Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e78066, doi:10.12957/epp.2024.78066
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Mulheres Invisibilizadas: A Experiência Afetiva de Entrega de um Filho para Adoção

 

Invisibilized Women: The Affective Experience of Giving a Child up for Adoption

 

Mujeres Invisibilizadas: La Experiencia Afectiva de Entregar un Niño en Adopción

 

Gisele Castanheira dos Santos a, Sonia Regina Vargas Mansano a

a Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

A entrega de um filho para adoção passou a ser mediada pelo Poder Judiciário a partir da Lei 12.010 de 2009, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente. O objetivo desta pesquisa foi analisar essa experiência sob a perspectiva das mulheres. Foi escolhida a metodologia qualitativa, valendo-se da história oral, com depoimentos acessados por entrevistas semiestruturadas e análise documental. Participaram da pesquisa quatro mulheres que entregaram os filhos para adoção na Vara da Infância e da Juventude em uma comarca do interior do Paraná. Os dados foram analisados a partir de três eixos: 1) a instituição maternidade; 2) os controles que marcam a experiência; e 3) os desdobramentos afetivos da invisibilidade das mulheres. Como resultado, foi possível compreender que os afetos vivenciados pelas participantes nessa experiência são múltiplos: arrependimento, sofrimento e autocensura, mas também inclinações potencializadoras como alegria, cuidado e expectativa pelo futuro reencontro com o filho. Concluiu-se que sustentar a diversidade de afetos manifestos nessa delicada experiência requer a formação de profissionais atentos e sensíveis à diversidade humana.

Palavras-chave: adoção, mulheres, infância, direitos.


ABSTRACT

The Judiciary mediates child placement for adoption since the implementation of the Law 12.010 of 2009, which amended the Child and Adolescent Statute. This research aimed to analyze this experience from the women´s perspective. The qualitative methodology was chosen, with the use of the oral history, through semi-structured interviews and document analysis. Participated in this research four women who gave their children up for adoption, whose process occurred at Childhood and Youth Court in a town located in the countryside of Paraná. The data was analyzed in three axes: 1) the institution of motherhood; 2) the control exercised on this experience; and 3) the affective consequences of women's invisibility. As a result, it was possible to understand that the affections experienced by the participants are multiple: regret, suffering, and self-censorship, but also potentializing inclinations, such as joy, care, and the hope for a future meeting with the child. At the end of the study, we concluded that sustaining the diversity of affections manifested in such a delicate experience requires the training of professionals who are attentive and sensitive to human diversity.

Keywords: adoption, women, childhood, rights.


RESUMEN

La entrega de un niño en adopción pasó a ser mediada por el Poder Judicial a partir de la Ley 12.010 de 2009, que modificó el Estatuto del Niño y del Adolescente. El objetivo de esta investigación fue analizar esta experiencia desde la perspectiva de las mujeres. Se eligió la metodología cualitativa, haciendo uso de la historia oral, con declaraciones a las que se accedió a través de entrevistas semiestructuradas y análisis de documentos. Participaron de la investigación cuatro mujeres que dieron a sus hijos en adopción en el Juzgado de la Infancia y la Juventud de una región del interior de Paraná. Los datos fueron analizados a partir de tres ejes: 1) la institución maternidad; 2) los controles que marcan la experiencia; y 3) las consecuencias afectivas de la invisibilidad de las mujeres. Como resultado, fue posible comprender que los afectos experimentados por las participantes de esta experiencia son múltiples: arrepentimiento, sufrimiento y autocensura, pero también inclinaciones potenciadoras como la alegría, el cuidado y la expectativa por el futuro reencuentro con el niño. Se concluyó que sostener la diversidad de afectos manifestados en esta delicada experiencia requiere la formación de profesionales atentos y sensibles a la diversidad humana.

Palabras clave: adopción, mujeres, infancia, derechos.


 

 

O abandono de crianças e o ato de entregar um filho para que terceiros o criem e eduquem, abdicando do exercício da maternagem, são práticas presentes em diferentes povos e tempos históricos. Os interesses dos adultos foram historicamente privilegiados no trato das crianças, não havendo preocupação com o destino daquelas que eram abandonadas. Assim, em sua maioria,  as crianças acabavam morrendo e, aquelas que porventura sobrevivessem, eram expostas a abusos, escravidão, mendicância e prostituição (Marcílio, 2019).

O sistema judiciário brasileiro, em nossos dias, reconhece a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, da criança e do adolescente, que são sujeitos titulares de direitos constitucionais e contam com a proteção de uma legislação própria (Lei 8.069/1990), que é o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990. Para além de estabelecer direitos para essa população, o ECA garante que suas necessidades tenham primazia sobre os interesses dos adultos. Assim, as legislações da área da Infância e da Juventude visam conferir e garantir direitos para as crianças e adolescentes, rompendo com um passado em que houve tolerância social aos maus-tratos, negligências e abandono. Nessa perspectiva, o Poder Judiciário, por meio da Lei 12.010 de 2009, alterou o ECA, retirando a prática da entrega de um filho para adoção da informalidade, e revestindo esse ato de segurança, visando evitar o abandono e a comercialização de crianças (Bittencourt, 2012).

São escassas no Brasil pesquisas relativas à compreensão dos afetos envolvidos na entrega de um filho para adoção. Os estudiosos dedicados ao tema constataram que, de forma prevalente, as mulheres vivenciaram essa experiência em um contexto de solidão, sem contar com o suporte dos genitores dos bebês, privadas de uma rede de apoio familiar ou comunitário e, em sua maioria, expostas a situação de vulnerabilidade social (Pinho & Machado, 2023; Souza & Dias, 2022; Moraes et al., 2015). Para acentuar a dificuldade, ainda há uma limitação de políticas públicas ou programas que ofertem atendimento psicossocial para as mulheres ao longo desse processo (Motta, 2001). É relevante considerar que coexiste em nosso país uma multiplicidade social, com marcadores valorativos e legais, que tanto normatizam quanto normalizam (Foucault, 1975) esta experiência. No entanto, são ignoradas, historicamente, as múltiplas maneiras de conceber e praticar a maternagem, decorrentes de vivências que são atravessadas por questões de raça, classe e gênero.

