Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e76819, doi:10.12957/epp.2024.76819
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Narcisismo e o Processo de Morrer: A Potência do Encontro com o Outro

 

Narcissism and the Dying Process: The Potency of Encountering with the Other

 

Narcisismo y el Proceso de Morir: La Potencia del Encuentro con el Otro

 

Morgana Nunes a, Luciane De Conti a

a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O presente artigo é parte de uma dissertação de mestrado que teve por objetivo compreender os possíveis desdobramentos narcísicos no sujeito com adoecimento crônico e em cuidados paliativos. Neste recorte, enlaçamos o conceito de narcisismo, a partir da perspectiva freudiana, ao processo de morte e morrer, principalmente no que diz respeito à potência do encontro com o outro. Tendo em vista que, na construção do pensamento psicanalítico, teoria e prática se intercruzam com frequência, e que é este "cruzamento" que permite avançar metapsicologicamente, valemos-nos dos relatos clínicos registrados pela primeira autora da sua experiência com pacientes em processo de terminalidade, no contexto dos cuidados paliativos. Para dar vida e sutileza à temática, também utilizamos a literatura e a poesia nessa construção. A análise desse material permitiu visualizar similaridades existentes entre os processos de constituição narcísica do bebê e o de reorganização narcísica daquele que morre, enfatizando o papel fundamental do outro no processo de morrer. Na terminalidade, esse outro pode desempenhar o papel de cuidado, amparo e nomeação desse novo corpo que se apresenta, ajudando o paciente na construção de novos sentidos para as experiências vividas e também para elaborar a trajetória para a morte.

Palavras-chave: psicanálise, narcisismo, cuidados paliativos, morte.


ABSTRACT

This article is part of a master's thesis that aimed to understand the possible narcissistic consequences of the subject with chronic illness and in palliative care. In this excerpt, we link the concept of narcissism, from the Freudian perspective, to the process of death and dying, especially regarding the power of the encounter with the other. Considering that in the construction of psychoanalytic thought, theory and practice frequently intersect, and that it is this "intersection" that allows metapsychological progress, the clinical recorded by the first author about her experience with patients in the process of terminality, in the context of palliative care. And, to give life and subtlety to the theme, we also use literature and poetry in this construction. The analysis of this material made it possible to visualize existing similarities between the baby's narcissistic constitution processes and the narcissistic reorganization of the one who dies, emphasizing the fundamental role of the other in the dying process. In terminality, this other can play the role of care, support and appointment of this new body that is presented, helping the patient to build new meanings for the lived experiences and also to think about the path to death.

Keywords: psychoanalysis, narcissism, palliative care, death.


RESUMEN

El presente artículo es parte de una disertación de maestría que tuvo por objetivo comprender los posibles desdoblamientos narcisistas en el sujeto con enfermedad crónica y en cuidados paliativos. En este recorte, vinculamos el concepto de narcisismo, desde la perspectiva freudiana, al proceso de muerte y morir, principalmente en lo que se refiere a la potencia del encuentro con el otro. Teniendo en vista que en la construcción del pensamiento psicoanalítico teoría y práctica se entrecruzan con frecuencia, y que es este "cruzamiento" el que permite avanzar metapsicológicamente, se utilizaron los relatos clínicos registrados por la primera autora, sobre su experiencia con pacientes terminales, en el contexto de los cuidados paliativos. Y, para darle vida y sutileza al tema, también utilizamos en esta construcción la literatura y la poesia. El análisis de ese material permitió visualizar similitudes existentes entre los procesos de constitución narcisista del bebé y el de reorganización narcisista del que muere, enfatizando el papel fundamental del otro en el proceso de morir. En la terminalidad, ese otro puede desempeñar el papel de cuidado, amparo y nombramiento de ese nuevo cuerpo que se presenta, ayudando al paciente en la construcción de nuevos sentidos para las experiencias vividas y también para pensar la trayectoria hacia la muerte.  

Palabras clave: psicoanálisis, narcisismo, cuidados paliativos, muerte.


 

 

A temática dos cuidados paliativos, da terminalidade, da morte e do morrer a partir da perspectiva psicanalítica sempre foram foco de interesse na trajetória profissional da primeira autora. Deste modo, este texto é um recorte de sua dissertação de mestrado, que trouxe discussões acerca desta temática tendo a concepção freudiana de narcisismo como o fio condutor do estudo. Portanto, este artigo tem por objetivo apresentar reflexões teórico-clínicas sobre os possíveis desdobramentos narcísicos nos sujeitos em cuidados paliativos, pensando o conceito de narcisismo a partir da dinâmica do adoecimento crônico e da proximidade da morte anunciada.

Para iniciar a discussão, trouxemos o conceito de narcisismo na obra freudiana, dando maior ênfase para o texto Introdução ao narcisismo (Freud, 1914/2010a), pensando o processo de constituição do Eu a partir do encontro com o outro. Para dar continuidade às reflexões, abordamos questões teóricas sobre a dinâmica pulsional em situações de adoecimento crônico, buscando elementos clínicos, literários e poéticos para dar vida à dança dos investimentos. E, para finalizar nossa contribuição ao debate, apontamos as similaridades entre o momento da constituição narcísica e do processo de morrer a partir do papel fundamental do outro nestes dois momentos distintos de nossas vidas.

A construção deste artigo foi atravessada por tempos pandêmicos, que trouxeram diversas transformações na organização da vida cotidiana das pessoas em todos os lugares do mundo, uma catástrofe em escala global. Com efeito, também foi necessário reconfigurar o caminho da pesquisa que deu origem a este artigo. Se inicialmente a ideia era realizar nossa produção dos dados em campo no setor de Cuidados Paliativos do hospital local, com a pandemia a aposta foi na direção de revisitar os diários de campo registrados pela primeira autora durante suas vivências no fértil solo dos Cuidados Paliativos - compreendidos aqui como a filosofia de cuidado integral a um sujeito com adoecimento crônico, sem possibilidade de cura e que ameace a continuidade da vida.

