SOUZA, Andréa de Abreu. A Foraclusão: Presos do Lado de fora. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.1, n.1, jan./dez. 2001.

 


RESENHA

A Foraclusão: Presos do Lado de fora
RABINOVITCH, Solal. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 111p



Andréa de Abreu Souza*

 

O que é a psicose? Fonte de questionamentos inesgotáveis para a psicanálise, trata-se de um campo que se acha sempre aberto à possibilidade de novas leituras.

É em conseqüência de sua experiência clínica com a neurose que Freud nos traz a noção de inconsciente. Seguindo seu percurso teórico-clínico, vemos um Freud que caminha em direções singulares, a partir de interrogações em torno do narcisismo e do que virá a formular na segunda tópica. São essas novas direções que nos apontam um interesse freudiano que vai gradativamente progredindo na direção de descobertas importantes que dizem respeito à psicose.

Recusando sempre o caminho mais fácil, bem como qualquer forma de produção de saber dogmático e estagnado, Freud vai construindo certos desdobramentos para a psicanálise, a partir dos quais não é mais possível se desvencilhar da consideração de uma dimensão fundamental da loucura. Seria a transferência, eixo essencial no processo da análise, a única dimensão do ato analítico?

Para Freud, é preciso sublinhar cada vez mais, a importância da presença do quantum de afeto implicado no sistema percepção-consciência, afeto que remete à intensidade pura da pulsão e àquilo que se impõe como angústia do real. O indicador preciso, quanto a este ponto, se delineará de forma mais precisa em Além do princípio de prazer, com o conceito de pulsão de morte, onde comparece a insistência freudiana numa modalidade de pulsão sem representação. Trata- se, aqui, do impacto das pulsões e de suas formas nesse regime de uma consciência-percepção, a partir de onde se produzem verdades para o sujeito que surgem dessas afetações pulsionais.

Sendo assim, cabe perguntar: assumindo esse contexto, a noção de sujeito que podemos retirar da teoria freudiana nos traz a perspectiva de um sujeito que deve ser tomado como origem ou bem como uma ficção sempre a ser construída? A psicanálise se constitui como um método que visa operar um desvelamento de verdades já preestabelecidas no psiquismo do sujeito? Nesse sentido, existiriam verdades que passariam pela proposta de uma verdade a ser restaurada?

Sem dúvida, teremos, com Lacan, desenvolvimentos essenciais para se pensar a psicose, pois não se furtando a operar com esse campo, o trabalho lacaniano é árduo, vasto, lançador de luzes e, sobretudo, uma grande porta aberta para outras interrogações.

Uma das principais contribuições do legado lacaniano certamente diz respeito ao avanço rigoroso em torno da diferenciação entre o processo de recalcamento e o processo da foraclusão. Para isso, retomará o termo Verwerfung, que é utilizado por Freud a propósito do questionamento quanto a um mecanismo de defesa diferente do recalque, que comparece no caso do Homem dos Lobos. Trata-se de precisar as diferenças que entram em jogo na neurose e na psicose.

Para se pensar a psicose, não é suficiente apenas a suposição de que o sujeito ignora a língua que ele fala, nos diz Lacan, pois mais do que dizer que aí o inconsciente se acha excluído, ou, dito de outro modo, não-assimilado, importa investigar porque ele aparece no real. Lacan apontará que no fenômeno psicótico, estamos diante de uma Bejahung primordial que, enquanto simbólica, pode faltar. Assim, o que cai sob o golpe de uma Verwerfung sofrerá um destino totalmente diferente do recalcado: tudo que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real. O delírio traz em si um regime de significação que se contrapõe em relação ao ordenamento comum do discurso e a alucinação verbal comparece como
alguma coisa que toma forma de palavra falada e que, para o sujeito, comparece como o que lhe fala. Trata-se de considerar o estatuto de uma realidade assimilada como um buraco cavado, a qual vem se sobrepor à forma de um mundo fantástico, no qual o que vem do exterior não pode ser reconhecido no interior. Essa falha, para Lacan, se dá a partir da foraclusão de um significante primordial, o significante do Nome-do-Pai. Essa noção será um norteador essencial para o pensamento lacaniano sobre a psicose.

