Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e77307, doi:10.12957/epp.2024.77307
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
Entrega Voluntária à Adoção: A Escuta Psicanalítica a uma Gestante Vítima de Estupro
Voluntary Surrender to Adoption: The Psychoanalytical Listening to a Pregnant Rape Victim
Entrega Voluntaria a la Adopción: La Escucha Psicoanalítica a una Víctima de Violación
Daniela Torres Gonçalves Santos Pedruzzi a, Anamaria Silva Neves a
a Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O atendimento psicológico na Justiça tem sido uma prática nos processos de entrega voluntária à adoção, determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente e especificado em publicações normativas e orientações técnicas no Conselho Nacional de Justiça. A partir do atendimento a uma mulher gestante, vítima de estupro, realizou-se a análise do caso com base na abordagem dos registros dos atendimentos e diário clínico, seguindo o referencial psicanalítico. O objetivo deste trabalho foi promover a reflexão sobre as possibilidades da escuta psicanalítica junto a uma gestante inserida no Programa Entrega Voluntária no contexto judiciário. A análise possibilitou compreender que a escuta deve ser fundamentada em uma leitura sociopolítica que considere a posição do sujeito no laço social. É fundamental apreender as questões políticas que envolvem a entrega voluntária à adoção, além das condições de exclusão, desamparo e impotência que operam no silenciamento das gestantes, mantendo-se o processo opressor que incide sobre elas. Por fim, o debate dessa temática no contexto judiciário abre possibilidades para a discussão mais ampla de questões afeitas à mulher e seus direitos, como a ampliação de políticas públicas, aspectos de interseccionalidade, prevenção da violência e a garantia ao aborto legal para todas as mulheres.
Palavras-chave: psicanálise, sofrimento sociopolítico, maternidade, entrega voluntária, adoção.
ABSTRACT
Psychological care in court has been a practice in voluntary adoption processes, determined in the Child Statute and specified in normative and technical guidelines by the National Council of Justice. From the attendance of a pregnant woman, victim of rape, a case study was carried out based on the approach of the records of the attendances and clinical diary, based on a Psychoanalytic theoretical framework. The aim of this study was to reflect about the possibilities of a psychoanalytical listening of a pregnant woman in the judicial context of the Voluntary Delivery Program. The analysis enabled the understanding that listening must be based on a sociopolitical reading and consider the subject's position in the social bond. It is essential to apprehend the political issues that involve voluntary surrender for adoption, in addition to the conditions of exclusion, helplessness and impotence that operate in silencing pregnant women, maintaining the oppressive process that affects them. Finally, the debate on this issue in the judicial context opens up possibilities for a broader discussion of issues related to women and their rights, such as the expansion of public policies, aspects of intersectionality, the prevention of violence and the guarantee of legal abortion for all women.
Keywords: psychoanalysis, sociopolitical suffering, maternity, voluntary surrender, adoption.
RESUMEN
La atención psicológica en los juzgados ha sido una práctica en los procesos de entrega voluntaria, determinada en el Estatuto del Niño y especificada en publicaciones y guías técnicas del Consejo Nacional de Justicia. A partir de la asistencia de una mujer embarazada, víctima de violación, se realizó el análisis del caso a partir del abordaje de los registros de las asistencias y diario clínico, siguiendo el referente psicoanalítico. El objetivo de este trabajo fue promover la reflexión sobre las posibilidades de la escucha psicoanalítica con una mujer embarazada incluida en el Programa de Entrega Voluntario. Se considera que la escucha debe partir de una lectura sociopolítica y considerar la posición del sujeto en el vínculo social. Es fundamental aprehender las cuestiones políticas que involucran la entrega voluntaria, además de las condiciones de exclusión, desamparo e impotencia que operan en el silenciamiento de las mujeres embarazadas, manteniendo el proceso opresivo que las afecta. Finalmente, este tema en el contexto judicial abre posibilidades para una discusión de temas relacionados con las mujeres y sus derechos, como la ampliación de políticas públicas, aspectos de la interseccionalidad, la prevención de la violencia y la garantía del aborto legal para todas las mujeres.
Palabras clave: psicoanálisis, sufrimiento sociopolítico, maternidad, entrega voluntaria, adopción.
As mais recentes atualizações legislativas do Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] (Lei Federal n. 8069, 1990) acrescentaram ou modificaram o texto legal, que passou a contemplar dispositivos específicos acerca da entrega voluntária à adoção. Essas alterações determinam que a gestante ou mãe que tenha interesse em entregar seu filho à adoção deverá ser encaminhada à Justiça da Infância e Juventude (Art. 19-A), onde receberá acompanhamento da equipe interprofissional do juízo, composta por assistentes sociais e psicólogos, os quais emitirão relatórios ao juiz e farão encaminhamentos que se fizerem necessários (§1º do Art 19-A, do ECA).
A partir dessas alterações, alguns tribunais de justiça estaduais passaram a construir programas de atendimento às gestantes que buscam as Varas da Infância com a intenção da entrega desses bebês. As Varas apresentam como objetivo central estruturar um atendimento que seja respeitoso, humanizado e que inclua tanto os profissionais do Judiciário, quanto equipes de saúde dos municípios. Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça [CNJ] publicou a Resolução N.º 485/2023 (CNJ, 2023a), que regulamenta atuação do judiciário nessa temática e, posteriormente, publicou o Manual da Entrega Voluntária à Adoção, com as orientações mais técnicas para o efetivo atendimento humanizado dessas gestantes, garantindo-se o direito ao sigilo, aos atendimentos respeitosos e humanizados, bem como a proteção do bebê (CNJ, 2023b).