Atento à realidade social brasileira, o presente estudo teve por objetivo analisar, sob a perspectiva das mulheres, de que forma elas vivenciaram e quais afetos estiveram envolvidos na experiência da entrega de um filho para adoção, realizada perante o Poder Judiciário. Adotando uma abordagem metodológica qualitativa, articulada à história oral, foram ouvidas quatro mulheres que entregaram os filhos para adoção em uma comarca localizada no interior do Paraná. Os depoimentos foram analisados em seus aspectos afetivos, sociais e históricos, contando com as contribuições de teóricos advindos de diferentes áreas como Psicologia, Direito, Filosofia, Sociologia e História.

Implicações históricas, sociais e afetivas da entrega de um filho para adoção

As mulheres que entregam o filho para adoção desafiam um ideal presente na sociedade ocidental contemporânea, segundo o qual o amor materno é inato e universal. Não obstante, a idealização da maternidade e a imposição do exercício dessa função, tendo como parâmetros ideais inatingíveis, decorrem de uma construção histórica, que envolve múltiplos fatores sociais, culturais e afetivos (Badinter, 1985). A condução da educação e dos cuidados dirigidos às crianças recaiu exclusivamente sobre as mulheres, especialmente a partir do século XVIII, quando o modelo familiar burguês se fechou em uma configuração privada, afastando seus membros do meio social (Donzelot, 1980). A onipresença da família como instituição foi construída lentamente entre os séculos XV e XVIII, mas apenas após este último século houve o triunfo da família nuclear com o aniquilamento da sociabilidade. Ariès (1981) considera: "somos tentados a crer que o sentimento da família e a sociabilidade não eram compatíveis, e só se podiam desenvolver a custa um do outro" (p. 191). Os ideais dos movimentos liberal e burguês forçaram o retraimento da família burguesa em suas casas e o fechamento do núcleo familiar, produzindo o individualismo, o rompimento com a prática da solidariedade e a normalização do isolamento. Desta forma, foi mitigada a prática de cuidado comunitário, que envolvia a participação constante da família extensiva e da comunidade na transmissão de valores e nos cuidados básicos oferecidos às crianças.

A família nuclear, particularmente as mulheres, passou a ocupar-se de garantir aos filhos os cuidados com a saúde e a educação que estivessem alinhados com os sistemas econômico e social vigentes. Diante desse desafio, gradativamente, a família burguesa precisou realizar uma nova abertura ao meio social recorrendo a articulações com outras instituições para melhor efetuar essa tarefa. Donzelot (1980) cita que, a partir do século XVIII, ocorreu uma multiplicação de técnicas e saberes científico-profissionais elaborados com intuito de fornecer respaldo à demanda educativa da família que se voltou à intimidade do lar. Se, por um lado, a família burguesa abriu-se aos novos saberes que adentraram em sua intimidade, beneficiando-se deles, por outro lado, a ciência adquiriu uma função política. Os especialistas foram introduzidos na esfera familiar inicialmente com a função de cura e suporte, mas também desempenharam a função de vigilância, normatizando a vida familiar, a fim de assegurar os interesses do Estado (Donzelot, 1980; Foucault, 1975).

Coaduna com esse cenário o conceito, elaborado por Foucault (1975), de poder disciplinar, que agrega uma série de ações exercidas de modo sutil e difuso, como complementariedade aos saberes biopolíticos. Neste sentido, as relações de poder se ligam aos saberes voltando-se agora para uma tentativa de adestramento dos corpos, com vistas a torná-los submissos, produtivos e úteis ao sistema econômico. Essa era a matriz valorativa dirigida às mulheres a partir do século XVIII: a aceitação da maternidade como único destino e exercida dentro dos parâmetros estabelecidos pelos saberes científicos. As funções relativas à maternidade foram, em larga medida, romantizadas de modo a atrelar a dedicação exclusiva das mulheres à comprovação de seu amor pelos filhos. Aquelas que contrariassem esse ideal eram consideradas: "uma aberração, uma criatura desnaturada" (Martins, 2004, p. 233). Nota-se, assim, que gradativamente foi construído o ideal de amor materno inato, segundo o qual a devoção da mulher aos filhos é um valor essencial, não apenas para a sobrevivência das crianças, mas também para o bem-estar da humanidade.

Uma série de práticas sociais excludentes dirigiu as mulheres às atividades ligadas a procriação e aos cuidados das crianças (Perrot, 2005), dando passagem a outra matriz valorativa: ditar a finalidade dos corpos femininos, reforçar a divisão sexual das funções familiares, aumentar a exclusão das mulheres da vida pública e do exercício da cidadania (Martins, 2004). Segundo Bourdieu (1998), essa divisão sexual consolida-se como visão dominante e se expressa em diferentes teorias, ditados, poemas, práticas, divisões de trabalho e, principalmente, em formas de controle do corpo e do tempo das mulheres. O autor caracterizou a dominação masculina, afirmando que esta ocorre por meio de ações e discursos que colocam os corpos femininos em constante insegurança, contenção e dependência simbólica. Com isso, o feminino foi, no decorrer da história, definido a partir das expectativas masculinas: "delas se espera que sejam femininas, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas" (p. 82).

Diante dos discursos que repetidamente atrelaram a "natureza feminina" (Badinter, 1985, p. 238) aos atributos da boa mãe, muitas mulheres se aprisionaram no modelo definido pela moral burguesa ascendente: assumiram os cuidados da prole de forma solitária, aceitando a sobrecarga decorrente da falta de apoio, a fim de evitar o julgamento e a imputação do status de anormalidade. A manutenção desse ideal tem produzido efeitos dolorosos na experiência de maternagem. Esta última é entendida aqui para além da "relação consanguínea entre mãe e filho" (Gradvohl, Osis, & Makuch, 2014, p. 5) e sim como "vínculo afetivo do cuidado e acolhimento ao filho por uma mãe" (p. 5).

