Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e76638, doi:10.12957/epp.2025.76638
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Em Carne Viva: O Trabalho de Pessoas Haitianas nos Frigoríficos Brasileiros e o Capitalismo Pandêmico

 

In "Carne Viva": The Work of Hatian People in Brazilian Meatpacking Plants and Pandemic Capitalism

 

En "Carne Viva": El Trabajo del Personas Haitianas en Frigoríficas Brasileñas y el Capitalismo Pandémico

 

Fernanda Sansão Hallack a, Danielle Miranda a, Dandara Chiara Ribeiro Trebisacce a, Alexandra Cleopatre Tsallis a

a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo traçar o panorama do aumento do fluxo da imigração haitiana no Brasil ao longo da década 2010-2020 e do seu perfil de inserção laboral na indústria de frigorificação, refletindo sobre ascondições da divisão de origem, racial e sexual do trabalho do setor no contexto geopolítico brasileiro e da pandemia da covid-19. Para tal, foi realizado estudo teórico com base metodológica na Teoria Ator-Rede. Constatou-se que as mulheres haitianas encontram menos chance de mobilidade social em relação à sua posição na sociedade de origem (comparando-se às possibilidades dos homens) e ocupam funções predominantemente subalternas e de menor remuneração, sem acesso a condições propícias de conciliação da maternagem e do trabalho. Da mesma forma, no início da pandemia da covid-19, em 2020, verificou-se que o setor frigorífico foi pressionado a não parar, mesmo com os riscos envolvidos para seus trabalhadores. Concluiu-se que a indústria da carne usurpa direitos e engendra a matança sistemática de animais, pessoas e meio ambiente como evento multiespécie, fruto da degradação sistêmica gerada pela concentração do capital, que dá ensejo a migrações forçadas e ao suprimento da cadeia global dos postos de trabalho precarizados.

Palavras-chave: imigração, pandemia, divisão do trabalho, marcadores sociais da diferença, ecologia.


ABSTRACT

This work aims to trace a panorama of the increase in Haitian immigration flow in Brazil over 2010-2020 decade and its labor insertion profile in the meatpacking industry to reflect on the conditions of the division of origin, racial and sexual work in the sector in Brazilian geopolitical context and covid-19 pandemic. To this end, theoretical study was carried out based on the Actor-Network Theory. It was found that Haitian women find less chance of social mobility in relation to their position in the society of origin (compared to the possibilities of men) and occupy predominantly subordinate and lower-paid positions, without access to conducive conditions to reconciling motherhood and work. Likewise, at the beginning of the covid-19 pandemic, in 2020, it was found that the meatpacking sector was pressured not to stop, even with the risks involved for its workers. It was concluded that the meat industry usurps rights and engenders systematic killing of animals, people and the environment as a multispecies event result of the systemic degradation generated by the concentration of capital, which causes forced migrations and the supply of precarious jobs to the global chain.

Keywords: immigration, pandemic, division of labor, social markers of difference, ecology.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo esbozar el panorama del aumento del flujo de inmigración haitiana en Brasil durante la década 2010-2020, su perfil de inserción laboral en la industria frigorífica y reflexionar sobre las condiciones de la división del trabajo por origen, racial y sexual del sector en el contexto geopolítico brasileño y la pandemia de covid-19. Para ello, se realizó un estudio teórico sustentado metodológicamente en la Teoría del Actor-Red. Se constató que en la industria frigorífica brasileña, las mujeres haitianas encuentran menos posibilidades de movilidad social en relación con su posición en la sociedad de origen y ocupan funciones predominantemente subordinadas y peor pagadas, sin acceso a condiciones de conciliación de la maternidad y el trabajo. Asimismo, al inicio de la pandemia del Covid-19, en 2020, se constató que el sector frigorífico estaba presionado para no parar, aún con los riesgos para sus trabajadores. Se concluyó que la industria cárnica usurpa derechos y engendra la matanza sistemática de animales, personas y medio ambiente como un evento multiespecie, resultado de la degradación sistémica generada por la concentración del capital, que da lugar a migraciones forzadas y al abastecimiento de cadena mundial de trabajo precario.

