Estudos e Pesquisas em Psicologia
2023, Vol. 02. doi:10.12957/epp.2023.77701
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Dinâmica Relacional das Redes Sociais Significativas de Mães de Filhos com Transtorno do Espectro Autista

 

Carolina Schmitt Colomé*; Cândida Prates Dantas**; Jana Gonçalves Zappe***
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O diagnóstico de um filho com Transtorno do Espectro Autista se configura como evento estressor para a família, especialmente para as mães, podendo trazer implicações relacionais, sociais e emocionais para estas. Este estudo buscou compreender as repercussões do diagnóstico de TEA na dinâmica relacional das redes sociais significativas maternas. Trata-se de estudo qualitativo, descritivo e exploratório, do qual participaram 12 mães de filhos com TEA. Os dados foram coletados através de entrevistas reflexivas e do mapa de redes sociais significativas, analisados por meio da Teoria Fundamentada nos Dados. Identificou-se uma diminuição do número de vínculos nas redes sociais significativas das participantes após o diagnóstico do filho. Nas relações familiares, houve aumento de vínculos, embora as mães não se sentissem suficientemente apoiadas; nas relações extrafamiliares, houve diminuição de membros, mas observou-se a presença de apoio satisfatório entre alguns vínculos situados nesse contexto. Conclui-se que, para que a rede possa ser efetiva no oferecimento de apoio social, é preciso conjugar a disponibilidade materna para receber apoio e o preparo dos membros das redes sociais para manejar as especificidades do TEA. Assim, sugere-se maior investimento na instrumentalização das redes sociais significativas para acolhimento do processo vivenciado por mães de filhos com TEA.

Palavras-chave: autismo, distúrbios globais do desenvolvimento, redes sociais, mães.


 

Relational Dynamics of Meaningful Social Networks of Mothers of Children with Autism Spectrum Disorder

 

ABSTRACT

The diagnosis of a child with Autism Spectrum Disorder is configured as a stressful event for the family, especially for mothers, and may have relational, social and emotional implications for them. This study aimed to understand the repercussions of ASD diagnosis on the relational dynamics of significant maternal social networks. This is a qualitative, descriptive and exploratory study, in which 12 mothers of children with ASD participated. Data were collected through reflective interviews and the significant social networks map, analyzed using Grounded Theory. A decrease in the number of members in the participants' significant social networks was identified after their child's diagnosis. In family relationships, there was an increase in members, although the mothers did not feel sufficiently supported; there was a decrease in the number of members in extra-family relationships, but the presence of satisfactory support was observed in some members located in this context. It is concluded that, for the network to be effective in offering social support, it is necessary to combine maternal availability to receive support and preparation of social networks members to handle the specificities of the ASD. Thus, greater investment is suggested in the instrumentalization of significant social networks to nurse the process experienced by mothers of children with ASD.

Keywords: autism, global developmental disorders, social networks, mothers.


 

Dinámica Relacional de Redes Sociales Significativas de Madres de Niños con Trastorno del Espectro Autista

 

RESUMEN

El diagnóstico de un niño con Trastorno del Espectro Autista se configura como evento estresante para la familia, especialmente para madres, pudiendo tener implicaciones relacionales, sociales y emocionales para ellas. Este estudio buscó comprender las repercusiones del diagnóstico de TEA en la dinámica relacional de redes sociales significativas maternas. Se trata de un estudio cualitativo, descriptivo y exploratorio, en que participaron 12 madres de niños con TEA. Los datos fueron colectados mediante entrevistas reflexivas y mapa de redes sociales significativas, analizados utilizando Grounded Theory. Se identificó una disminución del número de miembros en las redes sociales significativas de las participantes después del diagnóstico del hijo. En las relaciones familiares, hubo aumento de miembros, aunque las madres no sintieron apoyo suficiente; en las relaciones extrafamiliares, hubo una disminución de miembros, pero se observó la presencia de apoyo satisfactorio entre algunos vínculos situados en este contexto. Se concluye que, para que la red sea efectiva en ofrecer apoyo social, es necesario combinar disponibilidad materna para recibir apoyo y preparación de los miembros de las redes sociales para manejar especificidades del TEA. Se sugiere una mayor instrumentalización de redes sociales significativas para acoger el proceso vivido por madres de niños con TEA.

Palabras clave: autismo, trastornos del desarrollo global, redes sociales, madres.


 

 

O nascimento de um filho se caracteriza como um evento que demanda a reorganização de papéis e provoca importantes mudanças nas famílias (Cerveny & Berthoud, 2002). Tal processo pode ser intensificado com a presença de estressores horizontais imprevisíveis, que passam a acompanhar a família ao longo de tempo, como é o caso do diagnóstico de um filho com algum transtorno do desenvolvimento como o autismo. Atualmente, nomeado como Transtorno do Espectro Autista (TEA), este se caracteriza por: a) déficits na comunicação, interação e reciprocidade social; e b) padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades (APA, 2013). Considerando os comprometimentos e atrasos que pode acarretar no desenvolvimento da criança, o autismo pode ser considerado como um estressor potencial, sendo observado que famílias de crianças com esse diagnóstico tendem a apresentar maiores níveis de estresse comparativamente a famílias de crianças típicas ou com outros tipos de deficiência (Russa et al., 2015).

Partindo-se do entendimento da família como unidade funcional, compreende-se que o que se passa com um membro pode reverberar em todos os demais, bem como nas relações estabelecidas (Rolland, 2016). Dessa forma, o diagnóstico de uma criança com TEA opera como um marco importante na Dinâmica Relacional Familiar, definida como o modo de funcionamento, organização, interação, estabelecimento e manutenção de vínculos relacionais dentro da família, caracterizando-se pela maneira como esta se movimenta frente a diferentes situações (Cerveny & Berthoud, 2002). Quando algum membro possui alguma condição crônica, a dinâmica relacional familiar tende a se caracterizar por um movimento de fechamento, com consequente aproximação dos membros do núcleo familiar e afastamento destes dos demais vínculos sociais (Rolland, 2016).