Em uma pesquisa com profissionais da saúde que ofereciam atendimento a mulheres que entregaram os filhos para adoção, Faraj et al. (2016) observaram o quanto a equipe de profissionais estava impregnada pelo ideal do amor materno inato. Ainda que tivessem conhecimento dos encaminhamentos previstos em lei para esses casos, os relatos indicam que a atuação, em um primeiro momento, ocorria no sentido de convencer as genitoras a permanecer com a guarda e a cuidar dos filhos, não aceitando a possibilidade da renúncia do exercício da maternagem. Motta (2001) observou, nos relatos de mulheres que entregaram os filhos para adoção, que elas eram submetidas a ações e comentários que explicitavam a discriminação e a censura por parte de alguns profissionais da área da saúde e do Poder Judiciário. Pode-se dizer, então, que os saberes produzidos nos séculos XVIII e XIX ainda estão presentes e fortalecem o mito do amor materno inato.

Com isso, a entrega de um filho para adoção ocorre em meio a uma dissociação entre os interesses das crianças e das mulheres. Enquanto as crianças se configuram como o indivíduo jurídico, a quem a lei garante atuações norteadas pelos princípios da prioridade absoluta, da proteção integral e do melhor interesse da criança (Bittencourt, 2012), os direitos das mulheres são, em alguma medida, preteridos. Sobre elas recaem práticas avaliativas e normalizadoras, prevalecendo uma visão preconceituosa desprovida de compreensão quanto à complexa gama de afetos que podem estar envolvidos nessa experiência. Para conferir visibilidade às mulheres que entregam os filhos para adoção, buscamos compreender tal experiência sob a perspectiva dos afetos. Afinal, como se dão os encontros que permeiam essa vivência e de que maneira eles repercutem na existência afetiva dessas mulheres? O conceito de afeto aqui utilizado remete à filosofia de Espinosa e Deleuze, para quem os encontros vividos entre os corpos podem afetá-los de maneiras díspares, diminuindo e/ou aumentando sua potência de agir (Jesus, 2015). Nesse sentido, as mulheres não são consideradas de modo uniforme, mas estão implicadas em um constante movimento que varia a potência de existir a cada novo encontro. Nessa perspectiva, a multiplicidade de encontros que compõem o viver pode fazer com que haja variações que culminam em bloqueios, defesas e temores, mas também de expansão e vitalidade. A noção de sustentabilidade afetiva (Mansano, 2020) coopera para evidenciar os múltiplos afetos que compõem a existência, sem que se sucumba à negação de parte deles. É a partir da vivência da diversidade de afetos, encontros e trocas que se abrem possibilidades para criação e mudança: "Falamos de uma vida em fluxo, aberta aos riscos inerentes às experimentações dos afetos e à produção de novos sentidos" (p. 6-7).

As mulheres que entregam os filhos para adoção também estão expostas a um turbilhão de afetos nesse momento de decisão, como amor, desejo, sofrimento e luto (Motta, 2001). Como se não bastasse essa pluralidade afetiva, no contexto da entrega, elas são submetidas a protocolos e ações rígidas adotadas por atores sociais que ignoram a complexidade envolvida, tendendo a reduzir esta ação a um julgamento moral condenatório. Tal situação gera condições para práticas de coerção e violência, exercidas por parte significativa do meio social contra essas mulheres, diante dos quais indagamos: como é possível sustentar afetivamente a decisão da entrega de um filho para adoção, sem recorrer ao abafamento da experiência vivida e ao isolamento? De que maneira os profissionais em contato com essas mulheres têm atuado? Eles têm sido aliados do aumento da potência de existir, sustentando a disparidade de afetos? Ou as despotencializam, cristalizando seu fechamento no silêncio?

Apesar do recorrente silêncio sobre o tema, o que, por si só, já atesta a dificuldade coletiva de assimilar o ato, essas mulheres continuam vivas e tocando suas existências. Como? Conhecer tais histórias foi o que colocamos como tarefa na parte empírica deste estudo: apreciar, sob o ponto de vista das mulheres, as dimensões afetivas acionadas na experiência, acessando o leque de afetos experimentados e seus desdobramentos sobre a vida, que insiste para além da ação da entrega da criança. Isso alude à possibilidade de, sustentando os afetos que se fazem presentes nessa vivência, "reconhecer e apoiar a condição relacional dos corpos vivos, acompanhando seus desdobramentos em nível coletivo" (Mansano, 2020, p. 11), uma vez que tal experiência afeta a diferentes agentes sociais.

 

Delineamentos metodológicos

A metodologia qualitativa foi escolhida por possibilitar uma investigação voltada para a qualidade, detalhes e intensidades afetivas atualizadas na experiência das mulheres. A História Oral, como estratégia de pesquisa, possibilitou a expressão daquelas que tendem a ser invisibilizadas e excluídas das versões oficiais presentes nos registros históricos e documentais (Meihy, 1996). Ao falar da experiência de modo situado, as participantes contribuíram para uma compreensão sensível dos aspectos afetivos que atravessam o tema. Para viabilizar o acesso às histórias, percorremos três tempos: a realização das conversações, a organização dos dados de acordo com eixos delineados e as análises (Meihy, 1996).

Participaram da pesquisa quatro mulheres que respondiam ao seguinte critério de inclusão: não estavam vinculadas a nenhum tipo de atendimento por parte do Poder Judiciário e se encontravam, portanto, invisibilizadas em relação a este Órgão. Os depoimentos da pesquisa foram coletados e organizados por meio de entrevistas semiestruturadas e levantamento documental. Foram consultadas legislações e os processos judiciais que trouxeram mais subsídios para uma compreensão situada do tema investigado. A pesquisa contou com a parceria do Tribunal de Justiça do Paraná, uma vez que os processos judiciais envolvendo as mulheres que entregam seus filhos para a adoção correm em segredo de justiça na Vara da Infância e da Juventude da Comarca, sendo necessária a autorização desse Órgão. Para tanto, foi firmada uma parceria institucional que viabilizou o acesso aos documentos e o contato com as mulheres. A pesquisa foi iniciada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina, registrado com o CAAE de número: 52290421.1.0000.5231.

