Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e77027, doi:10.12957/epp.2025.77027
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Masculinidade e Feminilidade Associados à Compreensão da Hanseníase e Cuidados com a Saúde

 

Masculinity and Femininity Associated with Undertanding of Leprosy and Health Care

 

Masculinidad y Feminidad Asociados a la Comprensión de la Hanseníasis y Cuidados de la Salud

 

Amanda Candido a, Ana Cláudia Bortolozzi b, Renata Bilion Ruiz Prado a

a Instituto Lauro de Souza Lima, Bauru, SP, Brasil
b Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este estudo, qualitativo-descritivo, teve por objetivo investigar as concepções atribuídas por pacientes com hanseníase, relacionadas aos cuidados com a saúde e desdobramentos psicossociais, em função do gênero. Participaram oito pacientes com hanseníase em atendimento multiprofissional na Divisão de Reabilitação do Instituto Lauro de Souza Lima, Bauru-SP, com deficiências físicas visíveis e até cinco anos de diagnóstico. A coleta de dados foi realizada a partir de um roteiro de entrevista com questões abertas, gravadas em áudio e transcritas na íntegra para análise de conteúdo. Os resultados foram organizados nas categorias temáticas: (1) Percepção de sinais da doença e busca por serviços de saúde; (2) Noção de corpo saudável e exercício de autocuidado; (3) Concepção de feminilidade e/ou masculinidade e (4) Mudanças percebidas após o diagnóstico de hanseníase. Conclui-se que os padrões de gênero influenciam as concepções e cuidados com a saúde por parte dos pacientes com hanseníase e isso deve ser considerado na prevenção e no atendimento desta população.

Palavras-chave: hanseníase, gênero, saúde pública.


ABSTRACT

This qualitative-descriptive study aimed to investigate the conceptions attributed by patients with leprosy related to health care and psychosocial developments, according to gender. Eight patients with leprosy in multidisciplinary care at the Rehabilitation Division of Institute Lauro de Souza Lima, Bauru-SP, with visible physical disabilities and up to five years of diagnosis participated. Data collection was carried out from an interview script with open questions, audio recorded and transcribed in full for content analysis. The results were organized into thematic categories: (1) Perception of signs and search for health services; (2) Notion of healthy body and self-care exercise; (3) Conception of femininity and/or masculinity and (4) Perceived changes after leprosy diagnosis. It is concluded that gender patterns influence conceptions and health care by leprosy patients and this should be considered in the prevention and care of this population.

Keywords: leprosy, gender, public health.


RESUMEN

Este estudio cualitativo-descriptivo tuvo como objetivos investigar las concepciones atribuidas por pacientes con hanseniasis, relacionadascon los cuidados de la salud y los desarrollos psicosociales, en función del género. Participaron ocho pacientes con hanseniasis en atención multidisciplinaria en la División de Rehabilitación del Institutp Lauro de Souza Lima, Bauru-SP, con discapacidades físicas visibles y hasta cinco años de diagnóstico. La recolección de datos se realizó a partir de un guia de entrevista con preguntas abiertas, grabado en audio y transcrito en su totalidad para el análisis de contenido. Los resultados fueron organizados en categorías temáticas: (1) Percepción de señales y búsqueda de servicios de salud; (2) Noción de cuerpo sano y ejercicio de autocuidado; (3) Concepción de feminidad y/o masculinidad y (4) Cambios percibidos tras el diagnóstico de hanseniasis. Se concluye que los patrones de género influyen en las concepciones y el cuidado de la salud de los pacientes con hanseniasis y esto debe ser considerado en la prevención y atención de esta población.

Palabras clave: hanseniasis, género, salud pública.


 

 

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa crônica considerada um grande problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No contexto mundial, o Brasil ocupa o segundo lugar, com um coeficiente de detecção de 13,23 por 100 mil habitantes (Ministério da Saúde, 2020). Em 2019, o país registrou 27.864 novos casos, destes, 2.351 (9,9%) com deficiências físicas visíveis no diagnóstico, ou seja, Grau Incapacidade Física 2 (GIF 2), revelando que o diagnóstico ainda continua sendo tardio (Ministério da Saúde, 2021).

A doença é causada pelo Mycobacterium leprae e sua transmissão ocorre, sobretudo, por meio de contato íntimo e prolongado com uma pessoa geneticamente susceptível, por vias aéreas superiores e não pelos objetos que o paciente utiliza. O diagnóstico pode ser feito, principalmente, através do exame clínico, incluindo anamnese, avaliação dermatológica e neurológica (Ministério da Saúde, 2017).

Os principais sinais e sintomas da hanseníase incluem manchas com alterações da sensibilidade; formigamentos; choques; câimbras nos braços e pernas; nódulos ou caroços; diminuição ou queda de pelos nas áreas afetadas. Por se tratar de uma doença de evolução crônica, algumas incapacidades podem se instalar em pés, mãos e olhos. Para verificar se o paciente apresenta perda da sensibilidade protetora, a OMS recomenda a avaliação do grau de incapacidade física (GIF); GIF 0 indica força muscular das pálpebras, mãos e pés preservada e sensibilidade da córnea, região palmas e plantar preservada; GIF 1 indica diminuição da força muscular sem deficiências visíveis das pálpebras, mãos e pés e/ou diminuição ou perda da sensibilidade da córnea, da região palmar e/ou plantar; GIF 2 indica deficiências físicas visíveis do tipo lesões tróficas, garras, reabsorção em pés e/ou mãos; mão caída ou contratura do tornozelo e/ou pé caído; lagoftalmo e/ou ectrópio, triquíase, opacidade corneana e/ou acuidade visual menor que 0,1 ou não conta dedos a 6 m (Ministério da Saúde, 2017).