Nesse cenário, a literatura refere que o cotidiano da família de um membro com TEA tende a voltar-se inteiramente para este, influenciando as rotinas, horários e atividades diárias de todos. Diante disso, discute-se a dificuldade de adequação do filho com TEA às normas e espaços sociais, reverberando no convívio e inserção social da família como um todo (Klinger et al. 2020; Machado et al., 2018; Mcauliffe et al., 2018).

Embora o diagnóstico de TEA afete os diferentes membros familiares, estudos têm referido as mães como o membro do casal parental que tende a se responsabilizar de forma mais intensa pelos cuidados diretos do filho com TEA. Desse modo, apesar do movimento crescente de participação e envolvimento paterno nos cuidados com os filhos no cenário contemporâneo, em casos de crianças com TEA, as mães ainda costumam ser referidas como as principais cuidadoras e, por isso, passam a abdicar de atividades sociais e laborais (Constantinidis et al., 2018; McAuliffe et al. 2018; Neto, 2018). Percebe-se, assim, um transbordamento dos efeitos das funções parentais para outros âmbitos da vida das mulheres que são mães de filhos com TEA, o que pode afetar suas relações intra e extrafamiliares de forma ampla.

Para compreender a dinâmica de relacionamentos que se estabelecem nesses casos, considera-se a perspectiva de Sluzki (1997), que define o conceito de Redes Sociais Significativas como "a soma de todas as pessoas que o indivíduo percebe ou sente como significativas ou diferentes do universo relacional no qual está inserido" (p. 42), afetando diretamente a capacidade de adaptação à crise e a situações difíceis, sejam elas crônicas ou temporárias (Moré & Crepaldi, 2012; Sluzki, 1997). As redes se relacionam diretamente com o apoio recebido e percebido, embora exista uma diferença conceitual entre o termo ‘rede social' - descrito como uma avaliação objetiva de aspectos estruturais, como o tamanho da rede, por exemplo - e o conceito de ‘apoio social' - a percepção subjetiva do indivíduo acerca da qualidade do amparo oferecido a ele pela rede (Smith & Christakis, 2008).

Para Sluzki (1997), a presença de uma doença, especialmente uma condição crônica, inevitavelmente produz um impacto nas interações entre o sujeito e aqueles com os quais se relaciona. Nessa perspectiva, embora o diagnóstico de TEA seja dos filhos, ele tem efeitos diretos nas redes sociais significativas das mães. Assim, o autor destaca uma complexa soma de fatores que pode interferir na ativação de vínculos da rede para prestação de apoio social efetivo, compreendendo que um diagnóstico crônico pode desencadear nos outros condutas evitativas que isolam o doente (Sluzki, 1997). Isso também ocorre em função deste último precisar se afastar de espaços sociais antes frequentados e modificar sua rotina, o que reduz a oportunidade de estabelecer contatos interpessoais e sua iniciativa própria de ativação da rede (Sluzki, 1997). Percebe-se que tais implicações podem afetar tanto os sujeitos com TEA como suas mães, conforme mencionado acima (Constantinidis et al., 2018; Mcauliffe et al. 2018; Neto, 2018).

Ademais, é importante destacar que as redes sociais não são estáticas ou uniformes, tendo em vista que se modificam em consonância com as diferentes etapas do ciclo de vida dos indivíduos (Sluzki, 1997). Dessa forma, a partir do conceito de Dinâmica Relacional Familiar, que se refere às movimentações realizadas pelos membros familiares frente a diversas situações (Cerveny & Berthoud, 2002), é possível pensar a Dinâmica Relacional das Redes Sociais Significativas, considerando o modo como estas se movimentam e se reorganizam em diferentes circunstâncias. Diante do exposto, considerando-se o TEA como estressor potencial para as famílias e concebendo-se a importância das redes sociais significativas nesse contexto, este estudo objetivou compreender as repercussões do diagnóstico de TEA na dinâmica relacional das redes pessoais significativas maternas, bem como que efeitos essas implicações na rede podem ter para as mães.

 

Método

Esta investigação de caráter qualitativo, descritivo, exploratório e transversal teve como participantes 12 mães de filhos diagnosticados com TEA na infância. As participantes foram contatadas a partir de uma associação de apoiadores e familiares de pessoas com TEA, localizada em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Em relação às características demográficas e socioeconômicas, informa-se que a idade das mães variou de 25 a 61 anos, enquanto que a idade dos filhos com TEA variou de 3 a 30 anos. A renda mensal média foi de R$ 3.550,00. O grau de escolaridade variou entre Ensino Médio Completo e Ensino Superior Completo. Quanto ao estado civil, 10 eram casadas e duas eram divorciadas, as quais tinham namorado que coabitava com elas e seus filhos. Quanto à ocupação, no momento da realização da pesquisa, todas as participantes caracterizaram-se como "do lar".

A coleta de dados se deu por meio de dois instrumentos: a) entrevista reflexiva, que foi realizada em dois encontros, um no qual a entrevista foi efetuada e outro em que a pesquisadora comunicou às participantes a sua compreensão do que elas disseram inicialmente (Yunes & Szymanski, 2005); e b) mapa de redes sociais significativas, que possibilita a investigação do grau de compromisso das redes constituídas em torno de contextos específicos. A construção do mapa consistiu no registro gráfico dos membros da rede social significativa das participantes, sistematizada por um diagrama formado por três círculos concêntricos (interno, intermediário e externo), divididos em quatro quadrantes básicos 1) Família; 2) Amizades; 3) Relações de trabalho; 4) Relações comunitárias. O círculo interno representa as relações mais íntimas, o intermediário as relações com menor grau de compromisso e o externo as relações ocasionais (Sluzki, 1997).

Dessa forma, realizaram-se dois encontros com cada participante, de forma individual. No primeiro, as participantes foram convidadas a falar sobre questões abertas organizadas em eixos norteadores e, após esse primeiro momento, foi construído o Mapa de Redes Sociais Significativas das mães acerca da constituição da sua rede pessoal no momento da pesquisa. Já no segundo encontro, em um primeiro momento, a entrevista realizada anteriormente foi retomada, a fim de que as participantes pudessem concordar, discordar ou acrescentar informações às interpretações da pesquisadora. Posteriormente, foi construído um segundo Mapa de Redes Sociais Significativas referente ao momento anterior ao diagnóstico de TEA.

