Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e77634, doi:10.12957/epp.2024.77634
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

A Experiência da Dupla Maternidade: Análise de Redes Sociais de Casais de Mães Influenciadoras

 

The Experience of Dual Maternity: Analysis of Social Medias of Couples of Moms who are Digital Influencers

 

La Experiencia de la Doble Maternidad: Análisis de Redes Sociales por Parejas De Madres Influencers

 

Betina Nelsis Aymone a, Rita Sobreira Lopes a

a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

A dupla maternidade diz respeito à construção de maternidades partilhadas por casais de mulheres não heterossexuais, configuração familiar que ainda enfrenta um cenário de pouca visibilidade e preconceito. Objetivou-se investigar como a experiência da dupla maternidade é abordada pelas mães nos espaços digitais. Para tal, a análise foi feita a partir de postagens de mães influenciadoras na rede social Instagram. A pesquisa envolveu 431 postagens de cinco perfis, sendo os dados coletados e analisados seguindo os critérios da Análise Temática. Foram criadas cinco categorias: preparação para gestação; gestação; parto; puerpério e primeiro ano em diante. A dupla maternidade é apresentada de maneira espontânea e, também, dentro do mesmo ambiente de amor, descobertas e desafios que por vezes marcam os relatos sobre ser mãe. Contudo, as experiências relatadas são sempre atravessadas pelas idiossincrasias de ser mãe em uma relação homossexual e, dessa forma, uma família que "escapa" ao referencial heteronormativo. Foi possível perceber o tensionamento de estereótipos ligados à parentalidade e à constituição de vínculos familiares. As narrativas virtuais possibilitam que esses relatos se disseminem e as influenciadoras assumam um papel de referência, ao mesmo tempo em que se reconhecem e encontram um espaço seguro de troca.

Palavras-chave: dupla maternidade, influenciadoras digitais, narrativas virtuais, gênero.


ABSTRACT

Dual maternity refers to the construction of shared motherhood by couples of non-heterosexual women, a family configuration that still faces a scenario of little visibility and prejudice. The aim was to investigate how the experience of dual maternity is approached by mothers in digital spaces. To this end, the analysis was based on posts by moms who are influencers on Instagram. The research involved 431 posts from 5 profiles, with data collected and analyzed according to the criteria of Thematic Analysis. Five categories were created: preparation for pregnancy; pregnancy; delivery; postpartum period and first year onwards. Dual maternity is presented in a spontaneous way and within the same environment of love, discoveries and challenges that commonly mark reports about being a mother. However, the experiences reported are always crossed by the idiosyncrasies of being a mother in a same-sex relationship and, therefore, a family that "escapes" the heteronormative reference. It was possible to perceive the tension of stereotypes linked to parenthood and the constitution of family ties. Digital narratives allow these reports to be disseminated and influencers to assume a role of reference, while recognizing themselves and finding a safe space for exchange.

Keywords: dual maternity, digital influencers, virtual narratives, gender.


RESUMEN

La doble maternidad se refiere a la construcción de maternidades compartidas por parejas de mujeres no heterosexuales, una configuración familiar que aún enfrenta un escenario de poca visibilidad y prejuicio. El objetivo fue investigar cómo se aborda la doble maternidad por parte de las madres en los espacios digitales. El análisis se basó en publicaciones de influencers en Instagram. La investigación involucró 431 publicaciones de 5 perfiles, con datos recopilados y analizados según los criterios del Análisis Temático. Se crearon cinco categorías: preparación para el embarazo; embarazo; parto; período postparto y primer año en adelante. La doble maternidad se presenta con naturalidad y dentro del mismo ambiente de amor, descubrimientos y desafíos que comúnmente marcan los informes sobre ser madre. Las experiencias relatadas siempre están cruzadas por las idiosincrasias de ser madre en una relación del mismo sexo y, por lo tanto, una familia que "escapa" de la referencia heteronormativa. Fue posible percibir la tensión de los estereotipos ligados a la maternidad y la constitución de vínculos familiares. Las narrativas digitales permiten que estos informes se difundan y que las influencers asuman un papel de referencia, al mismo tiempo que se reconocen y encuentran un espacio seguro para el intercambio.

Palabras clave: doble maternidad, influencers digitales, narrativas virtuales, género.


 

 

O fenômeno da maternidade por duas mulheres em uma relação conjugal tem recebido diversas denominações, tais como "maternidade lésbica" ou "homoparentalidade". Para fins desta pesquisa, optou-se pelo emprego do termo "dupla maternidade". O processo de ser mãe, nesse contexto, pode apresentar barreiras significativas, principalmente no que diz respeito aos âmbitos biológicos, jurídicos e sociais. Espaços que, comumente, são utilizados para promover bem-estar, saúde e segurança, com frequência revelam-se perigosos e discriminatórios para casais homossexuais com filhos.

Conforme apontam Uziel e Grossi (2006), o "modelo tradicional" tem estreita relação com papéis de gênero desempenhados por pais e mães no contexto da criação de uma família, visto que há uma expectativa social de que mulheres e homens assumam determinados comportamentos e exerçam funções específicas, dentro dos arranjos familiares. O cenário que se testemunha, é que a constituição das famílias de casais homossexuais é balizada por uma norma predominante heterossexual ao mesmo tempo em que a "transgride e reinventa os fundamentos que sustentam as representações erigidas em relação à noção e ao estatuto de família" (Santos & Gomes, 2016, p. 103).  Amorim e Oliveira (2012) assinalam que as famílias compostas por casais homossexuais deflagram um movimento de desafio à legitimidade desses ideais tradicionais de parentalidade e filiação, ao demonstrarem que a família pode ser composta por duas mães e questionarem as essencializações a respeito do parentesco.