Embora os desdobramentos da hanseníase possam gerar deficiências e incapacidades aos pacientes, pesquisas estimam que somente 1/3 dos portadores do bacilo de Hansen esteja notificado de seu diagnóstico e que, dentre esses, muitos fazem um tratamento irregular, caracterizado pela baixa adesão ou abandono de tratamento (Loureiro et al., 2006). Ao pensar em particularidades sobre o adoecimento, a inclusão do gênero se apresenta de modo indispensável. Segundo Araújo et al. (2014), o gênero masculino foi predominante para abandono de tratamento na hanseníase. A baixa frequência ou abandono do tratamento do paciente masculino estão relacionados a falta de tempo ou dificuldades impostas, demora no atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e medo. Por outro lado, o gênero feminino apresenta maior preocupação com o corpo.

Todos nós somos sexo e gênero. Temos um sexo, biologicamente determinado que influencia em algumas condições da nossa saúde. O gênero transcende a distinção sexual, marcando a relação humana nas esferas sociais e políticas, bem como legitima os mecanismos de exclusão e dominação (Laqueur, 2001).

Na área da saúde, as desigualdades entre gênero feminino e masculino determinam os padrões de relação social e cultural estabelecidos entre homens e mulheres. Por exemplo, a mortalidade é maior entre homens em todas as faixas etárias, relacionada a exposição em situações insalubres no trabalho, consumo exagerado de álcool, cigarros, outras drogas e violências. Em algumas culturas, a mortalidade pode ser maior entre as mulheres que cometem o infanticídio feminino ou onde a assistência à gestação e ao parto é de risco. Essas diferenças são decorrentes da divisão sexual do trabalho, da construção social e cultural do masculino e feminino em nossa sociedade (Barata, 2009).

No Brasil, três quartos da população não possuem acesso à planos de saúde privados e dependem unicamente do serviço público de saúde. A Política Nacional de Saúde confirmou a tendência de as mulheres serem mais cuidadosas com a saúde, em comparação aos homens. Uma das causas das características do comportamento masculino diz respeito ao fato dos homens apresentarem maiores chances de atendimento ao serviço de saúde logo na primeira tentativa, pelo fato do diagnóstico sugerir atendimento imediato de urgência (Cobo, 2021).

O conceito de gênero revela-se por meio de práticas produzidas e moldadas nas interações dos sujeitos em seu ambiente e contexto cultural na imposição de modelos de "ser homem" e "ser mulher" historicamente (Connell, 1995). Para Louro (2010) as diferenças entre homens e mulheres têm sido baseadas nas características biológicas de um modo essencialista e naturalista; entretanto, o gênero feminino e masculino é construído a partir de características produzidas em cada sociedade e em cada momento histórico.

Assim, podemos considerar que gênero é uma categoria que influencia na procura e na atenção em saúde, denunciando modelos de feminilidades e masculinidades como produtores de desigualdades no campo da prevenção e dos cuidados com a saúde (Brandão & Alzuguir, 2022; Gomes et al., 2007). Pesquisas brasileiras no campo da saúde coletiva mostram que as relações de gênero influenciam o modo como homens e mulheres concebem e lidam com sua saúde e, no contexto da atenção primária, esta temática tem sido problematizada (Costa-Júnior et al., 2016; Machin et al., 2011).

No que tange a perspectiva de gênero na hanseníase, estudos em saúde pública demonstram maiores taxas de incidência da doença e do GIF em pessoas do sexo masculino (Miranzi et al., 2010). Como já foi dito, a masculinidade não é determinada exclusivamente pelo aspecto biológico, mas também pelos aspectos psicológicos, educacionais e sociais (Negreiros & Feres-Carneiro, 2004). Nesse sentido, a imagem de corpo masculino para a sociedade é percebida como viril e enfrenta qualquer dificuldade que o capacita para o trabalho e possibilita as condições financeiras da família. Constitui também sinônimo de potência, desempenho e invulnerabilidade. O corpo masculino não é visto como algo que requer cuidado, uma vez que é erroneamente visto como resguardado de possíveis problemas orgânicos ou psicológicos (Gomes et al., 2007; Costa-Júnior et al., 2016). Por esta razão, a saúde do homem requer maior investimento de políticas públicas e intervenções que melhore sua qualidade de vida e que possa reverter os quadros negativos (Barbosa et al., 2023).

A partir do diagnóstico em hanseníase, o paciente recebe uma série de orientações multiprofissionais vinculadas ao seu processo de tratamento e reabilitação. Entretanto, o modo como cada paciente enfrenta os desdobramentos do seu quadro - sejam estes marcados por fatores orgânicos, sociais e/ou psicológicos - podem variar conforme o gênero, enquanto constructo social (Oliveira & Romanelli, 1998). Nos últimos sete anos, os estudos que relacionam a manifestação da hanseníase às relações de gênero são escassos. Essa relação pode influenciar o modo como os pacientes acometidos pela hanseníase lidam com o diagnóstico e tratamento (Souza et al., 2018).