As entrevistas foram agendadas por meio de contato telefônico e ocorreram em horário, local e data escolhidos pelas participantes entre os meses de janeiro e fevereiro de 2023. Ao todo, havia 46 mulheres registradas na referida Comarca. Desse montante, 21 não foram encontradas, pois estavam com as informações de contato desatualizadas, 10 não respondiam ao critério de inclusão, 11 recusaram o convite e 4 aceitaram participar da pesquisa. Com o aceite realizado, as entrevistas foram realizadas de forma individual e presencial, sendo gravadas após os devidos consentimentos éticos. Os nomes das participantes foram substituídos para preservar sua identificação. Inicialmente, as participantes foram convidadas a contar livremente sua experiência e, quando necessário, eram estimuladas a falar sobre: a história de vida, a experiência da entrega, as ações do meio social ao longo desse processo e os afetos relacionados à experiência. A análise dos depoimentos foi organizada a partir de três eixos temáticos, a saber: 1) A maternidade como instituição; 2) O controle sobre as mulheres; 3) A invisibilidade dos afetos. Em cada eixo, a construção dialogada com as participantes oportunizou que sua voz fosse escutada em meio aos afetos envolvidos nessa experiência, fato que abriu caminho para uma apropriação de sua história pelas depoentes, contribuindo, ao mesmo tempo, para uma ampliação da compreensão científica e afetiva.

 

Resultados e discussão: O que as mulheres têm a dizer?

Inicialmente, apresentamos as quatro participantes desta pesquisa. Joice é separada, tem dois filhos adolescentes que residem consigo e uma filha casada. Possui o Ensino Fundamental incompleto e não trabalha. Das participantes, é a que realizou a entrega do filho para adoção há mais tempo, em 2011, e também quem mais sofreu censuras por ter exposto sua decisão à família. A conturbada relação com sua mãe parece ser o fio condutor da experiência:

Eu passei muita dificuldade, porque eu estava na casa da minha mãe. Eu dependia muito dela e tinha mais os meus filhos. E mais outro filho… Eu comecei a ficar sem rumo, no que eu ia fazer… E pressão, pressão, pressão. Porque a minha mãe era muito ruim, muito ruim mesmo (Joice, participante).

Se, por um lado, Joice afirma ter realizado a entrega do filho para adoção, entre outros motivos, por não ter apoio de sua mãe, com quem residia à época; por outro lado, foi por ela hostilizada ante sua decisão: "Daí que ela falava que eu era uma cadela, que cadela que abandonava os cachorros" (Joice, participante). O contrário do abandono, porém, é perceptível em seu relato: ela considera a entrega para adoção uma ação protetiva que propiciou ao filho uma vida melhor do que aquela oferecida aos filhos que estão sob seus cuidados: "Porque pode ser melhor eu ter feito isso mesmo do que estar comigo" (Joice, participante).

Adriana aceitou participar da presente pesquisa em pleno puerpério. Passados três anos desde que realizou a entrega de um filho para adoção, na ocasião da entrevista ela estava casada e tinha outros dois filhos: uma menina de um ano e meio e um bebê recém-nascido de quinze dias. Ela é haitiana, jovem de 24 anos, está no Brasil há aproximadamente cinco anos, cursou o Ensino Médio, o que propiciou a aprendizagem da língua portuguesa. A entrega do filho é um tema que ela abafou da maneira mais completa possível. Diante dos questionamentos a respeito do paradeiro do bebê, Adriana disse aos familiares e conhecidos que ele tinha falecido no parto. O relato forjado da morte do bebê silenciou o tema e calou Adriana, que nunca falou com ninguém sobre a experiência até a data da entrevista.

Hellen, 28 anos, é nordestina, tem uma filha de sete anos que reside com sua mãe no Nordeste e outra filha, de um ano e meio, que reside com ela e o companheiro no interior do Paraná. Tem Ensino Fundamental incompleto e trabalha como zeladora em um mercado. Realizou a entrega de um filho para adoção em 2020, e considera que esta ação foi efeito do abandono vivenciado em sua infância. Ao ser incentivada a falar da experiência, Hellen afirma que gostaria de "contar do início" (Hellen, participante), fazendo referência à rejeição sofrida logo ao nascer por sua genitora e avó materna. Com sofrimento expresso na voz, revela o discurso de sua avó na ocasião de seu nascimento: "não me queria, disse que eu era um demônio... Eu tava lá no berço, não tinha uma roupa..." (Hellen, participante).

Laura, 38 anos, também relata os sofrimentos vividos durante sua infância em razão de ter sido tratada como um objeto, sujeita a maus-tratos e abandonos de sucessivas famílias: Antigamente não tinha nada disso... As famílias ficavam um pouco, não queriam, enjoavam.

E foi indo assim até que uma família resolveu cuidar de mim, mas eu não era registrada nada, no nome dessa família. Aí eles começaram, tentaram... Eu vou ser bem sincera, me vender, que eu casasse... Uma pessoa mais de idade, né... E eu não aceitei, eu fugi (Laura, participante).

Em 2018, entregou um filho para adoção. Atualmente, Laura reside na zona rural com o companheiro e o filho de um ano e meio. Tem quatro filhos adultos, frutos do primeiro casamento. Trabalha como zeladora e tem o Ensino Fundamental incompleto. Nessa breve apresentação, observa-se que os relatos das participantes têm ressonância com a pesquisa de Soejima e Weber (2008), que indicam a ocorrência de situações anteriores de vulnerabilidade e fragilidade nos vínculos familiares de mulheres que entregaram os filhos para adoção.

No eixo 1, denominado 'A maternidade como instituição', os relatos das participantes indicam que a descoberta da gravidez as colocou em um estado de desamparo. Recorrer ao Poder Judiciário era a única medida para garantir o amparo aos bebês que, após a entrega para adoção, receberam a proteção preconizada pela lei. Elas, no entanto, continuaram fragilizadas, arcando com as consequências afetivas desse ato de forma solitária, resultado da construção histórica e social que erigiu a maternidade como uma instituição idealizada imposta às mulheres (Donzelot, 1980; Badinter, 1985; Foucault, 1975; Martins, 2004).

A participante Laura relata a respeito das expectativas sociais em relação às mulheres quando revela a descoberta da gestação, fruto de um relacionamento breve, fora das convenções sociais:

Eu escondia a roupa, usava roupa muito apertada. Eu tinha vergonha de contar, porque primeiramente: "Se casou? Quem é o pai?" Ó, as pessoas são assim, elas querem saber tudo da tua vida e daí pra mim era simplesmente uma vergonha (Laura, participante).