Foi realizada uma revisão da literatura que aponta a tendência de estudos na temática da dupla maternidade (Johnson, 2012). Estes podem ser examinados a partir de três ondas: a primeira, iniciada no fim da década de 1970, dava enfoque às mulheres que tinham filhos em relações heterossexuais anteriores. Preocupações sobre a custódia das crianças, após as separações, era uma das questões mais debatidas (Pagelow, 1980).

A segunda onda, identificada a partir da década de 1980, passou a investigar as mulheres que haviam se tornado mães no contexto das próprias relações lésbicas. A motivação maior era analisar a saúde mental dessas mães e o impacto potencialmente negativo dos filhos (Green et al., 1986). Na terceira onda, a partir de meados da década de 1990, passou-se a examinar o funcionamento e a dinâmica familiar de mulheres que concebiam seus filhos nas próprias relações do mesmo sexo, especialmente por meio da parentalidade planejada: adoção ou reprodução assistida (Gartrell et al., 1996).

No Brasil, são quase nulos os dados oficiais sobre a quantidade de famílias compostas por casais homossexuais com filhos. A ausência de informações reflete o processo de invisibilização desses sujeitos. Estas famílias, muitas vezes, sentem-se isoladas e pouco representadas de forma geral, carecendo de espaços de compartilhamento e pertencimento. Nesse sentido, a identificação com um grupo de famílias de mesma configuração é importante, não só para a identidade coletiva, mas para a identidade pessoal (Allebrandt, 2015). Para além da identificação social, Rago (2010) constata, no processo de construção subjetiva, a relevância das narrativas pessoais acerca de suas próprias vidas. Ao se dedicarem a essas narrativas, os sujeitos afirmam modos alternativos de inscrição no mundo, deflagrando novas formas de compreenderem a si mesmos e construir realidade.

A centralidade das tecnologias digitais na sociedade também exerce efeitos sobre a produção dessas narrativas autocentradas. Acompanhando o movimento contemporâneo de globalização e digitalização da sociedade, o contar a si mesmo assume características próprias do espaço digital (Sauter, 2014). Com base no cenário descrito, o presente estudo teve como objetivo compreender de que forma a experiência da dupla maternidade nos primeiros anos dos filhos é abordada por essas mães nos espaços digitais e discutir as principais temáticas mobilizadas nestes conteúdos. Para tal, a análise foi realizada a partir das narrativas digitais construídas por mulheres influenciadoras na rede social Instagram.

 

Método

Seleção dos perfis e postagens analisados

Os dados foram extraídos da plataforma Instagram, de forma manual. Em um primeiro momento, foram selecionados 10 perfis de influenciadoras, através da busca pelas hashtags #duasmaes e #duplamaternidade e a sugestão do próprio Instagram de perfis semelhantes. O critério para a primeira seleção se deu em relação a alguns fatores apontados por Ishida (2018), como: o número de seguidores e a proporção entre estes e as interações com o público, aqui mensurado através dos comentários. A métrica de fãs ou seguidores é importante para entender-se o potencial de propagação que o influenciador possui. Além disso, como critério, os perfis deveriam ter como temática principal a dupla maternidade. Estes perfis foram acompanhados diariamente por 30 dias, sendo analisados os assuntos por eles explorados e o engajamento com o público.

A partir desse delineamento, foram selecionados os cinco perfis (@maternidadesapatao; @duasmaesdedois; @marcelatiboni; @mariimaedosgemeos; @naniroodrigues_) que mais se destacaram por conterem conteúdos diversos em relação a experiência da dupla maternidade, explorando várias esferas como: vida familiar, vida do casal, gestação, desenvolvimento do filho, entre outros. Além disso, intencionou-se selecionar contas de diferentes regiões do Brasil, com raças e perfis socioeconômicos diversos, a fim de aumentar a representatividade da amostra. Foram analisadas apenas as postagens referentes à temática da dupla maternidade.

Delineamentos e Procedimentos

O presente trabalho configura-se como qualitativo, uma vez que contempla a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados a eles, como afirmam Prodanov e Freitas (2013). O estudo foi baseado nas estratégias de análise temática propostas por Braun e Clarke (2006). Este é um método para identificar, analisar e relatar padrões - através de temas - dentro dos dados. Ainda, ela organiza e descreve o conjunto de dados em detalhes, proporcionando a interpretação de vários aspectos do tema de pesquisa. A busca foi realizada até que fosse alcançado material suficiente para a compreensão do fenômeno, baseado no critério de saturação, proposto por Stake (2006). Após este processo, foi empreendida uma leitura mais aprofundada dessas postagens para assim, prosseguir para a etapa da análise, de codificação e categorização do material.

Análise dos Dados

Braun e Clarke (2006) propõem um esboço que pode servir como guia através de seis fases de análise: 1. transcrição dos dados, leitura e apontamento de ideias iniciais; 2. codificação das características interessantes dos dados de forma sistemática; 3. agrupamento de códigos em temas potenciais; 4. revisão dos temas; 5. definição e nomeação dos temas; 6. produção do relatório. Na presente pesquisa, as etapas propostas foram seguidas, tendo sido feita a leitura e releitura inicial das postagens dos perfis selecionados, possibilitando a codificação de características relevantes de forma sistemática, bem como a seleção de dados pertinentes para cada código. Em sequência, foi realizado o agrupamento de códigos em temas potenciais, bem como a verificação se os temas estavam em sintonia com os extratos codificados.