Palabras clave: inmigración, pandemia, división de trabajo, marcadores sociales de diferencia, ecologia.


 

 

O presente artigo tem como objetivos principais verificar o perfil migratório de haitianas e haitianos que trabalham no ramo da frigorificação no Brasil e refletir sobre ascondições da divisão de origem, racial e sexual do trabalho no setor, buscando, como objetivos secundários, analisar a tendência de feminização desse fluxo migratório e de exploração dessa mão-de-obra do meio para o fim da década 2010-2020 no contexto geopolítico brasileiro e da pandemia da covid-19.

A relevância desta pesquisa situa-se na sua tentativa de articulação das pontas que unem a imigração global no Brasil, a discriminação e a exploração na divisão étnico-racial sexual internacional do trabalho aos interesses econômicos que operam o grande capital internacional e as disputas geopolíticas planetárias. Essa engrenagem, suportada pelas grandes empresas administradoras de ativos financeiros (Dowbor, 2017), possui hoje o controle do capital das grandes corporações espalhadas pelo mundo - dentre as quais inclui-se a indústria de alimentos, mais especificamente o trabalho em frigoríficos, objeto deste estudo.

Para tal, foi realizado um estudo teórico com apuração em fontes secundárias, concebendo a pandemia como um "evento multiespécie" (Segata, Beck & Muccilo, 2020, p. 356), que abrange atores humanos e não humanos conforme a concepção teórico-metodológica da Teoria Ator-Rede (TAR), consoante será descrito no subtítulo sobre a metodologia.

Os trabalhos abarcados demonstram que o padrão migratório prioritário do século XX, de movimentação do Sul para o Norte global e das antigas colônias para a matriz, vem sendo superado desde a década de 1970, quando o projeto econômico neoliberal deu início a mudanças nas formas de regulação da estrutura produtiva que intensificaram a força concentradora do capital global (Mamed & Lima, 2015). As crescentes crises econômicas, e especialmente a grande crise global de 2007/2008, seguida de crescentes crises políticas, ambientais e bélicas dos estados nacionais pressionam pelos deslocamentos forçados das populações em busca de trabalho, refúgio e asilo (Mamed, 2017). Atualmente, os itinerários das migrações incluem novas correntes de deslocamento que seguem o padrão Sul-Sul (Cavalcanti, 2021), contribuindo para o suprimento da cadeia global dos postos de trabalho precarizados nos países de destino de forma oportuna para o eixo de dominação hegemônica dos detentores do capital.

Essa movimentação vem constituindo uma grande pirâmide hierárquica na divisão internacional do trabalho que assume diversas nuances ao se articular e interseccionar com as acepções sociais, étnico-raciais, de gênero e de nacionalidade (Granada, Grisotti, Detoni, Cazarotto & Oliveira, 2021). No caso das pessoas haitianas especificamente, estas costumam sofrer preconceito racial e ser associadas a catástrofes naturais, pobreza, ditaduras, conflitos bélicos (Handerson & Joseph, 2015) e, também, de forma sub-reptícia, à condição de escravidão devido à sua condição de colonização persistente e intervenção militarizada duradoura no seu país.

Assim, as teias de deslocamento humano e precarização social imbricam-se de formas cada vez mais complexas e deletérias em nível mundial (Granada et al., 2021). Em paralelo a isso, o Brasil passou a integrar o grupo de principais competidores globais do final da cadeia produtiva de alimentos (representada pela frigorificação, por exemplo) na segunda década do século XXI, justamente quando seu perfil e densidade imigratória começaram a mudar radicalmente. O país passou a figurar como polo migratório de populações do Sul Global, e o seu eixo meridional (São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul) tornou-se concentrador da população imigrante haitiana.