A gravidez que ocorreu fora dos ditames sociais precisou ser contida e escondida. O meio social, que desampara as mulheres na tarefa de gestar, educar e cuidar das crianças, também impõe exigências para que elas cumpram a função socialmente atribuída a elas segundo os parâmetros da moral vigente (Foucault, 1975). Com isso, o exercício da maternidade tem sido vivenciado de forma solitária na contemporaneidade, já que o modelo familiar preponderante, inspirado nos moldes burgueses, é afastado da comunidade (Donzelot, 1980). A falta de rede de apoio impõe às mulheres uma sobrecarga nos cuidados dirigidos aos filhos, que repercute em fragilidade e desamparo. Hellen expressa o afastamento familiar e social, demonstrando a solidão vivenciada ao descobrir que estava grávida, ocasião em que estava desempregada, sem dinheiro e fora expulsa de casa por sua genitora: "Eu pensava: como é que eu vou fazer? Meu Deus, o que que eu vou fazer com essa criança? E não falava também pra ninguém... Aí, desse jeito, não encontrava saída" (Hellen, participante).

As justificativas apresentadas pelas participantes para realizar a entrega dos filhos para adoção são múltiplas, mas é preciso destacar que as quatro participantes viviam em vulnerabilidade social à época, apresentando pouca escolarização e baixa renda. Do mesmo modo, de forma unânime, as participantes não contavam com suporte por parte dos genitores dos bebês, que não participaram da gestação e do procedimento da entrega. A participante Laura indica o quanto a falta de apoio a afetou durante sua gestação, colocando-a em uma situação de extrema fragilidade: "Naquele momento que você se sente um lixo. Você se sente inútil... Como uma mulher vai se sentir sem apoio? Apoio né porque, primeiramente, o apoio vem do pai" (Laura, participante). Joice relata a decisão de entregar o filho para adoção sem comunicar o genitor do bebê, prevendo a falta de apoio por parte da figura masculina: "não ia mudar de nada, porque eu ia continuar na casa da minha mãe e ter que ficar cuidando de mais uma criança" (Joice, participante). Em sua pesquisa, Motta (2001) cita casos em que as mulheres, assim como a participante Joice, não revelaram aos genitores sobre a gravidez, pois supunham que haveria rejeição aos filhos.

Compreende-se que a maternidade é uma instituição que se moldou por meio dos valores vigentes em uma sociedade predominantemente patriarcal que desresponsabiliza os homens em relação às funções parentais. Como assinalou Bourdieu (1998), a partir da dominação masculina, foram impostas às mulheres a contenção e a invisibilidade por meio de ações e discursos socialmente consensuais, como é o caso da omissão masculina em relação aos filhos, que é tolerada socialmente. As experiências de Laura e Joice demonstram que a omissão masculina pode ser fonte de desestabilização para o exercício da maternidade, diante da qual as mulheres se resignam, sofrendo em silenciamento seus efeitos. Leão et al. (2014) indicam que a recusa dos genitores em participar da gestação e em reconhecer a paternidade dos filhos fragiliza o vínculo das mulheres com os bebês, influenciando na decisão pela entrega para adoção.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na Resolução de número 485, de 2023, apresenta uma iniciativa que reconhece o desamparo da mulher diante da ausência masculina. A Resolução prevê, no artigo 4º, inciso VI, que a equipe interprofissional deverá avaliar se a mulher necessita e se deseja receber suporte para contato e mediação de eventuais conflitos com o pai e família paterna da criança. Tal ação poderia ter amparado as participantes que expressam em seus relatos sofrimento pela omissão masculina. Três participantes relataram a ausência ou omissão de seus pais na própria infância, reconhecendo que suas mães também vivenciaram desamparo na tarefa de criá-las, conforme assinalado por Joice: "Ela descontava na gente, porque a mãe sofreu também com o pai. Meu Deus do céu. Nós era tudo criança, o pai chegava a bater na mãe em casa… Nós tinha que correr tudo" (Joice, participante). Verifica-se como se repete, de geração em geração, a omissão e a desproteção dos homens à prole, prática que é socialmente naturalizada. As gestantes que vivem em vulnerabilidade social enfrentam a inacessibilidade ao Poder Judiciário para litigar o reconhecimento da paternidade dos filhos e a pensão alimentícia ou alimentos gravídicos a que teriam direito desde a gestação, além da carência de políticas públicas ou programas que lhes prestem atendimento psicossocial (Motta, 2001). Nas palavras de Laura:

Se tivesse uma assistência social que ajudasse, eu não sei se assistente social, não sei se é o governo. Sinceramente, eu não sei. Se tivesse um lugar acolhedor lá: "ó, você fica aqui, a gente vai te ajudar com alimentação. A gente te ajuda com as coisas do bebê. Aqui tem um lugar… pessoas próprias que vai cuidar do teu filho, quando você recuperar, passar teus quarenta dias, você vai trabalhar, você vai tomar um remédio, você vai tomar um chá". Bastava isso, que já é um apoio. Não precisa, se você não quer, não precisa você se desfazer do seu filho (Laura, participante).

O desamparo relatado durante o período gestacional também foi ocasionado pela falta de apoio das famílias extensas das participantes, dados que coadunam com achados de outras pesquisas (Motta, 2001; Moraes et al., 2015). A participação de pessoas da família ao longo do procedimento da entrega, somada à ação de uma equipe interdisciplinar atenta e sensível a possíveis conflitos familiares, realizando encaminhamentos para os serviços de fortalecimento de vínculos, teriam sido de grande valia para as participantes na tomada de decisão. Isso porque elas revelam que, entre as dificuldades dessa experiência, os conflitos familiares foram significativos para a entrega dos filhos para adoção e tiveram grande repercussão em suas vidas, produzindo sofrimento que perdura mesmo após muitos anos.