Em um estudo realizado no Brasil, especificamente no estado da Bahia, há um padrão diferencial na hanseníase, segundo a perspectiva de gênero. Entre os homens, a vulnerabilidade ao contágio da doença é maior, o diagnóstico e tratamento oportuno apresentam estratégias diferenciadas e manutenção dos coeficientes de detecção. Entre as mulheres, o diagnóstico da hanseníase costuma ser tardio, há uma tendência de redução dos coeficientes de detecção, de aumento na proporção de casos multibacilares e do coeficiente de detecção de grau 2 de incapacidade. Para ambos os gêneros, houve tendência de crescimento do coeficiente de detecção de casos novos com GIF 2, com significância entre as mulheres, em comparação aos homens (Freitas et al., 2017).

Estudar essa temática pode contribuir para a difusão de medidas socioeducativas aos profissionais que compõem as equipes multiprofissionais dos serviços públicos de saúde, uma vez destacada a importância de considerar o gênero como componente essencial acerca das noções de saúde e significados atribuídos ao adoecimento e reabilitação na hanseníase. O estudo dos papéis de gênero na sociedade é relevante para a compreensão dos fatores que determinam o acesso e utilização dos serviços de saúde. Diante do exposto, a partir do diagnóstico do paciente, esta pesquisa teve por objetivo investigar as concepções atribuídas pelos pacientes com hanseníase, relacionadas aos cuidados com a saúde e desdobramentos psicossociais, em função do gênero.

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo-descritivo realizado na Divisão de Reabilitação do Instituto Lauro de Souza Lima (ILSL), Bauru, São Paulo.

Participantes

Colaboraram para este estudo oito participantes que tem ou tiveram hanseníase, com diagnóstico tardio de até 5 anos e que realizavam tratamento (PQT) ou programa de reabilitação no ILSL. A identificação dos participantes foi preservada, bem como os dados coletados que permaneceram sob a guarda de uma das pesquisadoras da instituição. Para a seleção dos participantes, elegeu-se os seguintes critérios de inclusão: pacientes voluntários, identificados com GIF 2, tempo de diagnóstico no máximo de cinco anos e que aceitaram as condições dos procedimentos para a participação. A opção por pacientes do gênero feminino e masculino deve-se ao interesse em estudar a desigualdade de gênero que limita, de certa forma, o acesso aos serviços de saúde com qualidade, além de colaborar para as taxas de morbidade que podem ser evitadas, tanto em mulheres quanto em homens no decorrer da vida.

Os participantes foram identificados por nomes fictícios. Havia entre os participantes quatro homens e quatro mulheres. Os sinais e sintomas encontrados com maior frequência foram: perda da sensibilidade nos pés (seis participantes), úlcera plantar (cinco) e catarata (três). Dentre os sintomas menos frequentes, foram identificados: perda da sensibilidade nas mãos (dois), neurites (dois), pé caído (dois), garra nas mãos (dois), garra nos pés (dois) e lesões nodulares (um). De modo geral, todos estavam impossibilitados de exercer atividade profissional, em decorrência de incapacidades limitantes, ocasionadas pela hanseníase.

A idade variou entre 21 e 53, com média de 38 anos. Quanto à ocupação atual, dois eram trabalhadores rurais, quatro domésticas/faxineiras, um músico e um tecnólogo químico. Todos afastados por motivo de saúde, em decorrência da doença. A escolaridade entre os participantes variou entre analfabetismo e Ensino Médio Completo.

Instrumentos

Para a coleta de dados, foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturado, elaborado pelos autores deste estudo (Bortolozzi, 2024). A versão preliminar do instrumento de coleta foi testada em situação piloto para aperfeiçoamentos necessários. Na versão final, havia, inicialmente, dados clínicos e sócio demográficos dos pacientes (gênero, idade, cidade, profissão e ocupação atual, escolaridade, estado civil, membros da família, forma clínica da doença, grau de incapacidade); as demais questões abrangiam perguntas de quatro grandes áreas: Noções Básicas e Diagnóstico em hanseníase, Cuidados com a própria saúde e Tratamento, Percepção da masculinidade/feminilidade e Desdobramentos psicossociais na vida do paciente com hanseníase.

Procedimentos de Coleta de Dados e Aspectos Éticos

Os participantes foram recrutados na Divisão de Reabilitação do ILSL por meio da busca ativa dos mesmos. Mediante aceitação, agendou-se com cada paciente um dia e horário para a realização da entrevista em uma sala que garantisse privacidade. O tempo médio de duração das entrevistas foi de 50 minutos. Os pacientes foram entrevistados individualmente e as entrevistas foram gravadas em áudio, com anuência dos participantes.

Os autores deste estudo seguiram os procedimentos éticos de pesquisa, sendo aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto Lauro de Souza Lima, CAAE, n. 95435118.9.0000.5475, seguindo as recomendações do Conselho Nacional de Ética e todos os cuidados éticos foram providenciados, visando o bem-estar e a autonomia dos pacientes.