Conforme a Resolução n. º 510 (Brasil, 2016), que dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, não serão avaliadas pelos Comitês de Ética em Pesquisa (sistema CEP/CONEP) as pesquisas que utilizem informações de domínio público.

 

Resultados e Discussão

Os seguintes temas derivados da análise serão apresentados, seguidos de discussão: preparação para gestação; gestação; parto e primeiro ano. A partir desse recorte, foram analisadas as legendas de 431 postagens publicadas pelas mães influenciadoras.

Preparação para Gestação

Esta seção discute os principais temas identificados na etapa da preparação para a gestação. Entende-se esse período como relevante no processo de decisão pela dupla maternidade, por envolver aspectos associados a escolhas e preparações atinentes à construção dessas famílias. Dessa maneira, pode representar uma forma de repensar os modelos teóricos sobre desenvolvimento humano, de maneira geral embasados em relações heterossexuais.

Primeiramente, destacam-se postagens relacionadas à escolha e aos procedimentos associados aos métodos reprodutivos. As mães aqui analisadas têm em comum a opção por terem filhos biológicos a partir de tecnologias de reprodução, e esse fator ocupa espaço significativo em seus relatos. Isso porque determinados métodos de reprodução envolvem não apenas os procedimentos realizados, mas o processo de escolha por um método em detrimento dos outros, a preparação biológica para realização e outros tipos de acordo a serem realizados entre as mães.

Nesse contexto, o processo de construção da maternidade ultrapassa o período da gestação: engloba o planejamento da reprodução e as decisões que são tomadas com essa finalidade, tal como a de quem irá gestar a criança. A decisão por quem engravidará pode ser facilitada quando apenas uma das mulheres manifesta tal desejo. Se ambas tiverem essa vontade, a decisão pode representar um momento complexo de negociação para o casal, considerando que uma delas irá gestar a criança e a outra não, o que pode acarretar diferentes consequências sociais e legais para a parceira que não gera (De Carvalho et al., 2020). Observa-se o relato de como foi o processo de decisão para um dos casais:

Eu sempre soube que seria mãe, e sempre soube também que não gestaria, engravidar não era uma opção pra mim. Quando comecei um relacionamento com a Tallulah eu soube quase que imediatamente que ela também seria a mãe dos meus filhos e entendi que eles viriam ao mundo através dela […]

Conforme Amorim (2019, p. 18), os novos modelos de tecnologias reprodutivas introduzem também novas formas de "conectar substâncias reprodutivas, de manipular, conservar e gestar embriões […] modos que escapam da habitual necessidade de conexão sexual entre dois corpos distintos para produção de crianças". No exemplo a seguir, uma das influenciadoras compartilha com seus seguidores a decisão do casal pelo método da inseminação caseira:

*DECISÃO DE IC* […] nos conhecemos e quando realmente sentimos que era a hora de ter uma bebê começamos a pensar em como! Como todos sabem processo de adoção demora pra caramba e inseminação artificial exige uma grana alta, então fizemos a IC (inseminação caseira) procedimento feito em casa… Ah, mas não é arriscado? Sim é, exige uma série de cuidados desde o doador ao procedimento, mas fizemos tudo conforme os cuidados exigidos […]

É possível perceber, no relato, uma série de dúvidas e desafios elencados pela influenciadora no compartilhamento das experiências relacionadas às diferentes tecnologias reprodutivas. Também é apontada a demora no processo de adoção e o alto custo dos procedimentos de inseminação artificial, realizados em laboratório. Alguns relatos denotam preocupação, inclusive, em fornecer algumas explicações sobre a dinâmica dos métodos adotados e diferenciá-los de outros que despontam como possibilidades para mulheres que buscam a dupla maternidade:

FIV: Algumas pessoas confundem fertilização com inseminação. Fertilização é o processo mais eficaz por o óvulo ser fecundado fora e só ser colocado no seu útero quando o embrião já está formado. Inseminação, o sêmen é colocado e ele precisa encontrar seu óvulo e fecundar dentro de você. Fizemos uma FIV e Simon e Renato foram colocados no 5° dia, quando os embriões já estavam em blastocisto, que é considerado a melhor evolução dos embriões antes de serem colocados no útero.

Cabe pensar, aqui, no duplo movimento em que se estabelecem as narrativas digitais sobre a dupla maternidade, conforme discutido anteriormente neste trabalho: são relatos que servem para externalizar percepções e vivências das mães, mas também no sentido de mobilizar e/ou afetar o público que as lê, comumente outras famílias com dúvidas e experiências similares. Essa é uma das principais funções do ambiente virtual, nesse caso o Instagram: a constituição de uma rede de compartilhamento de experiências entre essas mães e outras mulheres. Outro aspecto que apresenta protagonismo nas narrativas analisadas na etapa de preparação para gravidez é a escolha do doador para o processo de inseminação:

[…] escolher o sêmen do doador foi uma parte do processo que encaramos com muita naturalidade e bom humor. A clínica que fizemos a FIV nos ofereceu 02 opções de banco de sêmen, um americano e um nacional. O que nos fez decidir pelo nacional foi a agilidade da compra e a legislação brasileira, tendo em vista que o anonimato é garantido entre as partes. No que diz respeito às características, como misturamos nossos óvulos, não escolhemos características parecidas com uma ou com outra… poderíamos escolher três opções e nas três escolhemos características neutras (com genes recessivos) e hobbys e gostos semelhantes aos nossos (mesmo acreditando que o que pesa mesmo é o dia dia) […]

Foi possível identificar, portanto, alguns temas relevantes para a compreensão do processo de constituição da dupla maternidade a partir das narrativas produzidas pelas mães influenciadoras na etapa em que estavam preparando-se para a gestação.