 

Metodologia

Esta pesquisa foi realizada em três etapas. A primeira constituiu-se do levantamento de dados sobre a imigração haitiana para o Brasil em relatórios oficiais emitidos pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) da Universidade de Brasília (UnB) em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública - como o "Relatório Anual" (Cavalcanti; Oliveira; Silva, 2021) do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) e o Relatório "A Imigração Haitiana no Brasil: Características sociodemográficas e laborais na região sul e no Distrito Federal" (Cavalcanti; Tonhati; Dutra & Oliveira, 2017).

Na segunda etapa, foram selecionados artigos científicos dos últimos cinco anos sobre a temática em questão - extraídos das plataformas Scientific Electronic Library Online (sciELO), Redalyc, Portal de Periódicos (CAPES), Google Acadêmico e Scientific Periodicals Electronic Library (SPELL), utilizando as seguintes palavras-chave em língua portuguesa: imigração, haitianos, haitianas, Brasil, pandemia, covid-19, trabalho e frigorífico - salvo algumas exceções de obras emblemáticas de um período anterior sobre o assunto, citadas pelos estudiosos dos relatórios do OBMigra, como os artigos de Mamed (2017) e o de Handerson e Joseph (2015).

Na terceira etapa, procedeu-se à articulação dos dados e aspectos levantados a partir dos referenciais da Teoria Ator-Rede (TAR). A TAR é uma corrente teórico-metodológica que se originou na área de estudos de ciência, tecnologia e sociedade na década de 1980 a partir dos estudos de Bruno Latour, John Law, entre outros. De acordo com essa perspectiva (Latour, 2019), questiona-se a dicotomização científica, o conhecimento da realidade como dado da natureza e compreende-se que todos os atores do campo, humanos ou não humanos - denominados actantes - produzem efeitos no mundo com a mesma importância entre si. A noção de rede, que compõe o nome da metodologia, situa a produção do conhecimento como o acompanhamento das associações desses elementos heterogêneos em ação, e de seus rastros que deixam no mundo.

Nesse enquadramento, a própria produção textual acadêmica é um locus de experimentações, o análogo funcional de um laboratório, na qual pretende-se que a materialidade do vivido, por meio do registro descritivo da cultura material do campo de pesquisa, participe diretamente da construção e transformação da escrita. É preciso fazer descrições que acatem e notabilizem as incertezas e controvérsias da rede, prestando atenção às questões de interesse que se precipitam em momentos de acidentes, rupturas, inovações e afins, como foi o caso da pandemia da covid-19 no presente trabalho.

No âmbito dos estudos teóricos estritos, como é o caso desta pesquisa, objetiva-se fomentar, no intercurso da escrita, um processo de reflexão em inter-ação com o todo, gerando notoriedade para a heterogeneidade e a diversidade dos elementos que se precipitam no campo em suas associações com os demais - concorrendo para reconhecer e forjar um mundo multiespécie que possa acolher a coexistência, a interdependência e a responsabilidade com as nossas múltiplas relações humanas e não humanas.

Os Humanos e Não Humanos na Indústria de frigorificação Mundial e Brasileira

A exploração do trabalho de haitianos e haitianas no Brasil se relaciona ao início da ascensão econômica e política das indústrias e agentes relacionados ao setor agropecuário brasileiro a partir da década 2010-2020 (Mamed, 2017). A escalada desse setor econômico encerra tramas de poder e interesses por trás de uma maquinação chamada também de agroindústria, agrobusiness - termo propositadamente criado para unir as duas pontas nos Estados Unidos nos anos 50 (Pompeia, 2020) - ou agronegócio na tradução para o português. O termo seria uma aglutinação de duas palavras aparentemente incompatíveis em suas acepções originais antes da industrialização agropecuária em escala. O êxodo do campo para a cidade, a industrialização, a prática da monocultura e a globalização desassociaram progressivamente o cultivo da terra e dos animais das noções milenares e ancestrais de plantio, cuidado, conformação e colheita no imaginário coletivo.

