Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e77213, doi:10.12957/epp.2024.77213
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
O Cultivo da Atenção a Si: Ressonâncias entre a Pesquisa Cartográfica e as Práticas Somáticas
The Cultivation of Inward Attention: Resonances between Cartographic Research and Somatic Practices
El Cultivo de la Atención a Sí Mismo: Resonancias entre la Investigación Cartográfica y las Prácticas Somáticas
Manuela Linck de Romero a, Virginia Kastrup a
a Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Tomando como referência a ecologia da atenção de Yves Citton e a análise do movimento de Hubert Godard, o objetivo deste estudo é apresentar ressonâncias entre o modo como o cultivo da atenção a si é discutido na pesquisa cartográfica e nas práticas somáticas no contexto da dança. Tendo como ponto de partida três práticas encontradas na dança Contato Improvisação - a pequena dança, a caminhada imaginada e o toque somático - o artigo apresenta as práticas somáticas como criadoras de um ecossistema atencional que se abre para as dimensões tônico-afetiva e tátil-cinestésica da experiência, favorecendo o acesso ao plano coletivo de forças e afetos. Isto sugere que a atenção aí cultivada produz uma qualidade de presença a si e ao mundo que a aproxima da atenção cartográfica, concentrada e aberta, tornando o praticante uma espécie de cartógrafo de si mesmo. Por outro lado, o estudo aponta que a atenção cultivada por meio de práticas somáticas pode concorrer para a formação do pesquisador cartógrafo, ao criar condições para a aprendizagem de uma atenção a si, ao outro e ao território de investigação.
Palavras-chave: atenção a si, atenção cartográfica, práticas somáticas, contato improvisação, ecologia da atenção.
ABSTRACT
With reference to Yves Citton's ecology of attention and Hubert Godard's movement analysis, the aim of this study is to present a number of connections between how the cultivation of inward attention is discussed in cartographic research and in somatic practices in the context of dance. Taking as a starting point three practices found in the dance Contact Improvisation - the small dance, the imagined walk and the somatic touch - the article presents somatic practices as creating an attentional ecosystem that works with the tonic-affective and tactile-kinesthetic dimensions of experience, which facilitate the access to the collective field of forces and affects. It suggests that the attention cultivated in this context develops a quality of presence to oneself and to the world that approaches that of cartographic attention, which is concentrated and open, turning the practitioner into a kind of cartographer of oneself. On the other hand, the study points out that the attention cultivated by means of somatic practices can contribute to the training of the cartographic researcher, by creating conditions for the learning of an attention turned inward, towards the other, and the territory of investigation.
Keywords: inward attention, cartographic attention, somatic practices, contact improvisation, ecology of attention.
RESUMEN
Tomando como referencia la ecología de la atención de Yves Citton y el análisis del movimiento de Hubert Godard, el objetivo de este estudio es presentar resonancias entre cómo se discute el cultivo de la atención al yo en la investigación cartográfica y en las prácticas somáticas en el contexto de la danza. Tomando como punto de partida tres prácticas encontradas en la danza Contacto Improvisación - la pequeña danza, el paseo imaginado y el toque somático - el artículo presenta las prácticas somáticas como creadoras de un ecosistema atencional que se abre a las dimensiones tónico-afectiva y táctil-cinestésica de la experiencia, favoreciendo el acceso al plano colectivo de fuerzas y afectos. Eso sugiere que la atención ahí cultivada produce una cualidad de presencia a sí mismo y al mundo que la aproxima a la atención cartográfica, concentrada y abierta, haciendo del practicante una especie de cartógrafo de sí mismo. Por otro lado, el estudio señala que la atención cultivada a través de prácticas somáticas puede contribuir a la formación del investigador cartográfico, al crear condiciones para el aprendizaje de una atención a sí mismo, al otro y al territorio de investigación.
Palabras clave: atención a sí mismo, atención cartográfica, prácticas somáticas, contacto improvisación, ecología de la atención.
Breve Introdução à Ecologia da Atenção e à Atenção Cartográfica
No livro Pour une écologie de l'attention, Yves Citton propõe uma reversão importante na maneira tradicional de conceber a atenção. Criticando o individualismo metodológico característico dos estudos da "Economia da Atenção", que se baseia no entendimento da atenção como acontecendo entre sujeito-objeto ou indivíduo-mundo, considerados como duas realidades ou polos pré-existentes, Citton coloca o problema da potência individuante da atenção, ou seja, de como a atenção participa dos processos de subjetivação.
A abordagem ecológica aponta que há diversos regimes atencionais através dos quais somos levados a perceber o mundo não só por meio de representações, mas também de afetos:
Considerar a diversidade de nossos meios como comportando diferentes regimes atencionais implica em acrescentar uma dimensão modal (e afetiva) ao que viemos considerando até então sob um plano fatual (e cognitivo). A atenção não é somente uma questão de objetos percebidos e identificados mais ou menos corretamente ou de recursos limitados cuja distribuição coloca os objetos em rivalidade entre si. Ela se caracteriza também por toda uma paleta de qualidades e maneiras bastante diferentes de se estar atento ao que nos rodeia (Citton, 2014, p. 66).