Para o tratamento e análise das informações utilizou-se a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), proposta por Charmaz (2009). O processo de análise se deu nas seguintes etapas: a) Codificação Inicial; b) Codificação Focalizada; c) Codificação Axial; e d) Codificação Teórica.

Com o intuito de contemplar os padrões científicos e éticos em pesquisa com seres humanos, o presente estudo seguiu todos os princípios regidos pela Resolução 510 de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, a qual guia a ética nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (Ministério da Saúde, 2016), e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria/ Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, CAAE n. 41660721.6.0000.5346.

Assim, por meio dos procedimentos adotados, emergiram duas categorias principais: 1. Relações familiares e 2. Relações de amizade, comunidade e trabalho, seguindo-se os quadrantes propostos pelo Mapa de Redes (Sluzki, 1997). Salienta-se que, para fins de melhor apresentação da segunda categoria, foram criados novos quadrantes no Mapa de Redes do Presente: "Mães atípicas" (expressão utilizada pelas participantes para denominar outras mães de filhos com TEA), que seria uma divisão do quadrante das Amizades e "Profissionais da saúde e educação", que seria uma divisão do quadrante da Comunidade. As participantes foram nomeadas pela letra "M", de "mãe", somada ao número correspondente à ordem de realização das entrevistas. Da mesma forma, os filhos com TEA foram nomeados pela letra "F" somada ao número correspondente ao da respectiva mãe.

 

Resultados e Discussão

A Figura 1 apresenta a soma dos Mapas de Rede do passado (168 vínculos) e dos Mapas de Rede do presente (141 vínculos), indicando uma diminuição do número total de pessoas após o diagnóstico de TEA. De forma mais específica, o movimento entre os mapas do passado e do presente se caracterizou pelo aumento do número de membros no quadrante da família e uma diminuição do número de membros nos quadrantes referentes às relações de amizade, comunitárias e de trabalho, as quais foram unificadas em uma mesma categoria devido à permeabilidade existente entre elas.

 

 

Figura 1. Soma dos Mapas de Rede do Presente e do Passado

 

Relações Familiares

A partir dos depoimentos, foi possível identificar diferentes repercussões do diagnóstico de TEA no relacionamento das mães com os cônjuges, com os demais filhos e com os membros da família extensa. A maior parte das participantes relatou dificuldades na relação com o marido a partir do diagnóstico. Devido às demandas dos filhos, as mães precisaram abdicar das suas atividades laborais, o que trouxe modificações para a dinâmica relacional do casal e da família. Assim, tornando-se os únicos responsáveis pelo sustento familiar, os pais passaram a dispor de pouco tempo para a convivência com as esposas e filhos, como declara M4:

Quando ele tá aqui com a gente é bom, é uma convivência maravilhosa, o problema é que ele não tem tanto tempo pra família, entendeu? Ele sempre fica mais distante das coisas. Se o F4 tá bem, ele não tem como ver, não tem como participar daquele momento. Ele só tem o domingo. E aí tem domingo que o F4 tá bem, e tem domingo que o F4 não tá bem. (M4).

Dessa forma, foi possível perceber a ausência do pai tanto nos momentos de lazer como nos de dificuldade. Tal dado corrobora estudos como os de Neto (2018) e Smeha (2010), que apontaram a centralidade do cuidado na figura materna em casos de TEA como um efeito das responsabilidades financeiras e ocupacionais desempenhadas pela figura paterna. Nesse viés, o depoimento de M10 demonstra como a ‘distância' relatada por M4 parece se estender ao envolvimento com o cotidiano de compromissos e terapias dos filhos, que ficam a cargo da mãe:

Ele não tem quase tempo de ler, mas sempre quando eu tenho alguma coisa relativo ao que eu vejo na F10, eu procuro compartilhar com ele. É difícil a gente conseguir conversar sobre assuntos da família... ele sabe que o papel que eu desempenho, de tá 100% à disposição dos filhos, ele sabe que eu vou exercer bem aquilo ali, então ele me pergunta assim mas eu dou um resumão pra ele, sabe? Procuro sempre deixar ele a par, porque ele é como se fosse visita em casa. O que ele sabe sobre o autismo foi o que eu ensinei, o que eu falei. (M10).

Ainda, para além das questões conjugais, as participantes relataram experienciar intenso conflito na atenção que dispensam aos demais filhos, pois tende a ocorrer uma transferência das necessidades destes para um lugar secundário, em função das demandas do irmão com TEA (Mapelli et al., 2018):

Pro autista é tudo o dobro, tudo mais intenso. Tu ter só o filho autista é uma coisa, agora tu ter um filho autista e mais dois, é difícil porque tu não pode te dedicar totalmente pra aquele filho autista. Então tu tá sempre num conflito, sabe? [...] A [filha] rodou no colégio porque eu não dei nem a mínima, eu deixei ela se virar e eu acabei cuidando só do F12. [...] No fim a família inteira acaba ficando meio autista, que nem a [filha] disse pra mim esses dias, ‘ai mãe, às vezes eu acho que aqui em casa todo mundo é um pouquinho autista' (M12).

Logo, compreende-se que tal posição de centralidade do filho com TEA não se dá apenas na relação com a mãe, mas com todos os membros da família. Toda a dinâmica familiar passa a se organizar em torno do membro com autismo num movimento centrípeto, corroborando as elaborações de Rolland (2016). Contudo, percebe-se que o estreitamento dos laços pode não ser significado como positivo ou adaptativo, de modo que a aproximação dos membros da família não corresponde necessariamente a um maior sentimento de apoio e amparo familiar.

