Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e77570, doi:10.12957/epp.2024.77570
ISSN 1808-4281 (online version)

 

CLIO-PSYCHÉ

 

Henry Garrett: Raça e Integração Escolar nos Estados Unidos no pós-II Guerra Mundial

 

Henry Garrett: Race and School Integration in the United States After World War II

 

Henry Garrett: Raza y Integración Escolar en los EE.UU después de la II Guerra Mundial

 

Geandra Denardi Munareto a, Maria Lucia Boarini a

a Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O presente texto objetiva analisar a persistência das noções de raça no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial a partir das ideias do psicólogo estadunidense Henry Garrett (1894-1973). Para isso, utilizamos como fonte seus trabalhos publicados, bem como as transcrições dos depoimentos onde foi convidado a dar seu parecer sobre a questão da separação das instituições de ensino. Tal estudo se justifica tanto pela trajetória acadêmica de Garrett como pela sua participação destacada nos julgamentos que levaram a Suprema Corte dos Estados Unidos a decretar o fim da segregação escolar no país em 1954 e nas sucessivas tentativas de reverter a nova legislação, de forma a impedir a integração racial nos espaços públicos, estabelecido pelas leis Jim Crow. Colocando-se como defensor da separação das escolas, Garrett empregou seu conhecimento para argumentar que a criação de colégios racialmente mistos traria prejuízos para os alunos, devido à grande disparidade de inteligência e personalidade apresentados entre eles.

Palavras-chave: história da psicologia, raça, pós-segunda guerra mundial.


ABSTRACT

This text aims to analyze the persistence of notions of race in the post-World War II context based on the ideas of the American psychologist Henry Garrett (1894-1973). We used his published works as a source, as well as the transcripts of the testimonies in which he was invited to give his opinion on the issue of school segregation. This study is justified both by Garrett's academic trajectory and his outstanding participation in the trials that led the Supreme Court of the United States to decree the end of school segregation in 1954 and in the successive attempts to reverse the new legislation to prevent racial integration in public spaces, established by the Jim Crow laws. As a defender of the segregated schools, Garrett used his knowledge to argue that the creation of racially mixed schools would be detrimental to the students, due to the great disparity in intelligence and personality presented between them.

Keywords: history of psychology, race, post-World War II.


RESUMEN

Este texto tiene como objetivo analizar la persistencia de las nociones de raza en el contexto posterior a la Segunda Guerra Mundial a partir de las ideas del psicólogo estadunidense Henry Garrett. Utilizamos como fuente sus trabajos publicados, así como las transcripciones de los testimonios donde fue invitado a dar su opinión sobre la separación de las instituciones educativas. Tal estudio se justifica tanto por la trayectoria académica de Garrett como por su destacada participación en los juicios que llevaron a la Corte Suprema de los Estados Unidos a decretar el fin de la segregación escolar en 1954 y en los sucesivos intentos de revertirla, con el fin de impedir la integración racial en los espacios públicos. Colocándose como defensor de la segregación escolar, Garrett usó su conocimiento para argumentar que la creación de escuelas integradas perjudicaría a los estudiantes, debido a la gran disparidad de inteligencia y personalidad que presentaban entre ellos.

Palabras clave: historia de la psicología, raza, post-Segunda Guerra Mundial.


 

 

Em 1971, o periódico oficial da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), o The UNESCO Courrier, publicou um extenso artigo do psicólogo Otto Klineberg (1899-1992), intitulado Race and IQ. Nele, o professor da Universidade de Columbia conta como, na virada da década de 1940 para 1950, alguns intelectuais foram tomados por um certo otimismo perante a possibilidade de declínio das teorias de superioridade racial no pós-Segunda Guerra. Para Klineberg (1971) há duas décadas, havia razão para se acreditar que a noção de uma hierarquia composta por características raciais ou inatas havia desaparecido do pensamento científico.

Isso porque, na época, parecia ter se disseminado nos debates acadêmicos a ideia de que a inferioridade de certos grupos étnicos ou raças já não possuía base científica válida e as crescentes ofensivas educacionais promovidas por sociólogos - como Gunnar Myrdal (1898-1987), nos Estados Unidos - tinham contribuído para melhorar a percepção pública sobre essa questão. Apesar disso, Klineberg (1971) alertava que a crença nas diferenças psicológicas estava longe de desaparecer, não só nos Estados Unidos como em outros países e não apenas na população em geral, mas também entre os intelectuais da época.

Segundo ele, ainda na década de 1960, continuavam sendo publicados estudos que afirmavam existir diferenças biológicas inatas entre as raças. Em especial, cita os trabalhos do antropólogo Carleton Coon (1904-1981), The Origins of Races (1962); dos economistas Nathaniel Weyl (1910-2005) e Stefan T. Possony (1913-1995), The Geography of Intellect (1963) e o artigo do psicólogo Arthur Jensen (1923-2012), How far can we boost IQ and scholastic achievement?, publicado em 1969 na Harvard Educational Review. Essa constatação feita por Klineberg é corroborada por historiadores tais como Schaeffer (2008), Tucker (2002), Reardon (2005), Selcer (2012), Brattain (2007) e Jackson (2005).

O fato de ter havido uma continuidade das discussões sobre raça para além da década de 1940 não significa que as concepções sobre o assunto tenham permanecido inalteradas. As discussões que ocorreram no pós-Segunda Guerra eram bastante distintas daquelas que se deram no início do século XX. A descolonização, a luta pelos direitos civis e contra o Apartheid, além da Guerra Fria, representaram variáveis importantes, somadas às próprias transformações na esfera científica, ocasionadas pela teoria sintética da evolução (ou síntese evolutiva moderna) 1, levaram os cientistas a revisitarem noções fundamentais, relacionadas ao uso de raça como dispositivo de ordenação dentro das pesquisas sobre diversidade humana. Nessa nova conjuntura, a gama de afirmações científicas aceitáveis já não era mais a mesma que a do período pré-1945.

As transformações no debate intelectual não se reduziram, portanto, apenas a questões metodológicas ou relacionadas ao emprego de terminologias. Houve um repúdio generalizado a discursos que faziam parte do repertório científico nas décadas anteriores, como a defesa de uma superioridade branca, o antissemitismo, a condenação à miscigenação e o apoio de medidas discriminatórias e de segregação. Com isso, houve uma maior circunscrição daqueles que defendiam tais ideais à esfera da extrema-direita, onde tais posições ainda eram consideradas válidas, sem que necessariamente ocasionassem uma exclusão automática de tais figuras dentro de associações profissionais ou da esfera acadêmica.