O discurso jurídico ainda se assenta na proteção do bebê, contudo, só é possível atingir esse objetivo se se dispuser ao cuidado com a mulher gestante. Vislumbra-se ser possível, a partir da tentativa de proteção da criança, que se configure uma prática de cuidado e atenção à mulher. Esse cuidado com a gestante que pretende a entrega voluntária do bebê, na letra dos programas, e conforme proposto pela legislação, apresenta-se marcado pelo significante acolhimento. Os sentidos dados a esse acolhimento podem ser múltiplos e vão direcionar o trabalho a ser realizado no âmbito institucional com as mulheres.
O que se depreende é que os programas desenvolvidos a partir da legislação atinente à entrega voluntária de bebês estão pautados no atendimento que tem como elemento central a escuta, uma modalidade de ouvir e estar com o outro que promova acolhimento. Neste sentido, a presente pesquisa teve como objetivo promover a reflexão sobre as possibilidades da escuta psicanalítica junto a uma gestante inserida no Programa Entrega Voluntária no contexto judiciário.
Tornar-se mãe: complexo percurso
A maternidade envolve complexos mecanismos psíquicos que exigem da mulher revisitar experiências subjetivas anteriores, lidar com demandas inconscientes ligadas às relações edípicas, além de vivenciar a própria experiência biológica e social da gravidez. Tornar-se mãe remete a gestante às relações primordiais, afetos que emergem e possibilitam fantasiar um sujeito onde se tem, por vezes, apenas uma barriga (Tavares, 2016).
Para a Psicanálise, a função materna se diferencia da figura pessoal da mãe. É algo da ordem da ação subjetiva que acontece a nível do discurso, do olhar que se dirige ao outro. Trata-se do reconhecimento desse outro enquanto sujeito, e das operações simbolizantes oferecidas ao bebê para permitirem que ele seja inserido na cultura em sua condição humana. Lacan (1969/2003) refere que é necessário um desejo que não seja anônimo para se configurar a função materna.
A teorização contemporânea sobre o feminino na Psicanálise apresenta questionamentos e reflexões sobre a equivalência mulher-mãe, bem como estudos acerca do mal-estar presente na maternidade (Clemens, 2015). Segundo Schechter e Perelson (2017), tornar-se mãe requer um complexo mecanismo psíquico que envolve processos de separação, identificação e projeção da mulher em relação à sua própria mãe, os quais têm origem na relação primária e pré-edipiana descrita por Freud quando tratou a sexualidade feminina. A partir das experiências clínicas, as autoras observaram a relevância das representações psíquicas das relações das mulheres com suas mães para a constituição do que chamaram de espaço psíquico de concepção de um filho.
A não inscrição psíquica do filho, de acordo com Moura (2013), pode se manifestar em situações de abandono, desamparo, privações afetivas e atos de violência simbólica ou real. É especialmente relevante, para a aproximação do tema da entrega voluntária de bebês para a adoção, acessar como se opera ou não essa inscrição do bebê no psiquismo da gestante, desde antes do seu nascimento.
Para a constituição do vínculo da mãe com o bebê é importante que a mulher represente em seu psiquismo fantasias sobre essa criança, construindo um bebê imaginário que comporte identificações e projeções. Esse movimento se refere a supor que haverá um sujeito ali onde se processa o crescimento biológico que o corpo denuncia (Tavares, 2016). Ao tecer a revisão do conceito de bebê imaginário para a gestante, a autora compreende que se trata da representação psíquica que está além das experiências biológicas, pautando-se pelos elementos psicológicos, afetivos, sociais e históricos da mulher.
(...) a capacidade de representação do bebê imaginário não é automática e desencadeada pelo aspecto biológico da gestação, e sim um processo subjetivo pelo qual a futura mãe passará ao relacionar suas experiências físicas durante a gravidez àquelas psicológicas e históricas (Tavares, 2016, p. 72).
A autora destaca que o desenvolvimento do bebê imaginário no psiquismo da mulher não coincide com o desenvolvimento orgânico e embrionário do bebê. O que desencadeia o processo de representação do bebê imaginário é o contato da mulher consigo mesma, com seu bebê e sua história, resultando no reconhecimento da importância das experiências infantis da gestante nos processos psíquicos vivenciados na gestação (Tavares, 2016). A autora enfatiza a importância dessa representação imaginária do bebê para o relacionamento ulterior entre a mãe e o filho. Nesse sentido, a oferta da escuta que permita à mulher falar sobre si apresenta-se como importante recurso para as possíveis representações do bebê no psiquismo materno.
Esses processos psíquicos complexos podem se tornar ainda mais difíceis, posto que certas condições sociais e familiares impõem ao psiquismo da gestante desafios que, para ela, em dado momento, podem ser insuperáveis. O psiquismo e a subjetividade não estão inseridos em uma caixa hermética, apartados do contexto social em que se inserem. No texto O mal-estar na cultura, Freud (1930/2020) assinala que não há Psicologia individual que não seja também social. O autor anuncia que o contexto, o campo social do sujeito, marca a subjetividade, dando-lhe contornos. Nesta esteira, é fundamental apreender o forte apelo imaginário e social da maternidade, bem como sua inscrição política na sociedade. Convém assim, percorrer esse caminho para refletir sobre a entrega à adoção.
