Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e77176, doi:10.12957/epp.2024.77176
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
Psicologia Histórico-Cultural da Arte: Intertextualidade e Relação Autor-obra-público
Cultural-Historical Psychology of Art: Intertextuality and Author-work-reader Relation
Psicología Histórico-Cultural del Arte: Intertextualidad y Relación Autor-obra-lectores
Júlia Loren dos Santos Rodrigues a, Marcelo Dalla Vecchia a
, Priscila Nascimento Marques b
a Universidade Federal de São João del Rei, São João del-Rei, MG, Brasil
b Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
A Psicologia Histórico-cultural da Arte, conforme elaborada por L. S. Vigotski, propõe um método explicativo para o estudo da vivência estética. Com o objetivo de ampliar o campo de investigação metodológica da psicologia da arte, partimos da interposição do conceito vigotskiano de vivência estética com o método de análise de unidades. Além disso, o fenômeno da intertextualidade e as dimensões histórico-culturais são tomados como elementos estruturantes para a investigação e interpretação do material empírico. Com base na premissa vigotskiana de que a vivência estética está articulada com a produção de novos sentidos, as contribuições de Antonio Candido são trazidas considerando o movimento estabelecido entre autor-obra-público, e incorporando as funções total, social e ideológica da literatura. Como contribuição metodológica, propomos que a vivência estética seja investigada, para além da destruição do conteúdo pela forma. Por fim, referendamos à obra como um sistema vivo, ao autor como uma função e ao leitor como um cocriador e, por isso, ativo no processo da vivência estética.
Palavras-chave: psicologia e literatura, arte (psicologia), vygotsky, lev semenovich, 1896-1934.
ABSTRACT
The historical-cultural psychology of art, as developed by L.S. Vygotsky, proposes an explanatory method for the study of aesthetic experience. In order to expand the methodological investigation field of the psychology of art, we start from the interposition of the Vygotskian concept of aesthetic experience with the unit analysis method. Furthermore, the phenomenon of intertextuality and the historical-cultural dimensions are taken as structuring elements for the investigation and interpretation of empirical material. Based on the Vygotskian premise that aesthetic experience is connected to the production of new senses, the contributions of Antonio Candido are brought in, considering the established movement between author-work-public and incorporating the total, social, and ideological functions of literature. As a methodological contribution, we propose to investigate the paths taken by aesthetic perezhivanie, beyond those of the destruction of content through form. Finally, we regard the work of art as a living system, the author as a function, and the reader as a co-creator, thus actively involved in the process of aesthetic experience.
Keywords: psychology and literature, arts (psychology), vygotsky, lev semenovich, 1896-1934.
RESUMEN
La psicología histórico-cultural del arte, tal como fue elaborada por L. S. Vigotski, propone un método explicativo para el estudio de la experiencia estética. Con el objetivo de ampliar el campo de investigación metodológica de la psicología del arte, partimos de la interposición del concepto vigotskiano de experiencia estética con el método de análisis de unidades. Además, el fenómeno de la intertextualidad y las dimensiones histórico-culturales son considerados como elementos estructurantes para la investigación e interpretación del material empírico. Basándonos en la premisa vigotskiana de que la experiencia estética está articulada con la producción de nuevos sentidos, se traen las contribuciones de Antonio Candido considerando el movimiento establecido entre autor-obra-público, y incorporando las funciones total, social y ideológica de la literatura. Como contribución metodológica, proponemos que la vivencia estética sea investigada más allá de la destrucción del contenido por la forma. Por último, nos referimos a la obra como un sistema vivo, al autor como una función y al lector como un co-creador y, por lo tanto, activo en el proceso de la experiencia estética.
Palabras clave: psicología y literatura, arte (psicología), vygotsky, lev semenovich, 1896-1934.
O estudo da Psicologia Histórico-Cultural (PHC) da Arte comporta em seu escopo a investigação de diferentes formas de expressão artística, visando à compreensão de como são suscitadas emoções a partir do contato com uma obra. Objetivamos neste ensaio teórico-analítico esboçar contribuições à proposta vigostskiana de uma psicologia da arte, considerando as elaborações teóricas empreendidas pelo próprio autor após a formulação do método objetivo-analítico (Vigotski, 1999a). Para isso, buscamos vincular tais elaborações teóricas vigotskianas ao conceito de intertextualidade para que, assim, possamos sugerir avanços nos pressupostos metodológicos à PHC para análise estética e psicológica de um texto artístico-literário.
Inicialmente, porém, é importante sinalizar que os termos "reação" e "vivência" são usados indiscriminadamente por Vigotski (1999a) ao tecer sua teoria, sendo que somente no desdobrar dos seus estudos é, então, afinado o entendimento do conceito de vivência (Toassa, 2019), bem como ampliada a crítica às polaridades estabelecidas entre uma psicologia subjetivista e outra objetivista (Vigotski, 2004). Optamos por falar em vivência (Perejivânie) estética primeiramente porque esse é um termo muito usado por Vigotski (1999a) no livro Psicologia da Arte, mas sobretudo porque se distancia de uma concepção centrada na análise direta entre estímulos e respostas. Além disso, seu uso contribui para que destaquemos a dimensão afetivo-cognitiva proporcionada pelo encontro com a arte, compreendendo que a vivência consiste na "verdadeira unidade dinâmica da consciência, unidade plena que constitui a base da consciência" (Vigotski, 1996, p. 383, tradução nossa) que "emerge sempre com tons afetivos, perpassados pelos significados sociais condensados nos signos, nas palavras e nas relações humanas" (Monteiro & Rossler, 2020, p. 325). Por essa via, aproximamo-nos também da teoria transacional da recepção estética (Iser, 2002) que encaminha a investigação de como a representatividade simbólica de uma obra alcança o leitor que, nesse encontro, a atualiza.
