Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e78354, doi:10.12957/epp.2024.78354
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Os Significados da Experiência Hiperfágica na Compulsão Alimentar e na Bulimia Nervosa

 

The Meanings of the Hyperphagic Experience in Binge Eating Disorder and Bulimia Nervosa

 

Los Significados de la Experiencia Hiperfágica en la Compulsión Alimentaria y la Bulimia Nerviosa

 

Lucas Guimarães Bloc a, Brenda Nogueira Caracas de Souza a, Virginia Moreira a

a Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Ceará, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Os transtornos alimentares costumam ser caracterizados por perturbações na forma e na configuração do ato de comer, resultando em um modo alterado de consumir alimentos, como no caso da hiperfagia. Ela revela a experiência de um sujeito que não consegue não comer que está presente na compulsão alimentar e na bulimia nervosa. Esta pesquisa busca compreender os significados da experiência hiperfágica na compulsão alimentar e na bulimia nervosa. Utilizando o método fenomenológico crítico de pesquisa, inspirado na fenomenologia de Merleau-Ponty, realizamos oito entrevistas com pacientes de um serviço interdisciplinar para transtornos alimentares. Utilizamos a seguinte pergunta disparadora: "Como é pra você comer?". Como resultados, os sentidos antagônicos do comer, a culpa, o descontrole, a compensação, a relação com o corpo e o olhar do outro foram experiências descritas nos dois diagnósticos e que foram discutidos sob uma lente fenomenológica. Concluímos que há uma dimensão comum da experiência hiperfágica na compulsão alimentar e na bulimia nervosa que se relaciona a uma alteração do modo de experienciar o próprio corpo e o impacto do olhar do outro na construção da própria identidade, o que converge de forma direta com as pesquisas de cunho fenomenológico que vêm sendo realizadas.

Palavras-chave: compulsão alimentar, bulimia nervosa, transtornos alimentares.


ABSTRACT

Eating disorders are often characterized by disturbances in the way and configuration of the act of eating, resulting in an altered way of consuming food, as in the case of hyperphagia. It reveals the experience of a subject who cannot stop eating, which is present in binge eating disorder and bulimia nervosa. This research seeks to understand the meanings of the hyperphagic experience in binge eating disorder and bulimia nervosa. Using the critical phenomenological research method, inspired by Merleau-Ponty's phenomenology, we conducted eight interviews with patients from an interdisciplinary service for eating disorder treatment. We used the following guiding question: "What is it like for you to eat?" As a result, the anatagonic senses of eating, guilt, loss of control, compensation, the relationship with the body, and the gaze of others were experiences described in both diagnoses and were discussed through a phenomenological lens. We concluded that there is a common dimension of the hyperphagic experience in binge eating disorder and bulimia nervosa that is related to an alteration in the way of experiencing one's own body and the impact of the gaze of others on the construction of one's own identity, which converges directly with phenomenological researches conducted in this field.

Keywords: binge eating disorder, bulimia nervosa, eating disorders.


RESUMEN

Los trastornos alimentarios suelen ser caracterizados por perturbaciones persistentes en la forma y configuración del acto de comer, lo que resulta en un modo alterado de consumir alimentos, como en el caso de la hiperfagia. Esta revela la experiencia de un sujeto que no puede dejar de comer, lo cual está presente en la compulsión alimentaria y la bulimia nerviosa. Esta investigación busca comprender los significados de la experiencia hiperfágica en la compulsión alimentaria y la bulimia nerviosa. Utilizando el método fenomenológico crítico de investigación, inspirado en la fenomenología de Merleau-Ponty, llevamos a cabo ocho entrevistas con pacientes de un servicio interdisciplinario de tratamiento en trastornos alimentarios. Utilizamos la siguiente pregunta guía: "¿Cómo es para ti comer?". Como resultado, los sentidos antagónicos de comer, la culpa, la pérdida de control, la compensación, la relación con el cuerpo y la mirada de los demás fueron sentimientos que surgieron en las experiencias de ambos diagnósticos y que fueron discutidos desde una perspectiva fenomenológica. Concluimos que hay una dimensión común de la experiencia hiperfágica en la compulsión alimentaria y la bulimia nerviosa que se relaciona con una alteración en la forma de experimentar el propio cuerpo y el impacto de la mirada de los demás en la construcción de la propia identidad, lo cual converge directamente con las investigaciones fenomenológicas que se vienen realizando en este campo.

Palabras clave: compulsión alimentaria, bulimia nerviosa, trastornos alimentarios.


 

 

Os transtornos alimentares costumam ser caracterizados por perturbações permanentes na forma e na configuração do ato de comer, resultando em um modo alterado de consumir alimentos (American Psychiatric Association [APA], 2022). Eles podem se manifestar através de dietas restritivas, excessos alimentares e atos compensatórios que perturbam o funcionamento psicossocial e podem ser mortais (Hay, 2020; Treasure et al., 2020). Neste artigo, focamos na chamada experiência hiperfágica que é vivida tanto na compulsão alimentar quanto na bulimia nervosa e que evidencia não apenas o excesso na alimentação, mas, sobretudo, uma experiência subjetiva de perda de controle (Castellini & Ricca, 2019), vivida por um sujeito que não consegue não comer. Evidenciamos uma experiência na qual o ato de comer se apresenta como única possibilidade vivida por alguém que não consegue deixar de executar tal ação (Bloc, Pringuey & Wolf-Fedida, 2018).