Uma das indagações que dividiu estudiosos na década de 1940 e 1950 dizia respeito à existência de traços de personalidade e de diferenças intelectuais entre grupos humanos. Nela, tentou-se acomodar diferentes visões e algumas possibilidades foram deixadas em aberto, de forma que estudos que constatassem a diferença entre grupos humanos não só em termos físicos, mas também mentais, pudessem ser considerados válidos (Reardon, 2005). De acordo com Brattain (2007), isso abriu espaço para que os defensores de um repertório ancorado em ideias de hierarquia e supremacia racial pudessem retornar ao centro do debate.

Embora essa falta de consenso tivesse marcado o período em termos de debate racial, isso não significou que algumas associações profissionais também tenham assumido essa postura. No ramo da psicologia, por exemplo, a posição oficial da Society for the Psychological Study of Social Issues (SPSSI), a partir de 1956, foi de repúdio à noção de que haveria disparidades intelectuais inatas entre as raças. Isso, no entanto, não inibiu as dissidências e alguns acadêmicos dentro da área colocaram-se na contramão dessa tendência. Parte deles, inclusive, continuava ligado a certas linhas do pensamento científico da primeira metade do século XX não só sobre o estudo das raças, mas também da eugenia e da higiene racial alemã. Eles empregaram seu conhecimento para defender ideais de pureza racial, condenando a miscigenação racial e defendendo regimes de segregação, como as leis Jim Crow e o Apartheid (Winston, 1998, p.180).

Nos Estados Unidos, o psicólogo Henry Edward Garrrett (1894-1973) teve um papel importante na produção e divulgação desse tipo de pensamento, especialmente durante o período da luta pelos Direitos Civis (1954-1968). Como psicólogo e professor de uma renomada universidade, empregou sua expertise e seu prestígio para evitar que a integração das instituições públicas de ensino fosse implementada nos estados da região sul dos EUA. Defensor da ideia de que as raças possuíam traços de personalidade e níveis intelectuais diferentes, argumentava que a separação dos alunos com base em sua cor era benéfica, devido às grandes disparidades de QI entre crianças brancas e negras. Segundo Garrett, essa disparidade era tão intensa que causaria um duplo prejuízo para os estudantes caso fossem colocados na mesma classe. Embora os argumentos apresentados por Garrett não tenham sido o bastante para convencer os juízes da Suprema Corte, que decretaram o fim da segregação das escolas em 1954 a partir de seu veredicto em Brown v. Board of Education, ao examinarmos sua participação como testemunha nos processos envolvendo a questão da integração dos espaços escolares percebemos que sua visão, muitas vezes, foi aceita como válida perante os tribunais.

Assim sendo, essas esferas passam a conferir uma maior legitimidade a um tipo de pensamento que dentro dos círculos acadêmicos começava a ser questionado por sua falta de validade científica. O caso de Garrett, portanto, nos oferece um exemplo de como noções sobre raça, ancoradas em noções de hierarquia, ainda permaneceram no cenário do pós-Segunda Guerra. Ele também nos oferece um vislumbre de como a psicologia foi uma das vias pelas quais estas ideias encontraram fundamento.

Diante do destaque de Garret na defesa da existência da hierarquia das raças, temos como objetivo refletir sobre o fundamento da sua arguição, pavimento da sua trajetória acadêmico-profissional. Para tanto, utilizamos como fontes, e analisamos sob a perspectiva histórica, sua produção intelectual, que inclui publicações em revistas e livros, bem como as transcrições dos depoimentos onde foi convidado a dar seu parecer sobre a questão da separação das instituições públicas de ensino. As transcrições, bem como algumas de suas obras completas, podem ser encontradas no site Archive.org. Somados a isso, estudos sobre a atuação de Garrett nos ajudaram a entender os espaços que ele ocupou durante seu percurso profissional e que nos permitiu situá-lo dentro do contexto social e político e intelectual de sua época. (Thorne, 1976; Winston, 1998, Tucker, 2002).

A trajetória acadêmico-profissional de Henry Garrett

Graduado pela Universidade de Richmond, Garrett iniciou sua carreira acadêmica na Universidade de Columbia. Lá, além de concluir seu mestrado e doutorado em Psicologia, ingressou no corpo docente do Departamento de Psicologia, ganhando proeminência e publicando uma parte importante de seus trabalhos como Statistics in Psychology and Education (1926); Great experiments in Psychology (1930); Psychological tests, methods, and results (1933), em co-autoria com Matthew R. Schneck; The age factor in mental organization (1935), escrito juntamente com Alice I. Bryan e Ruth E. Perl e Psychology (1950). Destes, três possuem tradução em português: Psicologia (1950), Estatística na Psicologia e na Educação (1958), e Grandes Experimentos da Psicologia (1979), tendo este último sido dividido em dois volumes. Sobre a atuação de Henry E. Garrett enquanto professor e pesquisador, o relato do psiquiatra Frederick C. Thorne (1976) sobre suas experiências como aluno do curso de Psicologia da Universidade de Columbia, publicado em forma de artigo no Journal of the History of the Behavioural Sciences nos fornece algumas pistas. Segundo ele, Garrett lecionou na instituição de 1923 a 1955, tendo atuado como Chefe do Departamento de 1941 a 1955. Uma parte importante de suas atividades se deu durante a época classificada por Thorne como The Golden Age Of Columbia Psychology. Essa "era de ouro" corresponderia ao período entre as décadas de 1920 e 1940, quando a instituição, combinando excelência tanto no ensino quanto em seus programas de pesquisa, passou a se destacar como uma das referências nacionais dentro do campo dos estudos psicológicos. Para Thorne (1976), a construção da abordagem estatístico-experimental para o estudo do comportamento deve-se a importantes psicólogos, dentre eles Henry Garrett.