Portanto, a discussão proposta neste ensaio enseja apontar que, ao criar uma obra artístico-literária, são selecionados palavras, imagens e temas que esteticamente organizados possibilitam a vivência estética. Nas obras de arte, residem, portanto, tanto conteúdos como formas que só podem ser acessadas em movimento, isto é, só podem ser percebidas dialeticamente. Afinal, a palavra, elemento estruturante das obras artístico-literárias é "ao mesmo tempo, forma e conteúdo, e neste sentido a estética não se separa da linguística" (Candido, 2019, p. 33). Esse entrelaçamento, marcado pela contradição entre a forma e o conteúdo, aparece em diferentes obras literárias, a citar quando Valter Hugo Mãe (2017) em seu livro A desumanização faz com que a narração da morte da irmã gêmea da protagonista se choque com a concepção de renascimento: "Foram dizer-me que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe" (p. 17). O enterro se transforma em semeadura. O corpo submerso em terra torna-se semente. A morte, o fim das funções vitais, anuncia a chegada de um renascer. No caso da obra supracitada, em uma espiral dialética, revive-se aquilo que reitera e atualiza formas de produção de sofrimento.
Este artigo está organizado em itens que foram formatados com a intenção de situar o leitor na discussão, por meio da explicitação dos principais conceitos e métodos que abarcam o campo da PHC da Arte. Partindo da proposta vigotskiana, visualiza-se a análise das emoções suscitadas pela arte tanto como um fenômeno psicológico, quanto social. Para a apreciação da dimensão histórico-cultural de uma obra artística assumimos, em adição, a compreensão de intertextualidade, bem como as assertivas desenvolvidas por Antonio Candido (2019) acerca da função representativa e humana que a arte sustenta na sociedade.
O problema do método
No primeiro capítulo do livro "Psicologia da Arte", Vigotski (1999a) estabelece uma crítica ao modelo de análise psicológica da arte que se orienta por vieses subjetivistas ou que optam pela ênfase em investigações biográficas e intencionais do autor do texto. Afirma que o modelo de análise que busca reconhecer os propósitos e experiências do autor perdem em profundidade, tendo em vista que trabalham apenas com conjecturas de supostos objetivos e inspirações de ordem biográfica que guiaram o autor na construção de um dado material artístico que ficcionalmente representa a realidade. Destaca também que as escolhas de análise psicológicas centradas na percepção individual do leitor se tornam estéreis, pois não dão conta de acessar aquilo que "não temos consciência imediata, do que sabemos apenas através de analogias, hipóteses, conjecturas, conclusões, deduções etc." (Vigotski, 1999a, p. 25).
Diante da crítica estabelecida, Vigotski (1999a) propõe o desenvolvimento de um novo método para a psicologia da arte, nomeado como objetivo-analítico. Tal método, assume, como premissa, o estudo da própria obra de arte, tendo por base a tomada indireta do objeto de análise que, neste caso, envolve compreender os efeitos que a arte produz no psiquismo. Desse modo, defendia que o psicólogo estudioso da arte deveria direcionar o seu olhar "precisamente a provas materiais, às próprias obras de arte, e com base nelas recriar a psicologia que lhes corresponde para ter a possibilidade de estudar essa psicologia e as leis que a regem" (Vigotski, 1999a, p. 26).
A pontuação de Vigotski (1999a) acerca do risco de direcionar a análise estética e os efeitos produzidos pelo contato com a obra de arte a partir das intenções do autor apresenta vias de corroboração por outros teóricos da Literatura como Chartier (2012) e Foucault (1997). Tais autores também identificaram que o caráter artificial, inerente à criação de um material estético, transcende a ideia de que a intenção do autor dirige e encerra determinada vivência estética. Foucault (1997), ao discorrer sobre o papel do autor em uma obra, cria o conceito de "função autor" distinguindo-a como uma "característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade" (p. 46), sendo que o autor dá o tom ao texto, isto é, qualifica-o e caracteriza-o: "o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso" (p.45). Todavia, o autor se constitui como um personagem, uma ficção que carrega consigo o conteúdo simbólico sobre o significado social da obra, sem que para isso seja necessária a existência de referenciais concretos na vida do indivíduo que a produziu.