Procedimentos de Análise de Dados

As entrevistas foram transcritas na íntegra em documento Word. Os relatos dos participantes foram analisados em categorias temáticas elaboradas conforme o conteúdo apresentado, a fim de levantar aspectos convergentes e divergentes que sejam exclusivos da população deste estudo. No tratamento dos dados, optou-se pela técnica de análise de conteúdo temático proposta por Bardin (2016), a partir dos seguintes passos: leitura flutuante, em exaustão, identificação das unidades de sentidos, agrupamento de relatos por similaridades, a organização das categorias que são mutuamente exclusivas e a análise teórica dos resultados se sustentou em estudos de gênero em saúde, sob a luz da psicologia.

 

Resultados

Os participantes avaliados foram quatro pacientes homens e quatro mulheres diagnosticados com hanseníase, aqui nomeados por nós como: Raimundo, Ronaldo, Rafael e Romário, Rebeca, Raquel, Roberta e Rita. A idade variou entre 21 e 53 anos, com média de 38 anos. Os dados sociodemográficos e clínicos foram demonstrados na Tabela 1.

 

Tabela 1

Caracterização dos Dados Sociodemográficos e Clínicos dos Participantes Avaliados

 

Participantes do gênero masculino

Raimundo

Ronaldo

Romário

Rafael

Idade

31

41

28

21

Ocupação

Trabalhador rural; Afastado por motivo da hanseníase

Aposentado por invalidez. Era operador de máquina e trabalhador rural

Músico e trabalhos informais

Técnico em química

Escolaridade

Ensino Fundamental Incompleto

Ensino Fundamental Incompleto

Ensino Fundamental Completo

Ensino Técnico

Estado civil

Solteiro

Casado

Solteiro

Solteiro

Primeiros sinais e sintomas

Eritemas cutâneos e perda da sensibilidade em membros inferiores

Perda da sensibilidade em membros inferiores e dores neurais

Perda da sensibilidade e atrofia muscular nos membros inferiores

Dor neural na região dos membros inferiores

Ano do diagnóstico

2016

2017

2018

2016

Grau de Incapacidade

2

2

2

2

Participantes do gênero feminino

Rebeca

Raquel

Roberta

Rita

Idade

32

42

53

53

Ocupação

Trabalhadora. Afastada por motivo da hanseníase

Diarista. Afastada por motivo da hanseníase

Diarista. Afastada por motivo da hanseníase

Diarista. Afastada por motivo da hanseníase

Escolaridade

Ensino Médio Completo

Ensino Médio Incompleto

Ensino Médio Incompleto

Sem escolaridade

Estado civil

Solteira

Casada

Solteira

Divorciada

Primeiros sinais e sintomas

Manchas avermelhadas na pele e caroços nos braços e pernas

Manchas escuras

Perda de sensibilidade em membros superiores e inferiores; úlcera plantar

Manchas brancas no corpo, dores neurais, perda de sensibilidade em membros inferiores e superiores.

Data do diagnóstico

2016

2015

2016

2015

Grau de Incapacidade

2

2

2

2

 

Os relatos dos participantes foram agrupados nas seguintes categorias temáticas:

Percepção de Sinais ou Sintomas e Busca por Serviços de Saúde

Considerando a busca por serviços de saúde entre os pacientes com hanseníase do gênero masculino, todos (Raimundo, Ronaldo, Romário e Rafael) apresentaram perda de sensibilidade - mãos ou pés - como um sinal percebido em seu próprio corpo e GIF 2. No entanto, tal sinal não foi tido enquanto o motivo que os levaram para o serviço de saúde. Raimundo, Ronaldo e Romário levantaram a dor como sensação que os levaram a procurar pela rede de atenção primária, enquanto que Ronaldo apresentou a percepção de eritemas nodulares como este sinal. Ronaldo ainda constatou que a percepção dos nódulos e a iniciativa para a busca do serviço de saúde partiu de sua esposa, isentando-se do exercício de auto-observação e cuidados com a própria saúde.

[...] eu estava com o tornozelo inchado e tendo uns choques na perna, na coluna, eu não estava aguentando de dor para trabalhar [...] Fui assim até onde aguentei, mas depois eu comecei a ficar irritado porque queria trabalhar e não conseguia, a dor atrapalhava o serviço e comecei a não aguentar as coisas [...] (Ronaldo).

Quanto às participantes do gênero feminino, Rebeca e Raquel apresentaram como primeiro sinal identificado a presença de manchas dormentes; indicando a autoobservação do próprio corpo. Para Rebeca, observar as manchas foi o suficiente para mobilizar-se em busca de ajuda profissional, como demonstra o relato abaixo.

[...] assim que eu percebi que estava saindo manchas na minha pele, eu já fui! Não foi muito tempo, o que demorou foi o tempo para a fila da consulta, mas só...eu já fui logo ver. E, no posto de saúde, tem um cartaz com foto que tem as mesmas manchas que eu tinha [...] (Rebeca).

Rebeca, apesar de ter observado as manchas, procurou ajuda médica somente após perder a sensibilidade dos pés e das mãos, atrasando o diagnóstico. Roberta e Rita também indicaram a perda de sensibilidade como um sintoma da doença. Roberta buscou o serviço de saúde por estar constantemente com febres, em decorrência de uma úlcera plantar e Rita, após o aparecimento de neurite. Raquel fez o tratamento tardio por falta de diagnóstico precoce.