Escuta psicanalítica nos impasses da maternidade
As pesquisas de Menezes (2007) e Ramos e Gonçalves (2020) indicam que as gestantes justificam a entrega voluntária à adoção especialmente por razões socioeconômicas, as quais podem atingir especialmente mulheres em situações de vulnerabilidade social, racial e de gênero. Menezes (2007) identifica ainda intenso sofrimento psíquico, expresso muitas vezes como dúvidas, ambivalência, sentimento de culpa, exposição a constrangimento social e familiar em razão da intenção da entrega do bebê para adoção. Portanto, a escuta das gestantes que pretendem entregar o filho à adoção pode permitir a apreensão dos impasses do feminino no laço social, abarcando as experiências de exclusão pautadas em raça, gênero e classe.
Outros textos também enfatizam a questão social e econômica como aspecto de destaque na entrega de crianças. Leão, Martins, Faraj, Siqueira e Santos (2014) realizaram um estudo documental sobre mulheres que entregam seus filhos para adoção e, na maioria dos trabalhos analisados, as razões alegadas pelas gestantes ou puérperas para a entrega envolviam questões relativas à falta de condições materiais, abandono familiar, precariedade de condições de vida e de trabalho traduzidas como vulnerabilidade.
Rosa (2020) argumenta que a parentalidade comporta os exercícios das funções materna e paterna perante as novas gerações, e encontra-se na junção dos campos social e subjetivo, pois abrange ao mesmo tempo a esfera pública (com os aspectos sociais e políticos que a circundam) e a esfera privada (com a família e os novos e incessantes contornos que a redefinem). A autora refere que o nascimento de uma criança é evento do real que se reveste por uma inscrição como acontecimento social, a partir da qual são processadas as operações de nomeação, imprescindíveis à constituição subjetiva e à assunção das funções materna e paterna no laço social. Portanto, há algo da transmissão civilizatória da cultura entre as gerações, mas também, da continuidade das relações de poder e submissão em dada sociedade.
Ao refletir sobre o caráter sociopolítico, além de subjetivo, da parentalidade, emergem as questões desta natureza afeitas ao fenômeno da entrega voluntária à adoção. O percurso histórico das idealizações relativas à maternidade, arraigadas fortemente ao discurso social - além da fatídica condição de que tantas mulheres vivem processos de violência, exclusão social e econômica - faz pensar que, sobre essas mulheres incidem complexas forças sociopolíticas potencialmente geradoras de sofrimento. Esse tipo de sofrimento, nomeado por Rosa (2022) de sofrimento sociopolítico, promove um silenciamento do sujeito e o remete ao que a autora define como desamparo discursivo.
O desamparo discursivo, segundo Rosa (2022), refere-se à condição forjada no próprio laço social, quando não é reconhecida a historicidade e as relações de poder envolvidas nos processos de exclusão e sofrimento de alguns sujeitos e suas respectivas condições de classe, gênero, raça e outros. Ao contrário, remete-os a uma adesão a significantes que emudecem as possibilidades de enunciação do sujeito sobre sua própria história, suas dores e resistências.
No caso da maternidade, e o discurso que se apresenta na sociedade, a mulher que intenta desistir de ser mãe de um bebê gestado por ela, acaba reduzida ao significante de mãe-desnaturada ou da mulher-má, silenciando a pluralidade de questões envolvidas naquela experiência, bem como a subjetividade de cada uma em sua história pessoal e desejante. Nessa experiência, parece haver a tentativa de apagamento dos impasses que envolvem a maternidade e seu exercício. Muitas vezes são minimizadas e até negadas as circunstâncias de análise que exigiriam ponderar a exclusão social e a violência a que são submetidas as mulheres, especialmente pobres e pretas.
O silenciamento decorrente do desamparo discursivo desencadeia a condição traumática e retira a possibilidade de que as experiências possam ser compartilhadas e os sujeitos possam se enlaçar ao outro discurso social. É, portanto, na lógica da escuta dessa condição traumática que Rosa (2022) propõe que se exerça a posição clínica e política do analista frente ao desamparo discursivo. Promover uma escuta das gestantes para que, a partir da fala, essas mulheres possam reconstruir sua historicidade e, também, enfrentar os processos de exclusão e silenciamentos.
Segundo a autora,
(...) a direção do trabalho baseia-se também em transformar o emudecimento traumático em experiência compartilhada e em tornar possível a construção da posição de testemunha, transmissor da cultura (...). Desse modo, o sujeito pode localizar-se e dar sentido à sua experiência de dor, articulando um apelo que o retire do silenciamento e o relance no campo político (Rosa, 2022, p. 7-8).
Rosa (2022) enuncia ainda que, do lado do analista, pode operar uma resistência na escuta desse sofrimento, caso as condições sociais e subjetivas do analista estejam alinhadas com as forças de exclusão e geradoras do sofrimento do sujeito. Ela refere que pode haver, no analista, um conflito de lealdade a partir de sua posição no laço social. No campo em questão, a responsabilidade ética do analista está em se despir de seu lugar na classe social para escutar as mulheres sem repetir as forças de exclusão existentes na posição que ocupa e, também, considerar como lhe incidem subjetivamente os ideais da maternidade e a naturalização da mulher e mãe. Como afirma a pesquisadora, "a responsabilidade do psicanalista reside na necessidade e capacidade de ouvir a grande História que acompanha a história do sujeito" (Rosa, 2022, p. 7).