Diante do cenário que se apresentava com a impossibilidade de ir a campo conhecer novas histórias e no intuito de trazer algo que pudesse ilustrar aquilo que apontávamos teoricamente, recorremos ao material dos diários de campo 1 recheados daquilo que buscávamos: histórias de vida, relatos cotidianos sobre o adoecimento, sobre o medo e a espera da morte. Dessa forma, os relatos clínicos que constam neste artigo são fruto dos diários de campo da primeira autora, advindos de sua prática com pacientes oncológicos e em cuidados paliativos em diferentes contextos (internações domiciliares, participantes de grupos de pacientes e pacientes da clínica particular). Os casos que aparecem neste estudo foram escolhidos por se tratarem de sujeitos com a proximidade da morte imposta, além de se perceber em suas falas elementos fundamentais para enriquecer a discussão sobre o encontro com o outro, sobre a morte e o morrer. Entre as experiências que deram vida para os diários e corpo às reflexões, estão a atuação em uma Liga Acadêmica de Cuidados Paliativos, a qual possibilitava participar de ações de ensino, pesquisa e extensão sobre as temáticas de interesse já mencionadas. Outro campo de atuação foram estágios curriculares e extracurriculares no Programa de Internações Domiciliares, a participação em pesquisas com pacientes oncológicos, a atuação no Ambulatório de Cuidados Paliativos, além da prática clínica particular como profissional. A atuação nesses diferentes contextos dos cuidados paliativos foi registrada em diários de campo, que narravam as experiências e impressões da autora, bem como as falas e nuances cotidianas de pacientes e familiares que vivenciavam aquela realidade em que a terminalidade da vida rondava cada encontro e cada gesto de cuidado.

Ainda no caminho de ampliar o repertório que mostrasse a perspectiva dos indivíduos em cuidados paliativos, trouxemos recortes do livro Os últimos melhores dias da minha vida escrito por Gilberto Dimenstein e Anna Penido (2021). No livro, Gilberto narra, de forma biográfica, as experiências, sentimentos e sensações dos seus últimos dias de vida. O livro é concluído por Anna, sua companheira, após a morte de Gilberto. E, por fim, utilizamos poemas de Rubem Alves, que nos apresentou e ensinou um jeito diferente de escrever e pensar sobre a morte. Para termos a possibilidade de refletir sobre a morte, antes é necessário pensar sobre a vida e é assim que iniciamos este artigo.

Sobre a Vida: O Narcisismo

Em qual momento a vida começa? Na concepção? Durante o período da gestação ou no momento do parto? Acredito que para estas perguntas existem inúmeras respostas, e talvez não exista uma resposta certa, cada uma corresponde a uma corrente teórica, ideológica etc. Porém, queremos falar da vida como troca com o outro, dos investimentos, da subjetividade e do desejo. E para falar dessa vida, vamos lançar luz na instância psíquica que media o universo interno, as batidas do coração e as ondas cerebrais, ao universo externo, o que está fora do nosso corpo, as belezas e amarguras da vida: O Eu. O Eu é a instância psíquica que faz a mediação entre os estímulos externos do mundo e o conteúdo inconsciente, desde as mais primitivas sensações do ser humano como fome e frio até a observação de grandes espetáculos cotidianos, como o nascer do sol e belos jardins ao longo de nosso caminho.

Quando falamos do Eu, falamos do escudo das interações, dos olhos que brilham ao ver um pôr do sol, um jardim, um sorriso… essas cenas cotidianas se apresentam, em primeira ordem para o Eu, ele está exposto a todos os estímulos. O Eu sobretudo corporal, da pele, da carne, dos sentidos. E também do desamparo, da alegria, da tristeza. Da dor, do alívio, do remédio e do efeito colateral. A posteriori essas cenas são elaboradas, as lembranças são constituídas. É antes no Eu, e sobretudo no Eu, que o mundo se apresenta como uma realidade. É através do Eu que se dá, em primeira ordem, a relação com o outro. Esse Eu ora consciente, ora dominado pelo inconsciente.

Porém, para Freud (1923/2011) dizer que o Eu é apenas a instância que media o interno e o externo seria subjugar seu papel. O Eu é complexo, pois é através dessa instância que ocorre a manifestação das pulsões e do desejo advindos do inconsciente e a proporcional força do Super-Eu para bani-los ou obstaculizá-los. Ou seja, o Eu é uma zona de fronteira e é difícil estabelecer, de forma precisa, quais manifestações ocorrem no consciente e quais no inconsciente. Como Freud (1923/2011, p. 28) diz: "o Eu também é inconsciente".

O Eu corporal, que sente a dor do adoecimento, que é invadido pelos procedimentos, é o mesmo Eu que tem a chance de viver essa vida com o diagnóstico, ou melhor, viver a vida além do diagnóstico. Se a morte pode ser o que tememos e a vida o que esperamos, é devido à possibilidade de viver algo pela primeira e última vez que encontramos tanta potência nesse momento da vida. Encontramos o despertar do desejo que até então parecia imoral, marginal. Viver com a morte no horizonte é como se houvesse uma "licença poética do viver" e, assim como na literatura, o artista - no nosso caso, o vivente - tem a liberdade de criar e de viver. Podemos pensar na experiência de viver e de morrer como algo próximo ao que escreve e descreve o poeta Rubem Alves (2014, p. 109):

Sentido da vida? O sentido da vida é simplesmente viver. Viver por viver! As crianças sabem disso. Viver por viver é saber que a vida é curta, que o momento está cheio de possibilidades de beleza e amor, que ele nunca mais se repetirá, e que a única coisa que podemos fazer é agarrá-lo e bebê-lo como se fosse o último.

Acreditamos que as diferentes maneiras de lidar com os acontecimentos atuais estejam em boa parte relacionadas ao Eu desde seu processo constitutivo, bem como os recursos agregados a partir de outros acontecimentos de nossa vida. Ou seja, cada acontecimento/evento que enlaça a trajetória do sujeito pode promover um processo de reorganização deste Eu, assim como a experiência do processo de morrer diante de uma morte anunciada devido a uma doença sem cura. Portanto, para essa discussão, falaremos do narcisismo, conceito que se articula ao processo de constituição do Eu.

O termo narcisismo faz alusão ao mito grego de Narciso (Macedo, 2002), o mito do jovem que, ao ver pela primeira vez a sua própria imagem refletida nas águas de um rio, apaixona-se por si mesmo e vai ao encontro da sua própria imagem, por consequência, morre afogado. Pelo fim trágico de Narciso ao apaixonar-se por si, o conceito de narcisismo carregava incialmente um caráter patológico em sua descrição.