Além disso, observou-se que não são apenas os movimentos de estreitamento de vínculos que podem ser experienciados de forma negativa, como também os afastamentos desencadeados pelo diagnóstico de TEA:

Ela [sogra] mudou o papel dela, sabe? Ela era muito minha amiga, a gente se dava super bem. Ela vinha na minha casa quase que toda tarde, tinha uma relação bem forte com ele [F12], mas depois quando foi descoberto o autismo, aí assim que a gente começou a ter conflitos. Ela era muito grudada, muito apegada nele, depois disso parece que eles já não se encaixaram mais sabe? Que ela não soube mais lidar muito bem com essas coisas [...] foi bem diferente assim. Eu senti essa diferença dela na nossa relação. (M12).

Pode-se observar que o afastamento da sogra em relação à M12 se deu como consequência do afastamento em relação ao neto, fenômeno que pode gerar um sentimento de desamparo. Nesse sentido, os familiares de crianças com TEA participantes do estudo de Machado et al. (2018), também relataram falta de apoio da família extensa, que parece não compreender as demandas do membro com TEA e as consequências delas para os envolvidos.

Entretanto, apesar das dificuldades que o diagnóstico de TEA trouxe para as relações familiares, presentes de forma mais significativa nos relatos, algumas participantes destacaram a possibilidade de um movimento de compartilhamento de tarefas. Nessa linha, passado um período inicial de dificuldades, M11 e M8 relataram uma modificação no exercício da conjugalidade e da parentalidade: "Eu comecei a dizer ‘não, eu quero que tu faça isso também, porque tu também mora aqui'. Daí começou a melhorar as coisas." (M11).

No início ele teve dificuldade, também pra mim era tudo muito novo. Aí o doutor dá um banho de realidade, então tu sai um pouco zonza de lá, principalmente pra quem tá iniciando a caminhada. E aí, no início ele [marido] entrou, se chocou: ‘ah, não vou entrar mais nesse médico', eu disse ‘tudo bem, eu vou né'. Daí umas três consultas após essa conversa ele dizia assim ‘o que ele disse?' e eu ‘não entraste porque tu não quis.' Na segunda: ‘o que ele disse?', ‘tu tava ali na sala de espera, não entraste porque tu não quis.' e não falava. Na terceira ele entrou e nunca mais saiu. (M8).

Assim, considerando a importância das redes sociais significativas para a manutenção de melhores níveis de saúde socioemocional (Sluzki, 1997), identificou-se um elemento diferencial nos casos em que houve um fortalecimento de vínculos: a abertura, flexibilidade, disponibilidade e movimento maternos para ativação da rede. Percebe-se, por exemplo, que as exigências de M11 e M8 deram espaço para a aproximação dos maridos, que tornou possível uma divisão de tarefas e um envolvimento parental equilibrado com as demandas dos filhos, o que teve efeitos importantes na relação do casal.

Contudo, tal fenômeno configurou-se como exceção nos depoimentos das participantes da pesquisa. Considera-se, nesse ponto, o modelo patriarcal tradicional, que atrela as mulheres e mães à sensibilidade e ao exercício do cuidado, enquanto aos homens e pais fica relegado o papel de provedores, a quem não se permite manifestações sentimentais (Smeha, 2010). Tal percepção comparece no discurso das participantes, que relacionam o gênero masculino à impossibilidade ou dificuldade de dedicação ao filho:

Porque homem é assim, eles não conseguem ter muita coisa na cabeça que nem a gente, mulher. Então eu entendo esse lado dele, eu sei que pra ele vai ser mais desgastante, pra gente mulher é desgastante também, mas a gente ainda consegue carregar, sabe, eles não, né. Mas isso aí é desde o tempo das cavernas, não é agora que vai mudar né. Então a gente já foi criada pra esse tipo de coisa, eu acho que a mulher tem uma sensibilidade mais apurada, acho que é instinto materno, sei lá. Porque o pai já é mais distante. Homem não tem esse alcance, a gente já vê lá na frente, homem não tem né. (M10).

Assim, uma inércia instaura-se na situação, em que tanto o pai quanto a mãe ficam submetidos ao ideal patriarcal que impede o deslizamento de funções e o compartilhamento do cuidado (Smeha, 2010). Do mesmo modo, parece que essa rigidez transborda para as relações com a família extensa, de modo que as mães não conseguem pedir e/ou aceitar ajuda de outros familiares por conta dessa percepção de si mesmas enquanto únicas responsáveis pelos cuidados dos filhos. Questiona-se, dessa forma, se as mães de fato não contam com apoio, ou se não conseguem pedir, identificar ou reconhecer este último como válido devido a estarem "coladas" ao papel de cuidadoras exclusivas. O depoimento de M12 exemplifica essa hipótese:

Eu não acho que eu tenho apoio. Eu tenho algum apoio da minha mãe, mas ela se perde, ela quer ajudar, mas ela não consegue, ela se perde na ajuda, sabe? Até tentei trabalhar e minha mãe ficou aqui com ele pra mim, não deu certo porque ela queria deixar ele fazer tudo que ele queria, né, tudo que dava vontade. E aí começou a dar muito conflito, assim, ela tinha boa vontade, mas ela não conseguiu lidar com ele nesse ponto. E era muito angustiante pra mim, eu ficava nervosa o tempo todo pensando no que tava acontecendo em casa, né? Então eu desisti. [...] Já ouvi muito é que eu sou muito superprotetora, que eu sou exagerada, essas coisas, mas eu acho que eles tão certos, eu sou mesmo. Eu tento me desprender e não consigo, porque eu acho sempre que ninguém vai conseguir cuidar dele além de mim. E ele não faz as coisas porque tem eu ali, eu sei porque quando eu não tô e eu deixo ele com alguém, ele faz as coisas sozinho, sabe? Tipo se vestir sozinho, se trocar, sabe? Se secar quando ele toma banho, sozinho, se vestir, se eu não tô, ele faz, sabe? Então assim, às vezes eu acho que talvez pra ele seria bom eu não tá tão presente, também sabe? (M12)