Dessa forma, atualmente é vendida uma imagem do setor, apelidado de "agro" no Brasil (aparentemente buscando criar uma referência afetiva), como unificado, poderoso, eficiente e vital para a riqueza do país e a sua segurança alimentar (Pompeia, 2020); inclusive por meio de propagandas na sua maior emissora televisiva, que desde 2016, ano que se iniciou o governo Michel Temer (maio 2016 a janeiro 2019), vem exibindo publicidades da campanha "Agro: a Indústria-Riqueza do Brasil" com o slogan "Agro é tech, agro é pop, agro é tudo" (G1, 2016).

Todavia, é preciso ter em mente a advertência que nos faz Ailton Krenak, notável líder indígena brasileiro, em seu livro A vida não é útil (Krenak, 2020) sobre a imoralidade dessa campanha que enaltece a corrida agropecuária - que espolia as terras e direitos indígenas: "Tudo virou agro. Minério é agro, assalto é agro, roubo do planeta é agro, e tudo é pop. Essa calamidade que nós estamos vivendo no planeta hoje pode apresentar a conta dela para o agro" (p. 20); pois, por trás de toda essa exaltação, há um cenário de violência, exploração e consumo desenfreado de humanos e não humanos. Sobre isso, Taylor e Taylor (2020) colocam que:

O aumento da demanda por carne na China e, de fato, globalmente, dificilmente é espontâneo - é projetado por uma indústria poderosa que gasta grandes somas anunciando seus produtos e promovendo o equívoco de que a carne é a chave para uma dieta saudável e desejável. Essa propaganda tem suas raízes nos Estados Unidos, que lidera o mundo em consumo de carne per capita (tradução livre).

Nesse cenário, em todo o mundo, os frigoríficos são uma das pontas finais da produção agropecuária que tradicionalmente angariam mão-de-obra pouco qualificada em condições de exploração extremamente precarizadas e arriscadas (Mamed, 2017). Segundo Mamed (2017), "todos os relatos concordam quanto à percepção do frigorífico como lugar de ‘moer gente', expressão que evidencia a ironia do trabalho humano em fábricas de processamento de carne" (p. 162).

Para os humanos, suas atividades ocorrem em boa parte sob baixas temperaturas e alta umidade, são repetitivas em alto grau e comportam interação com instrumentos e máquinas que podem ser letais. De forma simétrica, para os demais animais, a vivência é de abate, corte e desossa em série, sem lançar mão de recursos de dessensibilização e submetendo-os à ingestão de antibióticos, confinamento prévio e superlotação para engorda, fatores relacionados à crueldade animal (Taylor & Taylor, 2020).

Todo mundo sabe que quadros aterrorizantes e insuportáveis um pintor realista poderia fazer da violência industrial, mecânica, química, hormonal e genética à qual o homem vem submetendo a vida animal nos últimos dois séculos (Derrida, 2002 citado por Haraway, 2011, p. 40). Todo mundo pode saber, mas não há nem de longe bastante indigestão (Haraway, 2011, p. 40).

Assim, os ramos da indústria da frigorificação relacionam-se com a degradação dos direitos humanos e ambientais - seja pela ação direta com os próprios humanos e não humanos, seja pela deterioração ecossistêmica deflagrada pelo desmatamento em escala para a obtenção de pasto e de monocultura para o cultivo de rações, por exemplo. Trabalhadores e trabalhadoras dos frigoríficos são submetidos a maus tratos, expostos a doenças e fatalidades, e o mesmo se faz com os animais e a natureza: essa é uma rede ordenada pela violência e pelo lucro.

Nós somos animais. Embora os seres humanos muitas vezes reprimam esse fato básico, o novo coronavírus revelou nossa conexão e dependência do bem-estar de outras criaturas. De várias maneiras, nosso desrespeito por outras espécies levou e agravou essa pandemia. Para montar uma resposta adequada - e prevenir futuros desastres - precisamos começar a levar os animais em consideração (Taylor & Taylor, 2020, tradução livre).