A partir da leitura de Nasio (1997), no livro Lições sobre os sete conceitos cruciais da Psicanálise, no texto que aborda o conceito de Narcisismo para Freud e Lacan e do livro Neurose: leituras psicanalíticas, de Macedo (2002), é possível acessar uma linha cronológica da evolução do conceito para estes autores, que também servirá de referência para este escrito. Mohr, Campos, Fensterseifer & Macedo (2002) nos apontam que o conceito de narcisismo foi vinculado pela primeira vez ao psiquismo em 1887, por Alfred Binet, como fetichismo na própria imagem. Em 1898, Havelock Ellis mencionou o conceito para falar sobre mulheres que se encantavam pela própria imagem. No campo da psiquiatria, o narcisismo foi trabalhado em 1899, pelo psiquiatra Paul Näcke, que descrevia o conceito como uma forma de perversão, em que o indivíduo traz para o próprio corpo toda a fonte de prazer sexual.

Nos escritos Os três ensaios sobre a sexualidade infantil, Freud (1905/2016) conceitua o autoerotismo - conceito que em 1914 torna-se fundamental para a constituição narcísica - como o ato em que o bebê sente satisfação e prazer com o seu próprio corpo, ao chupar o próprio dedo, por exemplo. Com este movimento o bebê se aproxima do ato da amamentação, um processo básico de autoconservação e tem prazer em reviver essa sensação de saciedade com as partes do próprio corpo.

Freud (1911/1996) também abordou o conceito de narcisismo para falar do caso do presidente Schreber. Neste texto, ele traz o narcisismo como um estádio do desenvolvimento da libido e fala da forma de escolha do objeto de investimento libidinal. Para isso, passa pelo conceito de narcisismo e de investimento no outro, mas traz como foco a "escolha narcísica", para explicar a homossexualidade. Fala que "a linha de desenvolvimento, então, conduz à escolha de um objeto externo com órgãos genitais semelhantes - isto é, a uma escolha objetal homossexual" (p. 38). Apesar de abordar o autoerotismo e a dinâmica de escolha do amor objetal, Freud não prende a atenção no processo constitutivo do narcisismo.

Na biografia de Freud, escrita por Gay (1989), o autor afirma que o conceito de narcisismo é central dentro da teoria psicanalítica e também no pensamento freudiano. A menção de Gay diz respeito à alusão de Freud ao conceito de narcisismo na análise do caso Leonardo da Vinci (Freud, 1911/1996), pois foi a partir de questões narcísicas de Leonardo que Freud traçou a sua linha de argumentação sobre o caso, principalmente para explicar a sexualidade desse artista de talento raro e inúmeras inteligências. O conceito de narcisismo foi incialmente visto como "um estágio inicial de auto-amor erótico […] entre o autoerotismo do bebê e o amor objetal da criança" (Gay, 1989, p. 256). Com essa definição do conceito de narcisismo, Freud retira o conceito do campo das perversões e o coloca como uma camada constitutiva.

O texto que consolida o narcisismo como um conceito psicanalítico foi publicado por Freud no ano de 1914 e intitulado Introdução ao Narcisismo. O texto traz elementos da constituição psíquica do Eu, o papel do outro neste processo de constituição e da balança de investimento pulsional. Porém, a psicanálise freudiana percorreu um caminho gradual na construção deste conceito. Anterior à escrita de 1914, Freud já apontava alguns elementos que traziam pistas sobre o conceito, como mencionado anteriormente na retomada histórica sobre o narcisismo, que aloca o narcisismo em um lugar fundamental para a psicanálise e para a compreensão do sujeito do inconsciente.

Também foi em 1914 que Freud (1914/2010a) descreveu o narcisismo como "complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva" (p. 15). Com isso, Freud (1914/2010a) aponta o narcisismo como um processo da constituição psíquica do Eu. O narcisismo refere-se, portanto, ao processo de constituição do Eu, essa instância que media a relação entre o mundo interno e o externo. Porém, não nascemos com o Eu constituído, pronto, acabado, pelo contrário, seguimos a vida toda em um processo de reorganização, reconstrução deste Eu. Mas, para sua constituição são necessários alguns elementos e cuidados, sendo que o mais fundamental deles está alicerçado no outro.

Mas o que define a vida em termos subjetivos, quem somos no mundo, nossa vida psíquica? Neste questionamento apontamos um dos elementos fundamentais para o processo de constituição psíquica: a relação com o outro. Freud (1914/2010a) fala que esse outro pode ser a mãe, mas é possível pensar em qualquer indivíduo que desempenhe esse papel de investimento libidinal e de cuidado. Assim, o outro investe libidinalmente no bebê e a partir destes investimentos, o bebê vai descobrindo as partes do seu próprio corpo. O investimento do outro é a base para que o sujeito possa investir em si mesmo. Movimento semelhante ao que veremos no decorrer do texto, ao demonstrar a importância de um outro que nomeie e invista no corpo daquele que adoeceu, para que o próprio sujeito acometido pelo adoecimento se reconheça e tenha a possibilidade de também investir em si. Sendo assim, o encontro com o outro é fundamental no processo de constituição narcísica, bem como neste processo de se haver com um novo corpo que se apresenta com novas potências e possíveis limitações.

Neste processo de investimentos, cuidados e a descoberta do seu próprio corpo através da nomeação do adulto, o bebê começa a explorar e sentir prazer tocando e brincando com seu corpo. Este investimento no próprio corpo é o autoerotismo, conceito que Freud começou a trabalhar em 1905. No texto em que Freud (1914/2010a) desenvolve o conceito de narcisismo, o autoerotismo é mencionado como "as primeiras satisfações sexuais autoeróticas são experimentadas em conexão com funções vitais de autoconservação" (pp. 31-32). Garcia-Roza (1995) destaca essa independência para o prazer no autoerotismo, já que a satisfação pode ocorrer com elementos do próprio corpo, assim, o sujeito não necessita de nenhum objeto externo para sentir prazer. Entretanto, necessita do mundo exterior e de alguns investimentos e estímulos de objetos que garantam sua preservação física.