Nesse viés, Sluzki (1997) demarca a estabilidade e a confiabilidade da rede como resultante de uma complexa combinação de diferentes fatores. Logo, não basta que as mães tenham os membros da rede social por perto e considerem-nos como significativos (afinal, M12 inseriu sua mãe no seu Mapa de Redes, por exemplo), mas é necessário viabilizar que a presença destes possa fazer uma diferença prática na sobrecarga que essas mulheres vivenciam no contexto do TEA. Assim, sugere-se que é justamente o movimento de ‘descolagem' - tanto das próprias mães, como daqueles que constituem sua rede pessoal relacional - do que é socialmente esperado delas, que pode tornar possível a ativação e operacionalização da rede social significativa de forma mais adaptativa. M11 exemplifica com exatidão o momento em que conseguiu se ‘descolar' do papel de cuidadora, e a partir daí se abrir para a ajuda: "Eu fui percebendo isso, eu era muito fechada, eu achava que eu tinha que ser forte, e eu fui falando ‘não, não tô legal, eu não quero fazer isso, eu também quero ficar sozinha, é o meu direito, e tá tudo bem'. E aí foi mudando." (M11).

Assim, apesar de ter sido identificado um aumento numérico dos membros da família localizados nos Mapas de Rede do presente, comparados aos Mapas de Rede do passado, as mães não se sentiam efetivamente apoiadas, evidenciando uma discrepância entre a estrutura da rede social e a percepção das participantes quanto ao apoio social (Smith & Christakis, 2008). Esse dado demonstra que a família de fato se aproximou a partir do diagnóstico, como é previsto (Rolland, 2016), mas o depoimento das participantes evidencia uma grande dificuldade de abertura ao compartilhamento dos cuidados do filho com TEA, independentemente da idade e da fase do desenvolvimento deste.

Relações de Amizade, Comunidade e Trabalho

Com relação à dinâmica das redes sociais significativas no contexto extrafamiliar, observou-se que o movimento centrípeto em torno do filho com TEA teve consequências significativas para a relação das mães também neste tópico, já que o fenômeno de isolamento e afastamento também se fez presente nas relações de amizade, comunidade e trabalho. Conforme já referido, as mães precisaram deixar as atividades laborais, o que é comum em famílias com filhos com TEA (Constantinidis et al., 2018; Mapelli et al., 2018; Neto, 2018). Isso acarretou um impacto significativo num importante nicho da vida social, como refere M7:

[No trabalho] eu tinha um círculo de amizade grande, eu tava sempre rodeada de colegas. Era muito bom, a gente passava o dia junto, almoçava lá no prédio, era uma companhia do dia todo né. Era a minha segunda família, a empresa, minha segunda casa. (M7).

Assim, essas pessoas que faziam parte da rede social significativa de M7 no seu mapa referente ao passado deixaram de estar presentes no seu mapa de redes do presente, tendo em vista o desligamento da participante da vida profissional. Este fenômeno ocorreu na experiência de todas as mães, tendo em vista que, nos mapas do presente, o número total de pessoas no quadrante do trabalho foi zero. M5 demonstra os efeitos disso na manutenção dos seus vínculos sociais:

Essa inter-relação trabalho e sociedade não adianta. Sempre vai aumentar teu vínculo de amizade, teu círculo de pessoas em volta de ti, é certo. Se eu tô no mercado de trabalho tu pode ter certeza, eu me dou sempre bem com todo o mundo, eu conheço muitas pessoas assim ó, com certeza iria me dar muito bem. Ia conhecer várias pessoas. (M5).

Fica clara a importância das relações de trabalho na inserção social, uma vez que, a partir delas, se possibilita a incorporação e consolidação de vínculos também nos quadrantes de amizade e comunidade. Seguindo as reflexões, quanto a estes últimos, a participante também relata um afastamento involuntário da convivência na vizinhança, em função do seu envolvimento com os cuidados do filho: "Eu não tenho tempo de ver as pessoas, acho que às vezes nem eles me enxergam. Quando vê já tô saindo, quando vê já tô voltando de novo, quando vê já tô saindo com o F5 de volta, é assim" (M5). Já a experiência de M4 traz uma variação nesse cenário: "Umas [amigas] não sabiam, que ele tinha o autismo. Aí quando eu falei, eu percebi que se distanciou. Quando eu fui num clube e levei ele, aí elas perceberam o comportamento dele, botaram a cara e se distanciou, sabe". (M4).

Percebe-se que a dedicação ao filho restringe o tempo disponível da mãe para a manutenção dos vínculos sociais (Constantinidis et al., 2018; Mapelli et al., 2018; Sluzki, 1997). Contudo, diferentemente do que relatou M5, a partir do depoimento de M4, considera-se também o afastamento como consequência de uma incompreensão, ou uma intolerância, por parte das amizades, relativa aos comportamentos da criança com TEA. Em decorrência disso, as mães se sentem excluídas das relações sociais antes estabelecidas (Constantinidis et al., 2018). Tal experiência pode repercutir de forma a motivar que busquem evitar o contato com os amigos antigos ou estabelecer novos vínculos de amizade, como demonstra M4:

Então eu me isolei, eu sou uma pessoa que não tenho amigos, assim, que eu posso dizer que são próximos, que visitam minha casa, se ela vai fazer um aniversário do filho dela e vai me convidar, eu não tenho esses. Vem um medo também, a gente já tá tão exausta, ansiedade, preocupações, que daí a gente se aproxima de uma amizade e ainda vou ter que me preocupar com a opinião, "aí é autista", pode virar um preconceito. (M4).

Assim, foi possível perceber que, a partir de um movimento inicial de afastamento por parte das suas amizades, M4 passou a isolar-se de forma ativa. Nesse contexto, buscou evitar o contato extrafamiliar, tendo em vista que a vivência do preconceito gerou sentimentos de exclusão, desprezo e rejeição social, aferrando-se ao papel solitário de cuidadora (Mapelli et al., 2018). Entretanto, o depoimento de M11 - participante que conseguiu se ‘descolar' deste lugar de responsabilização pelo cuidado - revelou um contraponto: a possibilidade de manutenção de alguns vínculos de amizade como obstáculo ao afastamento social:

A [amiga] me deu bastante força porque eu não queria sair, não queria levar o F11 na pracinha. Ela tem um filho da idade do F11, que é meu afilhado. E aí eu dizia "não, eu não vou ir, porque o F11 foge" e aí ela falou assim: "ó, tu pega o [filho da amiga] na mão e eu vou levar o F11". Pra mim ir, tu entendeu? E ela vinha aqui em casa me buscar a pé, pra mim ir, tu entendeu, pra mim não me sentir sozinha. (M11).

