou, ao contrário, a tem de forma "exacerbada", necessitando ser controlada (Baltar et al., 2023). Faria (2024) discute que há uma proibição social, no que tange à vivência de relacionamentos sexuais por pessoas com SD, com a justificativa de que seriam "eternas crianças", mesmo quando já estão na idade adulta. Para a autora, essa negação de vivências sexuais retroalimenta a visão de pessoas com SD como crianças, visto que as relações amorosas/sexuais são características esperadas da vida adulta.

Ainda, o uso do termo "anjo" pode ter relação com o emprego da expressão "especial", que não só os pais, mas a sociedade em geral, ainda utiliza ao se referir às pessoas com esse diagnóstico, transformando algo supostamente "negativo" em "positivo". Dessa forma, esses pais tornar-se-iam "especiais" por possuírem um filho "especial". De fato, o estudo de Marshak et al. (2019) identificou que os pais participantes referiram, como impactos pessoais significativos a partir do diagnóstico de seus filhos, a experiência de crescimento pessoal, mudanças de prioridades e de valores, a valorização de pequenos momentos com os filhos, além de identificarem terem se tornado mais responsáveis, amorosos e resilientes. Com isso, os pais relataram sentirem-se gratos pela oportunidade de serem pais de crianças com SD, devido às novas perspectivas e significados que conferiram à sua vida.

A passagem para a vida a adulta sequer foi considerada pelos participantes deste estudo. Cabe destacar que, mesmo em termos de desenvolvimento típico, não há uma transição padronizada para a vida adulta. Diferentemente da passagem para a adolescência, que possui um marcador fisiológico claro, a vida adulta encontra seus sinais muito mais no modo de estar em sociedade, principalmente pela ampliação e complexificação dos papeis sociais (Newman & Newman, 2017). Pode ser difícil, então, identificar os limites entre o término da adolescência e o início da idade adulta, e mais ainda ao considerar o desenvolvimento de um filho com SD (Kanthasamy et al., 2024).

Proximidade e envolvimento na relação pai-filho

Sabe-se que proximidade e envolvimento são fatores importantes na construção das relações interpessoais. No caso desta pesquisa, ao considerar a relação pai-filho, foi nítida a participação direta do pai no sistema familiar e na vida do filho. Os pais revelaram uma relação significativa de proximidade com seus filhos: "A gente se sente muito próximo um do outro". (P1). "Sempre foi motivo de crescimento. Tanto meu como dele. Então, nosso relacionamento sempre foi ótimo. Ele é até demais comigo, muito apegado a mim. É um grude." (P3). "Todas as fases, eu tô junto". (P4)

Nessa mesma direção, estudos de Sheldon et al. (2021) e Marshak et al. (2019), ambos realizados com pais estadunidenses de crianças com SD, ressaltaram relações de proximidade, envolvimento e afeto entre pais e filhos. Por exemplo, pesquisa de Sheldon et al. (2021) com 175 pais (homens), que atentou aos desafios e recompensas parentais de ter um filho com SD, demonstrou a natureza gratificante do relacionamento amoroso e do significativo vínculo entre pai e filho.

No entendimento dos pais participantes, exercer a paternidade de forma mais próxima e afetiva repercutiu em aspectos positivos na relação pai-filho(a). Dentre estes, os participantes indicaram a confiança e o companheirismo construídos, bem como, laços de parceria e de amizade, muitas vezes, intensificados pela SD: "Entre pai e filho sempre foi assim, [..] o máximo de carinho. Nós nos damos muito bem. Em tudo, porque ele não me contraria em nada e eu não contrario ele em nada. A gente se acerta mesmo". (P2). "A gente tem essa relação de companheirismo. Ah, ele acha um máximo, essa relação dele comigo. Eu sou o ‘bam bam bam' da vida dele". (P3). "E ela é boa. É uma baita parceirona. Ela é tua parceira, tua amiga mesmo. Eu amo a minha filha, amo muito". (P4)

Sempre junto. É assim, ele tá sempre junto, parece uma sombra. Ele gosta muito, faz carinho, eu também faço nele, brinco. Ah, eu gosto muito dele. A gente é muito próximo, sente saudade um do outro. É a confiança que ele tem em mim e eu nele. O que eu faço pra ele é lei. (P1)

Nesse sentido, cabe considerar o conceito de envolvimento paterno, caracterizado por Lamb et al. (1985) a partir de três fatores, sendo eles: interação, acessibilidade (disponibilidade) e responsabilidade. O primeiro envolve o contato direto com o filho no que diz respeito não apenas aos cuidados, mas igualmente às atividades que pai e filho compartilham. O segundo abrange estar disponível não somente de forma física, mas também psicológica, interagindo com o filho. Já o último, responsabilidade, abrange proporcionar o cuidado e os recursos necessários ao filho, como compra de roupas e alimentação, agendamento de consultas médicas, entre outras ações. Sentimentos de ansiedade e de preocupação, assim como aquilo que se planeja estão presentes na experiência de envolvimento paterno.