Com maior prevalência entre os transtornos alimentares (Perelman et al., 2023), a compulsão alimentar é marcada por episódios recorrentes de hiperfagia que estão associados a alguns aspectos e características marcantes, como: comer mais acelerado que de costume, comer até se sentir desconfortavelmente satisfeito ou muito cheio, comer às escondidas e comer mesmo sem estar com fome, tal como a sensação de descontrole diante do comer, e culpa. (APA, 2022). Assim como a compulsão alimentar, a bulimia nervosa também é marcada por episódios frequentes de hiperfagia. Em termos sintomatológicos, a principal diferença é a presença de comportamentos compensatórios através, por exemplo, do uso de laxantes, diuréticos, indução de vômito, etc. (APA, 2022). Há um sofrimento diante da possibilidade de aumento de peso, do olhar do outro e de si mesmo que atravessa, por vezes, os diversos métodos compensatórios (Dalgalarrondo, 2019).

Para além do caráter sintomatológico descrito, ao propormos um estudo que se fundamenta na psicopatologia fenomenológica e no caráter empírico do método fenomenológico, nos voltamos para como a hiperfagia é vivida na compulsão alimentar e na bulimia nervosa, buscando compreender, na perspectiva dos pacientes, seus diferentes significados. A lente fenomenológica dos transtornos alimentares acena para um modo de ser e de estar no mundo em que o ato de comer ocupa um lugar central e se torna fonte de sofrimento e angústia diretamente ligados à incapacidade de controlar comportamentos alimentares. A incapacidade ou exagero de controle demarcam o modo de experienciar os transtornos alimentares, afetando a liberdade do sujeito diante da cotidianidade do comer (Charbonneau & Moreira, 2013; Bloc, Pringuey & Wolf-Fedida, 2018). Há um outro modo de experienciar o próprio corpo que é a condição de possibilidade para os comportamentos alimentares disfuncionais (Castellini et al., 2014; Mancini et al., 2021). No caso da experiência hiperfágica, parece existir um distanciamento do próprio corpo durante o ato de comer em uma experiência não mais demarcada pela fome ou pela saciedade, mas, sobretudo, pelo desejo de comer. A comida acaba por perder seu principal valor de nutrição e ganha um novo significado sentimental e emocional (Castellini et al., 2019).

A partir de entrevistas fenomenológicas com pacientes de um programa interdisciplinar de tratamento de transtornos alimentares, o objetivo deste artigo é compreender os significados da experiência hiperfágica na compulsão alimentar e na bulimia nervosa. Trata-se de um estudo que busca acessar a experiência vivida na perspectiva daqueles que sofrem com transtornos alimentares (Stanghellini et al., 2021).

 

Método

Utilizamos o método fenomenológico crítico que, inspirado na fenomenologia de Merleau-Ponty, nos fornece bases para compreender os significados da experiência hiperfágica na compulsão alimentar e na bulimia nervosa. Parte-se da compreensão de que os fenômenos psicopatológicos se constituem em mútua constituição com o mundo, com a história e com a cultura. Os significados da experiência aqui buscada não são tomados como puramente individuais, mas se constituem a partir de contornos biológicos, políticos, culturais, ideológicos que se entrelaçam (Moreira, 2004). Não se busca a essência de tais fenômenos, mas a compreensão de uma experiência que se apresenta em sua facticidade a partir do radical entrelaçamento do homem com o mundo (Merleau-Ponty, 1945/2000).

A pesquisa foi realizada no PRONUTRA (Programa Interdisciplinar de Nutrição aos Transtornos Alimentares e Obesidade), que é um projeto de extensão desenvolvido no NAMI (Núcleo de Atenção Médica Integrada), da Universidade de Fortaleza. O período da coleta e realização das entrevistas foi de setembro de 2021 a fevereiro de 2022. Foram realizadas um total de oito entrevistas, sendo quatro pacientes com diagnóstico de compulsão alimentar e quatro com bulimia nervosa.

Como critérios de inclusão, os participantes deveriam ter diagnóstico de compulsão alimentar ou de bulimia nervosa, serem maiores de dezoito anos e tinham que ter iniciado os atendimentos interdisciplinares pelo menos dois meses antes da realização da entrevista. Em decorrência da pandemia do vírus da COVID-19, houve uma limitação da quantidade de entrevistas, que foram realizadas de forma remota. Os participantes foram selecionados por conveniência a partir de um levantamento de dados feito pelos pesquisadores e por uma das coordenadoras do programa, dos prontuários ativos dos pacientes que possuíam tais diagnósticos e que estivessem dentro do critério de inclusão. A variável gênero não foi considerada critério e os pacientes foram selecionados de forma aleatória. Apesar disso, a predominância de pacientes do sexo feminino converge com a predominância existente no programa investigado e com a literatura (Silén & Keski-Rahkonen, 2022). Na tabela 1, utilizando nomes fictícios, realizamos uma breve descrição dos participantes.

 

Tabela 1

Breve descrição das participantes

 

Nome

Idade

Breve descrição dos participantes

Claudio

37

É Secretário Escolar. Mora com a esposa e os dois filhos e possui diagnóstico de compulsão alimentar.

Roberta

37

Trabalha com viagens e fretamentos. Mora com o pai e possui diagnóstico de compulsão alimentar

Lívia

22

Graduanda em Enfermagem. Mora com a mãe e duas irmãs e possui diagnóstico de compulsão alimentar

Mônica

36

Psicopedagoga/Pedagoga. Mora com o marido e a filha de 10 anos e possui diagnóstico de compulsão alimentar

Leila

40

Desempregada, vive com os pais e considera que a comida é um vício e que perde o controle. Possui diagnóstico de bulimia nervosa.