A proeminência atingida pelo Departamento de Psicologia se deu não só em razão do desenvolvimento de estudos voltados à aplicação de uma abordagem experimental-estatística do comportamento humano, mas também pela produção e publicação de obras reconhecidas no meio científico tais como Applied Psychology, de T. Poffenberger; Abnormal Psychology, de Harry L. Hollingworth, Historical Introduction to Modern Psychology, de Gardner Murphy; Comparative Psychology, de Carl J. Warden e Statistics in Psychology and Education, de Henry E. Garrett, bem como "a series of encyclopedic textbooks summarizing all of the important fields" (Thorne, 1976, p. 161). Tal fato deve-se, também, a presença de um corpo docente composto por "psicólogos notáveis" 2.

Na época em que sucedeu o professor Albert T. Poffenberger como chefe de Departamento, Garrett era o que provavelmente estava mais "próximo em linha de autoridade e poder" do antigo líder, sendo descrito por Thorne (1976) como um rigoroso estatístico, detentor de opiniões bastante definidas e pouco tolerante com relação a programas de ação sociais e clínicas e cujas principais contribuições se destacavam nas áreas de metodologia e crítica de pesquisa.

Para além de sua atuação como professor, Garrett participou de sociedades de classe, tendo sido presidente da Psychometric Society em 1943, da Eastern Psychological Association em 1944 e da American Psychological Association (APA) em 1946. Além disso, integrou os quadros da American Association for the Advancement of Science (AAAS) e do National Research Council (Garrett, 1980). Também foi editor geral da American Psychology Series por mais de dez anos e editor da revista Psychometrika. Após a sua saída da Universidade de Columbia, em 1955, aceitou o cargo de visiting professor no Departamento de Educação da Universidade de Virginia.

Brown v. Board of Education e a defesa da segregação racial

Um dos temas que eram caros para Henry Garrett dizia respeito à existência de diferenças intelectuais e psicológicas entre raças, especialmente entre brancos e negros. Desde seu tempo em Columbia, é possível encontrar artigos de sua autoria que versavam sobre a questão. Um exemplo é o texto Comparison of Negro and White Recruits on the Army Tests Given in 1917-1918, publicado no periódico The American Journal of Psychology em outubro de 1945. Garrett (1945) apresenta uma crítica à análise que o antropólogo Ashley Montagu faz dos resultados obtidos através da aplicação dos testes Army Alpha Test e Army Beta Test, que visavam medir o grau de aptidão e inteligência dos recrutas convocados pelo exército americano durante a Primeira Guerra Mundial. Calculando o valor médio dos scores por região de origem e por raça daqueles que participaram da avaliação, Montagu destacava que os soldados oriundos do norte dos Estados Unidos teriam obtidos resultados equivalentes ou mesmo melhores do que os brancos da região sul. Tais dados, segundo ele, apontavam que as diferenças raciais não eram resultantes de fatores inatos, mas se deviam a causas socioeconômicas.

Garrett era um crítico de tal interpretação e assim se manteria ao longo de sua carreira. Ele apontava que a avaliação de Montagu se baseava em uma série de falhas metodológicas, como utilização de amostras problemáticas e erros de interpretação (Garrett, 1945, p. 480), e argumentava que as conclusões apresentadas por Montagu eram frágeis, devido a seu excesso de dogmatismo. Lamentava, ainda, que os "entusiastas raciais" (racial enthusiast, no original) (Garrett, 1945, p. 494) não eram capazes de separar o estudo científico das diferenças raciais dos seus interesses pessoais e emocionais e completava: "aparentemente, alguém assim sente que encontrar qualquer diferença de alguma forma implica 'inferioridade' e 'superioridade'; portanto, as diferenças não devem ser encontradas, ou quando encontradas devem ser imediatamente explicadas (Garrett, 1945, p. 494, tradução nossa) 3. Essa mesma tônica marcaria o discurso de Garrett ao longo de sua carreira sempre que a questão da igualdade entre as raças era discutida.

Embora, em seus textos, Garrett já demonstrasse sua posição, engajando-se em debates com outros intelectuais sobre esse assunto e criticando posições contrárias às suas, até a década de 1950, suas opiniões haviam ficado mais ou menos restritas dentro dos círculos acadêmicos. No entanto, isso viria a mudar quando se iniciaram os processos questionando a legalidade da segregação racial nas instituições públicas de ensino, e que mais tarde culminaria com a decisão da Suprema Corte americana em favor da dessegregação em Brown v. Board of Education. A partir daí, Garrett passaria a se engajar cada vez mais no debate público, aliando-se ao movimento segregacionista e a grupos e indivíduos pertencentes a extrema-direita 4 de vários países (Tucker, 2002; Winston, 1998, Jackson, 2005).

Nos Estados Unidos, a restrição de alunos baseados em sua cor era uma prática sancionada pela lei e bastante disseminada, especialmente nos estados do sul. Assim, tanto no ensino infantil, quanto na educação de adolescentes e mesmo dentro das Universidades, era possível recusar a matrícula de alunos negros apenas em razão de sua etnia.

Tal convenção se estabeleceu a partir da decisão da Suprema Corte em Plessy v. Ferguson (1896), que determinou que as legislações que estabeleciam a segregação racial de espaços públicos não violavam a Constituição dos Estados Unidos, desde que as instalações oferecidas para ambas as raças fossem equivalentes em qualidade. Essa doutrina, que ficou conhecida como "separados, mas iguais" (Patterson, 2001) forneceu o amparo para a criação das leis Jim Crow.

É importante destacar, no entanto, que a separação dos espaços públicos e a restrição ao acesso a cidadãos com base em sua cor já era uma realidade nos estados do sul antes de Plessy v. Ferguson, embora nem sempre de forma regulada por lei. Ainda assim, algumas unidades da federação, como o Tennessee, já haviam introduzido decretos estaduais nesse sentido, como a lei de 1881 que sancionava a segregação de vagões ferroviários (Brown & Webb, 2007). O que mudou após Plessy é que tais normas foram reconhecidas pela Suprema Corte como estando de acordo com os preceitos constitucionais, permitindo assim que novas regras semelhantes fossem criadas. Assim, durante o final do século XIX e início do XX, os estados do sul dos Estados Unidos promulgaram uma série de regulamentos que determinavam a segregação racial em todos os aspectos da vida pública. De acordo com Brown e Webb (2007), a promulgação das leis Jim Crow deram início a nova era de radicalização das políticas raciais nos Estados Unidos, na qual os habitantes do sul passaram a recorrer não só ao poder da lei, mas também a táticas de violência e intimidação como meio de assegurar a exclusão da população negra.