Gestação

Aqui estão incluídas questões ligadas à descoberta e anúncio da gravidez, escolhas sobre a equipe médica e o tipo de parto a ser realizado, consultas pré-natais e mudanças corporais observadas no processo da gestação, expectativa para o nascimento, assim como marcos importantes desse período. Além disso, constata-se a presença de discussões sobre papéis parentais, assim como se reflete sobre o preconceito que muitas vezes as mães enfrentam ao apresentarem suas famílias, seja relacionado a manifestações de outras pessoas ou atrelado a um despreparo institucional para lidar com esse modelo familiar.

Em um primeiro momento, observa-se um movimento de anúncio da gravidez e de apresentação do perfil para os seguidores. Fica evidente o entusiasmo ao dividir a notícia da gravidez com o público, na medida em que trocam experiências e vivências pessoais. Ao compartilhar este novo momento de vida, nota-se que, para além de fornecer informações e inspiração para pessoas em arranjos semelhantes, estas mulheres contam com o apoio de seus seguidores. A rede criada através da plataforma digital, ocupa, também, uma função de validação da experiência, como podemos observar:

Nosso primeiro post não poderia ser diferente: o dia que alcançávamos um grande marco de nossa jornada, o dia que o teste de gravidez de farmácia deu positivo. O perfil será alimentado pelo casal Virginia e Vita e pretendemos com ele narrar a nossa história e esclarecer tantas dúvidas que ainda existem sobre maternidade homoafetiva e a fertilização in vitro (FIV) e é claro compartilhar os momentos incríveis que vivemos e que ainda iremos viver. Vamos nessa com a gente?

Nota-se, ainda, uma preocupação em relação à escolha da equipe médica e profissional que acompanhará a gestação. Estudos indicam que a qualidade do atendimento, no contexto da dupla maternidade pode ser afetada por questionamentos inadequados, homofobia e comunicação heteronormativa (Carvalho, 2018). Percebe-se, assim, a importância de escolher uma equipe médica de confiança, para que se sintam confortáveis e acolhidas ao longo de todo processo. Observa-se um movimento de indicação em relação a estes profissionais, para evitar que outras mulheres sejam expostas a situações de preconceito ou despreparo institucional.

Já estamos na segunda consulta de pré-natal, a primeira depois da ecografia morfológica do primeiro trimestre. Estamos fazendo pelo SUS, no [supressão de nome] assim como o tratamento de fertilização. Só temos a agradecer a equipe de médicos daqui, que é maravilhosa❤️ Nem tudo é tão fácil quanto parece, quem depende e usa o SUS sabe como é, mas com muito esforço e um pouquinho de sorte tudo se encaminha.

O momento da gestação carrega diversas dessas transformações, como se observa no relato das mães. Mudanças relacionadas a aspectos físicos da gravidez são também documentadas pelas mulheres nos relatos disponíveis em seus perfis:

A maternidade é muito romantizada, logo não seria diferente com a gestação. Não viemos aqui mostrar uma família linda, perfeita e feliz. Durante o processo da FIV nós duas passamos por processos hormonais, eu pra aumentar a produção de óvulos e Ruth usou bastante progesterona e estrogênio. Então imagina aí uma mulher grávida e outra hormonizada juntas o tempo todo, convivendo sozinhas durante toda a pandemia, pois é quebrada não foi fácil. Vários momentos colocamos nosso relacionamento a prova, pensamos em desistir uma da outra em vários momentos, surtávamos juntas, riamos juntas, chorávamos juntas […]

Para além dessas mudanças próprias da evolução da gestação, como o aumento da barriga e a presença ou ausência de sintomas físicos, como enjoos e insônias, as narrativas da dupla maternidade mapeadas trazem uma questão específica, de bastante centralidade em suas manifestações: a preparação para a amamentação. Isso porque, em alguns casos, a mãe que não é responsável por gestar, por meio da introdução de hormônios pode também amamentar o bebê, como consta nas falas em destaque:

Não estou grávida e vou amamentar. 9 remédios diariamente para produzir leite. E meu peito cresce demais a cada dia. Mais um mês e já devo começar a ter leite <3

Amorim (2019, p. 179) sublinha que "sem o peso da gravidez ou da conexão biológica com o futuro filho, a mulher que não gesta pode ver seu lugar enquanto mãe ameaçado". Além da amamentação, a autora cita que mesmo a reiteração das postagens em que estão presentes as duas mulheres, grávidas, durante o parto, no teste de gravidez positivo, com a barriga aumentando, são estratégias fundadas em consolidar o lugar da mãe que não engravidou e, portanto, não teria um vínculo biológico na construção da família.

A consolidação da maternidade e o papel da mãe que não gesta são um ponto-chave na abordagem da dupla maternidade por essas mães. Como visto, as concepções de família calcadas nos aspectos biológicos, isto é, em parentesco sanguíneo, não dão conta de arranjos como os construídos pelas mães aqui pesquisadas. Nesse sentido, Porchat (2017) aponta para a necessidade de que sejam incluídas nessas conceituações novos modelos possíveis de constituição de família entre os sujeitos.