Dessa forma, identifica-se que a sustentação de uma posição persistente por parte da amiga, juntamente com a abertura de M11 para aceitar seus convites. Isso possibilitou a manutenção dos laços sociais da participante e colocou em destaque, mais uma vez, a importância da flexibilidade materna para que os vínculos presentes nas suas redes pessoais contribuam de forma efetiva, prestando a ajuda que as mães necessitam, mas também a necessidade de compreensão e preparo dos membros da rede para a oferta de um apoio efetivo.

Contudo, de forma geral, percebeu-se que a diminuição dos membros dos quadrantes de amizade e comunidade, somada ao desligamento da vida profissional imposto às mães produziu uma lacuna nas suas redes sociais significativas, que passou a ser preenchido por novas relações estabelecidas com pessoas relacionadas ao TEA, como outras mães atípicas e profissionais da saúde e educação.

No que tange às primeiras, compreende-se que o apoio oferecido por outras mulheres que vivenciam a maternidade no contexto do TEA é muito importante, podendo oferecer trocas e identificações (Constantinidis et al., 2018). Nesse sentido, em contrapartida ao afastamento dos amigos após o diagnóstico de TEA do filho, M2 refere que tem se sentido acolhida por outras mães atípicas:

Eu tô achando apoio com mães de autistas, é com elas que eu converso muito. Daí tipo "ah, não consigo dar conta da casa", daí elas "ah, eu também não", mas é por causa das coisas do filho atípico, sabe? A gente tá tendo uma troca tipo "mães atípicas". Me inspiro nela como mãe, a mãe real, porque essa mãe que faz as coisas eu não vou conseguir ser, eu vou ter que ser uma mãe como ela que não dá conta da casa, então eu me inspiro (M2).

Destaca-se, nesse sentido, que as trocas realizadas com outras mães que passam por experiências semelhantes à sua possibilitam uma diminuição das autoexigências, dando origem a uma condição identitária através da experiência da maternidade atípica e tudo que está envolvido nesse processo. Dessa forma, reforça-se o sentimento de pertencimento a partir da relação com o outro considerado semelhante (Constantinidis et al., 2018; Sluzki, 1997).

Assim, compartilhar vivências com pessoas que se supõe que as compreenderão, ou que, de fato, as compreendam, pode efetivar modos de enfrentamento e formas de lidar com as dificuldades advindas das demandas de cuidado do filho com TEA (Mapelli et al., 2018; Sluzki, 1997). Nesse contexto, motivadas pela busca por identificação, as mães relatam terem ampliado a sua rede social significativa, construindo fortes vínculos de amizade a partir do TEA: "Sem o autismo eu não teria conhecido ninguém, é um lado positivo que o autismo trouxe. Essas pessoas que chegaram agora foram pelo autismo, se eu não tivesse o F3 eu não teria conhecido." (M3). "Tem aquela coisa ‘o diagnóstico é horrível'. É, mas se não fosse o diagnóstico, não ia ter conhecido essas pessoas. É ver o lado positivo. Conheço muita gente legal, tem trocas, tem muita gente se aproximando." (M2).

Assim, é possível perceber que o TEA funcionou como ponto de união para as mães, que passaram a ocupar um lugar de grande valor na vida umas das outras, demonstrando abertura e disponibilidade para tanto. É importante destacar o quanto a expectativa de que as mães atípicas se compreendam mutuamente tem um papel importante nesse cenário. A partir desses vínculos, se concretizam ações de ajuda material e emocional:

A gente tá numa campanha de ajudar [outra mãe] a arrumar a casa dela, porque ela mora numa invasão e a casa tá bem ruim. A gente tá até fazendo brechó pra arrecadar dinheiro. Vaquinha virtual também. [...] E sempre quando tem uma mãe pra desabafar, me procura, me manda um whats "aconteceu tal coisa", me sinto uma psicóloga. Daí eu tento conversar, às vezes elas só querem conversar, nem que eu não responda, elas só querem contar. (M1).

Desse modo, fortalecem-se relações de apoio mútuo, em que as mães contribuem e recebem contribuições ao seu bem-estar físico e emocional. Surge, através dessa identificação identitária, um importante quadrante da rede social significativa dessas mulheres.

Seguindo as elaborações acerca dos novos quadrantes incluídos, compreende-se a consideração e o conhecimento das implicações do diagnóstico de TEA para a família como responsabilidade ética e técnica dos profissionais envolvidos, a fim de que o seu fazer profissional possa contribuir para redução das dificuldades, e não o contrário (Mapelli et al., 2018; Neto, 2018). Nessa linha, algumas participantes relataram experiências positivas com profissionais com os quais se sentiram acolhidas: "A gente tá acostumada a quando fala as pessoas fugirem, e essa professora veio toda acolhendo, perguntando, querendo saber mais, então né, já ganhou meu coração." (M2).

Além de ela [fonoaudióloga] ser a profissional que trabalha com ele, a gente construiu uma grande amizade, desde que ele tinha 2 anos né, até agora a gente tá, ela foi uma pessoa que me deu um grande suporte. [...] Deus colocou pessoas maravilhosas no meu caminho. [...] Eles que nos orientam, nos colocam pra cima, então são mais que profissionais, eu tenho como amigos né também, grandes amigos assim, só tenho a agradecer esse apoio. (M7).