Tendo em vista o conceito de envolvimento paterno, os pais relataram que cuidavam, auxiliavam e/ou supervisionavam afazeres dos filhos, por vezes, buscando incentivar sua independência. Dentre as atividades de cuidado, estavam, por exemplo, cuidados com a higiene pessoal, alimentação, medicação e compartilhamento de momentos de atividade física, por exemplo: "Ele levanta de manhã, só a gente tem que dar o remédio, cuida pra ele não pegar o remédio pra tomar, porque de repente ele pode tomar a mais. Então, é a gente que dá o remédio" (P1); "Eu sempre levei ele na natação, fomos pra academia eu e ele. Tinha orientação pra cuidar, porque eles têm problema de tônus. Eu acabei também entrando na natação. Então, nós fazíamos natação juntos. (P3)

O que ela [esposa] deixou de fazer pra ele, eu faço. Desde banho, higiene pessoal, tudo, tudo, tudo. Ele vai em tudo que a gente tem condições de levar. […] [Durante a refeição] ele pede pra gente arrumar pra ele um prato ou coisa parecida. (P2)

Esse resultado vai ao encontro do estudo de Marriaga et al. (2018), realizado com 20 pais colombianos de crianças com SD, em que os pais referiram proximidade com o filho e compromisso com seus cuidados, dividindo com as mães a responsabilidade sobre o filho. Da mesma forma, o estudo de Henn e Piccinini (2010), realizado com pais de crianças com SD do Rio Grande do Sul, demonstrou diferentes formas de participação do pai no que diz respeito aos cuidados com o filho, como ir a consultas médicas, alimentar, vestir, arrumar e brincar, demonstrando a participação paterna desde a gestação.

Relacionado a isso, pais participantes do estudo de Ridding e Williams (2019) salientaram a importância de compartilhar com as mães de seus filhos a responsabilidade pelos cuidados com os filhos com SD. Apesar do envolvimento paterno, os participantes relataram sentir-se secundários às mães, em especial em contextos de terapias dos filhos, ressaltando a necessidade de reconhecimento e de participação em espaços ainda muito centrados na figura da mãe.

Ainda, para os pais participantes do estudo de Marriaga et al. (2018), criar e cuidar de um filho com SD requer mais dedicação, bem como, um despendimento de tempo e atenção maiores para este filho. Dessa maneira, a demanda de cuidados de um filho com SD tende a ser maior que daqueles com desenvolvimento típico, fato que pode explicar um maior envolvimento e compromisso do pai com o filho (Ferreira et al., 2019). Nesse tocante, acredita-se que a vivência da paternidade no contexto de um filho com SD é uma experiência muito singular, que pode ocasionar um compromisso e um envolvimento maiores dos pais com seus filhos.

Dependência x independência na relação pai-filho

De modo geral, percebeu-se preocupações dos pais quanto à independência dos filhos. No contexto do desenvolvimento atípico, esse aspecto adquire maior importância diante das dificuldades advindas da síndrome, que tornam esses filhos mais dependentes dos pais, mesmo na idade adulta (Marshak et al., 2019). Nesse cenário, identificou-se a ocorrência de um sentimento de pertencimento do filho na relação com os pais, o que pode ser verificado visto a utilização do termo "nosso"/"nossa" ao se referirem ao filho(a), demarcando que este pertencia a eles, em um sentimento quase que de posse: "E esse aqui é pra nós, esse aqui é nosso. Então, Deus deu um pro mundo e um pra nós. Pronto, todo mundo já foi e esse é o nosso." (P2). "Eu sempre uso um termo, a [nome da filha] é minha filha eterna. As outras vão ter vida, vão casar, vão embora. Ela é minha porque é […] é o resto da minha vida. Onde é que tá? Ela tá comigo. Ela é nossa!".(P4)

Percebe-se que há um ganho para os pais em termos de proximidade com o filho que permanece sob seus cuidados. Conforme McGoldrick e Shibusawa (2016), nas famílias com filho com desenvolvimento típico, na fase do filho adulto visualiza-se uma gradativa independência e capacidade do filho em guiar, por conta própria, sua vida. No caso desta pesquisa, os filhos adultos permaneceram na casa dos pais. Apesar desta dinâmica ser considerada como necessária em muitos casos, pode limitar as possibilidades de desenvolvimento socioemocional e de independência do filho.