Parabéns mamãe: apesar de cada dia estar mais presente os mais diversos formatos de família, algumas pessoas ainda ficam confusas ao se deparar com famílias como a nossa, inclusive amigos próximos e casais homoafetivos. Isso é bem notório quando a gente dava a notícia pessoalmente que dois bebês estavam a caminho: "Parabéns Vita! Que coisa linda é a maternidade". Mamain Virginia geralmente não era contemplada pelos parabéns, e não, não foram apenas de pessoas mais velhas heteronormativas, esta reação também surgiu de casais homoafetivos, feminino inclusive. Chegou-se ao ponto em um momento da mamãe Virginia receber as felicitações desta forma: parabéns "mamãe". Foi bem confuso entender o que significava mamãe entre aspas, meio mãe? Fake mãe? Pãe? É muito importante a mãe que não gera estar equilibrada para não entrar nesta paranoia do seu papel na gestação, e da mamãe que gera também estar pronta para dar um apoio mútuo. É por estas de outras que a gente acaba se tornando militante, dialogar sobre o que incomoda é importante sim.

Nessa fala, uma das mães tensiona o fato de que, ao contar sobre estarem esperando bebês, a reação das pessoas era parabenizar apenas a mãe gestante pela maternidade. O projeto da dupla maternidade, conforme Amorim (2019), precisa de alguma maneira ser publicizado, registrado e compartilhado, a fim de que sejam ensejadas discussões sobre as especificidades dessas famílias. Outro aspecto ressaltado pelas mães entre suas vivências na etapa da gestação, nesse mesmo sentido, está ligado a questionamentos de outras pessoas sobre quem seria "o pai" do bebê, a exemplo do relato a seguir:

Ouvi coisas essa semana que até então não tinha ouvido, coisa do tipo: "quem é o pai?" "Dedo não faz filho!" "Como os filhos são seus se ela tá grávida?" "As crianças vão ser bandido, pq não tem pai!" "De quem é o óvulo?" "Mulher não engravida outra" "levou um chifre e tá assumindo". É difícil entender que nós engravidamos juntas? A decisão dela gerar foi tomada por nós duas, nós escolhemos assim e passamos por todo processo juntas. A gravidez não é só sobre gerar, a gravidez é sobre viver a gestação […]

Como visto anteriormente, a ideia de que é necessário que uma família seja composta por uma mãe e um pai é fundada na concepção tradicional de família, histórica e culturalmente reiterada como possibilidade única nessa construção. No relato da mãe, está presente uma necessidade de retomar com interlocutores que sua família existe e deve ser respeitada, seja qual for o formato. Cabe ressaltar que o "modelo tradicional" a que aludimos tem estreita relação com papéis de gênero desempenhados por pai e mãe no contexto da criação de uma família (Uziel & Grossi, 2006).

Essas relações tradicionais de gênero fundamentam-se em uma longa tradição, arraigada, de dicotomia homens x mulheres, baseada sobretudo nos aspectos biológicos de cada um.  Por isso é possível dizer que os casais de mulheres construindo e compartilhando suas famílias tensionam modelos estabelecidos, tanto por representarem uma fissura na ideia convencional de maternidade, dividida entre uma mãe e um pai com papéis bem definidos, quanto por colocarem em xeque determinados estereótipos associados, a exemplo do que traz a fala a seguir:

Gente por que uma mãe sapatão que performa "masculinidade" não pode querer ser mãe? Não pode sonhar, desejar e querer a maternidade? A gente tem mesmo quer ser o "pai", será que é tão zuado assim, eu ser uma mãe que ama passar o dia de cueca samba canção e que não gosta nem um pouco de batom e coisas que me fazer ficar com um aspecto "feminino", pois bem, ontem enquanto eu conversava com o meu vizinho eu comentei com ele que eu e Gladys estamos à espera do Harvey e Pier, o infeliz olhou pra minha cara e falou: Ai que legal você vai ser "pai". Minha única reação foi responder: Que pai o que, tá me tirando? Eu vou ser mãe! […]

Desde a inserção no mundo, o indivíduo apreende referenciais de gênero e sexualidade que atuam no sentido de organizar a legitimação do exercício de determinadas funções e, além disso, guiam sua inserção na vida familiar (Pederzoli, 2017). A colocação da influenciadora sugere que ocorre um processo quase automático de buscar estabelecer a distinção entre "mãe" e "pai" a partir de um referencial heteronormativo, com que se tem mais familiaridade. É importante ter em mente essa dinâmica, que acaba por perpassar várias das experiências dessas mães e se mostra muito flagrante na etapa da gestação. Ao mesmo tempo em que demonstram um movimento de resistência a prescrições culturais e colocam-se de maneira a legitimar e demarcar as relações familiares e diferentes formas de viver a maternidade e a gestação, também vão buscar narrar experiências que naturalizem os seus processos.