Paula

27

Graduanda em Enfermagem. Mora com o marido e o filho de 7 anos e possui diagnóstico de bulimia nervosa.

Anna

23

Estudante de Medicina. Mora com o marido e possui diagnóstico de bulimia nervosa.

Larissa

22

Trabalha no setor administrativo de uma empresa. Mora com a mãe e as duas irmãs e possui diagnóstico de bulimia nervosa

 

O instrumento de pesquisa utilizado foi a entrevista fenomenológica que é considerada um instrumento ideal para acessar as experiências psicopatológicas (Henriksen et al., 2021). Utilizamos uma pergunta norteadora comum para os dois grupos de pacientes: "Como é pra você comer?". Em função das respostas, outras perguntas também foram utilizadas a partir da descrição dos pacientes com o intuito de esclarecer pontos relatados pelos pacientes.

No que tange à análise das entrevistas, seguimos os seguintes passos da análise fenomenológica mundana (Moreira, 2004):  1) Transcrição literal da entrevista; 2) Divisão do texto nativo em movimentos de acordo com o fluxo da entrevista, buscando compor os diferentes temas que emergiram na entrevista; 3) Análise descritiva dos significados que foram surgindo ao longo das entrevistas para, em seguida, compor as categorias fenomenológicas. Ao longo das etapas dois e três, seguindo a tradição do método fenomenológico, buscou-se colocar, o máximo possível, entre parênteses, pelos pesquisadores, as teorias, hipóteses ou concepções sobre a experiência hiperfágica na compulsão alimentar e na bulimia. 4) "Sair dos parênteses", os pesquisadores, ao sair da atitude fenomenológica, se voltam para o fenômeno investigado em diálogo com a literatura disponível.

Esta pesquisa foi desenvolvida em concordância com os padrões éticos e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade de Fortaleza, estando registrada sob o número CAAE n. 59438216.6.0000.5052.

 

Resultados

As categorias fenomenológicas foram definidas a partir da experiência descrita pelos participantes, sendo dividida entre os pacientes com diagnóstico de compulsão alimentar e os pacientes com diagnóstico de bulimia nervosa, como descrito na Tabela 2.

 

Tabela 2

Categorias fenomenológicas acerca da experiência hiperfágica na compulsão alimentar e na bulimia nervosa

 

Experiência hiperfágica na compulsão alimentar

Experiência hiperfágica na bulimia nervosa

Entre o prazer e o sofrimento no ato de comer

Entre o prazer e o sofrimento no ato de comer

O corpo e o olhar do outro

Vício e descontrole no ato de comer

A culpa e o desejo de "expulsar a comida"

O corpo e o olhar do outro

 

Medo de engordar, sentimento de culpa e compensação

 

Experiência hiperfágica na compulsão alimentar

Entre o prazer e o sofrimento no ato de comer

Ao longo das entrevistas, os entrevistados descreverem o ato de comer como uma experiência que pode despertar sensações de prazer, mas que também gera sofrimento, possuindo diferentes significados que transitam, de um lado, entre prazer, satisfação e preenchimento, e, por outro, entre dor, decepção, medo e frustração. Cláudio relata que comer é "prazeroso (…) comer é satisfação (…) é sinônimo de realização, alivia entendeu?". O sentido do prazeroso é posto como "uma emoção muito forte, é, comer é, é, é (gaguejos), me leva a um outro patamar, entendeu? onde eu consigo me livrar daqueles problemas". Ele navega por vários sentimentos antes da compulsão e, durante o ato, vem o sentimento de satisfação: "é porque você vai em vários sentimentos, por exemplo, quando você tá estressado, às vezes você quer comer pra passar aquela raiva né. Quanto mais eu como isso vai satisfazendo". Durante a compulsão, outros sentimentos começam a aparecer, como arrependimento, decepção e dor:

Quando a gente tá comendo demais, a gente começa a perceber, não é isso que eu devia fazer ai vem um arrependimento e com o arrependimento vem a revolta. Por que que eu fiz isso comigo? Eu não mereço fazer isso comigo (choro). Aí vem a decepção, aí vem a dor.

Mônica traz uma experiência semelhante ao relatar que o momento da compulsão é prazeroso, porém, após o episódio, predomina o remorso: "na hora surge prazer, na hora surge euforia, vontade, desejo, é, como também depois eu sinto aquele remorso né. E sinto aquele arrependimento talvez, não sei, aquele peso na consciência". Já Roberta afirma que: "é um prazer, é um benefício, é uma necessidade (…) uma coisa que eu gosto muito e como, como, como, como. Isso me dá prazer, isso é bom pra mim, isso é bom pra minha cabeça". Além do prazer como sensação, o ato de comer significa também preenchimento quando afirma que come, no momento da fome emocional, sempre à procura de "tapar um buraco": "Porque a gente fica comendo, comendo, comendo, comendo, comendo, comendo, querendo tapar um buraco que não dá pra ser tapado com comida, entendeu? Ele tem que ser tapado com outra coisa".

Lívia minimiza a dimensão prazerosa diante do sofrimento ligado ao ato de comer: "eu sinto mais dor do que prazer (…) ao comer, não é uma boa sensação, eu não consigo me sentir bem comendo, sentir prazer comendo, eu sinto dor só de pensar que eu tenho que comer". Ela relata que "leva" sua compulsão para os doces, mas que, mesmo assim, não sente prazer ao comer: "Eu sempre tenho uma preferência mais a doce. Então, eu levo muito pro doce, a compulsão. Tanto que assim eu tô aqui eu posso pensar em uma comida doce e eu já sinto o gosto dela na minha boca". Ainda que sinta o gosto e o desejo por comer, ela descreve uma vivência que não é prazerosa. Há um medo da compulsão que ela compara com uma crise ansiosa: "porque quem tem distúrbio alimentar principalmente tem muito medo das compulsões (…) é igual ter ansiedade e ter medo da crise de ansiedade (…) você tenta impedir, mas não consegue impedir".