Embora as leis Jim Crow variassem de estado para estado, elas resultaram em uma completa separação dos espaços comuns de convivência, como transporte, hospitais, restaurantes, cemitérios, igrejas, locais de lazer e escolas. Apesar de que, em teoria, essa segmentação era considerada constitucional a partir do princípio de que tais instalações fossem iguais em estrutura, na prática não era o que ocorria. A provisão de serviços para a população negra recebia recursos muito mais escassos, especialmente em áreas como moradia, saúde e educação. Segundo Brown e Webb (2007), em 1910, por exemplo, a Carolina do Sul gastava em média $5.95 por estudante negro, ao passo que as escolas exclusivas para brancos recebiam em torno de $40.68 por aluno. Em alguns casos, sequer eram disponibilizados certos tipos de serviços. Isso ampliou as desigualdades raciais já existentes na sociedade estadunidense, terminando por consolidar e legalizar o status dos afro-americanos como cidadãos de segunda classe.     Somente por volta de 1950, em seu início, que esse sistema começaria a ruir quando a Suprema Corte começou a analisar os cinco casos que levariam a decisão emblemática de Brown v. Board of Education em 1954: Brown v. Board of Education of Topeka, iniciado no Kansas; Briggs v. Elliott (Carolina do Sul), Davis v. County School Board of Prince Edward County (Virginia), Gebhart v. Belton (Delaware), e Bolling v. Sharpe (Washington, D.C.). Todos eles tinham em comum o objetivo de questionar a constitucionalidade da segregação das instituições de ensino (Patterson, 2001).

Henry E. Garrett participou como testemunha em Davis v. County School Board of Prince Edward County enquanto ainda lecionava na Universidade de Columbia. Chamado a emitir a sua opinião profissional sobre os efeitos da segregação, manifestou-se positivamente em favor da manutenção desse sistema na educação de crianças e adolescentes:

Se uma criança negra vai para a escola tão bem equipada quanto a de seu vizinho branco, se ela tem professores de sua própria raça e amigos de sua própria raça, parece-me que é menos provável que ela desenvolva tensões, animosidades e hostilidades do que se você a colocar em uma escola mista onde, na Virgínia, ela inevitavelmente será parte de um grupo minoritário 5 (Trial, 1952, p. 953, tradução nossa).

Além da ideia de que ambientes escolares separados inibiriam a tensão racial, Garrett ainda destacava os efeitos benéficos desse tipo de organização, dado que as instituições fossem de igual estrutura:

Eu acredito que, nas escolas secundárias da Virgínia, se a criança negra tivesse instalações iguais, seus próprios professores, seus próprios amigos e um bom sentimento, ele teria mais probabilidade de desenvolver um orgulho em si mesmo como negro, o que eu acho que todos gostaríamos de ver - desenvolver suas próprias potencialidades, seu senso de dever, seu senso de arte, seu senso de histrionismo [...] 6 (Trial, 1952, p. 954-955, tradução nossa).

Na opinião de Garrett, somente em um espaço segregado haveria oportunidade para uma convivência harmônica, e para que as crianças negras pudessem desenvolver plenamente suas potencialidades inatas (raciais), ou seja, sua inclinação para artes visuais e dramáticas, seu talento para política, bem como uma melhor autoestima e orgulho racial. Nesse último aspecto, Garrett (1952) fazia críticas ao testemunho e aos estudos de outros quatro psicólogos que também prestaram depoimento no caso: Kenneth Clark (1914-2005), Mamie Clark (1917-1983), Isidor Chein (1912-1981) e o docente de Psicologia do Vassar College, Mahlon Brewster Smith (1919-2012). Para esses profissionais, a segregação escolar exercia um efeito extremamente prejudicial na saúde mental e na autoestima das crianças afro-americanas. Para Garrett, embora os estudos dos psicólogos citados anteriormente não apresentassem problemas em sua metodologia, as conclusões de que estes derivavam dos dados apresentados, nas quais argumentavam haver danos psicológicos que representavam um "insulto à integridade do indivíduo", podiam ser lidas como "idealistas" (Trial, 1952, p. 924) 7. Conforme Garrett:

Acho que uma pessoa idealista, que tende a deixar suas simpatias ultrapassarem seu julgamento, pode estar tão fortemente enviesada a favor do bem abstrato que não modera a aplicação do princípio geral com uma certa dose do que poderia ser chamado de bom senso. A situação de Farmville 8, parece-me, está bastante distante de um termo abstrato desse tipo 9 (Trial, 1952, p. 954, tradução nossa).

Após a Suprema Corte decidir a favor de Brown v. Board of Education em 1954, ordenando que os estados do Sul iniciassem a dessegregação imediata das instituições escolares públicas, Garrett aposenta-se de seu cargo na Universidade de Columbia, tornando-se professor emérito em 1956. Com sua mudança para o estado da Virgínia a fim de assumir a função de professor visitante no Departamento de Educação na Universidade da Virginia, Garrett passa também a atuar publicamente como um defensor das leis Jim Crow e a combater com mais afinco as teorias sobre igualdade racial.

Embora já se colocasse como opositor de tais posições, como demonstrado anteriormente em sua crítica ao artigo de Montagu, Garrett passa a ser cada vez mais crítico, incorporando elementos conspiratórios em suas críticas (Garrett, 1961a, 1961b; Winston, 2021, Tucker, 2002; Jackson, 2005). Ele também passa a identificar o antropólogo Franz Boas e seus "discípulos" na Universidade de Columbia como principais responsáveis, juntamente com judeus e comunistas, por disseminar a ideia de que as diferenças raciais são geradas por desigualdades sociais e fatores ambientais (Garrett, 1961a). De acordo com Garrett, tal corrente tinha apenas o sentimentalismo como fundamento, tendo se transformado no que ele classificou como "farsa do século" (Garrett, 1961a, p. 257). Por esse motivo, batizou-a de forma pejorativa como "equalitarian dogma" (dogma igualitário).