Parto

Trata-se principalmente de relatos do dia em que ocorreu a chegada das crianças, informações sobre o recém-nascido, compartilhamento das emoções e vivências experienciadas pelas mães nos momentos que antecedem essa etapa importante e no momento do parto propriamente dito, ressaltadas sempre as particularidades da experiência da dupla maternidade e atravessamentos socioculturais que a constituem. Nos relatos coletados, observa-se como o momento do parto é vivenciado de maneira singular e passa por particularidades relacionadas não somente aos processos restritos ao corpo, mas também aqueles que englobam suas subjetividades e emoções próprias, como nota-se a seguir:

Audre chegou no dia [supressão]. A noite anterior foi bem difícil, Rosely passou a noite em claro eu sabia que ela chegaria no dia seguinte, não aguentava mais esperar a chegada dela, estávamos ansiosas para ver esse rostinho, no dia seguinte acordei muito mal sentia contração de 5 em 5min, massagens eram constantes. Fiquei lá até a noite, já sabia que não seria um parto normal, pois gravidez era de alto risco e mesmo assim tentamos, porém não teve jeito, ela nasceu, aquele sonho foi realizado, chorei horrores vendo aquela coisinha tão pequena

Conforme indica estudo de Oliveira et al. (2010), o cuidado e o conforto oferecidos por parte da equipe também são aspectos importantes para a superação de dificuldades que podem se apresentar, muitas vezes, em forma de sensações dolorosas e medo. Esse conforto ultrapassa a atenção e as orientações, configurando-se em encorajamento, que além de auxiliar a vivência desse período, contribui com a potencialização do poder da mulher na condução do parto, como evidencia-se no seguinte relato:

Estavam também minha mãe que com seu olhar de longe nos passou paz, amor e força, nossa fotógrafa maravilhosa, que registrou lindamente esse momento único na nossa vida, nossos pediatras, Doutora [supressão de nome] que com seu abraço e jeitinho doce completava junto com Dubeux a nossa linda equipe e obvio que a luz que mais brilhava naquela noite vinha dos olhos da minha esposa Virginia que estava irradiante […]

Repara-se na importância de um ambiente em que estas mulheres se sintam cuidadas, com oferta de afeto, atenção e carinho, que irão favorecer a segurança, o bem-estar e o alívio das sensações dolorosas do trabalho de parto. Nota-se, também, a relevância desse momento para as mulheres que narram detalhes do dia do parto no seu perfil do Instagram. São narrativas pessoais, acerca de si, sua família e o bebê que está chegando. Ao produzir essas narrativas de si, hoje marcadas pela digitalização, as mães afirmam novos modos de inscrição no mundo, de compreensão de si mesmas e da construção da realidade. Assim, são partilhados sentimentos relacionados à espera, como medo, ansiedade e amor:

[…] penso que a qualquer dia e qualquer hora os meninos podem chegar. A ansiedade é grande, o amor também… dia deste falei num grupo de mães que a sensação é que estamos numa subida de uma montanha russa, no carrinho bem devagar, ladeira altíssima, aí você olha pra baixo e pensa: pra que fui inventar de andar de montanha russa? Logo em seguida à vista te chama atenção, e você percebe que a única saída é descer logo por que você sabe que vai ser incrível, mesmo com o medo que você está ali naquele momento. Pronto você nunca vai estar, mas me diz mesmo, quando você se arrependeu de andar de montanha russa? Podem chegar assim que vocês estiverem prontos meus amores, vocês terão mães extremamente dedicadas.

E, assim como observamos nas etapas anteriores, também quando as postagens se referem ao dia do parto, à expectativa e à chegada dos bebês propriamente, estão presentes manifestações relacionadas à singularidade da vivência da dupla maternidade e da constituição de famílias que rompem com os padrões estabelecidos pela norma cultural:

37 semanas se passaram e nossos Ibejis nasceram.
O momento mais esperado de nossas vidas, não foi fácil ser um casal de sapatão pretas, de quebrada e mãeconheiras sendo atendidas por médicos brancos, racistas e cheios de fobias, prontos para destratar e acabar com a gente. Ouvimos tantas coisas que em vários momentos ficamos triste e se sentindo culpadas por não ter plano de saúde. O que salvou a gente foi o atendimento que tivemos com a [supressão de nome].

É possível ver que a vivência das diferentes etapas da maternidade é atravessada também por intersecções de raça e tensionamentos sociais. Nesse caso, a mãe faz referência às incidências do racismo institucional, que combinado à opressão relacionada ao gênero e a sexualidade, cria obstáculos com que essas famílias se deparam nas diferentes etapas, inclusive o momento do parto. Ainda que seja enquadrado na etapa do parto, em decorrência de ser também um relato sobre a chegada dos bebês e aspectos correlatos, essa é uma questão que contempla as diferentes etapas, e que, assim, acreditamos que deve ser tensionada constantemente quando buscamos discutir essas vivências e experiências compartilhadas pelas mães.

Em linhas gerais, identificamos, na etapa associada ao parto e à chegada das crianças, aspectos que tocam as emoções dessas mães e as singularidades da expectativa e dos papéis assumidos nessa etapa por duas mães na dupla maternidade. Observamos uma preocupação em informar - e serem informadas - por uma audiência estabelecida na plataforma e, ainda, a importância de outros marcadores identitários envolvidos na espera que culmina na chegada das crianças e no desenvolvimento das famílias que estão sendo construídas.

Primeiro Ano

Constam postagens que descrevem os momentos de chegada em casa; a adaptação à amamentação por uma ou ambas as mães; desafios relacionados ao retorno ao lar e à mudança de rotina, como o cansaço, a busca por compreender e atender as demandas dos bebês e o impacto na relação do casal; primeiras experiências das crianças e a rotina da família; as peculiaridades da gemelaridade; demonstrações de afeto pelos filhos; e, por fim, questões associadas à discussão sobre genética e laços familiares, bem como situações em que se depararam com falta de conhecimento de outras pessoas sobre a constituição da dupla maternidade e a ausência de representação de suas famílias em produtos de consumo, como será descrito a seguir.