A completa falta de pessoas e instituições a quem recorrer repercute na decisão da entrega de um filho para adoção que ocorre como uma atitude desesperada, conforme se verifica na experiência de Adriana, que foi impedida por seus pais de levar o bebê que estava gestando para casa. Sobre a reação de seu pai, comenta: "Ele estava bravo comigo, ele até falou: 'você não vai, não vai entrar na minha casa com o nenê'" (Adriana, participante). A participante deu à luz ao bebê e realizou os procedimentos relativos à entrega desacompanhada, de forma solitária. O estado de desalento é tangível em sua fala: "Na hora que estava nascendo o bebê, eu não tinha possibilidade. Eu estava na escola, aí foi trabalhar também. Eu vou te dar, é o melhor, porque eu não tenho possibilidade para cuidado. Não tem nada" (Adriana, participante). Consideramos que as experiências de isolamento e desamparo demandam a atenção das instituições e dos profissionais envolvidos, revelando-se um desafio socialmente colocado que, ao ser desconsiderado, segue gerando imensa dificuldade às mulheres nessa tarefa tão solitária que é a maternagem.

No eixo 2, que chamamos "O controle sobre as mulheres", Laura relata sobre a descoberta da gestação como um momento crítico, atravessando dificuldades pessoais e familiares que a colocaram em estado depressivo. Nesse contexto, ela realizou uma consulta de acompanhamento pré-natal e narra a intervenção questionadora da médica:

Ela falou: "Como que você vai criar? Como que você vai ter condições cuidar do teu filho, que pelo que eu vejo, você é bastante nervosa"... Eu penso assim, que desde o primeiro momento, independente de ser uma médica, ser uma assistente social, ser quem for. Se naquele momento ela te perguntar, se você precisa de ajuda... acolhesse mais né? Não você ainda impulsar a pessoa... "ah, tem a doação, tem não sei o quê". Isso aí é a pior coisa que acontece, é eles não dá o apoio (Laura, participante).

A atuação da médica narrada por Laura evoca o modo como os profissionais das áreas da Medicina, Psicologia, Serviço Social, Educação e, posteriormente, o Poder Judiciário se inseriram na configuração familiar, mesclando orientações protetivas com ações de vigilância e regulamentação da vida familiar, especialmente daquelas famílias provenientes de camadas sociais menos favorecidas (Foucault, 1975; Donzelot, 1980; Marcílio, 2019). O controle exercido sobre as mulheres, quando elas não estão alinhadas aos padrões hegemônicos, é correntemente realizado por meio do apagamento da expressão de seus afetos, sendo elas reduzidas a diagnósticos psiquiátricos. A excessiva psiquiatrização dos corpos das mulheres que se observa na contemporaneidade, ao excluir a dimensão psicossocial envolvida em suas dores, repercute em um silenciamento de afetos, corroborando para a invisibilização "dos atravessamentos dos diversos marcadores sociais" (Ferrazza & Gesualdi, 2021, p. 67). Em alguma medida, esse é o sentido do encontro relatado por Laura com o saber médico, já que, diante de uma gestante em vulnerabilidade social e emocionalmente frágil, a profissional imediatamente a rotula como "nervosa", questionando sua capacidade para o maternar. O questionamento da médica e a indicação de que entregasse o bebê para adoção tiveram efeitos em Laura, acionando a memória afetiva das vivências de maus-tratos e abandonos de sua infância: "Aí a gente começa a juntar tudo, aquelas coisas do passado. Aí eu já coloquei na minha cabeça como mesmo que eu iria cuidar, como que eu ia cuidar daquela criança?" (Laura, participante).

Igualmente, o contato com a instituição hospitalar indica a tendência a excluí-las rapidamente da função materna. Nesse sentido, Laura cita a abordagem realizada pela equipe de enfermagem no hospital onde deu à luz, após ter comunicado o interesse de entregar o filho para adoção: "Você acaba de ganhar lá... Ainda que eu briguei com as enfermeiras e amamentei ele. Eles vêm lá... Já pega o bebê antes e você não vê mais"(Laura, participante). A participante acertadamente considera que tinha o direito de amamentar seu filho logo após o parto, brigando por isso. Sua autonomia no que se refere aos cuidados do bebê deveria ter sido respeitada pela equipe de enfermagem, mesmo diante da manifestação quanto à possibilidade de sua entrega para adoção. A legislação estabelece que a gestante pode rever sua decisão, uma vez que, conforme o artigo 19 - A, parágrafo 5º do ECA, a formalização deste ato apenas ocorre após o nascimento da criança, quando a mulher ratificar o interesse em audiência no Juízo da Infância e da Juventude.

A participante Hellen relaciona a precipitação no afastamento do bebê pela equipe do hospital logo após o parto com uma tomada de decisão pouco refletida:

Eu ver ele lá no meu braço e não poder ficar com ele. Foi ruim, muito ruim. Porque aí depois as meninas levaram… Aí veio aquela coisa de não poder me dar ele…Acho que se ele tivesse ficado comigo, no meu braço, acho que eu não tinha dado ele não, porque eu tinha ficado mais tempo com ele. Elas levaram logo, mas acho que se ele tivesse ficado assim um tempo comigo, acho que eu tinha parado pra pensar em alguma solução (Hellen, participante).

No mesmo sentido, Laura e Hellen relatam que sua passagem por outra instituição, a Vara da Infância e da Juventude, foi marcada pela rapidez quanto à destinação das crianças para adoção e pela percepção de que seus afetos, inseguranças e sofrimento eram invisíveis para os profissionais envolvidos. Ambas contam que a atuação dos profissionais não estava voltada para a compreensão das circunstâncias vivenciadas, para a oferta de auxílio ou mesmo de um tempo para que elas refletissem quanto à tomada de decisão:

Conversar o quê? Sendo que lá você só assina as folha… Eles fazem duas, três perguntas lá. Eles não querem entender o seu sentimento, como é que a gente está por dentro… Eles acham que a gente está aliviada. E não é assim as coisas. Aí, com o tempo, o que que acontece, vai caindo a ficha. A gente vai recuperando a cabeça. Nossa, é muito triste, é muito triste (Laura, participante).

Novamente, aqui vemos a experiência da solidão (Minois, 2019) intensificada, uma vez que, sob o ponto de vista dessas participantes, o foco está em finalizar o mais breve possível o processo de entrega, sem considerar o complexo campo afetivo aberto nessa circunstância. Por ser recente no nosso país, esse procedimento ainda tem muito a avançar, especialmente na abertura para compreender as mulheres, o delicado momento que envolve a gestação, o parto e o puerpério, bem como o ato de entregar um filho para adoção.