No Brasil, um dos caminhos para se pensar a exclusão social é tomar sua perspectiva interseccional, o que significa considerar aspectos de gênero, classe social e raça como mutuamente interdependentes dentro das relações sociais (Collins & Bilge, 2021). Isso significa assumir o sujeito não apenas em seu aspecto individual, mas inserido no laço social, em relações discursivas que permeiam a cultura e fornecem os ideais identificatórios para a constituição do ser.
O racismo, como conceituado por Almeida (2021), é sempre estrutural, encontrando-se presente de maneira profunda na sociedade historicamente marcada por processos produtivos de exploração determinados por raça. Segundo o autor, "o racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea" (Almeida, 2021, p. 21). Uma das formas mais violentas de exclusão social reside no racismo, que desqualifica, criminaliza, reduz sujeitos a dejetos descartáveis e dirige ódio e desejo de aniquilação (Rosa et al., 2019). Racismo, portanto, constitui-se em uma forma de dar continuidade às relações hierarquizadas na sociedade, mantendo-se a estrutura de dominação e subordinação no laço social.
Ramos e Gonçalves (2020) problematizam a "voluntariedade" das entregas de bebês em adoção, e elucidam que, historicamente, mulheres negras foram privadas do acesso às políticas sociais e econômicas, compondo a parcela da população brasileira marginalizada. Ao analisarem processos de entrega voluntária à adoção em uma comarca do interior de São Paulo, as autoras identificaram a maioria de mulheres pretas, no recorte estudado. As autoras refletiram se isso não seria efeito de uma sociedade de exclusão e racismo que perdura, e relega pessoas negras à margem das condições dignas de sobrevivência. Em acréscimo, elas exprimem que é importante que as políticas sociais e jurídicas relativas à entrega voluntária à adoção incluam os recortes de classe e de raça.
Especificamente em relação à violência sexual, os indicadores sociais apresentam recortes racial e de gênero relevantes. O Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], do decênio de 2007 a 2017 (IPEA, 2019), revela que as mulheres negras sofrem mais violências do que as mulheres não negras, inclusive as violências letais; especificamente, quanto à violência sexual, esse índice também é maior para as mulheres negras. O documento aponta o quanto esses dados indicam a desigualdade racial como importante fenômeno da violência e ainda, a dificuldade do Estado de garantir a universalização das políticas públicas (IPEA, 2019).
Trazer a lúmen a leitura racial e social para pensar os modos de subjetivação mostra-se imprescindível ao se propor uma clínica social e política, comprometida com a contextualização social e cultural do sujeito. Significativa parte da população atendida nos processos judiciais que chegam à Justiça trazem à tona a realidade que compõe a situação social do país, como a maioria das famílias pobres chefiadas por mulheres e as desigualdades raciais como marco importante desses indicadores. Desse modo, é relevante refletir sobre o quanto as condições sociais podem se constituir como atravessamento alarmante na vida dessas gestantes, de modo não apenas objetivo, mas também com efeitos psíquicos na experiência da gestação e no vínculo delas com seus bebês.
No trabalho que se realiza com a escuta das gestantes no judiciário, a escuta possível acontece a partir da fala e da produção narrativa e singular de cada mulher diante da profissional do judiciário. A escuta psicanalítica, em uma tessitura que busca permitir sentidos às experiências das gestantes, pretende acessar o desejo e o discurso dessas mulheres. Para a configuração dessa modalidade de atendimento, a Psicanálise pode se constituir como uma abordagem possível, mesmo no campo institucional em que se insere, posto que não está restrita ao campo estritamente clínico, mas se mostra aplicável à abrangência institucional (Campos, 2021).
Metodologia
Na pesquisa que originou o presente artigo, a temática foi abordada por meio do estudo de três casos previamente atendidos no acompanhamento realizado no processo judicial de entrega voluntária à adoção.
A investigação foi apresentada ao Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 52683221.8.0000.5152) e, após aprovação, foram obtidas as autorizações das participantes, conforme Termo de Conhecimento Livre e Esclarecido-TCLE.
As participantes da pesquisa foram atendidas em momentos distintos e, somente após concluídos todos os acompanhamentos, os passos metodológicos foram delineados, iniciando-se pela escolha dos casos a serem trabalhados. Na sequência, foi solicitado à Vara da Infância e Juventude o desarquivamento dos autos dos processos judiciais referentes aos três casos selecionados.
As mulheres foram contactadas e, conforme disponibilidade, foram agendadas as entrevistas. Os encontros com as participantes aconteceram vários meses após o encerramento do acompanhamento formal para a entrega legal do bebê para adoção.
Para a escrita do presente artigo, optou-se pelo recorte do trabalho e apresentação e discussão de um dos casos analisados e, tal escolha se constituiu a partir dos efeitos e inquietações que insistiam em emergir, mesmo após concluído o acompanhamento da gestante, convocando à investigação. Foram as experiências de solidão, desamparo e impotência apresentadas que, pelos efeitos transferenciais, conduziram à escolha para a investigação proposta.