Nas manifestações atinentes à amamentação, cabe lembrar o que Carvalho e Diniz (2020) apontam a partir do seu estudo: a dupla amamentação é uma particularidade da família constituída por duas mulheres e a indução da lactação pela parceira que não foi responsável pela gestação, seja espontânea ou artificialmente, representa uma possibilidade de intensificação do vínculo afetivo entre essa mulher e o bebê gerado:

Sabia que é possível ser mãe não gestante e amamentar? Pois é… eu escolhi em dividir a amamentação com a minha companheira Ruth. Se amamentar um bebê só já é super cansativo imagine dois, imagina engravidar, passar por todo o peso da gestação hormônios, dores, cansaço, humor e entre outras coisas, depois de tudo isso ainda ter que amamentar dois bebês, pra mim não seria justo deixa minha mina passar por tudo isso sabendo que eu poderia ajudar ela a passar por todo o processo da amamentação. Então escolhi passar pelo processo de Introdução a Lactação. Posso falar que amamentar me transformou, me amadureceu e evoluiu a minha vida completamente me colocou em maior contato com as minhas ancestrais, que tiveram o direito de amamentar seus filhos negado para se torna amas de leite e alimentar os filhos das Sinhás.

Faz sentido retomar, aqui, uma singularidade já identificada em outras etapas, haja vista que ela acaba por atravessar grande parte das experiências de pessoas negras: o intercruzamento de diferentes categorias de opressão, que se destaca nas postagens produzidas pelas mães negras que fazem parte dessa pesquisa. Podemos pensar essa relação a partir da ideia de interseccionalidade, que seria, nas palavras de Akotirene (2018, p. 16), um "sistema de opressão interligado". Ou seja, no caso dessas mães, há diferentes desafios a serem enfrentados, derivados de distintos eixos de opressão: são mulheres, mães, em relação homossexual, e negras. Isso aparece de forma recorrente nas falas aqui destacadas, pela própria demarcação e a reivindicação política desses lugares por elas.

Observam-se, também, alguns dos desafios enfrentados pelas mães em relação à amamentação, sejam eles relacionados a aspectos biológicos, psicossociais ou emocionais. Para além das dificuldades próprias deste momento, os relatos também abrangem adversidades associadas à rotina, à adaptação, cansaço e até mesmo ao impacto na relação do casal. Durante o puerpério a mulher pode enfrentar privação de algumas necessidades, como impacto no sono, na alimentação, sobrecarga diária de afazeres e sofrimento mental (Mazzo & Brito, 2016):

Ninguém disse que seria fácil, mas também não disseram que seria tão difícil. Às vezes parece ser quase impossível, um bebê demanda muito tempo, muita atenção e muita dedicação, imaginem dois. Mas existe algo mágico na maternidade, onde o difícil não é tão difícil assim, o cansaço não é tão cansado, uma noite em claro é curada com um sorrisinho deles […]

Na vivência desse período, as mulheres podem se deparar com aspectos que contrariam seu bem-estar na condição de puérpera. Entretanto, observa-se, nos presentes relatos, a manifestação de emoções como gratidão e carinho pela maternidade e pela experiência compartilhada com a parceira. Em meio aos desafios, também há diversas oportunidades de visualizar o compartilhamento das alegrias e prazeres da maternidade. Nesse sentido, destaca-se a questão afetiva que de maneira recorrente atravessa as falas dessas mulheres, presente tanto em declarações de amor para os filhos como em manifestações de admiração pela parceira que divide consigo os obstáculos e emoções da dupla maternidade:

Eles tinham acabado de chegar em casa, tudo ainda era estranho, até a própria casa. Eu a vi mudar ao longo de 9 meses, 38 semanas, barriga que crescia, peitos que fartavam, desejos, dores, incômodos, fomes, medos. Ela foi se tornando nova, outra, mudada, diferente. Quando eles chegaram em casa ela também chegou, não saiu mais do lado deles. Com sono leve acorda a qualquer movimento, mesmo que não precise, amamenta em pé, deitada, dormindo, amamenta os dois juntos quando precisa, põe no sling, carrinho, berço, cadeirinha, com uma mão só. Fui aprendendo a ser junto, ao lado, perto, olhando, entendendo. Ela é a mãe que eu admiro, e que desejo ser por semelhança. Te amo e obrigado por seguir sendo que é <3

As manifestações centradas no compartilhamento da rotina muitas vezes abrangem também descrições do desenvolvimento dos filhos, a forma como estão crescendo e suas particularidades:

Bom dia titixs! Quem vê quietinhos assim não imagina que fica só 5 minutos. Os bebês estão com 42 dias e estamos nos adaptando cada dia melhor, já temos rotina de sono à noite e sonecas durante o dia, eles acordam apenas uma vez na madrugada e depois só entre 6:00 e 7:00 da manhã [...]

Percebemos, a partir da análise das falas enquadradas na etapa do primeiro ano, que muitos dos desafios e vivências relatados são comuns desse período — mudanças físicas e psicológicas nas mães, adaptação às novas rotinas, busca por conhecer e atender as demandas das crianças, início da amamentação, alterações na dinâmica do casal, entre outros aspectos. Apesar disso, somam-se às dificuldades do puerpério desafios como a demanda constante por encontrar formas de reconhecer e "fazer valer" a sua família; implicações das questões genéticas no desenvolvimento das crianças; questões interseccionais e o intercruzamento de opressões de distintas naturezas; as singularidades da gemelaridade e da dupla amamentação; entre outras situações identificadas.