É preciso considerarmos os processos coletivos, transindividuais e relacionais que, por meio de um complexo jogo que envolve as estratégias midiáticas e capitalísticas, engendram diferentes regimes atencionais. Nesse sentido, quando nos referimos à atenção de uma pessoa, a mesma é entendida aqui como resultante de uma produção coletiva e possuindo também uma potência individuante. A abordagem ecológica nos convida a pensar em termos de ecossistemas atencionais que criam condições de produção e atualização de diferentes regimes de atenção. Por exemplo, a sala de aula é um ecossistema atencional. Além do professor e dos alunos, a própria materialidade do espaço e a disposição dos corpos nele participam desse ecossistema, que varia quando o professor ocupa o centro das atenções e quando a aula assume um caráter mais participativo e descentralizado, em formato de rede de troca de saberes, por exemplo. Da mesma maneira, podemos pensar as ruas, as praças, espaços de dança e de artes enquanto ecossistemas que favorecem certos regimes atencionais, podendo dificultar outros.
Quanto à atenção na pesquisa cartográfica, ela é caracterizada por uma qualidade de concentração, abertura e receptividade ao plano coletivo de forças e afetos (Kastrup, 2007). Nela estão implicados os três gestos atencionais definidos pela pragmática fenomenológica de investigação da experiência em primeira pessoa, proposta por Natalie Depraz, Francisco Varela e Pierre Vermersch (2011): suspensão, redireção e deixar-vir (lâcher prise ou letting-go).
O primeiro gesto cognitivo é o gesto de suspensão, formulado por Edmund Husserl. Esse gesto vem suspender os juízos sobre o mundo (épochè), rompendo com a atitude atencional voltada para a vida prática. Ele refreia o fluxo habitual do pensamento e se desdobra em dois outros gestos da atenção: o de redireção e o de deixar-vir (lâcher prise ou letting-go). A redireção indica uma mudança da direção da atenção que, habitualmente voltada para o exterior, se volta para si. Já o gesto de deixar-vir se refere a uma mudança de qualidade da atenção, que deixa de buscar informações ou algo definido, para acolher o que emerge no campo da pesquisa.
Tanto a atenção voltada para si quanto os gestos atencionais de abertura, receptividade e acolhimento ocorrem sob a qualidade não-judicativa do gesto de suspensão, que é, a rigor, uma suspensão da atitude de recognição. Os gestos atencionais de suspensão, redireção e deixar-vir não constituem três momentos sucessivos da experiência, mas se encadeiam, conservando-se e entrelaçando-se. Uma vez que em nosso estado de consciência habitual cotidiano a atenção é voltada para o exterior, para a recognição e para a vida prática, estes gestos são contra-intuitivos, é preciso cultivá-los. A flutuação, a fluidez e a modulação também são características da atenção cartográfica e constituem o pano de fundo da discussão (Kastrup, 2007).
Quatro variedades ou gestos atencionais caracterizam a atenção cartográfica: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento. O rastreio se refere à qualidade da entrada do cartógrafo no campo de pesquisa: em um primeiro momento, sem meta pré-definida, sem saber onde colocar a atenção. O que ele vai notar aparecerá de maneira mais ou menos imprevisível. Podemos dizer que no gesto de rastreio a atenção não busca informação, mas segue rente ao processo de pesquisa.
A atenção do cartógrafo explora o campo de modo a-sistemático até que, em uma atitude de ativa receptividade, ela seja tocada por algo. Eis a segunda variedade ou gesto atencional do cartógrafo: o toque. Percebido como uma rápida sensação, ele acontece como um primeiro vislumbre que ativa então a seleção. Trata-se de uma seleção que acontece independentemente do interesse e da ação, como no gesto de notar: um contato leve e momentâneo que carrega consigo uma potência de afetação. Algo "toca" o cartógrafo a nível das sensações e muda sua paisagem perceptiva, remetendo a um processo em curso que requer atenção.
A terceira variedade é o pouso. A atenção faz um pouso e o campo perceptivo se fecha, formando um zoom. Não se trata de focalização, mas de reconfiguração do campo de observação. Seja por meio da modalidade visual, auditiva ou outra, a atenção muda de escala, mas também de dimensão, orientando-se do plano das formas para o plano das forças moventes, ou seja, é um pouso que "não deve ser entendido como uma parada do movimento, mas como uma parada no movimento" (Kastrup, 2007, p.17), sensível à qualidade processual.
O reconhecimento atento é a quarta variedade. Ela se refere a como devemos proceder quando alguma coisa chama a atenção e reconfigura o nosso campo de observação. Ao invés de fazermos a pergunta "o que é isso?", a qual suscita a recognição, sustentamos o gesto de suspensão. A atitude investigativa do cartógrafo é então formulada como um "vamos ver o que está acontecendo". O que está em jogo é acompanhar um processo. Segundo Bergson (1990), o reconhecimento atento é oposto ao reconhecimento automático ou sensório-motor, em que a atenção dispara uma resposta motora, uma ação voltada para a vida prática.