De acordo com Campos (2021), a pesquisa em Psicanálise, definida como aquela que instrumentaliza a escuta psicanalítica a partir da transferência, configura-se tanto como intervenção quanto como construção teórica e não está adstrita ao contexto clínico. Incluída neste delineamento metodológico, insere-se a investigação de fenômenos da cultura em sua dimensão sociopolítica e a aplicação do método e da escuta psicanalítica em intervenções institucionais, que caracterizam a Psicanálise em extensão, ou Psicanálise aplicada. Para apreensão do fenômeno em questão, optou-se pela abordagem que privilegia o caráter de extensão da Psicanálise e sua aplicação em contexto institucional e, por isso, abordou-se a temática pesquisada por meio da discussão de caso.
Sobre o caso escolhido, ao longo dos atendimentos psicológicos realizados com a gestante, ela foi convidada a falar sobre suas histórias de vida, suas relações familiares atuais e anteriores, permitindo-se que escolhesse livremente os percursos da narrativa. Os atendimentos se processaram ao longo de três meses, sendo realizados sete atendimentos por meio de ligação telefônica e dois atendimentos presenciais, dos quais foram extraídas vinhetas com as falas literais da participante e apresentadas na análise e discussão deste artigo. Somente após concluídos todos os acompanhamentos, os passos metodológicos da pesquisa foram delineados.
Então, a pesquisa envolveu dois momentos: a consulta aos registros documentais dos atendimentos psicológicos realizados anteriormente e as entrevistas com as gestantes para a obtenção do TCLE. Ao retornar à leitura desses documentos, foram acessadas informações e anotações e foi rememorado e reconhecido o universo do material fundamental da pesquisa. Essa retomada permitiu a redação do Diário Clínico construído a partir do retorno ao trabalho clínico anteriormente desenvolvido. O Diário configurou-se como documento narrativo memorialístico, pois aconteceu a posteriori, recurso de rememoração da escuta que se empreendeu com reverberações e construções linguageiras da escrita genuína (Rocha & Guerra, 2021).
Análise e discussão do caso Medusa
No mito de Medusa, ela era muito próxima a Atena e foi estuprada por Poseidon. Contudo, Atena não acreditou na ocorrência da violência. Transformou os cabelos de Medusa em serpentes e lançou uma maldição: quem olhasse para ela se transformaria em pedra. Esse mito, por vezes evocado apenas a partir da maldição e da imagem da mulher com cabeça de serpente, isto é, uma figura terrificante, mantém silenciada a violência e representa o desmentido por parte de Atena (Matheus, 2015).
Assim como a deusa mitológica, a mulher gestante participante desta pesquisa foi vítima de estupro e enfrentou, além da experiência da violência em si, a gestação decorrente e o descrédito familiar e social. Assim, para fins deste trabalho, nomearemos a participante com o nome fictício de Medusa, uma mulher de 20 anos, negra, moradora de um assentamento, marcada pela pobreza extrema e pelo desamparo, em cujo corpo muito magro despontava uma barriga de cinco meses de gestação, para a qual ela evitava olhar. A família de Medusa era composta pela mãe, irmã com três filhos e cunhado. A relação com a irmã estava abalada porque o marido da irmã estuprou Medusa, violência que redundou na gravidez. Como Atena, no mito grego, a irmã de Medusa não acreditou no relato de estupro. De forma análoga, a comunidade do assentamento onde viviam omitiu-se em chamar a polícia para não prejudicar as relações comunitárias.
A voz trêmula e a fala acelerada marcaram o primeiro contato com Medusa, que se deu pelo telefone. Era julho de 2020, o cenário da pandemia de Covid-19 assolava o mundo, com altos índices de contaminação no Brasil, sem perspectiva vacinal e sem leitos suficientes em hospitais. Para adaptação dos atendimentos a esse contexto, adotou-se a modalidade remota, preferencialmente por chamadas de vídeo, mas Medusa expôs que não possuía rede de internet suficiente para o vídeo e foram realizadas ligações telefônicas que configuraram o formato e setting de atendimento.
Medusa teve a história de vida marcada pela experiência de ter sido uma criança que circulou por diferentes famílias. Ela viveu em diversos lares de familiares desde que se configurou a impossibilidade de receber cuidados maternos e paternos. A genitora, portadora de sofrimento mental, espalhou os filhos porque não conseguia cuidar deles. Antes disso, o genitor teria abandonado a família, sendo desconhecido seu paradeiro. Fonseca (1995) alude como a circulação de crianças adquiriu um significado cultural e social importante nas comunidades mais pobres, formando as redes de parentesco e cuidados. A autora reconhece que a pobreza é um fator chave para desencadear a prática que se sustentou ao longo de anos como modo de organização social das famílias, especialmente aquelas de mais baixa renda. No caso de Medusa, a circulação aconteceu em razão das limitações de saúde da genitora, conforme apresentado pela gestante:
A mãe tem transtorno bipolar do humor e tem depressão e síndrome do pânico. Ela nunca teve condição de cuidar dos filhos. Os três filhos foram espalhados e só adultos se reuniram. Eu morei nas casas de umas tias, mas não era convívio bom não. Tinha que cuidar de 17 cachorros, arrumar a casa toda e ainda estudar e trabalhar para ajudar nas despesas. (Medusa)
A relação atual de Medusa com a mãe convocava-a a assumir um lugar de cuidado. Contudo, Medusa apresentava, ao longo do acompanhamento, intensa angústia frente às demandas de saúde, física e emocional, da genitora, e ela definia-se como a única disponível a atender as necessidades da mãe. Em suas palavras, É ela na frente de tudo (Medusa), apontando para o lugar de primazia do atendimento das demandas maternas, que se mostravam insaciáveis.