 

Considerações Finais

Observou-se que a dupla maternidade é apresentada por essas mulheres com naturalidade e dentro do mesmo ambiente de amor, descobertas e desafios que comumente marcam os relatos sobre ser mãe. No entanto, as experiências relatadas pelas mães são sempre atravessadas pelas especificidades de ser mãe em uma relação homossexual e, dessa forma, uma família que "escapa" ao referencial heteronormativo que historicamente baliza o imaginário social e cultural sobre parentesco. Essa não é, aos olhos das mães e seus filhos, uma forma de inadequação. No sentido contrário, as falas dão conta de mostrar uma dupla maternidade repleta de vivências de cuidado, construção de vínculos e descoberta diária das mães e seus filhos. As narrativas digitais tornam possível que esses relatos se disseminem e que públicos diversos sejam impactados por essas manifestações, sejam eles famílias em arranjos similares que, dessa maneira, encontrem também amparo e reconhecimento, ou pessoas que ainda têm dúvidas ou ressalvas sobre famílias constituídas a partir de casais de mulheres.

Trata-se de uma das principais vantagens reconhecidas no estudo em rede, identificar que as narrativas construídas funcionam efetivamente nesse duplo movimento próprio da intersubjetividade: as influenciadoras assumem um papel de referência neste nicho que ocupam, tomando para si muitas vezes a responsabilidade de conscientizar, informar e ajudar outras famílias. Ao mesmo tempo, para elas estar ali e partilhar da sua vida em família é uma forma de reconhecer-se enquanto tal e de encontrar um espaço seguro para aprender e trocar. Outra característica que se destaca e é decorrente do fato de esse ser um estudo que se debruça sobre material digital é o fato de que essas manifestações acabam, pelo caráter de permanência, ficando disponíveis para uma análise diacrônica. Combinado à divisão das temáticas em etapas do desenvolvimento, é o que dá a essa proposta de pesquisa um caráter longitudinal, que permite colocar em perspectiva as singularidades de cada momento da vida dessas famílias quando pensamos em discutir a forma como a dupla maternidade é por elas abordada.

Nas diferentes etapas, é possível perceber o tensionamento de estereótipos ligados não apenas à dupla maternidade, mas à maternidade e à constituição de vínculos familiares como um todo. Isso porque se entende que uma constante da discussão aqui empreendida é a problematização de premissas que sustentam a forma como historicamente são compreendidas as relações de parentesco e os papéis de cuidado. Como visto, o imaginário sociocultural que rege questões relevantes da vida em sociedade como legislação e direitos, representatividade midiática, acesso a bens de consumo, oferta e utilização de serviços de saúde, entre tantas outras, se constrói sobre pilares heteronormativos e papéis de gênero específicos. Daí se origina o desconhecimento, o preconceito e muitas vezes as violências de diversas naturezas que enfrentam essas mães em dupla maternidade.

O que se pode apreender dos relatos construídos pelas influenciadoras da dupla maternidade é, no entanto, justamente um tensionamento dessas ideias pré-concebidas. O que "legitima" a maternidade quando há duas figuras de cuidado? Como são constituídos os vínculos familiares que não se sustentam nos laços biológicos? O que há de distinto e o que há de similar na experiência de maternidade de duas mães?

Não há aqui a possibilidade de não enfrentar essas questões por parte dessas mulheres. A exemplo do que já foi discutido durante a análise, sejam as manifestações diretamente vinculadas à política institucional ou não, o próprio mostrar-se e reivindicar seu direito de ser apenas mais uma família é uma demanda política e que configura uma forma de militância. Existir é, por si só, tensionamento de pilares constitutivos da percepção social sobre o desenvolvimento humano que deram origem a preconceitos que acabam por desumanizar pessoas e suas experiências afetivas e familiares.

Em suma, pode-se dizer que, nas diferentes etapas do desenvolvimento das crianças e da construção das singularidades da vida em família, são apresentadas, nas postagens das mães influenciadoras, muitas das suas descobertas, experiências e cotidiano. Essa característica vai ao encontro precisamente da concepção de influenciadores digitais e da importância do compartilhamento de suas experiências como referência a um público que se informa e se reconhece a partir das narrativas por eles construídos em plataformas como o Instagram. Em paralelo, partilhar com sua audiência as dificuldades na criação de crianças, as etapas de aquisição de habilidades e reconhecimento de características, as adversidades decorrentes da homofobia, da intolerância e das, muitas vezes, inefetivas inclusões de famílias não-heterossexuais nos espaços de sociabilidade e promoção de saúde, é uma forma de situar-se e reivindicar-se no mundo para as próprias mães. Espera-se que em breve essa tomada de posição não seja tão necessária e um processo que demande tanta resistência e coragem por parte dessas mães. Que em um futuro não tão distante a dupla maternidade seja enxergada por todos como é por seus filhos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Betina Nelsis Aymone - aymone.betina@gmail.com

Recebido em: 10/07/2023
Aceito em: 10/04/2024

 

Financiamento: O presente estudo foi financiado pela bolsa CAPES de mestrado da primeira autora.

Agradecimentos: As autoras agradecem ao grupo de pesquisa NUDIF do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a todas as pessoas que estiveram envolvidas na produção deste estudo.

 

 

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