Noção de Corpo Saudável e Cuidados com a Própria Saúde

Toda a amostra masculina (Raimundo, Ronaldo, Rafael e Romário) sinalizou os cuidados preventivos - exames, consultas e autocuidado - como definição de saúde. Os demais componentes relatados foram a "alimentação equilibrada" (Ronaldo, Rafael e Romário), o "sono preservado" (Romário), a "conscientização de riscos" (Romário), e a "execução de atividades" (Raimundo), no sentido de que o corpo saudável é sinônimo de um corpo ativo. Dentre as concepções de saúde fornecidas, Raimundo e Rafael descreveram-se distantes de suas próprias concepções, alegando não fazerem o necessário. Ambos trouxeram figuras familiares como principais cuidadores deles, sendo aqueles que estimulam e/ou realizam as atividades que visam o cuidado em saúde.

[...] é, por conta mesmo eu não procuro muito não [cuidar de si mesmo]. Só se vejo que tem alguma coisa estranha. [Sobre não cumprir as orientações em autocuidado] Não, sei lá... é estranho, óleo, creme, essas coisas esquisitas. Ah, é coisa de mulher ficar passando creme. Homem não faz isso não. Eu não sou chegado nessas coisas. Pode até passar, mas vai de cada um. Não é para mim não! [...] Mas, às vezes minha mulher me lembra, daí que eu faço. Ela pega mais no meu pé [...] (Raimundo).

Após o diagnóstico em hanseníase, Ronaldo citou o compartilhamento de experiências com outros pacientes adoecidos como mobilizador para conscientização do próprio corpo e riscos da hanseníase; enquanto que Romário citou a vontade de resgatar seu bem-estar para participar ativamente da criação de seu filho. Quanto às dificuldades na execução do autocuidado, apareceram, Raimundo e Ronaldo mencionaram o "cuidado como uma prática feminina". Segundo Romário, as "dificuldades financeiras" dificultaram o autocuidado e Rafael citou a "falta de sensibilidade" em realizar o tratamento proposto para o autocuidado, em decorrência da hanseníase.

Diante da amostra feminina de participantes, as noções de corpo saudável foram variadas, sendo que a "alimentação equilibrada" foi citada com maior frequência (Raquel, Roberta e Rita). Duas participantes também citaram a "manutenção da aparência física" enquanto um fator essencial (Rebeca e Raquel), Roberta e Rita pontuaram em relação aos cuidados preventivos, bem como a busca por "procedimentos de saúde e autocuidado". Raquel ainda levantou como um componente a ser considerado o "estado emocional de felicidade preservado", no sentido de que as mulheres devem sempre expressarem socialmente, de forma feliz e leve, ainda que estejam passando por conflitos: "[...] tem que se alimentar bem, procurar se cuidar bem. [...] manter sempre bonita, se cuidar, ser mais vaidosa pra não deixar se abalar[...] Eu penso em me cuidar para não ficar feia né, para o meu marido [...]" (Raquel).

Rebeca, Raquel, Roberta e Rita sinalizaram compreender a importância do autocuidado. Dentre os motivos apresentados, destaca-se o "resgate do bem-estar" (Rebeca, Roberta e Rita), como "estratégia para manter-se bonita e alinhada aos padrões de beleza", de acordo com suas crenças (Raquel) e a "necessidade de estar saudável para realizar os cuidados maternos com os filhos" (Rebeca).

Concepção de Feminilidade e/ou Masculinidade

Antes do Diagnóstico de Hanseníase

Dentre as participantes do gênero feminino, a compreensão de feminilidade abarcou elementos comuns à maioria das participantes (Raquel, Roberta e Rita), sendo o principal deles a maternidade. Outros fatores como a responsabilidade de ter uma família, cuidar do cônjuge e tarefas domésticas também se destacaram. Rebeca e Raquel pontuaram como características que compõem a feminilidade da mulher relacionados aos cuidados com a aparência física em correspondência aos padrões de estética ocidentais vigentes; termos como: vaidade, maquiagem, bonita, magra, cabelo comprido, arrumada apareceram com frequência.

[...] cuidar do corpo, manter sempre magrinha, bonita, não relaxar, você entendeu, procurar sempre se cuidar, com roupa, andar bem vestida, ter o sorriso no rosto, não ficar triste, nem desanimada, independente do que você está passando e da doença [...] ter uma família, procurar cuidar da casa, do marido, do filho [...] (Raquel).

Roberta e Rita também sinalizaram como um componente do feminino o fator de realizar diversas tarefas e funções ao mesmo tempo, tendo que cumprir com todas elas. Quanto às características emocionais, foram identificadas nos relatos a questão de a mulher ser mais afetuosa (Rita) e a necessidade de apresentar-se de forma mais leve e feliz (Raquel) a fim de não incomodar aos outros com suas angústias: "[...] trabalhar mais (risos). Eu acho que mulher é assim, né, para ter um filho, ser boa mãe, casar, cuidar da casa, ter um filho e cuidar dele, com carinho, amor e ter mais responsabilidade pela família [...]" (Rita).