Na experiência do reconhecimento atento, algo toca o sujeito e ele permanece com a atenção voltada para algumas características daquilo que lhe chamou atenção. Deleuze (1984) comenta sobre a possibilidade de o sujeito reter do objeto de atenção algum fragmento em princípio sem importância, como por exemplo, uma certa maneira de andar ou algo da silhueta de alguém. Trata-se de extrair alguma característica singular, voltar a atenção a si, lançando um apelo, e então retornar para o objeto. Lançando um apelo a algo que o sujeito não sabe, mas que o leva a uma zona do passado. Trata-se de voltar a atenção para si com o fragmento e retornar ao objeto para ver se o que foi trazido entra em coalescência. Se não for o caso, convém voltá-la uma segunda vez, uma terceira, quarta vez, indefinidamente. Assim, com uma percepção atenta, diferentemente do que se passa no reconhecimento automático, ao invés de ser lançada para uma ação futura, a atenção é lançada a imagens do passado conservadas na memória. Ela forma então uma infinidade de circuitos possíveis, nos quais o imaginário e o real correm um atrás do outro, refletindo-se um no outro.
A percepção é construída por meio do acionamento dos circuitos da atenção e da expansão da cognição. A atenção amplia, flutua, desliza, sobrevoa e muda de plano, produzindo dados que, paradoxalmente, já estavam lá. Por meio dos circuitos que percorre, a atenção atinge algo "virtualmente dado" e, assim, o reconhecimento atento participa do processo de coengendramento do sujeito e de sua percepção das coisas, dos outros, de si e do mundo.
Neste artigo, nosso objetivo com o presente estudo é apresentar ressonâncias entre o modo como o cultivo da atenção a si é discutido no contexto da pesquisa cartográfica e nas práticas somáticas no contexto da dança. Tomando como referência a ecologia da atenção de Yves Citton e a análise do movimento segundo Hubert Godard, apresentamos as práticas somáticas como criadoras de um ecossistema atencional que se volta para a dimensão tônico-afetiva e tátil-cinestésica da experiência, favorecendo o acesso ao plano coletivo de forças e afetos. Neste contexto, as dimensões tônico-afetiva e tátil-cinestésica da experiência dizem respeito aos corpos em sua materialidade e sensorialidade, por meio das quais a comunicação entre eles é direta e não verbal. A pesquisa analisa três práticas atencionais no contexto da dança Contato Improvisação - a pequena dança, a caminhada imaginada e o toque somático.
Habitando Ecossistemas de Práticas Somáticas
O campo teórico das práticas chamadas somáticas vem se configurando desde os anos 1970-1980, a partir das release techniques, que floresceram como base da dança pós-moderna americana. Algumas práticas dançadas, outras não, elas se misturaram e influenciaram umas às outras nutrindo o campo da dança. Essa mistura, em que é difícil distinguir o que vem de cada uma, foi importada na Europa e agrupada no campo da somática também na América Latina, conferindo a ele um caráter transdisciplinar, com diferentes métodos e inserindo-se em diversas áreas, como as artes, a educação, a saúde, as neurociências, entre outras (Roquet, 2019).
O termo "somática" faz referência à definição dada pelo filósofo Thomas Hanna (1995) ao termo grego "soma", que designa o "corpo vivo", para abordar "o corpo enquanto percebido de dentro, do ponto de vista interno, em primeira pessoa" (p. 341). Hanna também se baseia na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, propondo com o "soma" pensar o corpo vivo de modo integrado e não dualista. Além do termo "prática", frequentemente encontramos o termo "método" que, segundo Isabelle Ginot (2012), é também utilizado para se referir a essas práticas corporais nas quais há uma "importância central dada à percepção, e, particularmente, à propriocepção e à experiência subjetiva" (pp.87-88). Cada método tem técnicas próprias, mas todos se contrapõem à abordagem mecânica do corpo. Os indivíduos são apreendidos de maneira global - para além da soma das substâncias anatômica, consciente, inconsciente e energética - e como indissociáveis do ambiente (Clavel & Ginot, 2015). Estão no campo da educação somática: o Rolfing, a Eutonia, a Técnica de Alexander, o Feldenkrais, o Barthenief Fundaments, o Body-Mind-Centering, o Movimento Autêntico, a Psicologia Formativa, entre outros. No Brasil, temos também a Técnica Klauss Vianna e a Metodologia Angel Vianna.
Segundo Giorrdani Gorka Queiroz de Souza (2017), as práticas somáticas podem ser abordadas como metodologias de primeira pessoa, uma vez que visam uma investigação regular, organizada e sistemática da experiência através de dados subjetivos sob uma certa qualidade de auto-observação. Nessa direção, podemos reconhecê-las como práticas de cultivo da atenção a si que envolvem os três gestos atencionais da pragmática fenomenológica presentes na atenção cartográfica: suspensão, redireção e deixar-vir.
Importa aqui ressaltar, conforme Christian Sade (2011) argumenta em sua pesquisa sobre as metodologias em primeira pessoa, que a auto-observação constitui, ao mesmo tempo e de modo indissociável, um processo de autoprodução. Recorrendo a exemplos de práticas da atenção mobilizadas na meditação budista, no Feldenkrais e na técnica do Focusing, de Eugene Gendlin, o autor destaca o caráter ontológico e não apenas epistemológico da atenção a si. Nesse sentido, a atenção a si está a serviço não apenas do conhecimento da experiência, mas implica mudanças existenciais, produzindo efeitos na relação consigo e com o mundo.
Além de servirem à investigação da experiência, as práticas somáticas, quando aplicadas no contexto da dança, da performance e das artes da cena, inscrevem-se em um campo de pesquisa específico que se dedica à leitura do movimento, do gesto e de sua percepção conforme desenvolvido na Análise Funcional do Corpo no Movimento Dançado (AFMD), proposta por Hubert Godard e outros pensadores na França desde 1990. Nessa direção, discutimos a seguir a qualidade de atenção mobilizada em três práticas no campo da dança: a pequena dança, a caminhada imaginada e o toque somático.