De acordo com Winston, embora Garrett tenha mantido suas visões circunscritas ao meio acadêmico até o final da década de 1950, sua participação em Davis v. County School Board of Prince Edward County, somados a sua opinião enfática sobre a natureza hereditária de traços psicológicos e potencial intelectual nas raças humanas, foram o suficiente para que o Departamento de Psicologia da Universidade da Virginia rejeitasse seu pedido de ingresso como docente (Winston, 1998, p. 182).

Brown, "Massive Resistance" e a aproximação com a extrema direita

Após a Suprema Corte emitir seu parecer de que a aplicação da doutrina "separate but equal" (separados mas iguais) no campo da educação pública violava os princípios estabelecidos na Décima Quarta Emenda da Constituição norte-americana 10, organizou-se nos estados da região sul um movimento de resistência que muitos autores classificam como "massiva", dada a disseminação e popularidade que tal retórica assumiu nas décadas de 1950 e 1960 (Brown & Webb, 2007; Webb, 2010, Jackson, 2005, Patterson, 2001).

Embora possuísse um foco comum, essa mobilização estava longe de ser fruto de um grupo homogêneo ou organizado. Para Clive Webb (2010), a massive resistance deve ser vista como um fenômeno diverso e complexo, moldado por diferentes influências e forças intrarregionais. Essa pluralidade dentro do movimento segregacionista se expressava não só porque os motivos para a adesão eram bastante diversos, como também variava o quanto cada um estava disposto a sacrificar em prol da manutenção desse regime.

O emprego da violência e o tipo de retórica adotada também foram pontos de profundo dissenso. De acordo com David Chappell (1998), a popularidade da causa segregacionista escondia uma divisão profunda acerca da estratégia da ser adotada pelo movimento e uma profunda resistência à militância. Se, por um lado, os discursos inflamados e a utilização de táticas de terror, ameaça e agressão física por parte de grupos extremistas e militantes supremacistas tiveram um papel importante na mobilização de certas camadas da população branca, por outro lado, ela inspirava a antipatia de parte dos setores mais convencionais. Esses mainstream segregationists (Webb, 2010) tendiam a repudiar o uso de argumentos e ideias de supremacia branca, bem como de ações violentas, preferindo utilizar justificativas legais para opor-se à Brown.

Embora o movimento como um todo partilhasse o desejo de salvaguardar o sistema estabelecido pelas Jim Crow, os setores mais mainstream lutavam por manter uma imagem pública de respeitabilidade e o recurso constante dos grupos extremistas à demagogia racista e ao terrorismo acabava por minar os esforços das lideranças segregacionistas de se apresentar como uma força política legítima e respeitável. Como consequência, muitas das denúncias e pedidos de prisão contra organizações como Ku Klux Klan partiam de dentro (Webb, 2010, p. 6-7). Mas mesmo aqueles que argumentavam que Brown constituía uma violação legal e deveria ser combatido nos tribunais divergiam quanto a estratégia a ser adotada. Uma das formas pela qual se tentou derrubar a decisão da Suprema Corte foi argumentando que as evidências que haviam balizado a decisão dos juízes eram insuficientes e careciam de fundamento científico (Tucker, 2002).

Como opositor da integração, Garrett teve um papel fundamental nos casos que buscaram empregar esse tipo de tática com o intuito de reverter o precedente estabelecido em Brown v. Board of Education. Ele atuou como testemunha em dois casos: Stell v. Savannah-Chatham County Board of Education (1963), na Geórgia, e Evers v. Jackson Municipal Separate School District (1964), no Mississipi. O intuito de seu depoimento era que, como expert, Garrett pudesse questionar o argumento dos psicólogos que haviam, juntamente com ele, testemunhado em Brown, de que a segregação escolar era danosa para crianças e adolescentes.

A exposição de Garrett tinha como objetivo demonstrar que a integração racial geraria mais problemas que a separação. Nesse quesito, ele mantinha a opinião anterior de que a existência de escolas segregadas tinha um efeito benéfico durante o período da infância e adolescência. Seriam, portanto, as escolas "mistas" que trariam sofrimento psíquico para as crianças negras. Em Stell v. Savannah, também declarou:

Bem, eu acredito que no ensino fundamental e durante o ensino médio, nos anos formativos dos jovens, o melhor é deixar cada grupo se misturar com os seus semelhantes, aqueles de sua própria raça e seu próprio tipo, porque sou fortemente contra o casamento inter-racial, não apenas pelo bem do homem branco, mas do negro também, e na faculdade e na pós-graduação isso é uma questão completamente diferente 11 (Trial, 1963, p. 150-151, grifo da autoria. Tradução nossa).

Ou seja, para Garrett, a divisão de espaços durante o período formativo teria, como intuito adicional, impedir que, futuramente, as pessoas se casassem com indivíduos de diferentes etnias. Isso porque Garrett acreditava que a miscigenação era um fator de degeneração racial. Em uma réplica ao texto Scientific Racism Again? (1961), do antropólogo Juan Comas, e publicada em anexo ao texto pelo editor da Current Anthropology juntamente com outros comentários, Garrett escreveu:

O tratamento de Comas sobre a mistura racial revela um envolvimento emocional considerável. [...] Todas as evidências históricas mostram que o africano é imaturo (e nesse sentido inferior) em relação ao europeu. Se os brancos americanos, sob o estímulo emocional de vários grupos de pressão, se convencerem de que é seu 'dever' absorver os negros que vivem atualmente neste país, nossa cultura inevitavelmente deterioraria intelectual, moral e materialmente. É um risco muito grande a ser assumido em nome de uma bondade abstrata. Na verdade, isso poderia, nestes anos de 'guerras frias', significar a diferença entre sobrevivência e destruição 12. (Garrett citado em Comas et all, 1961, p. 320. Tradução nossa).

A ideia da existência de uma disparidade intelectual entre as raças também foi levantada durante o testemunho de Garrett. Ele rejeitava todo tipo de teoria que tendia a explicar essas diferenças a partir de fatores socioambientais como desigualdades econômicas e o racismo reinante nos Estados Unidos. Assim, acreditava que o ambiente possuía apenas um efeito limitado na determinação da personalidade e nas habilidades mentais do indivíduo. A genética, concluía, era a maior determinante nesse quesito.