Diante da perda de controle, Lívia sente nojo e frustração: "eu sinto até como se fosse assim nojo de mim entende? Por estar comendo, é, tem assim é, a raiva, a frustração". Mônica relata a tristeza diante da ingestão de alimentos que julga como "errados": "quando eu como uma comida que eu acho que é errada, tipo lasanha, salgado, pão, que são coisas que eu como que eu acho que é errada, aí depois bate uma tristeza".

O corpo e o olhar do outro

Ao serem perguntados sobre sua experiência de comer, os participantes descreveram o modo como experienciam o próprio corpo e o atravessamento do olhar. Mônica diz não se incomodar com sua condição corporal: "Eu não me sinto mal com a minha gordura, eu não me sinto mal quando eu me vejo, eu não entendo isso, se eu me vejo no espelho eu não me sinto mal". Já Lívia afirma que sempre foi acima do peso e que o padrão de corpo imposto pela sociedade é algo que a incomoda: "Desde criança eu sempre fui gordinha e desde criança eu via muito aquele padrão da jovem, adolescente que é magra". Roberta citou um episódio em que esteve em uma festa e, após comer o primeiro prato, quis repetir. Porém, o medo do que as pessoas iriam pensar, falou mais alto: "Aí depois eu já fiquei com vergonha né de repetir, porque veio vários pensamentos na minha cabeça, ah, só gordo que repete, ah, só gordo que come mais, só gordo isso, só gordo aquilo, coisas que a gente já passou, já escutou".

Cláudio considera que o julgamento alheio o impulsiona ainda mais para comer: "você vê os comentários das pessoas, aí você vai se resguardar? Você já tá acostumado a fazer e isso dá mais vontade de comer, de fazer essas coisas erradas". Já para Lívia, a comida limita suas relações: "Muitas vezes isso te priva, a relação com a comida ela te priva de muitas coisas, ela te priva de um convívio social, de relacionamentos, muito".

A culpa e o desejo de "expulsar a comida"

Ao longo das entrevistas, foram relatados sentimentos de culpa e experiências em relação à sensação corporal após o ato hiperfágico, como o desejo de "expulsar a comida". No relato de Lívia, o desejo da purgação aparece após o ato hiperfágico, apesar de não chegar, de fato, a compensar: "eu me sinto muitas vezes engasgada, é como se eu não conseguisse colocar aquilo pra fora e é um engasgo que não sai". Lívia ainda afirmava que quando adolescente fazia restrições alimentares e que, devido à elas, a compulsão alimentar ganhou força: "Eu passava de 2 dias sem me alimentar, só com água, só bebia água e tudo e isso ai foi um ciclo vicioso".

Mônica traz uma experiência diferente. O ato de tomar banho é seu modo de compensação após ingerir as "coisas erradas", como se estivesse limpando a comida: "Eu tenho que ficar tomando banho, é como se ali eu tivesse eliminado o que eu comi. Eu tô conseguindo me controlar mais agora com as medicações, as terapias, é, cheguei a tomar por dia doze banhos".

Experiência hiperfágica na bulimia nervosa

Entre o prazer e o sofrimento no ato de comer

Durante as entrevistas, os participantes com diagnóstico de bulimia nervosa descreveram uma vivência de prazer e de sofrimento ligados ao ato de comer. Leila situa a comida como um refúgio: "Pra mim, comer tem sido tudo assim… o meu refúgio de felicidade, tristeza de tudo... mas isso tá me fazendo muito mal, pra minha saúde…". Seu vício é a comida: "a comida é nitidamente como meu refúgio principal, eu sou a drogada da comida". Existe uma certa contradição de sentimentos na sua relação com o alimento, pois a comida é, ao mesmo tempo, refúgio, prazer e, também, sofrimento: "Bem, acho que comer pra mim ao mesmo tempo é muito bom porque é uma coisa que me dá muito prazer na vida, mas, ao mesmo tempo, também, ela é a origem do meu sofrimento". Já Paula relata que desconta suas emoções na comida: "às vezes eu fico feliz, às vezes eu fico muito triste, todas essas minhas emoções eu deposito na comida". Para Anna, a mensuração do prazer e sentimento durante e após a compulsão são semelhantes: "Digamos assim que quando eu como muito, o sofrimento que vem depois é tão ruim quanto a boa sensação de comer". Para ela, a comida também é um lugar de alívio: "Acaba que a gente come para aliviar determinados sentimentos".

Leila descreveu como é a "viagem" que faz no momento de comer e o "estalo" que traz o sentimento de tristeza que se sobressai logo depois:

Felicidade, conforto, prazer, entende? Eu me sinto bem naquele momento… depois eu fico triste, logo depois eu fico triste mas na hora (…) Às vezes eu até esqueço da comida, às vezes eu to comendo, eu to olhando pra comida eu fico pensando assim no sabor, na textura, eu fico viajando (…) aí depois do nada, aí eu meio que acordo, tipo eu "pá" acordo, eu volto pra realidade. É aí que eu começo a ficar triste.