Portanto, a dependência parece ser um aspecto variável no contexto das deficiências e pode interferir na relação estabelecida entre pai e filho, caracterizando também a fase adulta. Nesse cenário, é comum a vivência de angústia em pais de crianças com SD relacionada ao futuro do filho, incluindo preocupações com a aceitação de seus filhos na sociedade, com as atitudes das pessoas em relação à SD, e as possibilidades de os filhos alcançarem independência financeira e empregabilidade na vida adulta. À medida que os filhos crescem, as preocupações relativas ao futuro tornam-se mais intensas e palpáveis para os pais (Marshak et al, 2019).

Percebeu-se, na narrativa dos pais, diferentes formas de lidar com a questão da dependência versus autonomia dos filhos. Questões como vestuário, cuidados pessoais, auxílio em alguns afazeres domésticos e manuseio de alguns aparelhos indicam possibilidades encontradas pelos pais participantes do estudo para favorecer a independência dos filhos:

Ele gosta de escolher, às vezes, a roupa que ele bota. Ele é decidido. Às vezes, ele quer fazer uma coisa, ele vai lá e pede pra fazer. Se dá pra fazer a gente deixa, se não dá… Ele mexe no som, ele bota o disco que ele quer. Eu botei uma televisão, ele liga e desliga. Se ele tá com fome, ele vai lá na geladeira, pega, toma água ou pega o que comer, que a gente deixa alguma coisa separado. Não pode deixar muita coisa. […] No que ele pode fazer sozinho, ele faz, a gente deixa fazer. E incentiva. Tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, coisa e tal, ajudar a varrer o pátio, ajudar a fazer alguma coisa. (P1)

Ela ajuda bastante. A casa, se pedir pra ela varrer, ela varre. Hoje, ela tem noção, tu não precisa falar muito. Precisamos ir em tal lugar, ela vai, toma banho e já se arruma. Pra mim, é uma evolução, um amadurecimento dela, porque hoje ela tem uma boa noção disso. Aí, ela sabe, entra no carro, cinto. Isso aí ela sabe como funciona. Ela tá acompanhando. Ela sabe a hora de ir dormir, remédios que ela toma pra dormir. Agora eu ensinei ela a lavar. Então, eu disse: "Tu lava que tu aprende". (P4)

Coerente ao exposto, o estudo de Kanthasamy et al. (2024) demonstrou que a percepção da passagem para a idade adulta esteve relacionada à menor intensidade e frequência da supervisão e apoio demandados pelo filho com SD. Biswas et al. (2017), nesse mesmo sentido, em estudo com pais no contexto da transição para a idade adulta de seus filhos com deficiência intelectual grave, referiram percepção de maior autonomia e independência de seus filhos relacionadas a habilidades cognitivas e comportamentais, percebendo esses marcadores como indicadores da adultez.

No que tange às evoluções percebidas pelos pais nos filhos, pesquisa de Marshak et al. (2019) realizada no contexto estadunidense, salientou a admiração deles em relação a seus filhos e o orgulho sentido a cada progresso no desenvolvimento e na aprendizagem. Os autores destacam que os pais valorizam os esforços e a persistência dos filhos, afastando-se de valores frequentemente vistos como desejáveis na sociedade contemporânea, como a ênfase na perfeição física e no desempenho profissional.

Em contraponto a um investimento na autonomia do filho, verificou-se também uma dependência acentuada do filho em relação aos pais, de modo que, P2 o caracterizou como o "comandante" da rotina e da vida da família. Esse aspecto não parecia dever-se a alguma impossibilidade do filho em desempenhar as atividades cotidianas, mas pelos cuidados prestados pelos próprios pais.

A gente faz tudo pra ele. Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. Ele é o comandante da nossa vida […] Ao invés de nós comandarmos ele, ele que nos comanda. Porque é tudo no mundo pra mim. Tudo que vier dele, eu aceito. Tudo, tudo, tudo, porque como não vou aceitar um filho como ele, que ele só traz felicidade pra gente. Toda a vida foi iniciativa da gente. (P2)

Divergindo dessa perspectiva, no estudo de Brito et al. (2023), os jovens participantes com SD relataram o desejo de ter autonomia para realizar atividades na família e em sua vida cotidiana. Pode-se conjecturar, que, independentemente da fase do ciclo de vida em que se encontram, a deficiência pode repercutir em um cenário de maior investimento e superproteção do filho. Ao mesmo tempo, essa dependência ocasiona a preocupação com o futuro do filho, incluindo quem poderá cuidar dele quando os pais falecerem: "Te disse umas quantas vezes que ele é o centro das atenções. Mas pai e mãe é pai e mãe, porque eu não admito, não quero no mundo saber que ele vá passar trabalho, que alguém vai olhar com maldade pra ele ou coisa parecida, porque que ele é um anjo". (P2)

Eu não queria que Deus me levasse antes dele. Isso é uma dor que eu tenho no coração. Que ele fosse primeiro. No outro dia eu queria ir, porque aí eu vou descansado. Eu não quero, não quero que ele sofra. (P2)