Ainda sobre essa intrigante presença ausente do autor na obra e sua função na recepção estética, consideramos importante ressaltar a definição de arte apresentada por Vigotski (1999a) e o diálogo que esta estabelece com a caracterização desenvolvida por Antonio Candido (2019). Em Vigotski (1999a), a arte é conceituada como uma "técnica social do sentimento" (p. 315), o que significa compreendê-la em sua dimensão técnica enquanto um produto historicamente criado e organizado a partir de um conjunto de regras e formas que orientam a sua estrutura. Além disso, a arte se organiza tecnicamente para suscitar emoções que são resolvidas "principalmente como imagens da fantasia" (Vigotski, 1999a, p. 267). Já a dimensão social parte da reflexão de que a arte recolhe da vida o seu material e o transforma. Desse modo, aquilo que aparece como elemento para criação estética não advém de uma vivência individualizada/isolada, mas retrata uma vivência ficcional/imaginária singular que só pode ser originada e expressa pela palavra que adentra o discurso. Precisamente por isso ela parte do social, da coletividade e de um parâmetro comunicativo, para então adentrar o campo pessoal. Por fim, o sentido atribuído ao sentimento expressa a vivência estética que a arte proporciona, de modo que a percepção da arte depende de um ato criativo, o que significa "superar criativamente o seu próprio sentimento, encontrar sua catarse" (p. 314). Sobre esse movimento criador que a vivência estética solicita na esfera do sentimento, Vigotski (1999a, p. 317) exemplifica-o a partir do encontro que a música estabelece junto ao seu receptor:
A música me obriga a esquecer a mim mesmo, a minha verdadeira situação, ela me transporta para alguma outra situação, estranha a mim: sob o influxo da música tenho a impressão de sentir o que propriamente não sinto, de entender o que não entendo, de poder o que não posso.
Assumir a arte como uma técnica social do sentimento apresenta congruências com a definição de arte desenvolvida por Candido (2019), o qual afirma que a arte é um "sistema simbólico de comunicação inter-humana" e "pressupõe o jogo permanente de relações" entre obra, público e autor (p. 47). Por seu turno, declara:
A arte e, portanto, a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração (Candido, 2019, p. 63, grifos nossos).
Depreendemos que, ao falar da arte como um sistema, formalmente estilizado e tecnicamente manipulado, Candido (2019) destaca o lugar da arte enquanto técnica, sendo que esta é tanto produzida quanto viável somente pela existência de um social, existente na Literatura, por meio de um sistema simbólico de comunicação inter-humana: a palavra. Essa compreensão da arte enquanto técnica social desfaz inclusive algumas visões místicas da arte como um dom ou como uma manifestação que escapa ao campo da aprendizagem e da interpretação. Como afirma Pseudo-Longino em "Do sublime" II-3 (2005, p. 72):
a natureza ocupa o lugar da boa sorte; a arte, o da boa decisão. E, o que é mais importante, mesmo a dependerem exclusivamente da natureza alguns dos predicados do estilo, temos de aprendê-lo da arte e de nenhuma outra fonte.
Nesse sentido, a criatividade e a imaginação que dão forma à "transposição do real para o ilusório" que a arte nos proporciona advém de uma técnica, da boa decisão que se realiza em um campo de desenvolvimento humano que é inerentemente cultural e mediado pela linguagem. Hansen (2019), nesse sentido, afirma que pensamos e criamos a partir de imagens, sendo a palavra a imagem verbal, a "metáfora de metáforas" (p. 176).
A definição de arte apresentada por Vigotski (1999a) nos parece suficientemente ampla e consistente para dar conta dos principais processos que perpassam a criação e a recepção de uma obra. Contudo, a definição adotada pelo autor suscita questionamentos diante do seu apontamento inicial sobre a escolha de um "método objetivamente analítico" e o estabelecimento de um foco de análise restrito à obra. Ao falar de um método objetivo-analítico, Vigotski (1999a, p. 3) defende que se deve "estudar a psicologia pura e impessoal da arte sem relacioná-la com o autor e o leitor, pesquisando apenas a forma e o material da arte". Contudo, considerando o percurso de Vigotski de crítico a psicólogo da arte, observamos que a defesa por um posicionamento objetivo, puro e impessoal não diz sobre um caráter positivista de estudo da arte, mas uma renúncia àquilo que fora proposto ao desenvolver a "crítica do leitor", subjetivista e diletante (Vigotski, 1999b). Desse modo, ao estabelecer um método objetivo para análise em Psicologia da Arte, Vigotski (1999) destaca que "[e]sta circunstância nos ajuda a estabelecer a natureza da resposta estética em sua forma genuína, sem misturá-la com todos os processos casuais de que ela se cerca no psiquismo individual" (p. 26).
Ao propor o método de análise psicológica da reação estética, o autor pretendia criar leis gerais, conforme fizera ao defender o princípio da destruição do conteúdo pela forma. Contudo, aponta a necessidade de que haja um olhar analítico dialético e crítico sobre a arte. Ressaltamos, por exemplo, que embora o foco estivesse na obra, Vigotski (1999a) também destacou o reconhecimento do leitor como um participante ativo diante da possibilidade de uma vivência estética, afirmando que "a percepção da arte exige também criação" (p. 314) pela via da imaginação. Posteriormente, inclusive, acrescenta que "a atividade criadora da imaginação está relacionada diretamente com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, uma vez que essa experiência é a matéria-prima a partir da qual se elabora as construções da fantasia" (Vigotski, 2014, p. 12).
Diante desses apontamentos, propomos a possibilidade de pensar o método de desmembramento em unidades para a análise em Psicologia da Arte. Esse método foi sintetizado por Vigotski (2009) em sua obra A Construção do Pensamento e da Linguagem e retomamo-lo nesta ocasião como um caminho de exame da vivência estética que assume autor-obra-público como uma totalidade que encaminha a análise.