Freud (1915/2010b), no texto Os instintos e os seus destinos, traz o autoerotismo com um papel ainda mais fundamental no processo de constituição narcísica, em que "o prazer de olhar tem o próprio corpo como objeto" (p. 70), como um movimento primário constitutivo neste processo. De alguma forma, o sujeito que adoece também é convocado a se reinventar e construir uma outra maneira de olhar para o próprio corpo a partir do adoecimento, processo esse que é facilitado com a presença de um outro atento que ajude nessa redescoberta de si. Laplanche (2015) revisita o conceito de narcisismo em Freud e faz algumas considerações acerca do autoerotismo. Na visão do autor, o autoerotismo não está entre os movimentos primários do bebê e sim em um segundo momento do processo constitutivo. Assim, o bebê chegaria no autoerotismo no ato de sentir prazer com o próprio corpo, após a perda de seu objeto de satisfação - o seio materno. Ou seja, o autoerotismo está ligado a uma falta da qual o bebê precisa dar conta.

O narcisismo representa a unificação do corpo fragmentado do autoerotismo e a projeção dessa unificação no psiquismo. Esse movimento corresponde ao narcisismo primário, que, segundo Freud (1914/2010a), influencia a maneira pela qual o sujeito irá investir em si mesmo e a maneira como irá escolher seus outros/futuros objetos de investimento. Inicialmente para o bebê, a mãe e ele compartilham o mesmo corpo, fazem parte do mesmo e único universo, só existem eles ou melhor, só existe ele, que é o centro desse universo. Freud (1914/2010a) compara esse momento a um reinado e o bebê é a majestade, "His Majesty the baby" (p. 37).

A partir do momento em que o sujeito realizou o investimento libidinal no seu próprio corpo e também o direcionou a um outro que lhe empregou os primeiros cuidados, ele se percebe enquanto um Eu. Para Green (1988), é neste momento que ocorre o "paradoxo da perda do objeto" (p. 49), uma vez que o bebê se depara com a ausência do seio da mãe e percebe que este objeto não faz parte do seu corpo, e é aqui que o bebê percebe que não é parte do corpo de sua mãe, ou seja, é o momento em que o bebê percebe que ele e a mãe possuem corpos diferentes, separados. A partir daqui, o Eu faz um deslocamento dos investimentos primários - no próprio corpo, autoeróticos - para concentrá-los em investimentos libidinais em objetos externos. É a partir dessas evidências, provindas da observação clínica, que Freud nomeia esse momento de narcisismo secundário.

Neste processo, tendo consciência de que não temos energia suficiente para investir em tudo que está ao nosso redor, Freud (1914/2010a) fala que quando investimos libidinalmente no objeto, consequentemente, os investimentos no Eu diminuem, ficam empobrecidos. Entretanto, esse empobrecimento libidinal não é permanente, assim que o objeto retribui os investimentos, o Eu volta a estar fortalecido após a satisfação oriunda do investimento no objeto. Este movimento dos investimentos foi observado por Freud (1914/2010a) quando percebeu haver uma diferença entre a libido do Eu e a libido do objeto, pois quando investimos mais em uma, retiramos o investimento da outra, tornando-a mais "empobrecida". Assim é possível perceber que existe uma dinâmica de investimentos que muda de acordo com a situação do indivíduo, que por vezes necessita de mais investimento egóico, e outras necessita investir mais nos objetos externos. Neste sentido, Freud (1914/2010a) aponta que existem alguns elementos que precisam ser aprofundados para que haja a compreensão acerca da forma como escolhemos as direções e objetos de investimento narcísico. Estes elementos são: "a consideração da doença orgânica, a hipocondria e a vida amorosa dos sexos" (p. 25). Trataremos abaixo com maior interesse o primeiro ponto citado por Freud, sobre a influência do adoecimento físico na lógica da balança libidinal.

O Narcisismo e o Adoecimento Crônico

Freud (1914/2010a, pp. 25-26) diz que "É algo sabido, e tomamos por evidente, que alguém que sofre de dor orgânica e más sensações abandona o interesse pelas coisas do mundo externo, na medida que não dizem respeito ao seu sofrimento". Ou seja, os investimentos de um indivíduo organicamente saudável, que antes estavam direcionados para o mundo externo, voltam-se ao Eu em caso de adoecimento e permanecem nesta instância até que o paciente esteja curado do adoecimento. Entretanto, sem a possibilidade de cura do adoecimento, a dinâmica pulsional mescla seus investimentos, ora no Eu e na autopreservação, ora no outro, no mundo exterior, ou seja, os investimentos vão para além das barreiras do próprio corpo. Freud acredita que o sujeito acometido por um adoecimento orgânico não percebe o deslocamento de investimento libidinal para o Eu. Esta é a tentativa egóica de autoconservação e de preservação da vida - psíquica e física.

Contudo, para a manutenção da vida, também necessitamos de investimentos vindos do objeto. Dimenstein, ao contar sobre as suas "(in)dependências" no livro autobiográfico em que narra a sua trajetória diante do adoecimento (Dimenstein & Penido, 2021), fala de sua companheira Anna e de seu papel fundamental para a manutenção do seu bem estar e dos cuidados atentos direcionados a ele: "Me esforçava ao máximo, mas havia dias que eu não conseguia comer de jeito nenhum. Ela nunca se conformava e tinha toda paciência para encontrar alguma coisa que eu conseguisse ingerir […]. Se eu sentisse dores, ela me fazia massagens" (p. 51). O investimento e cuidado vindo do outro fortalecem o Eu, é o reconhecimento de um legado, de uma vida, de sonhos que foram vividos juntos.

A partir da menção da importância do outro para o processo de constituição narcísica, Freud (1914/2010a) ainda fala sobre a relação entre o investimento no objeto de amor e o vínculo com o amor próprio. "O apaixonado é humilde" (p. 46), no sentido de quem ama e investe nesse objeto, tira do seu próprio amor para dar ao outro, ficando assim "rebaixado" de investimento. No mesmo momento, Freud compara os investimentos do amor com o do adoecimento, em que há rebaixamento do amor próprio pelo adoecimento físico, assim como no amor. Quem sofre de um adoecimento físico é incapaz, momentaneamente, de amar o outro e até mesmo investir sexualmente em si, pois o investimento no Eu está direcionado à autopreservação, para obter a cura. Ou seja, há duas formas de o Eu ficar empobrecido de investimento sexual: quando ama ao objeto/outro e no adoecimento físico.