Para os participantes do gênero masculino, a compreensão de masculinidade apresentou o elemento da família, no sentido de formar e sustentar financeiramente a família enquanto uma responsabilidade masculina para todos os entrevistados (Raimundo, Ronaldo, Rafael e Romário). Os participantes Raimundo e Rafael classificaram "homens que têm uma família" e "homens solteiros e sem filhos", agregando ao primeiro grupo componentes como: honra, responsabilidade, trabalho e compromisso; já o segundo grupo seria composto por: impulsividade, irresponsabilidade, liberdade, despreocupação e irritabilidade. Para Ronaldo e Romário, independentemente de um homem ter ou não filhos, ele deve ter empatia, honestidade, responsabilidade e caráter. O trabalho (Ronaldo e Romário) também apareceu enquanto uma característica que compõe a masculinidade. Quanto aos atributos físicos, Rafael e Romário citaram a força e o formato do corpo masculino mais robusto como fatores comuns e exclusivos dos homens: "[...] ah, eu acho que trabalhar. O homem é aquele que trabalha, que sustenta a família, pois as coisas dentro de casa, que assume responsabilidades, para mim, ser homem é isso, o trabalho [...]" (Ronaldo). "[...] corpo, para agir sem pensar muito, jeito [...] Sair, bagunçar bastante, isso eu sempre fiz, para mim é só. Sair, não ter hora para voltar, não ter satisfação para ninguém, ser livre [...]" (Rafael).

Após o Diagnóstico de Hanseníase

Após a hanseníase, as participantes do gênero feminino Rebeca, Raquel e Rita, relataram terem se distanciado da noção de feminilidade descrita por elas, pontuando o medo de sofrer com estigmas de outrem, associados a doença, autoimagem desfavorável por conta das mudanças no corpo e limitações de algumas atividades relacionadas às atividades domésticas (cozinhar, varrer o chão, carregar objetos pesados) como elementos que contribuíram para o distanciamento.

[...] muita coisa mudou, não sou mais a mulher do jeito que eu falei, não sei explicar. Ah, quando eu recebi o resultado que eu estava com isso, eu parei tudo, não quis mais fazer unha, não me arrumava mais, só ficava dentro de casa, não saía também. [Sobre o sexo oposto] Acho que não teria diferença nenhuma, acho que eles se sentiriam ruins também do mesmo jeito [...] (Rebeca).

[...] ah, mudou um pouco porque nem minhas netas sabem, eu tenho três netas mulheres, então, eu não posso fazer muito por elas, porque tem hora que eu tenho medo de chegar perto delas, pegar uma no braço e não aguentar segurar e deixá-la cair. Tenho uma neta de oito meses, então a gente se sente meio constrangida. [Sobre o sexo oposto] Eu acho que os homens não compreendem. Porque eles se acham machão (risos), eles acham que eles não têm essa doença. As mulheres aceitam mais essa doença do que os homens. O meu marido lá em casa se nega a tratar, não que ele tenha, pois ele tomou a vacina, ele fez o exame, mas ele se acha machão que nunca vai ter a doença [...] (Rita).

De acordo com o relato das mulheres (Rebeca e Rita), os homens seriam mais resistentes em aceitar a condição de vulnerabilidade expressa pelo diagnóstico de uma doença. Para elas, os homens se preocupam mais em manter uma reputação que reforce os padrões de masculinidade, como a força, virilidade e resistência física.

Toda a amostra de participantes do gênero masculino relatou haver mudanças na percepção da masculinidade após a hanseníase, sendo que dois deles (Raimundo e Ronaldo) descreveram alterações consideradas negativas e/ou que implicaram no afastamento da noção previamente citada. Os outros dois (Rafael e Romário) trouxeram elementos positivos, no sentido de se aproximarem de tais noções. Entre os que se distanciaram, foram destacados fatores como a limitação física e a inatividade laboral, que implicam diretamente na noção de masculino enquanto corpo forte e ativo. Em contrapartida, os participantes que alegaram ter se aproximado da definição apresentada, ressaltaram que o processo de aceitação e enfrentamento da doença lhes corroborou em desenvolver habilidades como autocuidado, resiliência, empatia, valorização de pequenos gestos e conquistas pessoais.

[...] Com isso, perder a sensibilidade mudou tudo, agora é tudo sentado ou deitado. [...] E antes eu fazia um monte de coisas. Tive que parar de trabalhar, se não fosse por isso, eu ainda estava trabalhando normal. Por mim, eu não parava, eu queria continuar trabalhando, mesmo com a doença. [sexo oposto] Ah muda! É muita diferença. Os sintomas mexem com a gente né, é tudo muito triste. Prejudicou no meu trabalho que já foi complicado, imagina para uma mulher que, além do trabalho, tem que cuidar dos filhos, da casa e fazer comida. Muda tudo! Porque eu mesmo, se estou com dor, eu vou pra cama. E a mulher? Não dá, é muito pior [...] (Raimundo).

[...] mudou que eu estou mais calmo, agora estou aceitando as coisas... estou levando numa boa. Foi uma mudança positiva, porque antes, não podiam falar qualquer coisa para mim ...eu já não aguentava, ficava bravo, eles cortavam alguma coisa minha eu já ficava bravo, agora estou levando numa boa. [Para o sexo oposto] Acho que é mais difícil porque a mulher é mais vaidosa que o homem, ela não iria aceitar a doença, iria ficar de qualquer jeito, não iria se cuidar mais [...] (Rafael).