Hellen também relata que a rapidez na tomada de decisão quanto à entrega resultou em um profundo arrependimento, pelo qual ela continua sofrendo até o presente momento:

Acho que foi muito ligeiro para mim. Foi aquilo ali, tive ele, eu pensei logo: vou dar, e pronto… Até hoje eu me arrependo, quando eu cheguei, eu pensei: "meu Deus, por que que eu fiz isso?". Entrei em contato com a moça. Eu não lembro, eu acho que ela é psicóloga. Eu entrei em contato com ela, perguntei, ela não me respondeu se eu podia voltar atrás. Entrei em contato com ela, ela não me respondeu, ela só olhava. Eu falava que estava arrependida, que queria meu filho de volta (Hellen, participante).

O arrependimento experimentado por Hellen, tão logo havia formalizado a entrega do filho, não encontrou acolhida por parte da profissional que a acompanhou nesse procedimento. Após a formalidade ter sido cumprida e a criança ter sido colocada em adoção, a participante se sentiu descartada pela instituição jurídica. Nota-se que a urgência em realizar o procedimento legal da entrega abre uma lacuna entre o parto e a separação da criança, na qual a mulher tende a ser silenciada em sua dor.

Laura relata a maneira como a relação saber-poder ganhou forma em sua experiência no contato com os profissionais, minimizando as possibilidades de dúvida, reanálise e mudança de posição: "Aí assina lá, entrega lá… Você se sente inútil… Se eles estão falando, eles são estudados… Ele sabe! Quem sou eu, que não tenho estudo, que não tem nem a sexta série, vou saber mais que eles?" (Laura, participante). Nesta toada, as participantes indicam que o procedimento da entrega de um filho para adoção ocorre de forma a minimizar as possibilidades de reflexão e revisão das mulheres. Se tomarmos em consideração a perspectiva dos profissionais pode-se dizer que também sobre eles incidem dispositivos de controle que os faz salvaguardar apenas as crianças. Tal postura, porém, desconsidera a possibilidade de se articular conjuntamente os interesses das mães e dos bebês na busca pelo melhor desfecho afetivo e jurídico.

A pesquisa de Motta (2001) levanta questionamentos a respeito da necessidade de as mulheres formalizarem a desistência do Poder Familiar, entregando os filhos em adoção, logo após o parto, enquanto ainda vivenciam as dores físicas decorrentes desse procedimento e em pleno estado puerperal. O estudo conclui que este não seria o momento indicado para submetê-las a uma tomada de decisão tão importante, podendo acarretar efeitos psíquicos drásticos, como a dificuldade da elaboração da experiência, complicações no luto e culpa. O período gestacional e puerperal foi narrado pelas participantes como bastante inseguro, solitário e, em alguns casos, confuso. Laura relata essa situação:

Não é só acompanhamento lá do fim da gestação até a hora do parto. Que tempo você tem? O que que você organiza na tua cabeça com dois meses? Com duas, três consultas? Nada! A gestação mexe com os hormônios, mexe com o teu, com a tua cabeça, com o teu psicológico, mexe com tudo… Eles têm meios de fazer um lugar acolhedor para as gestantes, até elas passarem aquele momento…Mas não assim, assina lá, entrega lá… (Laura, participante).

Denota-se, a partir das falas das participantes, que a sensação de prioridade à rigidez do procedimento coloca-as em uma posição passiva, cuja lembrança mais marcante é apenas um "entrega lá". Evidencia-se, assim, que o constrangimento e o desamparo das mulheres podem ocorrer quando o aparato judicial conduz a entrega de um filho para adoção sem um olhar cauteloso às circunstâncias em que elas vivem, desconsiderando a velocidade de apreensão da experiência, os afetos emergentes e a singularidade de cada situação. Não há normativas possíveis a serem simplesmente aplicadas no campo dos afetos. Trata-se de uma experiência que abre um campo desafiador, tanto para as mulheres quanto para as equipes que as acompanham, nesse momento que poderia ser de escuta e acolhimento do público atendido.

Qualquer redução do vivido a procedimentos e protocolos rígidos que desconsiderem a singularidade de cada caso incorre no risco de produzir feridas e traumas que perduram no tempo, tal como acompanhamos neste eixo de análise. O tempo e a abertura para elaboração que cada mulher necessita não encontra correspondência no tempo preconizado em lei, mas abre para um campo diversificado em que cada uma, individualmente, poderá entrar em contato com a complexidade implicada na decisão. Nesse sentido, indaga-se: os dispositivos de controle presentes nesse processo condizem com o melhor interesse da criança? Eles abrem a oportunidade para que a genitora tome essa decisão de forma calma e refletida? Ofertar amparo, tempo e escuta para as mães não atenderia o interesse também da criança, considerando que os efeitos dessa abordagem poderiam repercutir em um não afastamento desnecessário entre mãe e filho? Como tomar em análise as vulnerabilidades, fragilidades e incertezas dessas mulheres tão invisibilizadas?

O eixo 3 abordou o que denominamos "Afetos Invisibilizados". As quatro participantes relatam as dificuldades de manter em silêncio toda teia de afetos presentes na experiência da entrega dos filhos para adoção, que estava silenciada e guardada há anos, "corroendo por dentro" (Hellen, participante). É notável que as participantes se protegem da censura social invisibilizando esse ato: "Ninguém da minha família sabe... Todo mundo pensa que eu perdi ele" (Hellen, participante). "Eu cheguei a falar até que ele estava morto. Ele tinha morrido no parto" (Laura, participante). "Depois eu chegar em casa, o meu pai falou: 'Cadê o nenê?' Eu falei: faleceu" (Adriana, participante). O silêncio dos afetos torna-se, então, um refúgio.

As ações do meio social atingem as mulheres com rigidez, sem abertura para o diálogo e compreensão. Não obstante, as crenças do senso comum são insuficientes para explicar suas vivências e não comportam todas as nuances da experiência de entrega do filho para adoção, que, no caso das participantes, foi permeada de sensibilidade. Hellen, ao ser incentivada a falar sobre os afetos que foram abafados em sua experiência, relata arrependimento, saudade ao olhar a foto do filho (tirada na maternidade), o consolo de saber que ele foi adotado por uma família e a esperança de um dia reencontrá-lo: "Imagino encontrar ele, todos os dias… Que eu amo ele, que eu sou arrependida. Que ele é tudo pra mim. Se eu pudesse, ele estaria comigo hoje. É meu sonho de um dia encontrar ele" (Hellen, participante).