Mas, quando se ama e se investe no objeto, há um retorno do investimento feito no objeto para o Eu, o outro investe libidinalmente no Eu, que se fortalece novamente. Já quando o movimento é pelo adoecimento, o investimento é concentrado no Eu, não vem do mundo externo. No caso do adoecimento, o recolhimento da libido para o Eu é necessário e, de certa forma, inevitável, visto que o adoecimento demanda energia física e psíquica do sujeito. É possível perceber em algumas falas do paciente E. - servidor público, pai de duas adolescentes, (que participavam ativamente das visitas) e que estava em internação domiciliar em cuidados paliativos -, elementos que nos apontam este movimento econômico da energia psíquica: "não posso parar de lutar" e "se assim não está fácil, imagina se eu desistir". Ou seja, sua libido estava investida em si, para que tivesse condições de seguir "lutando", bem como os investimentos daquelas que o acompanhavam durante os atendimentos. Esses fragmentos demonstram o trabalho psíquico que o adoecimento exige, comparado com uma batalha à qual é necessário lutar, enfrentar, mas com consciência que o final pode estar próximo.

Algumas falas de H., profissional da saúde aposentado, com alguns conflitos familiares pendentes, nos dão indícios do impacto do cuidado e do investimento sobre quem é cuidado: "Mas o natal já está perto, e eu achei que nem estaria vivo até essa data". Nessa fala ele nos mostra a surpresa de estar vivo até esta data, como quem desacredita de si e da manutenção de seus cuidados. Em oposição a este momento de desesperança, H. questiona a equipe: "Eu vou sair dessa, né?", "Eu vou melhorar?". Observando as falas de H. - e os seus atendimentos, de maneira geral -, vemos que esse olhar de cuidado, que nomeia e investe, está apoiado nos membros da equipe. Apesar de ser cuidado por seus familiares, nem sempre ele interpretava os cuidados de maneira positiva e afetuosa e esperava da equipe esse olhar atento.

Considerando as falas desses pacientes em cuidados paliativos, percebemos alguns movimentos apontados por Freud, em que há recolhimento da libido para o Eu, no intuito de "curar" o adoecimento. Esse superinvestimento no Eu é a concentração de todas as forças da pessoa na busca pela cura, é tomar o chá de uma erva específica que a prima da vizinha tomou e ficou bem ou a busca de uma segunda ou até mesmo terceira opinião profissional sobre seu diagnóstico e prognóstico, se dá nas pesquisas de novos medicamentos e na busca por medidas que envolvam a espiritualidade ou a religiosidade. Como descreve Dimenstein e Penido (2021, p. 56): "Coincidência ou não, o fato é que, após essa primeira corrente (de orações), tive um choque de energia. Fiquei elétrico. Não conseguia dormir. Depois de vários meses de impotência sexual, tive duas ou três ereções".

Freud (1914/2010a, p. 48) também nos fala:

O retorno da libido objetal ao Eu, sua transformação em narcisismo, representa como que um amor feliz novamente e, por outro lado, um real amor feliz corresponde ao estado primordial em que libido de objeto e libido do Eu não se distinguem uma da outra.

Mas, de todas essas medidas, o superinvestimento também está nas coisas simples, cotidianas, como descreve Dimenstein e Penido, (2021, p. 91) "Nesses dias de trégua, assisti aos dois pores do sol, mais lindos da minha vida". Rubem Alves nos alertava que o processo de morrer pode estar enlaçado com dores, humilhações e sofrimento. Muitos pacientes carregam em seu discurso a dor e o sofrimento que acompanham o processo de morrer, como no relato de P.: "a psicóloga e a médica querem que eu aceite que vou morrer, como se fosse possível uma coisa dessas". P. era professora por convicção e por ideologia, acreditava na potência transformadora da educação e de seu ofício. Suas ideias e criatividade seguiam o mesmo ritmo frenético de sempre, mas seu corpo frágil e adoecido não acompanhava na mesma velocidade, parecia ser difícil aceitar tudo o que acontecia. E, em muitos momentos, era necessário que alguém a avisasse de que precisava de ajuda para as tarefas que antes eram realizadas de maneira simples e até mesmo automática. A voz do outro que aponta a limitação pode soar de maneira negativa para quem a ouve, mas é fundamental na construção e elaboração dessa nova forma de viver a partir do adoecimento.

O processo de morrer também é acompanhado de raiva, de sentimentos que por si só já seriam destrutivos psiquicamente, mas, incontestavelmente inerentes à existência do ser humano. Kübler-Ross (2008) também aponta que a raiva faz parte do processo de luto, vivido por pacientes e familiares que passam por uma situação que envolva a morte e o morrer. Como no caso da paciente S., que se queixava da forma como a família lidava com seu adoecimento, reclamava da maneira que a tratavam: "como se fosse uma coitada". S. era uma mulher criativa, exercia a profissão de artista plástica e tinha a capacidade de transformar em concreto aquilo que fantasiava. Ao falar sobre isso, verbalizava que era dolorido e que sentia raiva do olhar de "pena" que a família emitia para ela após o adoecimento, um abismo em relação à maneira como a enxergavam anteriormente, pois antes viam a sua potência e criatividade e agora apenas alguém que necessitava de cuidados. Neste caso, S. percebia que havia mudado sua posição na família, saía do lugar de quem cuidava e passava a ser cuidada. O que S. especulava através do olhar de sua família eram suas próprias limitações físicas causadas pelo adoecimento. Neste caso, era a família de S. que sentia pena ou S. que se deparava cotidianamente com a autocompaixão e tristeza oriundas da sua atual condição? Nossa aposta é de que o olhar da família escancarava aquilo que S. via de si mesma. Surgem alguns questionamentos a partir desse caso: Teria um investimento certo? Existe a escolha certa? A vida é uma balança da qual escolhemos com exatidão onde investiremos psiquicamente? Nos parece que dessas perguntas só podem surgir mais perguntas e não respostas.