Todas as mulheres do gênero feminino, quando questionadas sobre o enfrentamento da doença, relataram ser uma mudança ainda mais radical, por se sentirem responsáveis por inúmeras tarefas e frustradas por não conseguir executá-las. Entre as tarefas atribuídas às mulheres, estariam o trabalho (ocupação de diarista), responsabilidade de cuidar dos filhos, da família e da casa. Além disso, as participantes também pontuaram sobre a vaidade feminina enquanto um elemento de mudança, pois diante da percepção do corpo em decorrência da hanseníase, as práticas em função da estética teriam que ser redobradas.

Mudanças Percebidas nas Esferas Relacionais Após o Diagnóstico de Hanseníase

Quando questionados sobre as mudanças percebidas de forma geral, considerando exemplos como os vínculos afetivos, relações de trabalho, estado emocional e sexualidade, os participantes relataram sobre cada uma das esferas e destacaram àquelas que tiveram maior repercussão, fosse enquanto uma alteração positiva ou negativa. Mais uma vez, foi observado diante das respostas dos entrevistados que os padrões de gênero reproduzidos e cristalizados socialmente se relacionam diretamente à forma com que o indivíduo se percebe em meio a sociedade ou vice-versa. No caso dos pacientes do gênero masculino, todos salientaram as relações de trabalho como a mudança mais impactante, considerando a atividade de trabalho enquanto elemento essencialmente masculino e a ausência desta, culminaria em perda de identidade. "[...] a parte de trabalho, acho que queria fazer algumas coisas. A maior dificuldade mesmo é com a mão esquerda e, acho que queria resolver isso para voltar ao trabalho [...] (Romário)".

[...] ah, com certeza o trabalho. [...] se a gente for pensar, o trabalha edifica o homem, é o que transforma a vida da gente, é o que a gente faz, vive, é tudo! Estar aposentado como um inválido aos 42 anos, sendo que, desde que me entendo por gente eu trabalho, é complicado, [...] não gosto de depender de ninguém, eu gosto de fazer! Quando a gente percebe que não está mais fazendo nada, dá uma tristeza, [...] isso envergonha a gente. Eu, graças a Deus, consigo fazer minhas coisas, e isso já é muito bom [...] (Ronaldo).

Por outro lado, as participantes do gênero feminino trouxeram diferentes preocupações que se distanciaram de um argumento em comum, mas que se associam indiretamente. Apesar de cada uma delas ter manifestado maior incômodo com cada esfera supracitada, todas trouxeram um aspecto que fundamenta a angústia, uma insatisfação com a própria imagem corporal, bem como o sentimento de carência ou rejeição.

[...] eu andava muito chorona (risos), tinha medo de ficar internada e deixar meu menino lá sozinho. Minha filha falou: - "Mãe, eles são todos moços, todos velhos, não tem o porquê ficar preocupada" [...] mas, a gente é mãe, fica preocupada [...] (Roberta).

[...] só [o afastamento] das minhas amigas que mudou e mudou bastante. Só isso mesmo que me deixou meio [...], porque eu esperava que as minhas amigas iriam me apoiar, mas não, elas se afastaram. [...] E já fiquei sabendo pela boca dos outros que elas falaram assim: -"Eu não vou lá porque fiquei sabendo que aquela doença pega". Então, isso ofende a gente, elas que deveriam me procurar, eu não quero saber não [...] (Rebeca).

 

Discussão

As categorias entrelaçam a dimensão gênero em toda sua dimensão. A busca por serviços de saúde diante dos primeiros sintomas, por exemplo, já reflete as questões impostas socialmente aos homens e às mulheres, como indicaram outros estudos (Brandão & Alzuguir, 2022; Gomes et al, 2007; Machin et al, 2011). Podemos ver, por exemplo, que a demora na procura pelo diagnóstico ou o menor cuidado com a saúde apareceu nos relatos dos homens, relacionado a preocupação deles com o trabalho ("coisa de homem").

Ao mesmo tempo, a mulher, que pratica o autocuidado com maior intensidade, que cuida mais da saúde dela e que ajuda o homem a cuidar da saúde dele, acaba por reproduzir os mesmos estereótipos de gênero, pois a busca do corpo saudável é pela aparência física da beleza e da capacidade de cuidar de filhos, sendo "coisa de mulher". (Louro, 2010). Para Zanello (2022), mulheres respondem ao dispositivo materno como um aspecto fundamental da feminilidade, isto é, aprendem ao longo da vida por imposição cultural que "devem" ser mães e cuidar de seus filhos, para ser felizes.

Estudos demonstram que, de modo geral, as mulheres buscam mais o serviço de saúde em relação aos homens (Lima-Costa & Loyola, 2008; Levorato et al., 2014). No entanto, apesar de explorar em dados de pesquisas os fatores econômicos e sociais que corroboram para o fenômeno, pouco se apresenta na literatura em saúde pública sobre como se dá a construção dos corpos e de que maneira isso repercute na promoção à saúde. O processo de adoecimento, como um todo, corrobora em mudanças identitárias, bem como a visão que o paciente adoecido passa a ter sobre si, demonstrando que algumas repercussões dependem do gênero.