Sendo esse desenvolvimento rigoroso e complexo, abrem-se questões como: estando este significante primordial excluído do registro simbólico, o que resta? A partir dessa visada, como podemos pensar
um tratamento possível para a psicose?

É em torno dessas questões que Solal Rabinovitch constrói seu livro A Foraclusão – presos do lado de fora, trabalho onde retoma referências fundamentais tanto no campo conceitual freudiano como no lacaniano, para realizar uma leitura particular a partir de interrogações, tais como: “A foraclusão não nos conduz, assim, já que a ausência de toda inscrição prévia impõe a invenção, para uma nova definição do saber?”

Rabinovitch certamente nos traz contribuições significativas ao estudo da foraclusão, na medida em que nos abre uma janela para outros questionamentos: ao sublinhar a importância da metapsicologia freudiana a partir da Carta 52, onde recorta o caráter dos signos ordenados por um jogo de negações, que conserva uma face de percebido real presentificado como sonoro, visual ou móvel, lastreando o significante; bem como quando dá ênfase à noção de tempo: “a foraclusão impõe, antecipadamente, um limite de tempo para aquilo que se trata de dizer ou contradizer.”

Realiza, também, uma vasta e rigorosa pesquisa em torno do termo negação, tanto em Freud como em Lacan, sublinhando os diversos sentidos que esse termo pode assumir e o uso que podemos fazer do mesmo em relação à psicose. Será a partir desses elementos teóricos, ao lado do empréstimo que retira das noções lacanianas de Outro e de gozo, que Solal Rabinovitch sustentará o ponto central de sua tese, a qual defende a
partir da idéia de uma estrutura, que seria a marca do retorno do foracluído.

Para a autora, o retorno do foracluído vem localizar o nada do inconsciente e o vazio do Outro: “Entre os presos do lado de fora, pensamentos, vozes, sensações vêm de fora; sua publicação (retorno) os localiza no sistema percepção-consciência, onde eles não podem inscrever-se, mas apenas experimentar-se... Localizado no vazio criado pela abolição de inscrições mnésicas, o retorno do foracluído habita esse bizarro lugar psíquico, onde nada se imprime como uma marca, mas onde não cessa de reaparecer, levado, suportado pelo que se ouve, pelo que se vê, pelo que se sente, pelo que se lê, o significante lançado nas trevas exteriores.”

Nessa leitura, Solal propõe as nomeações de atual e endereço para tempo e lugar do retorno do foracluído, enfatizando que o foracluído constitui o corpo, enquanto objeto que não é separado do sujeito, implicando assim no retorno que constitui o sujeito em endereço; o qual, tendo o nada no lugar do Outro, encontra o gozo do corpo como gozo louco, que faz o sujeito ser exilado mais uma vez.

Salienta ainda a autora que “nada se pode reconhecer de um nome do pai a partir de um fragmento psíquico rejeitado; ele fica para sempre desfigurado”; de onde destaca que “é do retorno de uma voz psicótica que surge a figura mortífera”, sendo o sujeito efeito desse foracluído. A partir daí, Solal Rabinovitch pergunta se não poderia ser lançada a proposta de uma nova fórmula para a foraclusão: “o que é recusado ao dizer se transforma em voz?”

Por fim, nesse livro que não deixa de nos surpreender, encontramos quanto às condições de tratamento para a psicose, a indicação de que endereço e atual (lugar e tempo) são “o que define o fenômeno psicótico e as coordenadas necessárias do seu tratamento pela transferência”, onde “cabe pois ao analista (aqui simples outro) o dever de insinuar-se entre as letras do real que apreendem o objeto que é o corpo para o Outro.”

Certamente, ao se referir aos presos do lado de fora, a autora abre uma nova série de questionamentos sobre esse tema tão instigante que é a psicose. Pois, trata-se aqui de nos mantermos sempre atentos a possibilidade de interrogar continuamente esse campo tão vasto de possibilidades de diversas leituras, sem nos colocarmos presos em algum lugar – seja o de uma aceitação dogmática ou de uma negação das dificuldades que o psicótico nos traz –, do lado de fora de uma aposta que exige sempre novos desdobramentos.

NOTAS

* Psicanalista, Membro do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro – Escola de
Psicanálise, mestranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise do Instituto de
Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.