Da díade materna do nascimento à díade para a morte: A potência do encontro com o outro

Como sinalizamos anteriormente, nos constituímos e vivemos a partir da potência e dos investimentos de um primeiro encontro, o do bebê com quem encarna a figura dos primeiros cuidados. Neste instante ainda não nos percebemos como um sujeito, no sentido psicanalítico do termo, sujeito do inconsciente. Não existe ainda um corpo unificado, estamos em simbiose com o corpo de quem nos cuida. É a partir dos encontros ao longo de nossa vida que delimitamos os contornos da nossa história. Como já visto nesse escrito, o processo de constituição narcísica se dá com base nas trocas que o bebê tem com a figura que desempenha a função de cuidados, que nomeia e unifica seu corpo simbolicamente fragmentado. Mas, não é apenas neste momento inicial, ainda enquanto bebê, que o outro possui importância em nossas vidas.

Andreas-Salomé (1912/2021, p. 37) nos aponta que "o valor da vida é o próprio valor do narcisismo". Ou seja, o narcisismo não é um momento do desenvolvimento que se encerra após cumprir sua tarefa, ele é nosso modo de agir no mundo. Então, o outro também assume esse papel fundamental, tanto na constituição quanto no nosso processo de reorganização narcísica, que pode ocorrer nas mudanças que ocorrem na nossa vida.

Durante nosso processo constitutivo, elegemos objetos para investirmos nossa libido, o ideal de eu, e ao longo de nossa vida nos guiamos a partir deste ideal, buscamos encontrá-lo fora do seio familiar. Andreas-Salomé (1912/2021, p. 32) diz que "é fundamentalmente válida a visão psicanalítica de que os objetos de amor posteriores são transferências dos primeiros". Buscamos nos associar com esse ideal de eu para viver momentos e interesses pessoais em comum, dentro de um ideal de vida e essa busca não é menos intensa quando estamos próximos da morte.

Direcionando a luz para esse momento próximo da morte, M'Uzan (1976/2019, p. 178) nos aponta o papel fundamental de realizar o último trabalho de nossas vidas, o "trabalho de falecimento" como nomeia o autor. Este seria como a última atividade psíquica essencial tanto para quem morre, como também para quem fica. Os momentos desse último trabalho acalentam quem está prestes a morrer e também fortalecem os feitos deste para quem fica. O momento de proximidade da morte é complexo e há um movimento paradoxal em relação aos investimentos libidinais. Não há um limite, o trabalho de luto pode anteceder a morte, por proteção ou por medo de quem acompanha aquele que está prestes a morrer, então, por muitas vezes, o desinvestimento começa ainda na presença do sujeito. Em contrapartida, em um movimento paradoxal e fluido, o sujeito em fim de vida, que está em vias de morrer, de cessar seus últimos zig-zags das ondas cerebrais, realiza o mesmo movimento das ondas cerebrais em relação aos investimentos pulsionais.

Além desse processo de investimento/desinvestimento no mundo externo e também em si próprio, há outros movimentos que podem ser comuns a pacientes em processo ativo de morte como, por exemplo, a oscilação entre momentos de consciência e delírio. O corpo está ali, presente, mas há algo que escapa da consciência, o início do processo de se desconectar aos poucos do corpo, assim como o delírio e as alucinações, faz parte do processo de morrer. Freud (1914/2010a) fala que aquele que está doente retira a libido do outro para curar-se do adoecimento, entretanto, já vimos que a cura nem sempre é possível. Logo, consideramos importante falar dos investimentos possíveis, da potência e da magnitude dos investimentos e dos afetos que partem do sujeito em final de vida em direção ao outro.

Falamos de contar histórias, de estar presente, de troca de afetos e de cuidado. O sujeito em fim de vida no geral "superinveste" em seus objetos de amor e esse movimento é de origem narcísica, uma vez que me despeço da vida e que investir na minha cura não terá efeito. Quanto maior meu investimento, mais memórias minhas deixarei no outro, mais marcas e sementes de quem eu fui na vida desses outros que me acompanharam em vida. Como nos aponta Certeau (2014, p. 268) "abrir na língua da interlocução a ressurreição que não traz de volta à vida". Ora, a ressurreição não é viável, mas durante a interlocução e a troca com o outro, é possível permanecer na história, deixar seu legado: "Deixo a vida para entrar na história", célebre frase de Getúlio Vargas em sua carta de suicídio e que demonstra a necessidade egóica de permanecermos presentes mesmo sem estarmos vivos.

Como esmiúça M'Uzan (1976/2019, p. 178) "como se ele [moribundo] tentasse se colocar completamente no mundo antes de desaparecer", num paralelo com a vida, é parecido com a experiência do atleta em uma maratona, que próximo à linha de chegada aumenta sua potência e velocidade para cruzá-la como o vencedor, doa sua força vital para aquele momento.

A experiência com pacientes em cuidados paliativos nos traz uma realidade do outro enquanto sujeito da compaixão. É frequente na fala de pacientes o incômodo gerado pelo olhar de "pena" do outro diante de seu adoecimento principalmente das pessoas mais próximas e familiares. Aqui poderíamos retomar fragmentos que já apontei anteriormente, como falas de S., que verbalizava o quanto o olhar de pena da família mobilizava sentimentos de raiva. Mas, nem todos conseguem trazer em palavras esse sentimento de mobilizar a piedade do outro.

Logo, o outro que era fundamental no processo de constituição se torna, em algumas situações, motivo de raiva e desamparo para o sujeito em fim de vida. Pensando no que nos ensinou M'Uzan, sobre a última díade, aquele que está no fim de sua vida elege um "objeto chave", o objeto que irá sustentar com ele essa travessia da vida para a morte e assim, com esse objeto chave, estabelece-se a última díade. O outro, que na infância tem o papel de apresentar a trajetória da vida, na terminalidade pode ajudar o paciente na construção de novos sentidos para as experiências vividas e também para pensar a trajetória para a morte. Por essa aproximação, M'Uzan (1976/2019, p. 186) supõe que o sujeito em fim de vida e o objeto chave constituem a "última díade", em que faz menção ao papel similar da mãe no nascimento do bebê.

Pensamos na potência desse encontro. Esse eleito nem sempre está entre os familiares do sujeito em fim de vida, por todas as razões que apontamos aqui, mas principalmente pela relação de afeto já estabelecida. É um processo difícil também para os familiares, pois viam, até então, um sujeito autônomo, dono de si e em um curto período de tempo, esse sujeito autônomo se torna, muitas vezes, dependente e em sofrimento. Assim, em algumas situações, o eleito é alguém da equipe de cuidados, algum profissional com quem o paciente se sente confortável para falar sobre suas angústias, medos e alívios.