Dessa forma, para Henry Garrett, os estudantes negros e brancos possuíam, como resultado de sua composição hereditária, padrões de educabilidade diferente. Isso porque, segundo os dados por ele apresentados, a diferença na mediana do quociente intelectual dos indivíduos de ambas as raças chegava a 20 pontos. Se a média da população caucasiana tendia a ser de 100 pontos, a dos afro-americanos era de 80. Isso, de acordo com Garrett, não era apenas uma pequena brecha, era um "verdadeiro abismo" (Trial, 1964, p.301).

Tendo em vista tamanha disparidade, dizia Garrett, era simplesmente impossível que esses dois grupos pudessem ser educados na mesma escola sem que houvesse prejuízo para ambos. Para ele, a integração racial levaria à deterioração da qualidade das instituições dado que os professores teriam que diminuir o nível de dificuldade das aulas para se adequar ao progresso de todos os alunos. Caso isso não acontecesse, os estudantes que não conseguissem acompanhar iam acabar desenvolvendo sentimentos de frustração, descontentamento e infelicidade, o que resultaria em um aumento da violência, desorganização e perturbação social (Trial, 1963).

Vale ressaltar que a posição assumida por Garrett não era corroborada por grande parte de seus colegas da área. Em Stell v. Savannah, quando questionado por Mrs. Motley, advogada da oposição, se suas visões sobre inteligência eram representativas de uma minoria dentro da Psicologia, ele respondeu positivamente. A advogada também ressaltou, durante o depoimento, que Garrett havia escrito extensivamente sobre a existência de diferença de habilidades mentais entre raças, sempre apresentando a conclusão de que, nesse quesito, os negros eram "inferiores aos brancos", sendo suas posições acerca do assunto conhecidas nacionalmente. (Trial, 1963)

Garrett havia adquirido essa reputação devido não só aos seus constantes ataques aos cientistas que, assim como Ashley Montagu e Otto Klineberg (1899-1992), buscavam uma explicação ambiental para a discrepância apresentada nos testes de QI, explicando que estas desapareceriam quando as condições socioeconômicas dos indivíduos que pontuassem mais baixo na escala fossem melhoradas. Na década de 1950, Garrett passou a empregar o prestígio adquirido em seus anos como professor na Universidade de Columbia para atuar publicamente como defensor da causa segregacionista. Em razão disso, juntou-se a grupos como o Liberty Lobby e o White Citizens' Council 13, que além de advogarem em favor da manutenção das Jim Crow, promoviam teorias de supremacia branca (Tucker, 2002; Winston, 1998).

Em 1959 ajudou a fundar a International Association for the Advancement of Ethnology and Eugenics (IAAEE), organização cujo objetivo, segundo Winston (1998) era financiar, promover, publicar e disseminar pesquisas voltadas para o desenvolvimento e melhoramento de populações, raças e grupos étnicos através de ciências como a genética, eugenia, etnologia, antropologia, psicologia, demografia, entre outras. A partir dessa associação, foi formada uma rede internacional de intelectuais voltados para o estudo das raças. Muitos de seus integrantes eram ligados a movimentos eugenistas, neonazistas, neofascistas e pró-apartheid, bem como supremacistas brancos, revisionistas históricos e negacionistas do Holocausto. 14

Com o auxílio desse mesmo grupo, ele também fundou a revista Mankind Quartely em 1960, de forma a abrir um espaço para a continuidade de um tipo de eugenia e ciência racial altamente reminiscente da higiene racial de algumas décadas atrás, focada em ideais de pureza e na existência de uma hierarquia entre elas, antissemita e que repudiava a miscigenação como fator de degeneração.

A noção de que o intelecto seria uma marca de progresso não só nacional e racial, foi um dos principais argumentos apresentados pelos autores e editores da Mankind Quarterly, apoiando-se cientificamente nas vertentes da psicologia que explicavam a inteligência como uma composição, em grande parte, por fatores genéticos e raciais, sendo pouco afetada pelo ambiente. Por esse motivo, pesquisas que tivessem como tema demonstrar que a categoria de raça possui um fundamento biológico, e que estas apresentam características específicas de personalidade, temperamento e raciocínio tiveram amplo espaço dentro da publicação da revista Mankind Quartely que manteve inúmeros psicólogos em seu corpo editorial ao longo dos anos como John L. Horn (1928-2006), Audrey M. Shuey (1900-1977), Stanley Porteus (1983-1972), Arthur Jensen (1923-2012), Hans Eysenck (1916-1997), Raymond Cattell (1905-1998), John Philippe Rushton (1943-2012) e Richard Lynn (1930-2023) 15.

Garrett continuou publicando obras e artigos ao longo das décadas de 1960 e 1970, ainda bastante focadas na área de psicologia diferencial e no estudo da inteligência. Ele também manteve os ataques contra o que ele classificava como "dogma igualitário". Segundo Garrett, o "equalitarian dogma" se baseava na ideia de que "all races are potentially equal in ability and differ only in their opportunity to achieve" e havia se disseminado pela maioria das faculdades e universidades do país, sendo também acolhido por "sincere humanitarians, social reformers, crusaders, sentimentalists, and (ostensibly) politicians" (Garrett, 1961, p. 480). Além deles, líderes religiosos, convencidos de que o conceito de igualdade humana estava em conformidade com os ideais cristãos de fraternidade e democracia somaram-se aos comunistas e aos cientistas sociais na defesa de tal doutrina.

Para Garrett, esse grupo havia sido bem-sucedido em seu plano de influenciar a academia e havia excluído pessoas como ele que, ao invés de se deixarem guiar por interesses ideológicos, apenas desejavam expor suas visões sobre raça. Para ele, o epíteto de "racista", que alguns cientistas, como o antropólogo Juan Comas (1961) utilizavam para classificar visões semelhantes à sua, tinham como objetivo apenas suprimir opiniões contrárias por medo ou por difamação (Garrett, 1961b, p. 101). Apesar de defender-se justificando que não acreditava existir hierarquias raças nem que havia grupos superiores a outros, seus trabalhos geralmente contradiziam essas afirmações. Em IQ and Race Differences, Garrett (1980) declarou:

O argumento das diferenças genéticas na inteligência é sólido. O fato de que o aluno negro, em média, está dez a vinte pontos de QI atrás do branco da mesma idade e fica dois ou mais anos atrás dos brancos na escola primária e até quatro anos atrás no ensino médio é suficiente para tornar a dessegregação massiva e forçada insustentável e, em qualquer sentido produtivo, impraticável. Os registros escolares corroboram essas afirmações. A doutrina oficial do Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar é igualitária. A herança supostamente conta pouco e o ambiente quase tudo no comportamento humano. Essa visão provocou uma enxurrada de racionalizações para explicar a falta de realização dos negros. Alguns dos apologistas [da igualdade racial] são idealistas fanáticos que não conseguem aceitar o fato de que todos os homens não foram criados iguais 16 (p. 47, grifo da autoria. Tradução nossa).