A mãe é muito nervosa e precisa tirar o útero, é um caso sério. E ninguém da família quer cuidar dela porque ela é muito agitada, nervosa. Aí eu vim trazer ela para fazer a cirurgia aqui, mas não sai a cirurgia. Eu fico corre daqui e corre dali, mas não sai a cirurgia. É muita luta… Eu tento manter o controle, tenho que ter paciência… às vezes precisa conter ela… Ela sente muita dor, fica se batendo, tentando arrancar o útero. É ela na frente de tudo. (Medusa)
O útero, órgão feminino ligado à fertilidade, se revertia para ambas, mãe e filha, em fonte de sofrimento. Enquanto uma se contorcia e sangrava, em busca de cirurgia, a outra abrigava um corpo que materializava a violência sexual sofrida. Medusa não se refere à mãe usando o pronome possessivo "minha" ao longo do acompanhamento. Sua fala, ao se referir à mãe traz um tom distante e impessoal: aquela é a mãe, mas não a minha mãe. Nessas nuances da linguagem emergem os conteúdos que estão recobertos pela realidade apresentada e sinalizam o frágil laço entre elas.
Sem o reconhecimento da condição de vítima, a experiência traumática inominável afasta a possibilidade de serem colocadas em palavras as violências sofridas, ocorrendo o segundo momento do trauma, o desmentido conceituado por Ferenczi (1931/1992). O autor, referindo-se ao trauma relacionado a situações de violência sexual infantil, especifica, a partir de observações clínicas, que quando os adultos, assumidos como protetores para a criança, não acreditam nos relatos da violência sexual, ocorre o desmentido. O autor acentua e atribui maior gravidade a essa negação da experiência vivenciada, do que a experiência traumática em si (Ferenczi, 1931/1992).
É preciso refletir sobre a violência sexual contra a mulher, que em nossa sociedade responde a partir da cultura do estupro (Sousa, 2017). Além disso, é pertinente considerar as dificuldades enfrentadas por estas mulheres para terem suas denúncias e narrativas sobre a vitimização reconhecidas e validadas juridicamente e socialmente (Almeida, 2014). É possível pontuar o quanto a não validação e visibilização da violência pode ter, como efeito, um segundo momento traumático para as mulheres vítimas de violência sexual. Almeida (2014), ao analisar discursos jurídicos em processos sobre estupro, concluiu que as decisões judiciais se mostraram pautadas em discursos sociais machistas e misóginos, resultando em mais uma violência direcionada à vítima.
Após cerca de quatro atendimentos Medusa relatou a violência sexual sofrida:
Ele era marido da minha irmã e pegou um barraco para levantar no assentamento. Aí ele pediu minha mãe para eu ir ajudar ele. Achei aquilo estranho, mas eu fui. Quando chegou na obra ele já veio no ataque, jogou água na minha cara e falou que eu era bonita. Rasgou minha roupa e eu não consegui sair não. Ele era mais forte que eu não. Eu nunca imaginava aquilo não. Saí correndo e não contei para ninguém. Pouco tempo depois ele foi preso porque o carro dele pegou fogo e quando a polícia veio, viu que ele tinha outros crimes e estava foragido. Levaram ele preso. (Medusa)
Ela descobriu a gravidez resultante do estupro quando estava com vinte e uma semanas de gestação, ocasião em que a violência sexual foi revelada. A mãe dela era contra a denúncia, considerando que o agressor já se encontrava preso por outros crimes cometidos. Ao mesmo tempo, Medusa se referia à violência como o fato que aconteceu comigo, apresentando dificuldade em nomear, inicialmente, a violência sofrida:
Minha irmã não acredita que isso partiu do homem. Ela saiu gritando na rua e berrando 'minha irmã pegou meu homem'. … Ela ficou sem falar comigo e depois dizia que ninguém no assentamento acreditaria em mim. Ela não acredita. … não fiz denúncia porque minha mãe não aceita e o coordenador da comunidade disse que não pode sujar a imagem do assentamento. … Sinto uma revolta, no começo era só desespero, me vi sem saída, não tinha apoio de nenhum dos lados. Era só desespero. Depois do atendimento da psicóloga do hospital comecei a pensar numa saída. (Medusa)
Medusa explicitava aos poucos o impacto subjetivo de ter sido desacreditada da violência sexual sofrida. A falta de apoio e reconhecimento de sua condição de vítima, pela família e comunidade, a levaram a experimentar uma solidão arrebatadora que a impedia de pensar em alternativas. A impotência emergia fechando as saídas, destituindo-a de suas possibilidades de elaboração. Ao final desse atendimento com a psicóloga, Medusa falou sobre ter se sentido ouvida naquela sessão, demarcando a relevância da escuta que permitiu o reconhecimento da experiência de Medusa em desamparo discursivo, bem como Rosa (2022) preconiza.