M'Uzan traz a figura do analista como um possível eleito para desempenhar esse papel tão fundamental nos últimos dias de vida de quem está adoecido, por estar nesse lugar de escuta que vai para além das questões físicas. Laplanche (2015) reforça essa posição transferencial: "a transferência analítica não tem nenhuma relação, em sua essência, com uma simples transferência de hábitos. Ela coloca o sujeito na situação originária, a da gênese do sexual infantil" (p. 64). Ou seja, a relação com esse objeto-chave põe o sujeito em uma posição similar àquela que o bebê ocupa, uma posição de cuidado. Dentro de uma equipe interdisciplinar de cuidados paliativos, o papel de acolher e escutar é, ou deveria ser, executado por todos os profissionais, embora obviamente que compreendemos a diferença da escuta na posição de analista e das outras profissões.

Alguns sentimentos e sensações são experenciados, de maneira semelhante, nos primórdios de nossa existência como seres humanos, ainda sem consciência de si até momentos muito próximos da nossa morte, o que os difere são as expectativas geradas para estes dois momentos. O bebê sente raiva e desamparo quando suas necessidades básicas não são supridas por seus cuidadores, e ele ainda não possui recursos para verbalizar, nomear ou até mesmo identificar estes sentimentos e sensações. Assim como o bebê que acabou de nascer, o sujeito que está próximo da morte também pode necessitar de um outro que cuide dele, que ampare e nomeie alguns sentimentos e sensações. Entretanto, o cuidador do bebê raramente nega a vida que está se apresentando, mas o cuidador do sujeito que está morrendo, muitas vezes, nega o adoecimento, a terminalidade e, consequentemente, a morte do outro.

Trazemos o paralelo do nascimento com a morte porque vislumbramos equivalências nesses dois momentos: é o início e o fim da vida. Jamais as duas pontas se encontram, mas reservam uma proximidade mais evidente do que podemos supor. Em concordância com M'Uzan (1979/2019), o que tem em comum nestes dois momentos é a importância do outro, no início e no final. Para falar desse paralelo entre o bebê e o sujeito em fim de vida e da importância do outro nestes dois momentos da vidavoltamos nosso olhar para as convergências entre os primeiros e os últimos momentos de nossas vidas. A aproximação entre as duas fases da vida, neste caso, fala das condições físicas, pois com o avançar do adoecimento, podemos observar diversas limitações nas atividades cotidianas. Da mesma forma, alguns pacientes referem apresentar dificuldade no equilíbrio, pouca ou nenhuma consciência, dificuldade de alimentação, entre tantas outras consequências que um adoecimento pode causar. O corpo daquele que morre também caminha em passos largos, mas o final desse trajeto é a morte. As ações autônomas do cotidiano ficam cada dia mais escassas e, proporcionalmente mais valorizadas. Não enjoar ao sentir o perfume do jardim é algo a ser comemorado ou um banho sozinho pode se tornar um grande evento.

Relembramos a cena que foi vivenciada com P. durante a visita na internação domiciliar. O câncer em estágio avançado foi, aos poucos, tirando seu apetite, a vontade de conversar e sua última resistência era autonomia para as atividades básicas cotidianas como comer e tomar banho sozinha. Seus desequilíbrios estavam frequentes, parecia que seu corpo tinha ganhado formas gigantescas e era difícil passar pelas portas sem esbarrar em algo, ou deslocar de uma peça para outra da casa sem que houvesse algum acidente. Sua primeira queda no banho foi sozinha, ainda tinha forças para levantar-se e não contou para ninguém. Logo ficou evidente que era impossível realizar aquela ação cotidiana sozinha, ela verbalizava que não precisava de ajuda, mas, para a equipe e para os familiares, já era nítida a sua impossibilidade. O olhar do outro, que na tenra idade acolhe, nomeia, idealiza, ampara e diz quem somos, na proximidade da morte diz em que posição se está, esse olhar também diz coisas sobre aquele que morre, diz que precisa comer para continuar vivo, diz que precisa de ajuda, diz da morte que se aproxima.

Por outro lado, o sujeito em fim de vida tem a necessidade desse outro, além dos cuidados que citamos anteriormente, ele quer ser lembrado, a sensação de imortalidade ganha vida nesse investimento. Existe um superinvestimento no outro, não em muitos outros, pois há um corpo se deteriorando, com dores e efeitos colaterais do tratamento, mas há força libidinal para o sujeito em fim de vida eleger seu objeto chave, para investir toda essa energia, que será revertida na imortalidade daquele que morre. Revisitando Freud (1914/2010a), é evidente a importância do outro no processo de nomeação e identificação das partes do corpo, das sensações dos sentimentos experenciados pelo bebê, para que ele consiga elaborar e construir seus próprios significados. Logo, no processo de morrer, na reorganização deste narcisismo que se encaminha para a morte, o sujeito acometido por um adoecimento crônico, próximo da terminalidade, também pode necessitar de um outro, do objeto-chave, que ofereça possibilidades no processo de elaboração do novo corpo que se apresenta, com as transformações ocasionadas pelo adoecimento.

M'Uzan (1979/2019) nos diz que "o moribundo e seu objeto-chave constituem uma espécie de organismo, quase um corpo independente […] Existe aí algo de comparável ao organismo formado pela mãe e seu recém-nascido" (p. 186-187). Um encontro comparado ao nosso encontro primordial, da mãe com o bebê. É colocar aquele que morre na posição originária de sujeito, claro, guardadas as devidas proporções de tempo, de experiências e do espaço que o sujeito em fim de vida ocupa, tanto socialmente quanto psiquicamente. Porém, é uma posição de investimento e de cuidado. Um cuidado essencial para a manutenção da vida. Mas, não apenas a vida orgânica como finalidade, falamos da vida psíquica, da subjetividade, das memórias e das experiências.