Observa-se que, frente ao movimento amplo de afastamento das amizades, da comunidade e dos vínculos de trabalho, os profissionais podem vir a ocupar esse lugar de apoio e confiança na rede social significativa. Nesse sentido, houve uma participante (M3) que incluiu uma psicóloga no quadrante da família, enquanto outra (M1) incluiu uma psicóloga e uma fonoaudióloga no quadrante das amizades. A partir do contato constante devido às terapias, somado à ausência da realização de outras atividades sociais por parte das mães, os profissionais envolvidos com seus filhos passam a figurar como pessoas importantes para elas (Klinger et al., 2020).

Diante disso, destaca-se a relevância do acompanhamento profissional não apenas para os filhos, mas direcionado para as próprias mães, que sentem necessidade de serem escutadas e amparadas (Klinger et al., 2020), como demonstra M4:

Com certeza a gente precisa. Eu preciso. Eu realmente preciso, só em um profissional ver o nosso lado, ver nossa rotina e entender, já é um alívio, um desabafo, é muito, uma terapia não sei, mas faz muito sentido né? Com certeza, é um apoio é, é uma pilastra sabe? Mais um suporte pra gente estar ali quando um eventual acontecer, entrou numa crise, é como fazer ele entender que ele tem que ir, acordar cedo, tomar o remédio, ali a gente já vai tá fortalecido, que a gente já tem um acompanhamento, a gente já desabafou né? Então é bem assim, com certeza um apoio é fundamental. (M4).

Assim como no estudo de Mapelli et al. (2018), na presente pesquisa, os psicólogos, psicopedagogos e fonoaudiólogos foram referidos como os profissionais mais acolhedores. Isso parece estar associado à demonstração de sensibilidade, interesse e envolvimento com as necessidades, dúvidas, medos e angústias das mães, como declarado por M4. Ademais, no depoimento de M11 ficou evidenciada a importância que uma médica do posto de saúde teve na sua referida transição da ‘colagem' do papel exclusivo de cuidadora do filho para uma posição que tornou possível cuidar também de si própria:

E aí ela [médica] disse pra mim: "tudo bem, tu não deixa de amar eles. Tu tem que dizer que tu não tá bem e dizer que tu tá cansada. Tu não vai deixar de ser mãe". Aquilo ali já abriu tudo que eu pensava, encaixou, e eu disse "é isso!" eu queria ouvir, eu precisava ouvir dela, e ela disse "é isso" e eu disse "é isso", daí comecei a falar, e eu melhorei muito. (M11).

Os profissionais da saúde têm grande responsabilidade e influência sobre o sentimento de competência e adaptação das famílias, a partir das explicações e orientações que fornecem. Assim, apresenta-se a eles valiosa oportunidade de elaboração de estratégias que atendam aos desafios inerentes à situação (Rolland, 2016). Percebe-se o quanto isso fica evidente no relato de M11, tendo em vista que, a partir de uma ‘autorização' da médica, se tornou possível todo o processo perpassado pela participante relatado nesse estudo. Portanto, considerando a dinâmica relacional das redes sociais significativas, sublinha-se o lugar de destaque que os profissionais passaram a ocupar para as mães de filhos com TEA, auxiliando nas reorganizações e adaptações necessárias, seja no atendimento direcionado a estes ou a elas próprias.

Diante disso, salienta-se que, de forma semelhante ao que ocorreu com os vínculos estabelecidos com mães atípicas, parece que as participantes apresentaram maior abertura e disponibilidade para com os profissionais da saúde e educação envolvidos com seus filhos do que com os membros dos quadrantes da família, amizade, comunidade e trabalho, podendo-se supor que exista uma maior receptividade por parte das participantes em receber apoio dos vínculos constituídos após o diagnóstico de TEA. Assim, levanta-se a hipótese de que isso se deva ao fato de que, por estarem diretamente imersos na realidade do TEA, essas pessoas realmente estejam mais aptas e qualificadas para exercer o apoio necessário. Para as pessoas da rede cujos vínculos foram estabelecidos previamente ao diagnóstico, talvez faltem informações e experiências para oferta de apoio diante de uma situação nova e desafiadora. Diante disso, considerando-se a colocação de Sluzki (1997) sobre a complexidade de fatores que envolvem a ativação de vínculos para prestação de apoio satisfatório, amplia-se a problematização que surgiu na categoria precedente: a falta de abertura das mães para receber o apoio de que necessitam poderia estar relacionada ao preparo das pessoas ao seu redor para apoiar?

 

Considerações Finais

Este estudo teve como objetivo discutir as repercussões do diagnóstico de TEA na dinâmica relacional das redes sociais significativas de mães de filhos com TEA. De forma geral, foi possível perceber uma diminuição no número total de membros das redes pessoais das mães participantes, embora cada quadrante tenha tido um movimento próprio.

No contexto das relações familiares, houve um aumento no número total de membros nas redes sociais significativas das mães após o diagnóstico de TEA dos filhos, mas destacaram-se relatos de afastamentos e dificuldades, de forma que a maior parte das participantes declarou não poder contar com o apoio de que necessita por parte dos vínculos familiares presentes em suas redes. A esse respeito, parece que há necessidade de maior abertura das mães para mobilizar o apoio familiar.

No contexto das relações de amizade, comunitárias e de trabalho, foi possível perceber uma diminuição do número de vínculos a partir do diagnóstico de TEA, o que parece estar relacionado com o fechamento da família em si mesma, tendo como consequência um afastamento dos ambientes de convivência social. No caso das mães, isso pareceu muito associado à dedicação exclusiva que passaram a ter para com o filho com TEA, abdicando da sua vida profissional e laboral, bem como dispondo de menos tempo para interações com amigos e vizinhos. Ainda, se destaca o afastamento voluntário de algumas mães, tendo em vista o medo da exclusão e do preconceito. Por outro lado, percebeu-se a entrada de novos membros diretamente relacionados ao TEA na rede pessoal das mães, como outras mulheres mães de filhos com TEA e profissionais da saúde e educação. Assim, observou-se que estes novos vínculos passaram a ocupar posições semelhantes aos lugares ocupados anteriormente pelas relações de amizade e comunitárias, sendo referidos a partir da confiança e segurança que proporcionam.