O cultivo da atenção a si no Contato Improvisação
a) A Pequena Dança
No contexto da dança Contato Improvisação (CI), Coline Joufflineau, Mathieu Gaudeau, Alexandre Coutté, Dimitri Bayle e Asaf Bachrach (2020) discutem o cultivo da atenção a si por meio de um "hábito de observação" singular. Numa breve apresentação, o CI surgiu nos Estados Unidos na década de 1970 a partir das pesquisas em dança, performance, composição e improvisação iniciadas pelo bailarino, coreógrafo, professor e pensador do movimento Steve Paxton e um pequeno grupo de artistas bailarinos 1. Existem variadas definições dessa prática. A antropóloga Cynthia Novack (1990) a define como uma dança estruturada na improvisação, realizada em duetos e mais pessoas, por meio de um "diálogo físico" entre os corpos na relação com a força gravitacional, que se desdobra em vários princípios e implicações técnicas, estéticas e relacionais. Sally Banes (2002) afirma:
Mesmo se em alguns momentos eles parecem bastante familiares, os movimentos do contato improvisação não são tão comuns. Eles bebem de todo tipo de situação em dueto, do aperto de mãos ao ato sexual, passando pela luta, as artes marciais, a dança social e a meditação. Decorrendo organicamente de um processo contínuo de perda e de busca de equilíbrio, eles envolvem sustentações e quedas. Trata-se de receber e de dar peso, mas também proceder a uma troca de papéis observados na sociedade: passividade e atividade, pergunta e resposta. Segundo as explicações de Steve Paxton, o objetivo de cada participante é encontrar os "caminhos mais fáceis para as duas massas em movimento, uma em relação à outra" (p. 114).
Segundo o filósofo e bailarino Romain Bigé (2015), o CI explora os potenciais estéticos, dinâmicos, cognitivos e comunicativos do toque, que foi deixado de lado na sociedade ocidental, a qual prioriza a modalidade visual, considerando-a separada das sensações cinestésicas. O motor para os movimentos no CI não é a imagem de um movimento, sua representação ou forma, mas a sensação. Os praticantes são convidados a notarem a experiência de mover e de ser movido ao mesmo tempo, ela é tomada como fonte de conhecimento na aprendizagem e condução de cada um na dança. Nas palavras de Bigé (2015), o CI propõe assim uma relação intersubjetiva fundada no sentir, colocando uma "proposição micropolítica de redefinição da relação a si e aos outros" (p. 2) com seus princípios, impasses e potenciais.
Nesse contexto, Paxton (1977) propõe uma prática inaugural do CI, chamada Standing Meditation ou Small Dance. Trata-se de uma meditação praticada em pé, por meio da qual os praticantes observam a "pequena dança" dos micromovimentos reflexos de seus corpos.
O standing deve ser feito de maneira bem relaxada, com os joelhos levemente flexionados. Você não está segurando firme em nenhum lugar. Deixando a gravidade levar os membros para baixo, você está deixando a coluna vertebral se elevar contra a gravidade. E então você simplesmente está permanecendo de pé e começa a sentir o evento que está segurando você, impedindo você de cair. (…) Em termos da feitura de nosso movimento há eventos que acontecem durante alguns milissegundos, tão incrivelmente rápidos que milhares deles podem acontecer antes de nos movimentarmos. (…) No standing, temos os reflexos como eventos facilmente observáveis que não estão sendo causados pela consciência e que podem levar um tempo pra serem notados. O standing está acontecendo por todo o corpo, então você tem um acontecimento de corpo inteiro que você está observando e que você não está procurando; ele está apenas acontecendo (Paxton & Nelson, 2015, p. 39).
Joufflineau et al. (2020) apresentam a Small Dance como um dispositivo de suspensão da vontade de controle. Como se trata de improvisar a dança, ela é uma prática que favorece ao dançarino a percepção de seus reflexos, e, logo, também de seus hábitos gestuais. A ideia é dissolvê-los e abrir-se para outros movimentos possíveis. Nessa experiência de atenção a si, a "dualidade inerente à observação de si por meio da atenção voltada para certas partes do corpo" (p. 8) proporciona uma ruptura com o funcionamento ordinário da atenção. Ela leva a um re-agenciamento das dinâmicas cognitivas, produzindo efeitos na experiência que o sujeito tem de seu corpo e, logo, na relação que ele estabelece consigo mesmo.
Considerado como uma das "técnicas interiores" (Paxton, 2003) dos bailarinos, o hábito de observação da pequena dança também torna possível a observação de gestos atencionais: na atenção dirigida voluntariamente e então capturada, passando a mover-se involuntariamente; nas modulações da percepção que acontecem a partir das modulações da atenção; e na ação recíproca entre a atenção voltada para os ajustamentos posturais e a influência dos mesmos sobre a atenção, entre inúmeros outros (Joufflineau et al., 2020).