Algumas ideias que estruturam o modelo de construção feminina hegemônica devem ser resultado do processo relacionado à um corpo sensível ao olhar, seja de si mesmo ou do outro. Este olhar que vigia e pune, faz com que a percepção de si mesmo soe como uma responsabilidade, muitas vezes um fardo, inerente à mulher. O corpo feminino é aquele que cuida de si mesmo para que o outro possa lhe aprovar e desejar. A função do feminino é também maternal, de forma inata, e, todos os arranjos constituintes deste papel social devem ser características cruciais do gênero feminino, o que deve ser questionado. Essa perspectiva teórica está ancorada nos estudos de Louro (2010), Schienbinger (2001) e Negreiros e Feres-Carneiro (2004).

Da mesma maneira, mas em sentido oposto, ocorrem as determinações que estruturam a construção do corpo masculino. Tem-se a virilidade masculina como elemento essencial, a qual deve-se deslocar para o máximo de facetas da vida do homem, expressando-se também em forma de agressividade, poder, coragem e força, por exemplo. Neste sentido, ser homem estaria implicado em ser funcional, a fim de preservar os atributos de virilidade. O olhar que constrói sob si e para o outro é, portanto, norteado por sua potência em ser masculino (Alves et al., 2011; Gomes et al, 2007). Ao nascer, crescer e se desenvolver em conjunto com outros seres humanos, o homem e a mulher ocidental apreendem os modelos aos quais se identificam culturalmente e passa a reproduzir tais comandos, de forma a introjetá-los e justificá-los como algo biológico ou inato, uma vez cristalizados (Laqueur, 2001; Louro, 2010).

Se pensarmos na noção de saúde-doença, os dados sugerem que as mulheres perceberam o corpo como um todo, pois buscaram o serviço de saúde com um intervalo menor de tempo e perceberam mais rapidamente os sintomas e a necessidade de procura dos serviços de saúde. Os homens percebem a doença como um mal instalado, sendo aquele o fator de busca e motivo de eliminação a fim de restaurar a função e potência do estado saudável; para eles, portanto, saúde é descrita na dicotomia da ausência de doença (Laqueur, 2001; Gomes et al., 2007).

Partindo dos pressupostos esperados para determinado gênero e a forma com que se constroem, é possível observar que a forma com que percebem a hanseníase e os desdobramentos posteriores ao processo destoa significativamente entre homens e mulheres, sendo que os primeiros se revelam muito apreensivos com a perda de funcionalidade corporal enquanto instrumento de trabalho, associando o ato de trabalhar diretamente com a figura masculina (Connell, 1995). Para as mulheres, no entanto, a apreensão situa-se no campo estético, implicando em perda de sensualidade e beleza (Levorato et al., 2014). Neste sentido, as mulheres participantes deste estudo, demonstraram angústia resultante dá má avaliação do outro perante o afastamento do belo e sensual.

As configurações e estereótipos de gênero trazidos pelos participantes também foram confirmadas por Figueiredo e Schraiber (2011), para além de suas impressões pessoais, quando analisamos os desdobramentos da impossibilidade de trabalhar entre homens e mulheres.

 

Considerações Finais

As diferenças demonstradas quanto às percepções após o diagnóstico da hanseníase, os cuidados em saúde e os desdobramentos psicossociais apontados nos relatos das mulheres e homens indicam uma relação com os padrões de gênero cristalizados. Estudos têm debatido que relações de gênero são importantes nos cuidados com a saúde, mas no campo da hanseníase ainda são incipientes esses relatos. Embora este seja um estudo limitado pela pouca abrangência de área e população, podemos elencar questões importantes para se debater no campo da prevenção: mulheres e homens têm lidado de modo diferente diante dos sintomas, atraso no diagnóstico, podem aderir diferentemente no tratamento, sofrem de modo mais intenso com os estigmas. Devido aos padrões de feminilidade e masculinidade, portanto, profissionais da saúde precisam estar atentos a essas questões.

Assim, evidenciamos comportamentos nos cuidados com a saúde, modelados por questões de gênero que não são discutidos nas políticas públicas, nos processos de educação em sexualidade, no modo como somos educados a nos perceber e a nos cuidar em relação aos nossos corpos. Toda a instituição e a equipe de saúde devem considerar as particularidades e as construções de feminino e masculino, além de toda a diversidade humana (como a população LGBTQIA+), ao traçar campanhas e estratégias de intervenção em promoção de saúde. Para tal, é necessário destacar a importância de debater as questões de gênero nos contextos hospitalares para promover um novo olhar em saúde e, assim, adaptar a comunicação terapêutica para alcançar resultados mais eficazes de maneira geral.

Compreender a construção de gênero no contexto da saúde é fundamental para a postura profissional diante às diferenças comportamentais de homens e de mulheres no atendimento preventivo e hospitalar, visando diminuir os produtores de desigualdade e estimular a superação deste paradigma na saúde pública brasileira.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Amanda Candido - candido.amanda16@gmail.com

Recebido em: 15/06/2023
Aceito em: 19/08/2024

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de Aprimoramento Profissional da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo da primeira autora no Instituto Lauro de Souza Lima (ILSL).

 

 

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