Diante do exposto, problematiza-se a falta de apoio familiar - apesar do aumento do número de membros da família nas redes sociais das mães participantes do estudo - para além da necessidade de maior abertura delas para mobilizar o apoio necessário, pois parece que o nível de preparo da rede para prestar ajuda em casos de filhos com TEA também se mostrou significativo. Nesse viés, pode ocorrer que os membros presentes nas redes sociais significativas maternas anteriormente ao diagnóstico de TEA não disponham do conhecimento ou compreensão necessários para que as mães se sintam seguras para compartilhar os cuidados dos filhos, o que elas demonstraram sentir com relação a outras mães de filhos com TEA e com os profissionais da saúde e educação, por exemplo. Esse resultado se materializa em uma contribuição significativa para o avanço do conhecimento sobre as redes sociais significativas de mães de filhos com TEA: não basta que exista uma rede, é preciso que ela esteja suficientemente preparada para que seja efetiva. Implicações sociais também podem ser derivadas desse resultado, sugerindo-se maior investimento na instrumentalização das redes sociais significativas para acolhimento e manejo do processo vivenciado por mães de filhos com TEA.

Limitações do estudo envolvem a especificidade de que as participantes foram acessadas por meio de uma associação relacionada ao TEA, o que pode ter influência na constituição das redes investigadas. Ainda, aponta-se e o caráter transversal da pesquisa, que limita as possibilidades de análise dos processos em uma perspectiva longitudinal do desenvolvimento.

 

Referências

American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders. (5a ed.).

Cerveny, C. M. O., & Berthoud, C. M. E. (2002). Visitando a Família ao Longo do Ciclo Vital. Casa do Psicólogo.

Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: Guia prático para análise qualitativa. Artmed.

Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). "Todo Mundo Quer Ter um Filho Perfeito": Vivências de Mães de Crianças com Autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://doi.org/10.1590/1413-82712018230105

Klinger E. F., Oliveira, D. P., Lopes, H. B., Meneses, I. C., & Suzuki, J. S. (2020). Dinâmica Familiar e Redes de Apoio no Transtorno do Espectro Autista. Revista Amazônia Science & Health, 8(1), 123-137. https://doi.org/10.18606/2318-1419/amazonia.sci.health.v8n1p123-137

Machado, M. S., Londero, A. D., & Pereira, C. R. R. (2018). Tornar-se família de uma criança com transtorno do espectro autista. Contextos Clínicos, 11(3), 335-350. https://dx.doi.org/10.4013/ctc.2018.113.05

Mapelli, L. D., Barbieri, M. C., Castro, G. V. D. Z. B., Bonelli, M. A., Wernet, M., & Dupas, G. (2018). Criança com transtorno do espectro autista: Cuidado na perspectiva familiar. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, 22(4), e20180116. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2018-0116

Mcauliffe, T., Thomas, Y., Vaz, S., Falkmer, T., & Cordier, R. (2018). The experiences of mothers of children with autism spectrum disorder: Managing family routines and mothers' health and wellbeing. Australian occupational therapy journal, 66(1), 68-76. https://doi.org/10.1111/1440-1630.12524

Ministério da Saúde. (2016). Resolução n. 510, de 7 de abril de 2016. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Seção 1, 44-46. http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf

Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, (43), 84-98. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v27i0.48904

Neto, M. C. B. R. R. V. (2018). O exercício da parentalidade de crianças com Perturbação do Espectro do Autismo: Um novo olhar sobre o conceito [Tese de Doutorado, Universidade Católica Portuguesa]. Repositório UCP. https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/27682/1/Tese%20Final-2018%20-3.pdf

Rolland, J. (2016). Enfrentando os desafios familiares em doenças graves e incapacidade. In F. Walsh, Processos normativos da família: Diversidade e complexidade (pp. 522-555). Artmed.

Russa, M. B., Matthew, A. L., & Owen-Deschryver, J. S. (2015). Expanding Supports to Improve the Lives of Families of Children With Autism Spectrum Disorder. Journal of Positive Behavior Interventions, 17(2), 95-104. https://doi.org/10.1177/1098300714532134

Sluzki, C. E. (1997). A Rede Social na Prática Sistêmica: Alternativas Terapêuticas. Casa do Psicólogo.

Smeha, L. N. (2010). Vivências da paternidade em homens que são pais de um filho com diagnóstico de autismo [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul]. PUCRS: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações. http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/717

Smith, K. P., & Christakis, N. A. (2008). Social networks and health. Annual Review of Sociology, 34, 405-429. https://doi.org/10.1146/annurev.soc.34.040507.134601

Yunes, M. A. M., & Szkymanski, H. (2005). Entrevista Reflexiva & Grounded Theory: Estratégias metodológicas para compreensão de resiliência em famílias. Revista Interamericana de Psicología, 39(3), 1-8. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=28439313

 

 

Endereço para correspondência
Carolina Schmitt Colomé
Departamento de Psicologia
Avenida Roraima, 1000 sala 3213, Santa Maria - RS, Brasil. CEP 97105-900
Endereço eletrônico: carolcolome@gmail.com
Cândida Prates Dantas
Departamento de Psicologia
Avenida Roraima, 1000 sala 3213, Santa Maria - RS, Brasil. CEP 97105-900
Endereço eletrônico: candida.cnd@gmail.com
Jana Gonçalves Zappe
Departamento de Psicologia
Avenida Roraima, 1000 sala 3213, Santa Maria - RS, Brasil. CEP 97105-900
Endereço eletrônico: janazappe@hotmail.com

Recebido em: 04/11/2021
Reformulado em: 02/02/2023
Aceito em: 13/02/2023

 

 

Notas

* Psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Santa Maria, mestranda pela Universidade Federal de Santa Maria.
** Psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Santa Maria.
*** Psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Santa Maria, doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, docente no Departamento de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CAPES, No. Processo DS Código do Curso 42002010046P9) e pela bolsa de iniciação científica da estudante Mariana Gonçalves Rossi (FAPERGS, No. Processo 21/2551-0000987-0), que auxiliou na condução e transcrição das entrevistas.

 

Este artigo de revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.