Ao tecer a crítica sobre os métodos tradicionais da ciência que se orientavam pela decomposição - que separam uma totalidade em suas menores partes e observa-as separadamente, perdendo de vista o movimento que possibilita a constituição de determinado produto -, reivindica a recusa ao encaminhamento de análises fragmentadas. O autor advoga por um método de desmembramento em unidades que, se dissolvidas, impedem a compreensão do processo em análise, pois divididas excluem de si mesmas o movimento que as caracteriza. Vigotski (2009) utiliza a água e sua fórmula química como exemplo para evidenciar como a decomposição em mínimas partes afasta o pesquisador de um legítimo acesso à manifestação do fenômeno. Nesse sentido, se visualizarmos a água apenas como dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio, negligenciando o movimento (especificamente, ligações) que eles estabelecem entre si, poderemos encontrar fogo em vez de água.
Amparado em premissas vigotskianas, Veresov (2016) descreve que a vivência se refere à relação interior que o ser humano estabelece com aquilo que lhe é externo e constitui a sua realidade, logo seu desenvolvimento representa a unidade que se manifesta entre a personalidade e o ambiente. Nesse sentido, aproximamo-nos do estudo desse conceito para compreender analogamente a vivência estética que se realiza pelo encontro com as obras artísticas que suscitam "emoções inteligentes" (Vigotski, 1999a, p. 267) e se desenvolve por meio das mediações sociais e técnicas que ampliam a análise dos diferentes sentidos que podem ser evocados por meio da relação que se estabelece entre autor-obra-público. Considerando o conceito da vivência estética para a análise e tendo como finalidade compreendê-la a partir de materiais estéticos e literários, constitui-se como proposta a retomada das elaborações teóricas de Antonio Candido sobre a relação indissociável entre autor-obra-público, alternando para isso a posição das palavras e seus focos semânticos no trinômio.
A compreensão de Candido (2019) sobre a Literatura se orienta, em nossa perspectiva, por um movimento de análise dialético que incorpora pela via do desmembramento em unidades os diferentes elementos que compõem a trama da criação-recepção. Segundo Candido (2019, p. 84),
[a] literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito.
Essa concepção enuncia com primor a dialética que se manifesta entre o autor, a obra e o público, de modo que a consideramos uma visão importante para a retirada de um lugar de passividade do leitor. Antonio Candido situa tanto leitor quanto autor, pensado aqui como uma função, em um tempo histórico e enquanto seres sociais e políticos.
Com efeito, argumentamos que não se deve analisar apenas a obra na PHC da Arte, conforme afirmou Vigotski (1999a). O ponto central, porém, é a de que a análise da vivência estética não deve ser posicionada em polaridade alguma, de modo que sejam renunciadas posturas subjetivistas, puramente estéticas ou estritamente sociológicas. Assumimos, por isso, como um caminho metodológico importante, o trinômio autor-obra-público, proposto por Candido (2019, p. 48) para análise da vivência estética. Partimos dos pressupostos de que "[o] público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza"; "[a] obra, por sua vez, vincula o autor ao público, pois o interesse deste é inicialmente por ela, só se estendendo à personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contato indispensável"; e "o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o público a que se dirige; é o agente que desencadeia o processo". No entanto, embora pensemos na função autor e defendamos que a análise não deve direcionar-se para compreensão das singularidades ou pretensões íntimas do autor, apontamos que "negar a intencionalidade não significa excluir esse olhar em direção à produção do texto" (Barchiesi, 2020, p. 122). Neste sentido, aquele que escreve está sempre construindo e é constituído, por exemplo, por um dado contexto socioeconômico e histórico-cultural.
Considerando o que afirma Candido (2019), bem como a compreensão do "ato criador de leitor" anunciado por Vigotski (1999a, p. 314), assumimos para o desenvolvimento das proposições metodológicas deste ensaio a visão do público como aquele que é capaz de atribuir sentidos, transcendendo os significados generalizados da palavra. O público consiste naquele que não apenas vivencia esteticamente as emoções suscitadas pela obra, mas também, situado em uma história compartilhada e singular, atualiza-a pela via da criação de novos sentidos.
Quanto à obra, admitimos que essa manifesta em si aspectos que são tanto originados quanto mediados pela linguagem, logo resguarda diferentes expressões sociais que se singularizam sem perder sua potência criativa, política e histórica. Por fim, o autor, enquanto intermediário, desencadeia pela via da criação e da fantasia o processo de vivência estética, mas não o controla. O lugar do autor é daquele que cria um sistema vivo, considerando que, mesmo sendo capaz de construí-lo criativa e tecnicamente, este sistema adquire vida própria tanto ao longo do processo de formação, como quando passa a conviver com o público.
Portanto, ao propormos o objetivo de esboçar proposições teórico-metodológicas para Psicologia da Arte que compreendam o amplo escopo da PHC e não apenas o método objetivo-analítico, bem como articulação de tais pressupostos com a Literatura Crítica de Antonio Candido, daremos continuidade a nossa argumentação, apresentando, na sequência deste texto, o conceito de intertextualidade. Também abordaremos referências analíticas que viabilizam a apreensão sobre como as dimensões históricas e culturais marcam a produção e recepção de uma obra literária e podem ser percebidas no texto.