Vício e descontrole no ato de comer

O vício e o descontrole no ato de comer foram experiências descritas por algumas participantes. Anna se compara como uma "viciada" e descreve esse descontrole ao tocar na comida: "Como se eu fosse uma viciada e que eu to aqui em abstinência e enquanto eu não tocar no alimento, eu consigo me controlar". Para Leila, o descontrole diante da comida só é impedido quando já está muito satisfeita e, mesmo assim, faz uso de técnicas para "caber mais":

Aí eu começo a comer, comer, comer, comer, até não aguentar mais. Aí começo a ficar comendo, comendo, aí eu começo a ficar triste. Aí pra não chorar, pra não desabafar com ninguém eu começo a comer e não paro nunca mais, só paro quando eu realmente tô me sentindo muito mal. Às vezes até quando eu tô me sentindo muito mal tomo até um remédio, faço uma técnica de respiração pra ver se eu boto mais comida (risos).

Anna escolhe e elege os alimentos que come para "ficar para si" e aqueles que come para purgar. Porém, relata o descontrole, muitas vezes, diante da comida:

É como se eu fosse comer para me purgar, eu soubesse que eu não ia ficar com aquilo em mim, eu não ia me preocupar com caloria. Se é gordo, se não é, se tem açúcar, se não tem (…) às vezes eu até sinto que vou me controlar, eu já tive a compulsão, já me aliviei, agora eu vou comer pra mim, só que aí, muitas vezes eu começo a comer normal, aí eu perco a quantidade e começo a comer muito de novo.

O corpo e o olhar do outro

Nesta categoria, os participantes descreveram, a partir do ato de comer, o modo como enxergam seu próprio corpo e o atravessamento do olhar do outro na constituição de sua experiência corporal. Anna cita o receio de mostrá-lo em público e de como suas roupas são como esconderijo: "Tipo eu tenho uma coleção de biquínis em casa, porque eu compro, acho bonito, quando eu ando nos cantos acho bonito e compro, mas eu não consigo usar. (...) não me sinto bem, me sinto feia".

Leila afirma que só queria "acordar magra": "me sinto muito mal, eu queria assim acordar magra, magra, não seca, mas magra assim no peso ideal". Para Larissa, a experiência de comer é tida como errada, sendo atravessada pelo corpo: "A partir do momento que eu mastigo meu consciente começa a mandar mensagens pro meu corpo e eu acho que eu tô engordando, que eu não posso estar comendo, que aquilo é errado! Sinônimo de comer é estar errado!". Paula já olha para seu corpo com um olhar julgador, diretamente influenciado pelos outros e a dificuldade de aceitar-se:

Essa relação não é muito bacana (pausa, suspiro!) eu não lembro qual foi a última vez que eu que eu consegui olhar para mim sem aquele olhar de crítica, porque eu escuto muito as pessoas falarem e eu também enxergo assim, sabe o que toda a gente fala, eu não consigo aceitar meu corpo, e nem pretendo.

O receio e o medo do descontrole frente aos outros também foi citado por Paula: "É constrangedor você ter vergonha de ir no restaurante e ter medo de acontecer isso das pessoas olharem e te criticarem, é constrangedor em relação a tudo isso que acontece em relação ao meu peso". Anna relata, ainda que brevemente, sua experiência em comer em público e do olhar dos outros: "Eu geralmente não gosto de comer perto de ninguém, na maior parte das vezes eu como sozinha, mas das poucas vezes que eu como assim em algum lugar, eu me sinto mal". Leila prefere comer escondido para evitar críticas vindas dos pais: "é por isso que eu prefiro comer sozinha, às vezes de noite eu como sozinha, escondida de todo mundo".

Medo de engordar, culpa e compensação

Ao longo das entrevistas, as participantes descrevem a culpa, o uso de métodos compensatórios e o medo de engordar presentes na experiência hiperfágica na bulimia nervosa. Leila fala dos seus métodos de compensar, através de laxantes e exercícios físicos, além da contagem de calorias que faz sempre após as compulsões por medo de engordar:

Eu termino de comer aí na minha tristeza eu fico assim que merda eu vou engordar. Eu começo a fazer uns cálculos na minha cabeça. Cara, com que eu comi se eu tomar um laxante agora e fazer uns exercícios x, eu vou queimar o que eu acabei de consumir.

Para Paula, exercícios físicos e laxantes não são alternativas de compensação, apenas o vômito autoinduzido. Ela já recorre ao vômito há tanto tempo que, hoje em dia, se tornou um hábito: "Chegou um tempo que começou como tá hoje, eu perdi o controle e eu não conseguia mais tomar um copo de água sem vomitar e acabou que virou um hábito de eu comer e vomitar, mesmo sem induzir."

Larissa afirma que purga quando está estressada ou nervosa: "quando eu tô muito estressada, quando eu tô muito nervosa, quando eu tô triste, são os momentos que eu mais faço isso que eu mais faço isso geralmente quando eu tô com algum problema eu acabo vomitando". Para Anna, sua experiência de se sentir cheia é como um sufocamento e o vômito é capaz de aliviar: "É o se sentir cheia, o se sentir sufocada, o ter que provocar alguma coisa pelo medo de engordar ou até mesmo pra ter um alívio. Porque é tão insuportável ficar com aquilo que parece que você não vai aguentar". Após o alívio, ao sentir fome, ela acaba, por vezes, comendo novamente, entrando em um ciclo: "e depois eu fico com fome e não tem mais nada na barriga. Aí eu vou e como de novo, já tiveram muito dias que foi assim, uma vez atrás da outra".