Por mais que no final de sua carreira, os escritos de Henry Garrett já não possuíssem o mesmo impacto de quando era professor na Universidade de Columbia, seja por suas escolhas políticas, ele foi capaz de pavimentar o caminho para outros psicólogos, que continuaram sua tradição de pensamento, renovando suas teorias dentro do campo de estudos da inteligência, como Arthur Jensen (1923-2012), Richard Herrnstein (1930-1994), John Philippe Rushton (1943-2012) e Richard Lynn (1930-2023). Além disso, conforme destaca Jackson (2005), talvez seu maior impacto tenha sido maior ainda fora do debate acadêmico. Com revistas como a Mankind Quarterly e livros como Race and IQ, ele foi capaz, juntamente com outros intelectuais, de justificar que certas políticas públicas com intuito de prejudicar ou tirar o direito de certas etnias se baseiam em pensamento científico, e não apenas em preconceito. Conforme destaca Jackson (2005), esse estilo de argumentação, que apela para dados supostamente "neutros" e evidências científicas que forneceu uma nova base para o discurso de grupos racistas extremistas.

 

Considerações finais

Como exposto, Henry Garrett contribuiu como expert para influenciar os casos de dessegregação escolar nos Estados Unidos. Para isso, empregou seu conhecimento na área da psicologia e o prestígio angariado durante sua carreira como professor da Universidade de Columbia. Embora essa atuação, em particular, tenha ocorrido dentro de um contexto específico, de enfrentamento das leis Jim Crow e da luta pela ampliação dos direitos civis da população negra nos Estados Unidos, a influência das ideias promovidas por Garrett não se limitaram apenas à nação norte-americana, ou ao âmbito das cortes.

Primeiro porque Garrett não estava sozinho em sua empreitada. Ele fazia parte de uma rede internacional de intelectuais dedicados a promover, divulgar e aprofundar o estudo das diferenças raciais, bem como contribuiu para a fundação do periódico Mankind Quarterly, a fim de amplificar e socializar as suas ideias (Tucker, 2002; Winston, 1998, Jackson, 2005). Segundo porque, como argumentamos na introdução, o debate sobre raças ainda permanecia uma questão em aberto. No campo da psicologia, a continuidade das concepções das quais Garrett era defensor foi garantida, entre outras coisas, pela teia de relações, instituições e estruturas que ajudou a erigir (Winston, 1998; Tucker, 2002).

No caso do Brasil, é conhecida a influência de psicólogos como Otto Klineberg e Aniela Meyer Ginsberg (1902-1986) nos estudos sobre raça (Cunha & Santos, 2014; Maio, 2017). O primeiro, além de ter conduzido pesquisas em território brasileiro, ainda auxiliou na fundação do curso de Psicologia da Universidade de São Paulo. Já Ginsberg veio como parte de um projeto organizado pela UNESCO, que tinha como objetivo investigar as relações étnico-raciais no país na década de 1950 (Cunha & Santos, 2014).

Um dos estudos conduzidos por Aniela Ginsberg (1951), intitulado Comparação entre os resultados de um teste de nível mental aplicado em diferentes grupos étnicos e sociais e publicado na revista Arquivos Brasileiros de Psicotécnica tinha como objetivo comparar o resultado de testes de inteligência aplicados em crianças em idade escolar, levando em consideração informações como renda, gênero e raça.

Apesar de tentar elucidar as discrepâncias nos testes e atribuí-las a questões sociais, Ginsberg demonstra certa hesitação em fornecer uma justificativa específica para as diferenças nos resultados entre os alunos de etnias distintas. Apesar de descartar a possibilidade de que tal fenômeno pudesse ser atribuído ao meio ou mesmo a fatores hereditários, a psicóloga não indica nenhuma explicação alternativa que pudesse esclarecer tal desfecho (Ginsberg, 1951, p. 41).

Tendo os estudos de Klineberg e Ginsberg sobre inteligência exercido um impacto importante na psicologia brasileira, fica o questionamento de o quanto o trabalho de Henry Garrrett influenciou nos debates nacionais. Afinal, de 1950 a 1970, três dos seus livros foram traduzidos para português e todos eles contaram com múltiplas reedições. Grandes Experimentos da Psicologia, por exemplo, foi lançado em 1959, e depois publicado novamente em 1966, 1969, 1974 e 1979. O mais interessante é que essa obra, em específico, tem como foco apenas o estudo de autores que entendiam que o intelecto era um traço predominantemente hereditário, corroborando a visão que o próprio Garrett defendia.

Isso, somado ao fato de que Klineberg teve uma considerável influência na estruturação da psicologia no Brasil, foi um dos contemporâneos de Garrett, e ambos debateram sobre a questão racial (essas trocas, inclusive, ocorreram de forma bastante conflituosa, especialmente da parte de Garrett, que chegou a denunciar Klineberg ao FBI como comunista) (Jackson, 2005), nos leva a apontar a necessidade de compreender como as ideias de Garrett foram recebidas no país. Afinal, se o professor emérito da Universidade de Columbia tivesse passado despercebido, certamente seus trabalhos sequer teriam sido traduzidos, que dirá relançados.

Ao acompanhar a trajetória de Garrett, podemos perceber o peso que as noções sobre raça ainda exerciam nas décadas de 1950 e 1960 em sociedades como a estadunidense. Assim, retomando o raciocínio de Klineberg em seu texto de 1971, as noções sobre diferenças inatas de personalidade e inteligência entre os grupos raciais, longe de encontrarem seu crepúsculo, ainda permaneciam (ou permanecem?) resistentes.