Intertextualidade e análise das dimensões histórico-culturais que marcam a produção e a recepção de uma obra literária
O estudo sobre intertextualidade no campo da Literatura aparece com essa nomeação a partir da publicação de Kristeva (1974). Contudo, compreende-se que, desde os clássicos da Antiguidade (Miotti, no prelo), era reconhecida a existência de uma dimensão relacional entre os textos. Neste período, inclusive, havia uma orientação explícita de partir de obras literárias consagradas para que, por um movimento de mimese, se tornasse possível construir novas obras que fossem valorizadas pelo público (Fowler, 2019).
Tomando como referência as análises e conceituações apresentadas por Prata (2017), Miotti (no prelo) e Fowler (2019), compreendemos que o conceito de intertextualidade remete a um aspecto estruturante dos textos literários, visto que esses utilizam-se da linguagem e essa é tanto constituída quanto utilizada a partir de um conjunto de sentidos e significados que se coadunam. Logo, um texto é sempre uma comunicação com outros textos, uma repetição atualizadora de formas de representar a vida na arte, de dar sentido às palavras. Identificar a intertextualidade, por essa via, não deve ser uma mera demarcação da repetição de palavras, estilos, inspirações, tempos históricos semelhantes ou estruturas/gêneros literários, mas envolve essencialmente a observação de como os elementos que dão forma e conteúdo a uma obra de arte se relacionam com os registros do passado ao dar forma a novos textos.
A análise intertextual deve estar atenta não só aos pontos de encontro e similaridades entre os textos, mas ao movimento de transformação do intertexto por enunciar algo diferente dentro do próprio ato de imitação. Conforme mencionado, "novas produções, constituídas a partir de novos olhares, acrescentam camadas interpretativas capazes de afetar a tradição hermenêutica até de um grande clássico" (Miotti, no prelo, p. 17). Além disso, Fowler (2019) destaca que os diferentes intertextos que compõem o repertório de leitor constituem-se justamente na matriz de possibilidade de compreensão da intertextualidade, haja visto que "ler um texto, então, envolve um processo de duas etapas: uma reconstrução da matriz que lhe dá sentido e a produção desse sentido pelo ato de relacionar textos de partida com textos de chegada" (p. 96). Vale considerar, inclusive, que sempre lemos um texto em um dado tempo histórico, socialmente compartilhado e singularmente vivenciado. Sobre isso, Fowler (2019) adverte:
Textos não podem remeter diretamente a eventos ou instituições históricas, mas apenas a histórias sobre esses eventos e instituições, sejam relatadas pelos antigos ou pelos modernos. Da mesma forma, porém, a "alusão" histórica e política, bem como a alusão a outros textos literários, não é algo que possa ser adicionado, ou não, ao texto ao bel-prazer do autor, mas parte da matriz da qual todo texto literário nasce e em confronto com a qual ele deve ser lido. Novamente, o que significaria escrever um texto que não fosse politicamente e ideologicamente intertextual senão escrever um texto impossível de se ler? (p. 100).
A síntese manifesta entre intertextualidade e análise histórica, política e ideológica, demonstra-se, portanto, como um campo de abertura importante para que o crítico da arte, bem como o psicólogo da arte, compreendam tanto os recursos estéticos utilizados quanto a recepção de uma obra. As emoções suscitadas a partir de uma leitura e a vivência da catarse, como mecanismos que estão articulados a um campo de significações que está atravessado pela linguagem, é indissociável do pensamento e da ação e que se manifesta como elemento central de humanização, mas também de poder e, até mesmo, dominação. Vale relembrar, para isso, a argumentação de Iser (1979) sobre o fato de que a técnica estética planejada para uma obra, embora indispensável, não garante um caminho de recepção e produção de sentido, visto que:
Quanto mais preso esteja o leitor a uma posição ideológica, tanto menos inclinado estará para aceitar a estrutura básica de compreensão do tema e horizonte, que regula a interação entre texto e leitor. Não permitirá que suas normas se convertam em tema, porque enquanto tal, são automaticamente sujeitas à visão crítica inerente às posições virtualizadas, que formam o pano de fundo do tema. Como o leitor se vê "induzido" a esta participação, estruturalmente condicionada, no desenrolar do texto, participação que, afinal de contas, se volta contra seus valores, o resultado será a frequente rejeição do livro e do autor (Iser, 1979, pp. 129-30).
Logo, pensar a dinâmica estabelecida entre autor-obra-público, a fim de analisar a vivência estética requer também a consideração das funções total, social e ideológica da arte (Candido, 2019). A função total representa o modo como a obra, embora se dê em um determinado momento histórico, é capaz de escapar do tempo. Por isso, essa função remete a um importante atributo de uma obra literária, a qual "exprime representações individuais e sociais que transcendem a situação imediata, inscrevendo-se no patrimônio do grupo" (p. 54). A função social evidencia a atividade que a obra "desempenha no estabelecimento de relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade (p. 54). Por fim, a função ideológica demarca o modo como as dimensões políticas, vivências singulares, valores e princípios, por exemplo, encaminham o processo de criação e recepção. Candido (2019) alerta que muitos críticos, ao propor uma análise histórica, acabam por recorrer apenas à função ideológica, contudo "esta função é importante para o destino da obra e para a sua apreciação crítica, mas de modo algum é o âmago do seu significado, como costuma parecer à observação desprevenida" (p. 55-56).