 

Discussão

Os participantes descreveram os diferentes significados da experiência hiperfágica, evidenciando sentimentos e emoções que os atravessam antes, durante e após o ato de comer. Para além do caráter sintomatológico, compreende-se, sob um viés fenomenológico, a compulsão alimentar e a bulimia nervosa como um modo de ser global do sujeito, um estilo existencial que assinala um modo de ser-no-mundo que possui diferentes significações que se constituem na relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo (Tatossian, 1994). Há uma experiência que é vivida individualmente, mas que é sempre tecida no corpo e pelo corpo que habitamos em sua dimensão intersubjetiva e mundana (Merleau-Ponty, 1945/2000) como condição de possibilidade do ato de comer.

As experiências alimentares possuem uma história e continuam sendo vividas ao longo de toda a existência, produzindo significados e revelando diferentes modos de expressão que se entrelaçam com o mundo. É preciso compreender os significados naquilo que lhes é particular, mas também na dimensão comum que demarca o modo como as experiências patológicas são vividas (Tatossian, 1979/2006). Ainda que se trate de experiências de adoecimento classificadas nosograficamente de forma distinta, as experiências foram descritas de modo semelhante quanto aos sentimentos durante e após o vivido hiperfágico.

Experiências tidas como antagônicas, como prazer e alívio e culpa, tristeza e sofrimento, foram descritas pelos pacientes dos dois grupos. Tal antagonismo e sofrimento não são em si mesmos de cunho patológico e podem ser vividos por pessoas que não possuem um transtorno alimentar. No entanto, é preciso considerar as desproporções antropológicas que acabam por demarcar a experiência dos participantes e estagna-los em um modo adoecido de viver suas experiências que se constitui a partir de alterações do modo de experienciar o próprio corpo e construir sua identidade pessoal (Stanghellini et al., 2018). Parece haver outro modo de viver a corporeidade que exacerba a dimensão do sofrimento, da vulnerabilidade e da vigilância ao olhar do outro sobre o corpo que pode ganhar peso diante do ato de comer (Esposito & Stanghellini, 2020). Além disso, sob tais aspectos, é preciso que o fato da maioria dos participantes ser do gênero feminino seja considerado. Ainda que as participantes não mencionam de forma direta esta dimensão, reconhecemos um corpo que é mais visado, vigiado e controlado, o que coaduna para uma maior manifestação dos transtornos alimentares em mulheres (Silén & Keski-Rahkonen, 2022).

A tentação diante da comida apetitosa, a ligação com a impulsividade, a necessidade do acontecimento e o alívio durante sua duração também foram experiências descritas pelos pacientes dos dois grupos. Em seguida, vem a culpabilidade de ter cedido ao desejo de satisfazer tal necessidade, a negação e os discursos de banalização e ofensas sobre si mesmos.  Há uma tensão que denota o sentido ambíguo do ato de comer que ora se mostra como prazeroso e ora como fonte de sofrimento (Charbonneau & Moreira, 2013). A culpa pelo ato de comer e pelo possível ganho de peso se mostrou como uma experiência comum presente diante do ato hiperfágico. No caso dos pacientes com bulimia nervosa, recorrer às compensações era uma forma de descorporificar no agora o alimento ingerido, revelando ainda mais sua vulnerabilidade e o sentido moral associado ao ato de comer tido como errado.

As entrevistas endossam a necessidade de se conceber hiperfagia para além do excesso, do sentido quantitativo do ato de comer ou da quantidade de comida ingerida. Trata-se de um excesso por se tratar de uma experiência vivida por um sujeito que não pode, ou não consegue, deixar de comer (Bloc, Pringuey & Wolf-Fedida, 2018), vivendo absorto pela iminência do ato de comer com todos os seus significados que ultrapassam a dimensão nutricional e se apresenta como única possibilidade. Vale ressaltar que os episódios de compensação, descritos mais diretamente pelos pacientes com bulimia nervosa, mas também mencionados como possibilidade pelos pacientes com compulsão alimentar, também revelam um aprisionamento sob um modo de ser que busca retirar do próprio corpo o alimento recém ingerido, o que poderia diminuir a culpa sentida e trazer novamente certa "ilusão" de controle (Castellini & Ricca, 2019). Experiencia-se o corpo como objeto como via para lidar com as próprias emoções (Gaete & Fuchs, 2016) e, por vezes, aliená-las (Castellini & Ricca, 2019).

A dimensão emocional ligada diretamente ao ato alimentar também se mostrou presente nas entrevistas. O comer emocional pode ser definido como uma resposta a uma série de emoções negativas, como ansiedade, depressão, raiva e solidão, para lidar com o afeto negativo (Gaete & Fuchs, 2016; Stanghellini et al., 2018). Para escapar de um estado emocional negativo, alguns participantes recorrem de forma direta ao ato de comer e a comida passa a possuir, naquele momento, a função de aliviar tais sentimentos. O sentimento de descontrole permite reconhecer a hiperfagia na compulsão alimentar e na bulimia nervosa em sua proporção patológica, pois a liberdade (de escolher comer ou não comer) do sujeito não está presente durante os episódios hiperfágicos (Bloc, Pringuey & Wolf-Fedida, 2018). Ao reconhecerem que a comida é o prazer mais acessível e o consolo mais rápido, os pacientes parecem recorrer ao comer excessivo como estratégia para lidar com o incômodo e a dor, ainda que, quase sempre, se arrependam, quase imediatamente, após o ato compulsivo de comer (Nespoli et al., 2018).