Aqui podemos notar que, assim como ocorre com o pouso da atenção cartográfica, na pequena dança acontece um pouso da atenção em observação do movimento processual que acontece "dentro". Ela também implica a repetição regular da atitude do cartógrafo de buscar "ver o que está acontecendo", ou mais precisamente, de buscar sentir o que está acontecendo no próprio corpo. A atenção pousa e muda de escala e qualidade, criando uma espécie de janela atencional: um campo de observação dos micromovimentos reflexos involuntários, que, no entanto, coexiste com inúmeras outras janelas atencionais, como a voltada para os pensamentos e a voltada para o que se passa "fora", no espaço de prática, por exemplo. Quando cultivada com regularidade, essa qualidade de atenção a si favorece o desenvolvimento gradual de uma percepção mais delineada, fina, sutil e nítida das sensações, passíveis de serem notadas inclusive nos detalhes de seus surgimentos e variações.
Por exemplo, podemos aprender a notar mais refinadamente a flutuação do tônus corporal. Conforme sugerido por Bigé (2017), a janela atencional voltada para a pequena dança promove uma abertura da porta da percepção para a tonicidade em constante variação, no estado da "vigilância implicada na postura de pé" (p. 2). Conforme veremos a seguir, tal percepção atenta a essa dança interior de micromovimentos é fundamental para os bailarinos na aprendizagem da transferência do peso e no manejo dos apoios na relação com a gravidade.
b) A Caminhada Imaginada: A Atenção ao Pré-Movimento
Chegamos então a uma outra prática que encontramos no CI, a caminhada imaginada, que também nos ajuda a caracterizar a qualidade de atenção a si que reconhecemos como sendo cartográfica e característica de ecossistemas atencionais de práticas somáticas. Eis a condução do exercício proposto por Paxton (2003):
Imaginem, mas não façam, imaginem que estão quase dando um passo pra frente com o pé esquerdo. Qual é a diferença? [Em relação a] como vocês estavam? Imaginem... (Repetir). Imaginem que estão quase dando um passo com o pé direito. [Com] o esquerdo. Direito. Esquerdo. Standing (p. 176).
Nessa experiência, a imaginação da caminhada produz efeitos na dinâmica postural e na modulação do peso. Bigé (2017) explica o que acontece: "quando imagino um passo pra frente com minha perna direita, o peso do corpo é, mesmo que muito levemente, deslocado para a esquerda, liberando a direita para a possibilidade do movimento" (p. 02). Paxton conta que:
Quando chegávamos a este ponto, leves sorrisos às vezes apareciam nos rostos das pessoas e eu supus que elas tinham sentido o efeito. Elas tinham partido em uma caminhada imaginada e tinham sentido o seu peso responder sutilmente (mas realmente) à imagem; então quando "Standing" foi dito, os sorrisos revelaram que elas tinham compreendido a minha brincadeirinha. Elas deram-se conta de que eu conhecia o efeito. Tínhamos chegado a um lugar invisível (mas real) juntos (Paxton, 2003, p. 176).
Nessa discussão, Joufflineau et al. (2020) apontam para a "tendência à anestesia própria do gesto aprendido" (p. 8), que acontece quando a atenção ao ajustamento sensório-motor na aprendizagem do gesto deixa de ser necessária. É geralmente o caso em nossos hábitos motores adquiridos. Por exemplo, o andar, para um adulto, não requer mais atenção à transferência do peso feita a cada passo, como era necessário quando criança. Na experiência cotidiana, as sensações relacionadas ao andar passam, na maioria das vezes, ao plano de fundo e deixam de ser percebidas conscientemente. É possível andar prestando atenção a outras coisas.
A inibição do gesto proposto convida os bailarinos a observarem a dinâmica do tônus e do fundo de ajustamento postural de seus corpos, o que Godard chama de "pré-movimento". Essa noção se refere aos micromovimentos acionados e realizados de forma involuntária, inconsciente, pelos músculos antigravitacionais, ou seja, à gestão específica de cada corpo humano sobre a gravidade. Além de tornar possível o equilíbrio dinâmico na posição vertical e antecipar cada um dos gestos, o pré-movimento confere características particulares, psicológicas, afetivas e expressivas a cada pessoa, antes mesmo de qualquer intencionalidade de movimento ou de expressão. Nas palavras de Godard (1998):
É o pré-movimento, invisível, imperceptível para o próprio sujeito, que faz funcionar, ao mesmo tempo, o nível mecânico e o nível afetivo de sua organização. De acordo com o nosso humor e imaginário do momento, a contração da panturrilha, que prepara, à nossa revelia, o movimento do braço, será mais ou menos forte e, portanto, mudará a significação percebida. A cultura, a história de um dançarino e sua maneira de vivenciar uma situação, de interpretar, induzirão uma ‘musicalidade postural' que acompanhará ou despistará os gestos intencionais executados. Os efeitos desse estado afetivo - sobre os quais apenas começamos a compreender os mecanismos -, que dão a cada gesto sua qualidade, não podem ser controlados unicamente pela intenção (pp. 224-225).
Com a rolfista Lúcia Merlino (2014), que também se apoia no pensamento de Godard, entendemos que "o pré-movimento determina o estado de tensão do corpo e define a qualidade e a cor específica de cada gesto humano" (p. 90). Além de estar presente na forma como a postura de cada sujeito se organiza em resposta à gravidade a cada instante, acionando, simultaneamente, a dimensão mecânica e afetiva da organização postural, ele também participa e depende da atividade perceptiva. Ou seja, para produzir alterações na postura, é preciso intervir também na dinâmica do fluxo da percepção com o ambiente e a imaginação é uma das maneiras de produzir essa mudança.