Logo, ressaltamos que a análise em Psicologia da Arte que se debruça sobre obras literárias e se propõe histórica e cultural deve considerar a linguagem em sua dimensão semiótica e comunicativa, marcada por instâncias valorativas e ideológicas. Em Psicologia da Arte, Vigotski (1999a), mais uma vez em um diálogo atemporal com Candido (2019), também refletiu que a análise de obras literárias que considerem a história não deve ser feita a partir de um reducionismo sociológico, no qual o crítico limita o caminho da recepção e interpretação desvendando as supostas pretensões do autor ou as origens concretas de uma ideia ficcional, como se houvesse um real puro que justificasse a obra. Posto desse modo, Vigotski (1999a) alertava que o "equivalente sociológico de toda obra de arte é a primeira metade do objetivo da crítica" (p. 323), sendo que as dimensões estéticas e sociais deveriam ser sintetizadas para que dialeticamente torne-se possível tanto acessar a obra em sua dimensão material, quanto assumir seu caráter imaginário.
Articulando as proposições de Candido (2019) e as assertivas vigotskianas, referendamos o modo como a intertextualidade e as funções total, social e ideológica contribuem para ampliação e fundamentação da crítica literária. Para a análise da PHC da Arte, considerar essas dimensões orienta a compreensão do ato de criação de uma obra, da recepção e da vivência estética como elementos originados e vivenciados por meio da imaginação e criatividade que juntas "faz[em] do homem um ser que se projeta para o futuro, um ser que cria e modifica o seu presente" (Vigotski, 2014, p. 3). Essas análises, portanto, não se limitam ao tempo, embora derivem e ocorram sempre em um determinado momento histórico, mediado pela linguagem e marcado por dimensões ideológicas.
Considerando a síntese entre análise histórico-cultural e estético-literária, bem como a dimensão semiótica, comunicativa e ideológica que perpassa uma obra, tomamos como exemplo o conto Por enquanto de Clarice Lispector (2020). O conto é intitulado com uma locução adverbial de tempo, elemento linguístico que, utilizado isoladamente, pode representar uma carência de sentido. Afinal, "por enquanto" em relação a quê? Não obstante, é também possível pensar que a incompletude da sentença suscita a dimensão da espera e da abertura que caracterizam o tempo. Começamos a ler o conto e logo nos deparamos com a situação presente da personagem, na qual ela se percebe entediada por não ter nada para fazer e, diante disso, resolve exercer uma ação comum, como fazer "pipi" mas, em seguida, vê-se ir "a zero" (p. 43).
Após relatar um telefonema que recebera "sem mais nem menos" (p. 43), no qual uma moça contava sobre a morte do pai, a narradora escapa do tema e conta como vai preenchendo a sua espera com pequenas e simples atividades como comer, escrever e trocar de roupa. A espera que a acompanha não tem um elemento que a justifique, ela simplesmente espera. Durante todo o conto, a narradora atualiza a sua contagem do tempo, enquanto também observa o que acontece ao seu redor. Faz isso sempre em um tom intimista que retrata o acúmulo de pensamentos que lhe passam, sem que nenhum se mantenha. Esse movimento assemelha-se a um estágio de tédio, de falta de preenchimento do tempo. Pensa sobre o quão desconfortável teria sido ir ao enterro, mas também reflete sobre como a educação é enunciada na rádio de forma triste e que melhor seria fazer uma roda de viola com os cantores populares "Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso" (p. 45). Encontra-se, assim, com a saudade e com sua "carne fraca" (p. 45).
A vida que propõe distanciar-se do desconforto, está, porém, imbricada na desconfortante espera de algo que não se sabe o que é; logo, isso a leva a questionar o para quê: "São vinte para as sete. E para que é que são vinte para as sete?" (p. 45). De repente, é possível se dar conta de como o tempo lhe escapa e como contá-lo não resolve a espera, afinal "São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É muito fácil. É uma questão do relógio parar. Faltam três minutos para as sete. Ligo ou não ligo a televisão?" (p. 45). Novamente, se vê diante da possibilidade de estabelecer preenchimento para o "por enquanto", já que, embora não tenha um para quê, ainda tem o tempo. Reluta, por isso, em ligar a televisão: "é que é tão chato ver televisão sozinha. Mas finalmente resolvi e vou ligar a televisão. A gente morre às vezes" (p. 45).
Diante de toda espera, processa-se o tempo e chega-se à morte. Por mais sensível que Clarice Lispector tenha sido ao narrar a experiência humana de uma vivência tediosa do tempo, as tentativas momentâneas de dominá-lo, seja preenchendo-o ou contando-o, esse elemento discursivo sobre a impermanência do tempo e a inexorabilidade da morte ocupa um lugar comum (Achcar, 1992) na literatura. Ruth Klügler (2005), autora da obra Paisagens da Memória: Autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto, apresenta-nos memórias da sua experiência enquanto refugiada e prisioneira em um campo de concentração nazista. O texto representa o modo como a memória se atualiza em uma narrativa, ao passo que, esteticamente, evoca-nos a reflexão sobre a indissociável relação entre o real e o imaginário; entre o vivido, o que foi marcado no corpo, e como aquilo é sentido e lembrado. Logo no início da obra, é apresentada uma aguda descrição da dor da ilusão de uma espera em um momento de desumanização e violência, em decorrência do nazismo:
Foi essa a minha primeira grande perda. Fiquei desolada. Perdi não só um parente querido, mas também um papel: o de irmãzinha. "Ele voltará", consolavam meus pais. "É preciso aprender a esperar". Quando se espera muito, o que vem é a morte. É preciso aprender a fugir (p. 23).