Desse modo, a pandemia da covid-19 se precipita como uma questão de interesse que escancara a nossa animalidade e a interdependência ambiental, articulando os maus-tratos aos animais, humanos e não humanos, à diáspora haitiana e ao contexto de exploração da divisão étnico-racial sexual internacional do trabalho.

A respeito disso, Segata et al. (2020) discutem sobre "um capitalismo racial que conduz migrantes a graus desproporcionais de contato poroso com substâncias potencialmente contaminantes" (p. 365) e que transforma "porcos, negros e migrantes latinos" em "trabalhadores precários" (p. 365) que "compartilham situações de intensa exploração e sofrimento" (p. 365) à medida que encarnam as hierarquias do capitalismo e do Antropoceno - palavra criada nos anos 1980 pelo biólogo norte-americano Eugene Stoermer para se referir à "época em que as ações humanas começaram a provocar alterações biofísicas em escala planetária" (Léna & Issberner, 2018). Convenciona-se que o início da Revolução Industrial e da utilização dos combustíveis fósseis marcam o início dessa era.

A lógica predatória e extrativista do Antropoceno e os movimentos concentradores do capital global geram esgotamentos cíclicos do ecossistema, nos quais inclui-se o esgotamento das fontes de mão-de-obra explorada, como ocorre com os haitianos e haitianas que vêm preenchendo convenientemente as vagas da indústria frigorífica brasileira desde o início do seu apogeu: os primeiros de forma mais predominante no primeiro quinquênio da segunda década do século XXI e as segundas a partir do segundo quinquênio da mesma década.

Por isso a TAR apropriou-se do conceito de Antropoceno como determinante da crise ambiental atual, como um marco da necessidade de substituição de uma visão dicotômica e distorcida de domínio e controle: imbricando necessariamente os fenômenos físicos aos fenômenos sociais, culturais e políticos, e responsabilizando a ciência e todos os âmbitos societários pela proteção da vida e da biodiversidade planetária (Latour, 2020). Assim, reconhecendo as associações de elementos heterogêneos, em que se situam os marcadores sociais da diferença:

Interessa observar que não há simplesmente uma divisão sexual do trabalho, mas uma articulação de divisões sexuais, sociais, étnico-raciais e internacionais do trabalho. A divisão sexual do trabalho parece ser um pouco rígida pelo fato de poder mascarar as suas outras divisões. Por exemplo, mesmo as mulheres exercendo serviços domésticos, entre elas ainda persiste a divisão de salários (classe), conteúdos raciais e nacionalidade de origem. Há uma hierarquia sociocultural, racial e nacional na divisão do trabalho (Handerson & Joseph, 2015, p. 28).

Portanto, verifica-se que o movimento de convergência mundial da frigorificação no Brasil, como um dos países periféricos supridores da cadeia mundial de bens primários agrícolas, culminou no recrudescimento de contratações baseadas na divisão de origem, racial e sexual do trabalho na segunda década do século XXI, estabelecendo novas agências e vinculações entre essas divisões, no plural, e as redes sociotécnicas que as sustentam.

O Deslocamento de Haitianas e Haitianos para o Brasil, a Frigorificação e a Divisão do Trabalho

Antes de 2010, não havia tradição migratória de haitianos para o Brasil, mas, sim, para outros países, como a França e os Estados Unidos. O número de emigrados na diáspora haitiana foi apurado, em 2013, em cerca da metade do número vigente de habitantes no país à época. Embora já houvesse registro da presença de haitianos no Brasil desde os anos 80 (Handerson & Joseph, 2015), este país se constituía para o seu deslocamento, no máximo, como uma das rotas possíveis para alcançar a Guiana Francesa ou conseguir visto para países do Norte Global.