O ato hiperfágico que, por vezes, advém de uma situação de sofrimento, instaura um mal-estar diante da ação cometida. Assim, os comportamentos compensatórios podem ocorrer como uma possível forma de recuperar o controle, como uma tentativa de restaurar a normalidade e se livrar do sentimento de culpa. Eles são considerados como uma forma de regular as emoções da mesma forma que a compulsão alimentar (Stanghellini et al. 2018). Há uma experiência corporal que se altera como base para estes comportamentos, configurando um outro modo de viver o corpo nos transtornos alimentares e que se configura como elemento transdiagnóstico (Castellini & Ricca, 2019).

Na bulimia nervosa, a compensação e o medo de engordar apareceu de forma mais direta, como no discurso de Leila, que relatou que o uso de laxantes e a prática de atividade física como formas que encontra para "expulsar a comida", e Paula e Larissa que autoinduzem o vômito. Apesar disso, em ambas as experiências, a compensação parece se apresentar como uma via de resposta possível diante de um sofrimento ligado à experiência corporal. Independente do diagnóstico de compulsão alimentar ou bulimia nervosa, é preciso que se busque vias de cuidado que possam considerar o corpo para além de um objeto e busque atingir as condições de possibilidade da experiência hiperfágica. A objetificação do corpo aparece como fundo comum de ambas as experiências, o que converge com a compreensão fenomenológica dos transtornos alimentares (Castellini, et al., 2014; Mancini & Esposito, 2022; Stanghellini et al., 2018).

Diante de um mundo contemporâneo que se volta para o corpo como objeto e via de expressão (Freire, 2011), observamos nos transtornos alimentares um sofrimento radical vivido em um corpo visível e julgado por si mesmo e pelos outros naquilo que ele é e no que pode se tornar. Na fala dos participantes, pudemos perceber a construção da identidade pessoal a partir desse olhar do outro. O corpo se acentua como objeto a ser observado e avaliado, deixando, por vezes, a dimensão de sujeito de sua própria experiência de lado (Mancini & Esposito, 2022; Stanghellini et al., 2018).

Nos participantes com compulsão alimentar, também percebemos, como no caso de Mônica, uma alteração na sua percepção corporal. Ela afirma que não se incomoda com seu corpo, porém, quando se olha em fotografias, se vê de forma diferente. Parece haver uma distância de seu próprio corpo. O desequilíbrio na fala de Mônica entre o seu corpo sujeito (o corpo experimentado por dentro, a experiência direta do próprio corpo em primeira pessoa) e o seu corpo objeto (corpo visto de fora em uma perspectiva de terceira pessoa) parece potencializar essa distorção, uma distância, entre o que é visto por ela no espelho, e o que é visto por ela (e pelo outro) na fotografia (Castellini et al., 2014). Altera-se a experiência ambígua do corpo como, ao mesmo tempo, sujeito e objeto (Merleau-Ponty, 1945/2000), passando a ser reduzido à dimensão física, objetificado àquilo que é visto por si, pelo outro e pelo mundo que traça modos ideais de ter um corpo (Castellini, et al., 2014; Mancini & Esposito, 2022; Stanghellini et al., 2018).

O corpo vivido, por vezes, não é mais uma evidência experiencial direta e pessoal de si mesma, passando a ser algo que é visto a partir de uma perspectiva externa (Stanghellini et al., 2012). Isso significa que o outro se torna o espelho principal no qual o indivíduo pode perceber a si mesmo (Castellini et al., 2014). Alguns elementos como a imposição de padrões de beleza e uma cobrança do próprio indivíduo na busca de um corpo ideal podem contribuir para que hábitos alimentares inadequados sejam adotados (Tramontt et al., 2014), o que observamos nas entrevistas nos dois contextos. As tentativas de seguir certos padrões de beleza podem contribuir para o início e manutenção de transtornos alimentares. A autopercepção corporal é um elemento investigado com frequência em algumas pesquisas e, geralmente, estar acima do peso ideal se destaca como forma de insatisfação corporal (Pivetta & Gonçalves-Silva, 2010). Tal dimensão se mostrou presente nos dois grupos. No entanto, os pacientes com compulsão alimentar trazem experiências ligadas à obesidade como parte de sua história de vida, enquanto os pacientes com bulimia nervosa destacam o medo de ganhar peso que os assombra continuamente.

Pode-se dizer que a nossa ancoragem no corpo e na aparência está diretamente ligada à nossa relação com os outros e com o mundo. A vergonha, experiência descrita pelos dois grupos, parece estar diretamente associada ao olhar dos outros sobre seu próprio corpo. Quanto mais o corpo é "visado", mais ele se torna pesado em sua cotidianidade (Bloc, Pringuey & Wolf-Fedida, 2018). Autores contemporâneos da psicopatologia fenomenológica têm enfatizado que o eixo central nos transtornos alimentares é diretamente relacionado a uma dimensão da corporificação (Esposito & Stanghellini, 2020; Mancini & Esposito, 2022; Stanghellini et al., 2012; Stanghellini et al. 2015; Stanghellini et al., 2018). Os indivíduos percebem que seu próprio corpo pode ser observado, primeiramente, por outras pessoas, como um objeto para os outros, o que observamos nos relatos dos participantes e que parece ser acentuado diante da possibilidade de ganho de peso e da rejeição da obesidade.

O corpo indica uma forma de ser que, por vezes, nos escapa e é atravessada, captada e mesmo invadida pelo olhar do outro (Melo & Boris, 2021). Existimos, objetivamente, a partir do olhar que o outro nos confere. Pessoas com transtornos alimentares podem experimentar o corpo como um objeto sendo olhado, primeiramente, pelo outro (Stanghellini et al., 2012), como foi descrito, por exemplo, por Leila e Lívia.