Carolina Laranjeira (2015) procura ressaltar a relação entre estados tônicos e estados corporais à luz das teorias de Godard (1998, 2006). Ela nos ajuda a compreender de forma mais precisa o que acontece nos corpos em termos musculares, articulares, ósseos e perceptivos quando nos referimos ao estado de presença e à expressividade: "os termos - qualidade expressiva e qualidade afetiva - se misturam e se cristalizam no esquema postural do sujeito e o acesso ou a manipulação dessas qualidades é permitido pela imaginação" (Laranjeira, 2015, p. 616). Cada pequena dança contém uma melodia cinética, uma musicalidade corporal sutil da produção de estados tônicos que precedem e acompanham os gestos, reverberando variações de tensões e "impulsionando descobertas de novos estados e novos nexos de sentidos no corpo" (Laranjeira, 2015, p .616).
Outras autoras brasileiras apostam na potência do conceito de afeto trabalhado no campo da dança e da somática para a ampliação da discussão sobre atenção, corpo e afeto no campo da psicologia. Nesta direção, o estudo desenvolvido por Cecilia de Lima Teixeira e Gilead Marchesi Tavares (2020) aponta a distinção entre duas concepções de afeto: a percepção sensório-somática do afeto, entendida como força de movimento experienciada pela prática da dança, e o afeto compreendido como vínculo emocional entre indivíduos, estudado por um certo recorte da psicologia do desenvolvimento. As autoras indicam a relevância do aporte da dança para o entendimento do afeto no nível pré-pessoal, como força de produção da subjetividade e da relação corpo-mundo.
Colocamos então a questão: essa qualidade de atenção a si que abarca o pré-movimento e favorece a percepção de estados tônico-afetivos pode concorrer para a aprendizagem de uma atenção a si cartográfica? À luz da ecologia da atenção, o que o cultivo de uma qualidade de atenção que contempla o que chamamos de dimensão tônico-afetiva da experiência pode produzir no pesquisador cartógrafo?
c) O Toque Somático: Atenção a Si Tátil-Cinestésica em Situações de Atenção Conjunta
Voltando-nos então para essa dinâmica microfísica, poderia essa qualidade de atenção a si nos abrir para o conhecimento e o manejo de estados tônico-afetivos nas situações de atenção conjunta? Afirmamos que sim e, argumentando nesta direção, apresentamos brevemente a terceira prática, que envolve o toque entre os praticantes.
Nesta prática, a atenção é cultivada conjuntamente na produção de uma qualidade singular do gesto de tocar que podemos chamar de "toque somático": ao sensibilizar os praticantes para o caráter duplo do toque, eles estabelecem uma qualidade de contato consciente. A atenção é convocada de maneira a convidá-los a notar que na superfície de encontro das peles, ao mesmo tempo que tocamos, também somos tocados. Isso ocorre, por exemplo, na prática de apoiar cabeça-com-cabeça no CI. Os parceiros buscam encontrar o ponto de contato a partir do qual vão observar a pequena dança um do outro e começar a dinâmica de transferência de peso entre eles. Nas palavras de Paxton:
Saber que se está tocando e sendo tocado [ao mesmo tempo] acompanha a awareness de que o mesmo processo está acontecendo na pessoa com quem se está dançando. Esses pressupostos são corporificados no head-to-head, um exercício dos primórdios do CI. Na superfície da cabeça de cada bailarino, existe o ponto de contato para o qual eu direciono a awareness deles […] cada bailarino pode sentir a pequena dança da outra pessoa […] e tem ciência de que sua pequena dança está sendo sentida pelo outro. É a introdução e o modelo para o toque em qualquer parte do corpo (Paxton, 1997, p. 128 apud Da Silva, 2014, p. 113).
É importante enfatizar que, nesta prática, o outro é percebido não apenas no plano das formas constituídas, mas também no plano de forças, por meio das atenções voltadas para as "responsividades" inerentes ao encontro de duas pessoas transferindo o peso de seus corpos como forma de comunicação criativa (Little, 2014). A visão, apesar de útil para a orientação, deixa de ser hegemônica. O olhar participa principalmente sob a modalidade da visão periférica, convocando uma atenção panorâmica e a capacidade do corpo de orientar-se no espaço em 360° (Bigé & Paxton, 2015).
Parece-nos que essa qualidade de toque somático é cultivada em laboratórios estéticos, artísticos e de educação somática diversos, possibilitando aos praticantes uma experiência integrada e holística de si e do outro sentida cinestesicamente. Isso quer dizer que ela favorece um reconhecimento - uma consciência perceptiva - de si e do outro a nível tátil-cinestésico. O toque é convocado de maneira a desenvolver a presença sensível dos corpos no encontro entre humanos, mas também com não humanos, com objetos e até mesmo com a materialidade do espaço. Ao mobilizar a atenção dos praticantes para perceberem o caráter duplo de tocar e ser tocado, ou seja, o toque, em sua dupla dimensão (ativa e passiva), é um toque háptico e global que é mobilizado, produzindo essa qualidade de reconhecimento perceptual singular.