Enquanto em Clarice Lispector (2020) há a descrição de um tempo cotidiano, que apresenta a vida de uma mulher, mãe e escritora, em Klüger (2005) lemos a narração de uma personagem sobrevivente, sobre a qual a morte aparece antes mesmo de aprender a racionalmente a contar e organizar o tempo. Ambas utilizam o ponto final das frases como um recurso estético que visa a compor um rompimento abrupto - suscitando, com efeito, o desconforto que também aparece quando se espera e, de repente, o que chega é a morte. Em Clarice Lispector (2020) observamos a chegada da morte de uma vida que espera enquanto não sabia o que completava o por enquanto, por outro lado, em Klügler (2005) a morte chega antes mesmo de a personagem poder questionar sobre a efemeridade da vida ou mesmo sobre o desafio de preencher o tempo quando se vivencia o tédio.
A articulação entre as duas mortes e a função total da literatura permite-nos atualizá-la, por exemplo, em face ao período pandêmico. A vivência de um tempo adiado ao longo da pandemia da Covid-19, o intensificar dos cuidados para evitar contaminações e a espera pelo retorno dos encontros, das festividades e atividades de lazer, estiveram em antítese com a experiência de muitos outros, pobres e vulneráveis, que contavam quanto tempo o dinheiro duraria e se seria possível comprar alimento. Vivenciavam o tempo da urgência, não possuíam máscaras, eram assaltados pela negligência social e pela morte concretizada em seus corpos e nos corpos das pessoas que amavam. O tempo na pandemia parece ter entrado em um estado de suspensão, ao passo que, enquanto uns enfadavam-se e adoeciam com o tédio, outros encontravam na fuga um último recurso de sobrevivência.
A análise da morte nos dois textos, bem como a compreensão do que é suscitado por meio do uso de recursos estéticos que representam o movimento que se realiza entre a forma e o conteúdo são, aqui, conjecturas, isto é, uma tentativa de apresentar relações intertextuais e dotá-las de sentido (Fowler, 2019). Assinala-se, todavia, que o objetivo fundamental é apontar um caminho de possibilidade para o ver e o sentir a partir das obras, considerando sua intertextualidade, bem como a história, a cultura e as dimensões políticas e ideológicas que marcam a criação e a recepção de um dado texto, sem perder de vista a dimensão estética e psicológica que envolve uma obra literária. A proposta é demonstrar como olhar para a obra enquanto uma unidade de sínteses, reconhecendo-a em seu movimento, para assim captar o modo como a vivência estética pode ser analisada pela dinâmica que se estabelece entre forma e conteúdo, intertextualidade, autor-obra-público e as suas funções total, social e ideológica.
Considerações Finais
Após o percurso de apresentação e análise da metodologia proposta por Vigotski (1999a), bem como do conceito de intertextualidade e as interfaces da análise histórico-cultural para Literatura e Psicologia, pretendemos, agora, discorrer uma síntese dos nossos argumentos. Assim, pretendemos sistematizá-los e encaminhar as proposições metodológicas para o campo da PHC da Arte, articuladas a compreensão da vivência estética como uma demanda inquietante "à procura de vazão" (Vigotski, 1999a, p. 322) que requer do leitor/público a produção de novos sentidos diante à apreciação do material estético, isto é, a realização de uma "segunda síntese criativa", na qual é impelido ao leitor que ele "reúna e sintetize os elementos dispersos do todo artístico" (Vigotski, 2003, p. 230).
Em nossas investigações, buscamos compreender uma PHC da Arte a partir da revisão de diferentes obras produzidas por L. S. Vigotski, bem como o modo como o próprio autor avança em seu percurso metodológico e teórico no campo da Psicologia. Destaca-se, primordialmente, a compreensão de que forma e conteúdo não devem ser tomados como elementos dissociáveis. Pelo contrário, para acessá-los dialeticamente e em toda a sua potência, argumentamos que estes devem ser tomados como uma unidade de síntese por meio do método de desmembramento, percebendo-os em movimento. Considerando tanto as proposições de Vigotski (2009), como as de Candido (2019), defendemos que esta unidade se manifesta na palavra e em sua dinâmica de produção de sentidos e significados.
A dinâmica de produção de sentidos e significados é retratada a partir da concepção de que o significado da palavra se revela na generalização, ou seja, na compreensão unificada da palavra. O sentido, por seu turno, é inesgotável e refere-se "sempre a uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada" (Vigotski, 2009, p. 465). Nessa perspectiva, o significado é, portanto, uma "potência que se realiza no discurso vivo", "uma pedra no edifício do sentido" (Vigotski, 2009, p. 465). Retomando tais compreensões a partir de Paulham, conforme indicara Vigotski (2009), admite-se no campo da PHC que "a palavra só adquire sentido na frase e a própria frase só adquire sentido no contexto do parágrafo, o parágrafo no contexto do livro, o livro no contexto de toda obra de um autor" (p. 466). Acrescenta-se, também, que palavras mudam de sentido, mas também os sentidos mudam as palavras, sendo que se articula a isso a assertiva vigotskiana de que "o pensamento não se expressa, mas se realiza na palavra. Por isto, os processos de desenvolvimento dos aspectos semântico e sonoro da linguagem, de sentidos opostos, constituem a autêntica unidade justamente por força do seu sentido oposto" (Vigotski, 2009, p. 412).