 

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Endereço para correspondência
Geandra Denardi Munareto - geandradm@gmail.com

Recebido em: 06/07/2023
Aceito em: 22/05/2024

 

 

Notas

1 Refere-se a combinação da teoria da evolução proposta por Charles Darwin com as ideias mendelianas de hereditariedade.
2 Entre eles, Thorne (1976) cita R. S. Woodworth (1889-1962), E. L. Thorndike (1874-1949), H. L. Hollingworth (1880-1956), Otto Klineberg (1899-1992), Mortimer Adler (1902-2001), Prescott Lecky (1892-1941), Goodwin Watson (1892-1941), P. M. Symonds (1893-1960), Leta Hollingworth (1886-1939), Lois Barclay Murphy (1902-2003), Elizabeth B. Hurlock (1898-1988), Carney Landis (1897-1962), Joseph Zubin (1900-1990), Zigmunt Piotrowski (1894-1985), além do próprio Henry E. Garrett (p. 159).
3 No original: "apparently such an one feels that to find any differences at all somehow implies ‘inferiority' and ‘superiority'; hence differences must not be found, or when found must be immediately explained away".
4 A terminologia aqui utilizada é baseada no conceito de "far-right", do cientista político Cas Mudde. Segundo Mudde (2019), a far right se define por sua atitude anti-sistema e hostilidade aos valores da democracia liberal. Ela pode ser dividida em dois grandes subgrupos: "The extreme right rejects the essence of democracy, that is, popular sovereignty and majority rule. The most infamous example of the extreme right is fascism, which brought to power German Führer Adolf Hitler and Italian Duce Benito Mussolini and was responsible for the most destructive war in world history. The radical right accepts the essence of democracy, but opposes fundamental elements of liberal democracy, most notably minority rights, rule of law, and separation of powers. Both subgroups oppose the postwar liberal democratic consensus, but in fundamentally different ways. While the extreme right is revolutionary, the radical right is more reformist. In essence, the radical right trusts the power of the people, the extreme right does not" (p. 26).
5 No original: "If a negro child goes to school as well equipped as that of his white neighbor, if he had teachers of his own race and friends of his own race, it seems to me that he is less likely to develop tensions, animosities and hostilities, than if you put them in a mixed school where, in Virginia, he inevitably will be a minority group".
6 No original: "I think, in the High Schools of Virginia, if the Negro child had equal facilities, his own teachers, his own friends, and a good feeling, he would be more likely to develop a pride in himself as a Negro, which I think we all like to see him do - to develop his own potentialities, his sense of duty, his sense of art, his sense of histrionics […]".
7 Tradução nossa. No original, os termos utilizados são "insult to the integrity of the individual" e "idealistic person", respectivamente.
8 Farmville, cidade localizada no estado da Virgínia, foi a cidade onde se originou o processo de Davis v. County School Board of Prince Edward County.
9 No original: "I think an idealistic person, who is likely to let his sympathies goes beyond his judgement, may be so strongly prejudiced on the side of abstract goodness that he does not temper the application of the general principle with a certain amount of what might be called common sense. The Farmville situation is fairly far removed, it seems to me, from an abstract term of that sort".
10 Em Brown v. Board of Education, argumentou-se que o princípio violado seria o da cláusula da proteção igualitária, que estabelecia que era proibido ao Estado "deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws".
11 No original: "Well, I think that in elementary school and through the high school, in the formative years of young people, it is better to let each group mingle with its own, those of its own race and its own sort, because I am strongly opposed to inter-marriage, not only for the sake of the white man, but of the negro, and in college and in graduate school it is a very different proposition".
12 No original: "Comas' treatment of racial mixing reveals considerable emotional involvement. […] All the historical evidence shows the African to be immature (and in that sense inferior) in relation to the European. Should American Whites under the emotional goading of various pressure groups become convinced that it is their "duty" to absorb the Negroes now living in this country, our culture would inevitably deteriorate intellectually, morally, and materially. It is too great a risk to take in the name of abstract kindness. In fact, it could in these years of "cold wars" spell the difference between survival and destruction".
13 De acordo com Andrew Winston (1998), o Liberty Lobby foi uma organização política criada por Willis Carto em 1958 nos Estados Unidos e dissolvida em 2001. Por meio dela, Carto buscava promover quatro temas-chave, conforme aponta Winton (1998): 1 - a ideia de que havia uma conspiração mundial entre os judeus para dominar o mundo; 2 - manutenção da superioridade cultural e racial branca por meio de políticas segregacionistas e eugênicas; 3 - anticomunismo; 4 - teorias de declínio e deterioração da civilização Ocidental, baseadas na obra de Oswald Spengler. Enquanto isso, o Citizen's Council (nome oficial do White Citizen's Council), consistia numa rede integrada de associações fundadas em 1954, se organizaram como opositores do movimento dos direitos civis (Rolphe, 2018).
14 Alguns exemplos são o botânico Reginald Ruggles Gates (1882-1962), o historiador Charles Tansill (1890-1964), os geneticistas Cyril D. Darlington (1903-1981), Johannes Dirk Jacobs Hofmeyr (1903-1980), o biólogo Robert Kuttner (1927-1987) e o psicólogo Frank McGurk (1910-1995).
15 Alguns desses psicólogos, como Stanley Porteus, Raymond Cattell, Hans Eysenck, John. L. Horn e Arthur Jensen, tiveram um papel de destaque na psicologia norte-americana, especialmente dentro dos estudos de inteligência e personalidade. Mas nem todos eles ocuparam posição de destaque dentro da Psicologia, como foi o caso de Audrey Shuey, John Philippe Rushton e Richard Lynn, apesar de ocuparem cargos em universidades importantes nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. Esse último grupo ficou mais conhecido por suas teorias controversas relacionando raça, inteligência e personalidade.
16 No original: "The case for genetic differences in intelligence is a solid one. The fact that the Negro pupil is on the average ten to twenty IQ points behind the white of the same age and lags two or more grades behind whites in elementary school and up to four grades in high school is enough to render massive and forced desegregation untenable and, in any productive sense, unworkable. School records substantiate these statements. The official doctrine of the Department of Health, Education and Welfare is equalitarian. Inheritance is supposed to count for little and environment for almost all in human behavior. This view has provoked a splurge of rationalization to explain away Negro non-achievement. Some of the apologists are fanatic idealists who cannot accept the fact that all men are not created equal".

 

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