Roquet (2019) esclarece que o sentido do tato não concerne somente as mãos, pois podemos exercer o toque a partir de todas as outras partes do corpo, com a pele implicada em toda sua extensão. Isso é algo comumente experimentado em diversas práticas somáticas e cursos de dança, onde uma "arte do sentido háptico" é desenvolvida, onde a palheta da tactilidade é bastante diferente e bem mais variada do que a experimentada no cotidiano. O simples movimento de toque da mão pode engajar toda uma atitude postural e então, a nível da experiência, não é somente uma parte do corpo que toca, o sujeito pode notar que todo o seu corpo participa da experiência de tocar. Sobre o háptico, podemos esclarecer com Roquet (2019) que:
De alguma maneira, a potência háptica - nossa faculdade de tocar e sermos tocados pelo mundo - não é redutível ao senso fisiológico do toque e repousa em grande parte em nosso imaginário, a partir do momento em que ele é pensado como parte integrante de nosso sentir (p. 101).
Para se referir a esse estado de consciência perceptiva sensível à potência háptica, Godard (2006) traz a noção de "tato cego", que remete a um duplo movimento. Afirma: "Ora, frequentemente as pessoas tocam, mas não são tocadas. E então é uma educação necessária" (2006, p. 74). Entendemos com Godard que é preciso uma educação da atenção para a produção da experiência de fazer corpo com o que estamos em relação e que, para tal, é preciso mobilizar os sentidos. Importa esclarecer que o adjetivo "cego" é usado por Godard para se referir à potência do sensorial, que não se limita ao tato, mas concerne também à visão e aos demais sentidos. O adjetivo não porta um sentido negativo, evocando a inferioridade característica das formulações teóricas e práticas de tipo capacitista. Numa outra direção, o adjetivo cego nomeia uma dimensão presente em cada um dos sentidos que diz respeito à experiência de acesso a sensações, em uma qualidade mais geográfica ou espacial, na qual a pessoa pode experimentar-se como que fundida no contexto.
Na experiência de ver, por exemplo, é como se o olhar estivesse em estado de recepção do mundo, podendo ser afetado pela presença do outro. Godard explica que se trata de um "olhar subcortical", como se o olhar pudesse também tocar e, em um primeiro momento, não levar a uma interpretação do outro. Ele o distingue da experiência dominante do olhar, que ele denomina de "olhar cortical" - objetivante, associado à linguagem - e afirma que a audição e os demais sentidos também podem ser mobilizados para além da percepção objetiva da realidade 2. É importante sublinhar ainda que esses dois níveis da experiência coexistem e são importantes na subjetividade, sem relação de hierarquia ou de valor.
Godard (2006) toma como exemplo o CI, afirmando que nesta prática "é como se fossemos obrigados a aceitar que o meio se movimenta" (p. 62). O bailarino é convocado a mover-se tanto em resposta às variações do ambiente externo, quanto àquelas do ambiente "interno" ao seu corpo. É importante que ele não responda apenas com as repetições de seus gestos cotidianos, pois elas impõem costumes gestuais e coordenações que perdem sua plasticidade e a conexão fina com o presente. É preciso cultivar a concentração e a abertura atencional do corpo para o aqui e agora no fluxo da improvisação.
Apresentando essa qualidade subcortical dos sentidos, Godard nos convoca e nos sensibiliza para uma dimensão da experiência de interação entre humanos e não humanos na qual é possível apreender o "outro enquanto peso, vetor de movimentos, de geografia flutuante" (p. 75), logo, em termos de qualidades táteis-cinestésicas. Reconhecemos, assim, que nossos sentidos nos permitem não somente objetivar o que percebemos, mas também acessar o fundo relacional, do plano coletivo de forças e afetos constitutivo do que apreendemos objetivamente (Romero, 2021). Nessa direção, acreditamos com Godard, que um trabalho com o sensorial, envolvendo o diálogo entre a autoconsciência (cortical) e as respostas somáticas (acionadas pelo subcortical), pode promover uma revolução na percepção.
Considerações Finais: Ressonâncias entre a Cartografia e as Práticas Somáticas
Tendo como objetivo analisar ressonâncias entre o modo como o cultivo da atenção a si é discutido na pesquisa cartográfica e nas práticas somáticas no contexto da dança, o presente estudo permite concluir que, em ambos os campos, há práticas de cultivo atencional que ampliam as condições do corpo para afetar e ser afetado e do sujeito para participar enquanto presença observadora de uma tal dinâmica intensiva.
A pequena dança, a caminhada imaginada e o toque somático foram analisados, a fim de introduzirmos a discussão acerca dos micromovimentos reflexos, da flutuação do tônus corporal e do caráter duplo do toque, a partir de uma complexidade que envolve, sempre, necessariamente, a atenção. Acreditamos que uma educação da atenção voltada para estes três aspectos da corporificação da experiência pode ser tomada como característica do ecossistema atencional de práticas somáticas diversas, para além daquelas comuns no contexto da dança.
À luz da ecologia da atenção, procuramos discutir em que medida esta atenção, ao favorecer a percepção de estados tônico-afetivos e sua relação com a qualidade de presença, pode concorrer para a formação do pesquisador cartógrafo, ao criar condições para a aprendizagem de um manejo e de uma condução de si no acesso ao plano de forças e afetos. Nessa direção, argumentamos que o praticante, ao cultivar a atenção aos micromovimentos reflexos, por exemplo, exerce a atitude cartográfica, em abertura para sentir o que está acontecendo em seu próprio corpo como território. Nesse sentido, a standing meditation é tomada como uma prática que favorece o acompanhamento de processos de subjetivação ancorados no presente, à luz da atenção que testemunha o caráter dinâmico e intensivo do próprio corpo na relação com o mundo.