Ao encontro desse aspecto, participantes do estudo de Arango et al. (2015), referiram o desejo de que seus filhos morressem antes deles, visto a preocupação frente à dependência destes filhos, bem como, porque compreendem que a sociedade não está preparada para cuidar ou lidar com pessoas com SD. Desse modo, a preocupação dos pais em relação ao cuidado dos filhos em sua ausência, em caso de morte ou em decorrência do próprio envelhecimento (Arango et al., 2015), esteve presente nas narrativas. Na mesma direção, o estudo de Takataya et al. (2016), realizado no Japão, buscou conhecer a perspectiva de nove pais sobre o filho com SD, atentou para o fato de que os pais manifestaram preocupação em cuidar de sua própria saúde, a fim de viverem por mais tempo para cuidar de seus filhos.

Verifica-se que, ao mesmo tempo em que é necessário valorizar e estimular a independência do filho com SD, ao longo do seu crescimento, este filho necessita dos pais para a realização e/ou mediação de muitas atividades. Com isso, o pai pode enfrentar dificuldades em equilibrar cuidado e estímulo à independência do filho, sentindo-se, por vezes, confuso acerca do que seria o melhor para o filho (Kanthasamy et al., 2024).

 

Considerações Finais

Esse estudo alcançou relatos de pais acerca das relações construídas e do desenvolvimento e adultez de seus filhos no contexto da SD. Destaca-se a permanência de uma visão infantilizada dos filhos com SD, mesmo estes vivenciando a vida adulta. Na visão dos pais, não houve episódios marcantes que caracterizaram e singularizaram esta etapa do ciclo de vida de pessoas com SD. Aspectos como a falta de marcadores sociais de transição para a adultez, bem como as crenças sociais sobre as deficiências e o capacitismo podem estar relacionados a essa percepção. A adultez estava sendo vivenciada em termos de estabilidade e manutenção do que se construiu até a adolescência, seja em termos biológicos ou na própria relação. Pensa-se, então, em mudanças no que diz respeito a um maior aprendizado dos pais em lidar, por exemplo, com a independência de seus filhos, bem como de uma maior proximidade pelo passar do tempo e pela maior convivência conquistada ao longo do desenvolvimento.

No que diz respeito às relações pais-filhos, percebeu-se uma participação clara dos pais no sistema familiar, evidenciando o envolvimento com os cuidados dos filhos adultos com SD, bem como o lugar especial e de muito afeto que ocupavam na vida destes. Cabe atentar para o fato de que os filhos participantes deste estudo nasceram entre as décadas de 80 e 90, o que poderia indicar um funcionamento familiar pautado em um modelo mais tradicional, em que a mãe se implicava mais nas tarefas domésticas e cuidados com os filhos, enquanto o pai dedicava-se à provisão financeira da família e a atividades de lazer com os filhos. No entanto, os participantes demonstraram uma capacidade de investir nos filhos e responder às suas demandas de forma integral, dividindo com as companheiras a responsabilidade sobre seus cuidados. Considera-se que a presença da SD pode ter influenciado esse aspecto, favorecendo que esses pais participassem ativa e efetivamente da vida de seus filhos.

Sobre às dimensões autonomia x dependência, percebeu-se essa relação como uma questão importante na relação parental no contexto da SD. Embora os pais relatassem o desejo de favorecer a independência do filho, percebiam a relação como de bastante dependência e de proteção. Considera-se importante, então, compreender as dificuldades enfrentadas pelos pais ao buscarem identificar os limites entre fornecer apoio e limitar a independência dos filhos adultos com SD. Parece fundamental ter sempre em vista as capacidades e as particularidades de cada sujeito com SD, considerando o contexto em que vivem, a fim de refletir, em conjunto com seus pais e demais cuidadores, a melhor forma de favorecer seu desenvolvimento e a qualidade das relações estabelecidas.

Ainda, reforça-se a necessidade de estudos futuros ampliarem o acesso a tal realidade, envolvendo a participação de pais provenientes de diferentes contextos socioculturais, além de incluir a participação dos próprios filhos com SD como informantes. Cabe mencionar a necessidade de que novos estudos incluam estratégias de coleta de dados inovadoras e criativas a fim de acessar esta população, considerando-se as dificuldades cognitivas e de linguagem verbal apresentadas pelos sujeitos com SD. Ressalta-se, por fim, a relevância de estudos e de intervenções com pais de filhos adultos com SD, proporcionando espaços de apoio e de reflexão, bem como a construção de conhecimento nesse contexto.

 

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Endereço para correspondência
Marilise Ferreira - mary_f100@hotmail.com

Recebido em: 14/08/2023
Aceito em: 03/06/2024

 

 

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