Ao acolher a história de Medusa e acreditar em seu relato, subverteu-se a lógica do desmentido em que ela estava absorta. Em um dos poucos atendimentos presenciais com a psicóloga, ela respirou fundo em dado momento e, em seguida, disse: acho que é a primeira vez que acreditam em mim quando conto 'o fato que aconteceu comigo' (Medusa). A dimensão sociopolítica da escuta, que se fundamenta na ampla compreensão dos campos de vida do sujeito - contexto, preconceito, vulnerabilidade e afetividade - se efetiva no vínculo e, nessa fala de Medusa, escancara a urgência dessa escuta e os efeitos que ela proporciona.
A escuta pode se configurar como elemento no fazer clínico, convocando o psicanalista ao lugar do testemunho, dando lugar no laço transferencial ao que está excluído e que é silenciado pelos processos de opressão e exclusão social. Segundo Gondar e Antonello (2016), "testemunhar, da parte do analista, não implica apenas acolher ou conter. Implica, primordialmente, reconhecer. O reconhecimento pode ser entendido como a necessidade vital que possui todo indivíduo de ser visto, ouvido, aprovado e respeitado pelo seu entorno" (p. 19).
Acrescenta-se que Medusa, jovem e negra, evocou em sua narrativa marcas da escravização que, eliminada enquanto meio de produção formal, insiste e se faz presente no real do corpo e no laço social. Medusa trabalhou por horas a fio para receber moradia desde o início da adolescência, numa condição análoga à escravidão. Em suas palavras:
Eu morei com uma tia minha porque não tinha onde ir. Eu tinha que fazer tudo, cuidar da casa, fazer comida, tudo! E ainda cuidava dos quartorze cachorros. Eu acordava as 4 horas da manhã para cuidar deles e limpar a sujeira deles antes de começar as outras coisas da casa. Ia assim até a noite... era uma vida muito difícil... (Medusa)
Sua condição de vida e moradia, em barraco de lona, sem condições de higiene e saneamento básico, situação sub-humana, remete às antigas senzalas. Ela relatou sobre a casa onde morava:
A gente aqui mora em situação de precariedade, sabe? Não tem água. Para ter água para cozinhar e tomar banho, a gente acorda as quatro da manhã e vai até o final do assentamento buscar água no poço, num reservatório. Se chover, a água corre embaixo dos pés da gente porque o barraco é somente de lona, sabe? A gente cozinha e esquenta água no fogão a lenha, que a gente tem que pegar no mato. É uma luta! Todo dia é uma luta! (Medusa)
Narrou que o barraco de lona onde morava pouco os protegia das chuvas e, quando chovia, a água acumulada no chão escorria como um rio aos seus pés. Ela acrescentou:
A vida aqui é muita luta, muita mesmo. Nunca pensei que seria assim. Tem que levantar de madrugada pra pegar água pra tudo, beber, tomar banho, cozinhar…e não tem geladeira. Tem que buscar lenha no mato para cozinhar no fogão de lenha. É muita luta. (Medusa)
A fome, a miséria e a violência sexual compõem o cenário social de boa parte das mulheres negras como Medusa. Ela conta que recebeu atendimento no ambulatório público de serviço especializado a vítimas de violência sexual, onde foi ofertada a realização do aborto legal, direito garantido por lei. Entretanto, ela falou que não foi viável a realização do procedimento devido às precárias condições em que vivia e que foi, então, encaminhada ao Programa de entrega voluntária. Em suas palavras:
No início eu me vi sem saída, eu não tinha apoio de nenhum dos lados. Entrei em total desespero... Aí depois do atendimento psicológico no ambulatório, eu vi uma saída... Agora já me sinto mais forte e mais tranquila. Estou agora lutando para fazer essa entrega. (Medusa)
Como o aborto legal é um direito garantido por lei (Medeiros, 2021) e Medusa recebeu o atendimento em órgão especializado, pareceu estranho o seu relato sobre a não realização do procedimento. Evidentemente, seu relato foi acolhido como suas construções possíveis, considerando-se ser aquela sua narrativa a maneira possível para Medusa de elaborar sua história para ter chegado até ali. Entretanto, para melhor compreensão do caso, buscou-se contato com a equipe do ambulatório que, ao acessar o prontuário de Medusa, informou constar um registro de que, após ter conversado com o irmão e com um líder da comunidade, Medusa havia decidido iniciar o pré-natal e desistir do aborto. Esse dado somou-se aos demais para tornar a situação de violência simbólica de Medusa ainda mais pungente. Escolhas foram ceifadas dessa mulher, que teve que manter uma gestação sob intenso sofrimento.
Durante os atendimentos foi se tornando evidente o sofrimento de Medusa na vivência da gestação. Em suas palavras:
Eu estou lutando para fazer essa entrega. Se não der certo no Fórum, eu vou dar um jeito (...) Tenho pressa que isso acabe logo e eu fique livre, sabe? Mas estou com medo de não dar certo. Mas tem que pensar positivo, né?. (Medusa)
Para ela, a possibilidade de imaginar um bebê ao longo da gravidez se mostrou ainda mais precária. Seu discurso sinalizava a experiência de ter um corpo, em seu ventre, tomado como marca da violência sexual sofrida. Ela mencionou que evitava pensar, porque quando pensava, rememorava o estupro. Portanto, referia-se ao bebê como o meu problema. Ao ser perguntada sobre o que seria esse problema, ela falava: entregar, será que vai dar certo entregar a criança?.