O aumento da imigração haitiana no Brasil iniciou-se após as crises humanitárias que se intensificaram naquele país a partir do terremoto de 12 de janeiro de 2010, que atingiu a magnitude 7,0 na escala Richter, deixando milhares de mortos e feridos, além de mais de um milhão de pessoas desabrigadas (United Nations, 2016). O trágico e devastador terremoto foi seguido de um surto de cólera que vitimou 8000 pessoas no mesmo ano de 2010 e a passagem de dois furacões dois anos depois, em 2012, que devastaram as plantações do país num cenário de economia predominantemente agrícola. Além disso, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), que vigorou de 2004 a 2017 e teve o exército brasileiro como liderança, gerou aproximações sociais e culturais entre as populações dos respectivos países. De forma concomitante, os grandes eventos mundiais realizados em nosso país em 2014 e 2016 (Copa do Mundo e Olimpíadas, respectivamente) incrementaram a oferta de vagas de trabalho, motivando e oportunizando o deslocamento de haitianos para o Brasil. Soma-se a isso, essencialmente, o contexto de pleno emprego e de valorização da moeda brasileira no início da década 2010-2020, além da receptividade política governamental à época, que efetuou marcos regulatórios importantes da imigração no nosso país (Tonhati, Cavalcanti, & Oliveira, 2017), destacando-se: o Decreto 6.893/2009 que permitia a regularização, num prazo de 180 dias, aos cidadãos que tivessem ingressado no país até fim de janeiro de 2009; as Resoluções Normativas 77/2008 e 93/2010 que, respectivamente, concediam autorização de permanência ao companheiro ou companheira em união estável e visto permanente ou permanência no Brasil a estrangeiro considerado vítima de tráfico de pessoas; e as Resoluções Normativas CNIg nº 97/2012 e CNIg nº 126/2017 que previam a acolhida humanitária aos haitianos e venezuelanos (Cavalcanti, 2021).

Eberhardt, Schütz, Bonfatti e Miranda (2018) apontam que, inicialmente, as pessoas que migraram do Haiti para o Sul do Brasil na década 2010-2020 foram absorvidas pela construção civil em obras de ampliação de hospitais e universidade locais, por exemplo, tendo se transferido para o mercado frigorífico quando estas findaram - haja vista que o setor de frigorificação os recrutava ativamente em seus locais de chegada ao Brasil (Mamed, 2017) e prometia para esses trabalhadores "empregos em abundância e de qualidade" (Eberhardt et al, 2018. p. 680). Aqui, se estabeleceram principalmente em bairros periféricos, dividindo a moradia de pequenos quitinetes com familiares e amigos e residindo longe dos locais de trabalho, o que faz com que o uso do transporte público fosse frequente em suas rotinas (Eberhardt et al, 2018).

Apesar dos postos nos frigoríficos brasileiros terem sido majoritariamente ocupados pelos homens haitianos no primeiro quinquênio da década, especialmente nas funções de abate de aves, a partir de 2013 inicia-se a curva de aumento da imigração de mulheres haitianas que, segundo Tonhati e Pereda (2021), "foram as responsáveis pelo início do processo de feminização das migrações no Brasil" (p. 155); havendo um crescimento significativo da imigração de mulheres no ano de 2017 (avolumado pelas venezuelanas), atingindo o seu auge em 2019 e decrescendo sensivelmente em 2020, devido à pandemia da covid-19 - que, por sua vez, elevou o número de demissões no setor frigorífico de março a agosto de 2020 (Tonhati & Pereda, 2021). No entanto, em relação à inserção formal no mercado de trabalho por imigrantes, "de forma surpreendente, o ano de 2020 teve o maior saldo positivo da década analisada, ou seja, comparando com 2019 houve um crescimento de 4,8% no saldo" (Tonhati & Pereda, 2021, p. 169).

As haitianas estão em primeiro lugar como a nacionalidade com maior movimentação no mercado de trabalho formal brasileiro no período acima analisado. Os estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul foram os principais contratantes na frigorificação, seja no abate ou na limpeza.