 

Considerações Finais

Diante de todos os elementos teórico-clínicos apontados aqui, hipotetizamos que nosso narcisismo passe por um processo de reorganização frente às alterações que ocorrem em nossas vidas como um novo emprego, uma mudança, um livro que lemos e, no caso do adoecimento crônico, que ameaça a continuidade da vida, esse movimento não deixaria de acontecer. A vivência de uma das autoras com sujeitos com câncer e em momentos próximos à morte, com a vida se esvaindo nos dias… nas horas, fez perceber que havia ainda mais potência nesse tempo de vida e encontro do que poderíamos imaginar. Assim, o que antes era para ser um estudo que olhava quase que exclusivamente para o sujeito com o fim da vida imposto, se transformou no olhar para o encontro. O encontro com o outro! Não há vida sem o encontro, como não é possível que haja constituição narcísica ou mesmo uma reorganização narcísica sem que haja esse outro. Quando M'Uzan apresenta o conceito de objeto chave e o coloca na posição materna, o autor já falava sobre essa possível reorganização narcísica, já falava sobre a potência do encontro com o outro.

Nesse sentido, vimos que o encontro com o outro, desde o nascimento até os momentos finais da vida, pode ser de ambivalência, de amor, de amparo, mas também de desamparo. O outro que comemora os primeiros passos, as pequenas conquistas, é o mesmo que aponta as limitações e fragilidades do nosso corpo. Se o bebê precisa de alguém para lhe ensinar onde fica sua barriga, suas mãos e pés, aquele que adoece, muitas vezes, também precisa ser lembrado que seu corpo não possui a mesma potência ou equilíbrio de antes. O bebê precisa de um outro que o ampare quando aprende a caminhar, quem adoece e está fragilizado também.

Ao longo desta pesquisa, como apontamos em alguns trechos das cenas clínicas, foi possível observar algumas semelhanças entre esses dois momentos da vida, mas a principal semelhança é a necessidade de um outro que fosse amparo, que nomeasse o que está acontecendo e fosse figura de cuidado. Também percebemos que a ambivalência de sentimentos vivida pelo bebê acontece nos momentos finais de vida. Esse outro que encoraja é o mesmo que aponta as fragilidades e isso não é sem efeitos.

Apontamos algumas semelhanças desses momentos da nossa vida, nascimento e morte, mas é evidente que são processos distintos e que os cuidados também são diferentes. O bebê está se constituindo, descobrindo o mundo, aquele adulto que está morrendo já o descobriu em parte e precisa desse outro para se readaptar a partir da nova realidade. Portanto, se é possível pensar na constituição narcísica do bebê a partir do encontro com aquele que irá suprir, de forma satisfatória - embora sempre parcial -, suas primeiras necessidades, para que ele permaneça vivo, também só é possível pensar em um processo de reorganização narcísica diante da morte anunciada ao pensar nessa nova díade, no encontro com o objeto chave que garanta, de maneira satisfatória, amparo, cuidado e nomeação do corpo, dos sentimentos, das potencialidades daquele que morre. Dessa forma, não vislumbramos possibilidades de avançar nos estudos da teoria psicanalítica sem olhar para esses encontros com o outro, pois a morte é obscena como descreve Certeau (2014), é escandalosa como aponta Green (1988) e, portanto, está em um lugar de não saber, não dizer, não elaborar. Ao mesmo tempo, é o momento do encontro, da potência dos investimentos, do cuidado e do afeto. Ou seja, o que a nossa pesquisa aponta é que, além da dor, do sofrimento e da tristeza diante dos momentos que antecedem a morte, também existem momentos de alegria, de cuidado e de investimentos, ora feitos pela família, ora pela equipe. Outro elemento fundamental que iniciamos a discussão neste estudo foi de apontar a importância do outro que cuida, para que assim, profissionais da saúde possam ter dimensão da importância de um olhar atento e dessas nomeações necessárias para o sujeito com um adoecimento. A sociedade em geral também precisa compreender a importância da presença nos momentos próximos à morte. Entretanto, reconhecemos que essa discussão ainda necessita de muitos aprofundamentos, principalmente por estar relacionada com a temática da morte e essa ainda ser um grande tabu social. Percebermos inclusive a necessidade de aprofundamento nas discussões em torno de quem cuida, um papel socialmente delegado às mulheres. Contudo, vimos que o processo de terminalidade transcorre como a vida, com momentos de euforia, de tristeza e de felicidade, mas que em todo esse caminho precisamos de um outro que nos acompanhe.

 

Referências

Alves, R. (2014). A grande arte de ser feliz. Planeta.

Andreas-Salomé, L. (2021). Narcisismo como dupla direção. Artes & Ecos.

Certeau, M. (2014). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22ª ed. Vozes.

Dimenstein, G., & Penido, A. (2021). Os últimos melhores dias da minha vida. 3ª ed. Record.

Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos: Seguido de "Envelhecer e morrer". Zahar.

Freud, S. (1996). O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. (V. 10), Imago. (Texto original publicado em 1911).

Freud, S. (2010a). Introdução ao Narcisismo. In S. Freud. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas. (V. 12). Companhia das Letras. (Texto original publicado em 1914).

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Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria ("O caso Dora") e outros textos (1901-1905). Obras completas (V. 6). Companhia das Letras. (Texto original publicado em 1905).

Garcia-Roza, L. A. (1995). Artigos de metapsicologia, 1914-1917: Narcisismo, pulsão, recalque e inconsciente. Zahar.

Gay, P. (1989). Freud: uma vida para nosso tempo. Companhia das Letras.

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Laplanche, J. L. (2015). Sexual: a sexualidade aplicada no sentido freudiano 2000-2006. Dublinense.

Mohr, A.; Campos, C. B.; Fensterseifer, L., & Macedo, M. M. K. (2002). Narcisismo: O enlace da Mitologia com a Psicanálise. In M. M. K Macedo. Neuroses: Leituras Psicanalíticas. EDIPUCRS.

M'Uzan, M. (2019). Da arte à morte: itinerário psicanalítico. Perspectiva.

Nasio, J. D. (1997). Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Zahar.

 

 

Endereço para correspondência
Morgana Nunes - mog.nunes@hotmail.com

Recebido em: 06/06/2023
Aceito em: 16/05/2024

 

 

Notas

1 Informamos que esta pesquisa se enquadra no Artigo 1º, parágrafo único, inciso VII da Resolução 510/16 - Normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Destacamos que seguimos os procedimentos éticos necessários, uma vez que todos os casos apresentados já haviam sido encerrados e os elementos de caracterização são amplos e impossibilitam a identificação dos pacientes, também utilizamos iniciais que não fazem referência aos nomes reais dos pacientes.

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa CAPES.

 

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