Foram poucas as menções de Medusa sobre esse bebê. Sempre que falava em algo sobre a gravidez, sua fala se direcionava ao sentimento de urgência em finalizar aquela condição. Quando perguntada sobre o ultrassom, pré-natal, ela chegou a falar o sexo anatômico do bebê e logo retornou a narrar a urgência de que tudo acabasse: É uma menina... às vezes sinto um empurrão, mas não fico com aquilo na cabeça. Para mim aquilo não existe. Tenho pressa de tudo resolver logo... quero ficar livre, sabe?.
A situação de concepção do bebê de Medusa, através da violência, provocou um trauma que perdura e é atualizado a partir das sensações físicas que a remetem à gravidez. Suportar uma gestação fruto de um estupro pode ser uma violência e um prolongamento da vitimização. Em pesquisa realizada com mulheres que foram vítimas de estupro e engravidaram, Nunes e Morais (2016) identificaram relatos de angústia frente à gestação, a não vinculação ao bebê e ao fato de a gestação ser a rememoração da violência. Nas narrativas de Medusa, não se identificava construções imaginárias sobre o bebê. Ele estava ali, habitava o corpo dela, mas não estava presente em seu psiquismo enquanto sujeito. Apesar de compartilharem tão intimamente um corpo, o bebê era para ela um estranho.
Medusa teve um parto natural após horas de sofrimento. Segundo informado pela equipe de Serviço Social do hospital, logo após o nascimento, ela irrompeu em choro intenso. Ela não quis ver o bebê. O hospital propiciou alojamento individual para Medusa, que permaneceu sozinha no quarto. No atendimento realizado ainda durante sua internação, ao tocar no tema do parto, a fisionomia de Medusa se transformava. Ela emudecia e seu silêncio parecia tangenciar o que era inominável.
A situação de Medusa suscitou reflexões sobre a incidência de mais uma forma de violência sobre a mulher vítima de estupro que decorre em gravidez, ao ser retirada dela a possibilidade de escolher a via de parto. Medusa foi vítima da violência sexual, da invalidação de sua fala sobre a violência no discurso familiar e social, evidenciou intenso sofrimento psíquico relativo à manutenção da gestação e enfrentou um parto de dor intensa.
No parto natural, o componente da dor é inerente, mas o investimento libidinal no filho, e naquilo que pode resultar daquela experiência, bem como o suporte das pessoas naquele momento, permitem fortalecer o sujeito no enfrentamento da experiência (Vendrúscolo & Kruel, 2015). Medusa estava sozinha, pariu o fruto da violência, uma criança que não se inscreveu como filho, e sim como problema. Em razão dessas questões, considera-se importante garantir à gestante vítima de estupro que decorre em gravidez (além do direito ao aborto já previsto em lei) que, caso ela decida manter a gestação, tenha a opção de escolher a via de parto. Analisando-se de maneira mais ampla os casos de entrega voluntária à adoção, oferecer esta opção para a mulher se apresenta como mais uma forma de cuidado e respeito.
A escuta psicanalítica no encaminhamento e desenvolvimento do caso se inscreveu como fundamento. O vínculo, as chamadas "informações" trabalhadas e a possibilidade de se pensar a história, a indignação e as impotências vivenciadas deram visibilidade a Medusa. Ela, mulher, pôde reconhecer o seu problema e, para além de entregar o bebê, foi acolhida na sua fragilidade e amparada no seu direito. Referimo-nos assim, à potência da escuta psicanalítica no campo jurídico.
Considerações finais
A escuta das gestantes que buscam o judiciário para realizar a entrega voluntária à adoção descortina e atravessa a vida dessas mulheres, e abarca as experiências de exclusão, racismo, pobreza, violência e abandono. Nesse processo, ficam incluídas ainda as (im)possibilidades dessas mulheres se tornarem mães. Nesse sentido, há algo da mulher, antes da gestante que busca a entrega, que merece ser descortinado, escutado.
A escuta psicanalítica permitiu acessar e pensar as sutis malhas da dominação e exclusão que emolduram o cenário cruel da maioria das mulheres que busca pelo Programa de Entrega Voluntária. Contudo, acentua-se a urgência da qualificação de psicólogos e/ou psicanalistas em apreender a escuta clínico-política. Ainda, é premente que se reconheça a precariedade das políticas públicas para promoção social e diminuição das desigualdades sociais. Desconsiderar essas questões é uma maneira de culpabilizar o sujeito e recalcar as importantes implicações do ambiente na vida das mulheres.
Por fim, ousamos pensar que a chegada dessa temática no contexto judiciário abre possibilidades para se discutir mais amplamente as questões afeitas à mulher e seus direitos, bem como a ampliação de políticas públicas, promovendo-se maior acesso a creches, efetiva prevenção da violência, garantia do direito ao aborto legal, dentre outros, alcançando mulheres em condições de exclusão social e opressão racial e/ou de gênero, vítimas de violência e invisibilizadas sob o argumento da maternidade instintual.
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Endereço para correspondência
Daniela Torres Gonçalves Santos Pedruzzi - danielatgs@yahoo.com.br
Recebido em: 28/06/2023
Aceito em: 21/10/2023
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