Algumas participantes falam do padrão de beleza imposto pela sociedade (da magreza, cabelo grande e liso) e da angústia ao perceber a dificuldade que seria em alcançar tal padrão. Dessa forma, é possível perceber experiências que acentuam o impacto do olhar do outro, a valorização de padrões estéticos pela sociedade, a vergonha, a privação social decorrente da comida, o olhar crítico sobre si mesmos e até o uso de roupas como esconderijo de tal corpo. Como afirma Fuchs (2003, p. 226), "os olhos do outro descentralizam o meu mundo", ou seja, desorganizam o modo particular de viver a experiência corporal. Para além de um comportamento, pode-se dizer que "os comportamentos alimentares são carregados por imagens do corpo e imagens do mundo" (Charbonneau & Moreira, 2013, p. 537), o que nos incita a compreender que se trata, necessariamente, de uma experiência que se constitui na relação com o mundo, indo muito além de um fenômeno que pode ser reconhecido individualmente. Para compreendê-lo, é preciso que nos indaguemos sobre que mundo é este que vivemos (Butler, 2022).

Considerando a lente fenomenológica que direcionou esta pesquisa, identificamos um eixo comum entre esses dois modos de ser investigados que vai além do comportamento e envolve também seu caráter experiencial. Se do ponto de vista transdiagnóstico há uma dimensão comum que põe em destaque a experiência hiperfágica, a dimensão fenomenológica reconhece um núcleo psicopatológico mais profundo que se sustenta em preocupações excessivas com a forma e o peso corporal (Castellini et al., 2014). Neste sentido, a partir das entrevistas, foi possível perceber de forma explícita os elementos que parecem sustentar a experiência hiperfágica e o sofrimento ao se viver um transtorno alimentar. Ainda que se trate, do ponto de vista nosológico, de dois quadros distintos, as entrevistas evidenciam uma proximidade que vai além do comportamento, do sintoma e da classificação. Os significados descritos sugerem uma alteração da experiência corporal sustentada pelo olhar do outro sobre o corpo como fundo comum da experiência hiperfágica na compulsão alimentar e na bulimia nervosa. Assim, eles apontam para a necessidade de acessá-los em sua pluralidade e mundanidade como via de exploração da experiência, saindo de um diagnóstico da doença para uma compreensão diagnóstica de um modo de funcionamento (Tatossian, 1979/2006).

 

Considerações Finais

Buscamos compreender os significados da experiência vivida de hiperfagia na compulsão alimentar e na bulimia nervosa sob uma lente fenomenológica. Pudemos constatar que o ato de comer descrito pelas participantes vai muito além de uma função fisiológica e corporal, possuindo múltiplos significados. Foram destacadas sensação de prazer, dor, fuga e preenchimento em ambos os diagnósticos, bem como euforia, culpa e vergonha. Sentimentos e sensações como vício, medo de engordar, comportamentos compensatórios, a experiência do corpo e o impacto do atravessamento do olhar do outro foram temas e discursos pertinentes para compreendermos, de forma mais ampla, a experiência de comer compulsivamente instalada no mundo vivido dos participantes. O ato de comer hiperfágico se mostrou como um modo de funcionamento, um modo de ser e estar-no-mundo que atravessa a bulimia nervosa e a compulsão alimentar, mas que também é marca do tempo que vivemos sob a dinâmica do excesso e da busca de preenchimento. A compreensão dos significados deste fenômeno exige situá-lo no mundo, indo além de uma expressão individual.

A partir do relato dos participantes, a experiência hiperfágica na bulimia nervosa foi marcada pela ambiguidade entre felicidade e tristeza, bem como o vício, o sofrimento, o descontrole e a compensação por laxantes, exercícios físicos e vômitos autoinduzidos, experiências essas vividas no corpo e pelo corpo. O julgamento do olhar do outro também foi relatado pelos participantes de compulsão alimentar, olhar este considerado não permissivo, atravessado por críticas e julgamentos. Ainda que existam significações distintas a partir dos relatos dos participantes, podemos concluir que há uma dimensão comum que se relaciona a uma alteração do modo de experienciar o próprio corpo e o impacto do olhar do outro na construção da própria identidade, o que converge de forma direta com as pesquisas de cunho fenomenológicas que vêm sendo realizadas.

Para compreender a experiência vivida de hiperfagia na compulsão alimentar e na bulimia nervosa, é necessário alcançar e compreender essa experiência em sua mútua constituição, do mundo e no mundo, atravessada pelo sujeito na sua relação com seu corpo, com o olhar do outro e com a própria comida. É fundamental que mais pesquisas, teses e estudos fenomenológicos sejam realizados a respeito do tema com o objetivo de acessar e, assim, compreender, cada vez mais, o fenômeno do comer, seus sentidos e possibilidades em indivíduos com transtornos alimentares. Compreender os significados do vivido hiperfágico na compulsão alimentar e na bulimia nervosa é um caminho fundamental para o desenvolvimento de terapêuticas que considerem a experiência em primeira pessoa daqueles que sofrem com transtornos alimentares. Por fim, é preciso que nos questionemos acerca do excessivo centramento no diagnóstico que acaba por distanciar de elementos centrais, e por vezes comuns, que subjazem a experiência de um transtorno alimentar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Lucas Guimarães Bloc - blocpsi@unifor.br

Recebido em: 06/08/2023
Aceito em: 04/04/2024

 

 

Agradecimentos: Os autores agradecem aos pacientes entrevistados por terem se disponibilizado a participar da entrevista, contribuindo diretamente para a execução da pesquisa.

 

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