Argumentamos que, no ecossistema atencional de práticas somáticas, os praticantes podem desenvolver a atenção que rastreia e flutua, que é tocada por algo que a faz pousar no movimento e que, aos poucos, com práticas regulares e seus efeitos de corporificação, faz com que nuances, sutilezas e gradações antes não notadas, entrem no domínio cognitivo do cartógrafo. Trata-se de novos registros sensoriais, signos tônicos-afetivos e táteis-cinestésicos passíveis de serem notados inclusive nos detalhes de seus surgimentos e variações. Implicados na afetabilidade dos corpos, eles podem então ser integrados à experiência de si. Nesse processo, os efeitos entre a atenção, o sensório e o motor, bem como o repertório de movimentos dos praticantes pode se ampliar e diversificar.
Com este estudo, procuramos afirmar que a atenção ao plano das forças e afetos, cultivada e ampliada por meio de práticas somáticas, pode ser também cultivada em outros ecossistemas atencionais, como no campo da pesquisa cartográfica. A cartografia busca justamente ir além da representação de uma realidade supostamente pré-existente e do reconhecimento das formas. Nesse sentido, na medida em que o ecossistema atencional de práticas somáticas concorre para o cultivo dessa qualidade de atenção que estamos caracterizando e defendendo neste artigo, acreditamos que ele favorece a abertura do corpo para experiências de problematização e estranhamento, e assim, para a revolução na percepção mencionada por Godard.
Pensar no que essa revolução consistiria e como favorecê-la é do nosso maior interesse. Nos parece que ela requer, necessariamente, o cultivo de uma atenção a si que contemple a dimensão tátil-cinestésica e tônico-afetiva da experiência de si e do mundo. Compreendendo que o reconhecimento automático ou sensório-motor ocorre a nível desta dimensão, implicando-a de maneira a disparar respostas motoras que são principalmente da ordem da recognição e da mera repetição mecânica, a experiência de ampliação do domínio cognitivo favorecida por práticas somáticas pode possibilitar, em contrapartida, a importante ocorrência do reconhecimento atento do cartógrafo, que aciona o duplo registro da percepção - imagem perceptiva e a imagem mnésica virtual - no acesso ao tecido da memória.
Ao cultivar essa qualidade de atenção a si, o cartógrafo pode desenvolver o hábito de observar o próprio reconhecimento atento acontecendo. Ou seja, ele pode testemunhar o processo de coengendramento de si e de sua percepção das coisas, dos outros, do mundo se dando: os circuitos de expansão da cognição, que, entre memória e imaginação, revelam o caráter criador e inventivo da atenção e da subjetividade que testemunha o corpo ancorado no presente.
Enfim, procuramos desdobrar e fazer reverberar a discussão sobre o cultivo da atenção a si em ambos os campos - da pesquisa cartográfica e das práticas somáticas - apontando que ambos enfatizam a importância desse estado de consciência perceptiva que seja sensível à potência háptica, uma percepção atenta à afetação mútua e contínua entre o si e o outro, entre o si e o mundo. Procuramos avançar na discussão sobre o plano de produção de subjetividades, de novas, inéditas e infinitas maneiras de ser e estar no mundo, orientadas por uma ética do cuidado que marca tanto o ofício do cartógrafo quanto o dos praticantes da educação somática.
Colocando em primeiro plano o problema do cultivo da atenção a si, percorremos um caminho ainda pouco explorado. Por certo, o presente estudo apresenta limites, devendo ter continuidade e aprofundamento. Para além da interface entre as práticas somáticas e a cartografia, seria interessante ampliar seu escopo, pensando na dimensão clínica do cultivo da atenção a si, bem como em possíveis desdobramentos nos campos da Educação e da Saúde. O presente estudo pode também abrir desdobramentos promissores se for complementado, por exemplo, por uma pesquisa de campo, incluindo entrevistas com praticantes da educação somática, da dança e da cartografia, bem como outros atores envolvidos com o tema. Colocar em pauta o tema do cultivo da atenção a si é aqui uma aposta, que propõe o desafio de continuidade e aprofundamento em estudos futuros.
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Endereço para correspondência
Manuela Linck de Romero - manuela.linck@gmail.com
Recebido em: 23/06/2023
Aceito em: 22/12/2023
Notas
1 Nancy Stark Smith, Lisa Nelson, Christina Svane, Danny Lepkoff, Nita Little são alguns dos parceiros de criação do Contato Improvisação (Novack, 1990), nesta época integrantes do coletivo de improvisação em dança e teatro Grand Union.
2 Para leitura mais aprofundada, conferir "Olhar Cego", entrevista de Godard concedida a Suely Rolnik (2006), na qual eles discutem o sensorial do corpo na relação com o espaço, aproximando a pesquisa de Godard à última fase do trabalho da artista Lygia Clark. A entrevista discute a relação entre arte, clínica e movimento e o lugar do sensorial nos cursos de improvisação em dança contemporânea, dentre elas no contato improvisação.
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa CAPES, de doutorado, da primeira autora e pela bolsa de produtividade em pesquisa da segunda autora (CNPq No. Processo 308558/2021-9 Chamada 4/2021).
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