Depreendemos, portanto, que a elaboração de um sentido estético a partir da vivência de emoções inteligentes proporcionada pelo contato com a arte é alcançada a partir da necessidade que aparece ao leitor de imaginar, contextualizar a obra em sua vivência que é dialeticamente social e pessoal, e dotá-la de sentido considerando os recursos estéticos e os temas abordados. Logo, defendemos que a catarse se manifesta diante da requisição que a vivência de emoções inteligentes impele ao leitor. Emoção que deve ser, neste campo, entendida não como algo que se desprende da razão, mas que é por ela também constituída, visto que, sendo uma função psicológica, as emoções também se desenvolvem em sua dimensão biológica e cultural. Por conseguinte, o modo como se produz sentido a partir do contato com uma obra artístico-literária não está desarticulado das condições de vida material e intelectual, relacionando-se também com as funções total, social e ideológica, e se realiza sempre no encontro que se estabelece entre a obra, a função autor e o público leitor.
Concernente, portanto, à compreensão da produção de sentido como um elemento-chave para a vivência estética da catarse buscou-se também, neste ensaio, pensar como essa produção evoca a demanda por um método analítico que dê conta de acolher os diferentes elementos que compõem a totalidade da relação manifesta entre a obra, o público leitor e a função autor. Referendamos à obra como um sistema vivo, ao autor como uma função e ao leitor como um co-criador e, por isso, ativo no processo da vivência estética. Ainda nesta tópica, apontamos para a análise da intertextualidade e das funções total, social e ideológica como uma etapa que viabiliza a compreensão da criação e recepção de uma determinada obra como processos históricos. Salientamos ainda que o estudo das emoções estéticas que são suscitadas por tal obra requer mais do que olhar para a contradição que se manifesta entre a forma e conteúdo, sendo fundamental compreender tais elementos como sínteses.
Tomando tais pressupostos, faz-se necessário avançar e assumir também os vazios e inquietações que se desvelam diante dessa vivência emocional e estética proporcionada pela arte. Tais vazios, por vezes, não resolvem ou esclarecem dilemas, mas os apontam para que demoradamente seja possível percebê-los pela via da superação criativa e não pela expressão de "impulsos vigorosos por insípidos preceitos protestantes, racionais e moralizadores" (Vigotski, 1999a, p. 322). Nesse ponto, a arte utiliza-se também da incompletude. Como aponta Iser (1979), por exemplo, "ao mesmo tempo que marcam a suspensão da conectabilidade entre os segmentos do texto, os vazios formam a condição de relacionamento" (p. 121) entre o texto e o leitor. Para este autor, é por meio dos vazios e diante da busca de resolver a dificuldade de acesso que o texto cria, por seu caráter de indefinição, que o leitor se constitui.
Isto posto, reafirmamos a argumentação de Vigotski (1999a) de que a arte não se efetua partindo do pressuposto de uma economia de esforços ou do mero proporcionar de um prazer pela ilusão, mas que "a nossa reação estética, se nos revela antes de tudo não como uma reação que economiza, mas como reação que destrói a nossa energia nervosa, lembrando mais uma explosão do que uma economia de centavos" (p. 257). Essa explosão se concretiza em uma "força excepcional" (p. 267) que é despendida no campo do psiquismo. Desse modo, a arte revela a sua indispensável presença para a vida humana, visto que:
Na arte, justamente, se realiza para nós essa parte de nossa vida que surge sob a forma de estímulos de nosso sistema nervoso, mas que não se cristaliza na atividade, porque nosso sistema nervoso percebe mais excitações que aquelas às quais pode reagir. (Vigotski, 2003, p. 232)
Desse modo, a arte se manifesta na "transformação da água em vinho (…) [que] supera o sentimento comum", visto que as emoções "quando suscitadas pela arte, implicam o algo a mais acima daquilo que nelas está contido" (Vigotski, 1999a, p. 307). Para isso, e concluindo nossa argumentação, entendemos a arte como um encontro que demanda a realização de vivências no campo da imaginação. Desse modo, pensar, sentir e, assim, vivenciar emoções inteligentes requer do público leitor um interpor-se entre vidas e contextos experimentados apenas artificialmente, mas que também lhe são historicamente familiares. Requer produzir sentidos a partir de atividades da imaginação ou sustentar inquietações e vazios. Por fim, envolve desprender esforços que não se realizam em forma externa e que, por vezes, apontam caminhos e, em outros momentos, provavelmente em sua maioria, apenas os complexificam e anunciam a dimensão potencial da vida humana.
Referências
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Endereço para correspondência
Júlia Loren dos Santos Rodrigues - julialoren12@gmail.com
Recebido em: 21/06/2023
Aceito em: 02/04/2024
Agradecimentos: Os autores agradecem a professora Charlene Martins Miotti da Universidade Federal de Juiz de Fora - Minas Gerais pelas indicações de leitura, ensinamentos sobre intertextualidade, leitura e análise da qualidade técnica do manuscrito.
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