Nas experiências aqui analisadas, pode-se dizer que a entrega de um filho para adoção difere do abandono e da indiferença, contrariando a crença do senso comum, pois, ao buscar as vias legais, as mulheres demonstram preocupação com o destino da criança (Motta, 2001), conforme o relato da participante Joice: "Tinha pessoas que falavam: 'Ah, tenho uma conhecida minha que quer, se quiser, tipo, dar'. Falei: 'Ah, gente, não é que nem dar um cachorro, não é assim! Não, quero fazer tudo certo, com a lei!" (Joice, participante). O oposto à indiferença se verifica no relato de Laura sobre o breve encontro com o filho logo após o parto, do qual ela extraiu alegria e admiração: "Ele nasceu muito viçoso, lindo, careca, grandão, sabe, perfeito, muito lindo" (Laura, participante). A maternagem também foi vivenciada nessa experiência e é expressa na preocupação com o bem-estar do bebê e no desejo de atender as suas necessidades, presente nas poucas horas em que a participante Laura esteve com seu filho:

Amamentei um pouco, graças a Deus que ainda eu amamentei ele um pouco… Eu senti o calorzinho e ele sentiu o meu…E daí será que não, será que foi também a coisa certa eu ter amamentado? Por que ele foi procurar depois…E cadê o calor da mãe? Ele não teve, não é? (…) Eu jurei pra ele, que passe dez, vinte anos…Abracei muito ele. E falei para ele: Filho, eu juro. Eu juro que eu vou te achar (Laura, participante).

Atentar para os múltiplos afetos que compõem a vida, sem que se sucumba à negação de parte deles é o que encontramos na noção de sustentabilidade afetiva. É a partir do contato com a diversidade de afetos, encontros e trocas entre os seres, que se abre a possibilidade para criação e mudança dos valores compartilhados no social. A sustentabilidade afetiva dá visibilidade à experimentação da variedade de afetos que participam da criação de novos sentidos para o vivido. Trata-se de uma perspectiva que supera o abafamento e o silenciamento para caminhar na direção da experimentação da diversidade afetiva.

Nesse sentido, e considerando que as participantes expressam dificuldades de encontrar no meio social espaços de conexões e trocas potencializadoras que contribuam para a construção de novos sentidos para a experiência da entrega do filho para adoção, reafirmamos a importância de atuações profissionais mais contextualizadas e próximas, que resgatem a dimensão do cuidado ao longo desse delicado processo. Na prática, a ação profissional implica em colocar-se ao lado dessas mulheres, oportunizando que elas falem e experimentem as diferentes nuances afetivas envolvidas na entrega, as quais podem ser, inclusive, ambíguas. Entre elas, nossas participantes destacaram: a intenção de ver ou não o bebê após o nascimento; as dores psíquicas e físicas decorrentes do parto e da separação; a experiência de amamentar ou de não o ter feito; o desejo de contar a experiência à família extensiva ou manter o sigilo. São variações afetivas que, apesar de sofridas, podem ser expressas e sustentadas nesse processo.

 

Considerações finais

Ao final do percurso, percebe-se que a experiência da entrega do filho para adoção, apesar de estar prevista em lei desde 2009, ainda é vivenciada em estado de desalento, solidão e dor. A falta de apoio e suporte do meio social no período gestacional, seguida de intervenções que, algumas vezes, ganham contornos rudes e violentos, repercute nas mulheres em uma prática de silenciamento como forma de autoproteção.

A despeito das vivências passadas, do estado de desalento, da falta de suporte social, comunitário e governamental e de toda carga de julgamentos e censuras provenientes do meio social, as participantes demonstraram uma potência de cuidado. A atitude de recorrer ao Poder Judiciário foi tomada como forma de ofertar aos bebês, por via da entrega para adoção, uma possibilidade de acolhida que elas, no momento delicado da entrega, consideravam não ter condições de oferecer. Possivelmente as participantes também estivessem buscando um cuidado para si ao recorrer a essa instituição.

Ao final desta pesquisa, cabe sinalizar a importância da Psicologia como área de atuação junto a essas mulheres, considerando a multiplicidade histórica e social que marca diferentemente a experiência da maternagem, amplamente atravessada por marcadores sociais e atentando especialmente para a pluralidade e mutação de afetos experimentados nesse processo. Seguindo suas vidas após a entrega dos bebês para adoção, as mulheres sustentam afetivamente essa experiência, vivenciando diferentes nuances afetivas que perpassaram tristeza, revolta, arrependimento, solidão e dor. Seus relatos revelam, concomitantemente, que se fazem presentes nesse emaranhado de afetos, a alegria da lembrança do bebê, a satisfação do breve maternar durante a amamentação, a admiração ao rememorar os traços do rosto do bebê, a confiança de que a criança está sendo bem cuidada pela família adotiva, ou ainda a expectativa pelo reencontro futuro com o filho.

As participantes revelam que teria sido de grande valia perceber as equipes de saúde e do sistema judiciário como aliadas nesse momento tão delicado da entrega de um filho para adoção. Para isso, bastariam ações simples como um olhar atento a elas, uma escuta sensível de suas histórias e dos múltiplos afetos que se emaranhavam nessa experiência, uma presença aberta que as auxiliasse a tecer, a partir dessa teia de afetos, um sentido menos doloroso. Concluímos que sustentar a diversidade de afetos manifestos em uma experiência tão radical e intricada requer a formação de profissionais atentos e sensíveis à diversidade humana, expressa em tristezas e alegrias que, por vezes, são difíceis de serem identificadas, sustentadas e elaboradas em um cenário que tende muito mais ao julgamento moral e normativo.

 

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Endereço para correspondência
Gisele Castanheira dos Santos - gisecastanheira@gmail.com

Recebido em: 26/07/2023
Aceito em: 10/03/2024

 

 

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