De fato, os dados revelaram que o saldo de contratações de mulheres foi positivo ao longo da década, com exceção do ano de 2016, porém as atividades econômicas onde essas mulheres, particularmente as venezuelanas e haitianas, estão conseguindo inserção laboral são em espaços com alta exploração da mão de obra - os frigoríficos nas regiões Sul do país" (Tonhati & Pereda, 2021, p. 182).

Contudo, a formalização, com garantia mínima de direitos trabalhistas, não representa a garantia de direitos humanos, emancipatórios e igualitários em relação aos imigrantes homens; pelo contrário, torna-se, paradoxalmente, mais um fator de inviabilização das perspectivas de saída do círculo vicioso da exploração, pois as mulheres imigrantes têm menos chance de mobilidade social ascendente em relação à sua posição na sociedade de origem comparadas às possibilidades dos homens (Mamed, 2017).

O Capitalismo Pandêmico

Conforme apontam Federici (2021) e Furno (2015), sabemos que a divisão sexual do trabalho não surge com o capitalismo, mas este, "enquanto um sistema político e ideológico, utiliza-se das diferenças sexuais para aprofundar seu processo inerente de aprofundamento das desigualdades" (Furno, 2015, p. 3) - e isso se dá também em outras interseções. A movimentação de imigrantes "periféricos na periferia" (Villen, 2015, p. 247), como é o caso das pessoas haitianas na indústria frigorífica do Brasil ao longo da década 2010-2020, evidencia a permanência da exploração da força de trabalho negra nas sociedades de base escravista. Conforme Granada et al. (2021), a crise deflagrada pela pandemia de coronavírus, no fim dessa mesma década, pode ser interpretada como

Consequência de uma simbiose entre uma crise estrutural do capital e crises sociais e políticas profundas. A imbricação trágica entre o sistema de metabolismo antissocial do capital, a crise estrutural e a explosão do coronavírus pode ser sintetizada na expressão ‘capitalismo pandêmico' (Antunes, 2020, p. 17 citado por Granada et al., 2021, p. 214)

Num extremo, a condição de existência da indústria frigorífica comporta sua própria impraticabilidade. Como visto, se a globalização e a ruinosa exploração ambiental são fatores que desencadeiam a propagação acelerada de uma pandemia, os frigoríficos são os lócus perfeitos para a disseminação dos vírus: nas suas atmosferas frias e úmidas, os equipamentos de proteção individual fundamentais (EPI's), como as máscaras, rapidamente ficam úmidos pela condensação do ar, o que diminui a sua eficiência (Ferro et al., 2021).

Além disso, os mesmos autores apontam que os frigoríficos também se tornaram um dos espaços mais preocupantes de contágio, haja vista que os trabalhadores desses locais

São frequentemente expostos a agentes de riscos como frio, umidade, ruído, posturas inadequadas, amputações, amônia e jornada de trabalho exaustiva, além do ritmo intenso de trabalho. Em frigoríficos, os trabalhadores chegam a realizar 90 movimentos por minuto, sendo que o aceitável seria em torno de 30 movimentos por minuto (Ferro et al., 2021, p. 225).

Assim, quando seguimos os rastros da pandemia da covid-19 enquanto um evento multiespécie, considerando a simetria dos seus actantes, podemos entender como cada um desses fatores impacta a rede e contribui para os riscos de contágio no espaço do frigorífico. Não existe um actante isolado ou de maior importância, todos coexistem, afetam e são afetados: por exemplo, animais, frio, humanos, máquinas, amônia, natureza, EPI's, fungos, vírus, bactérias, bem como condições de precariedade de moradia, transportes públicos abarrotados e insalubres, dificuldades de acesso à atenção em saúde, acobertamento de sintomas para não faltar ao trabalho (Granada et al., 2021; Segata et al., 2020) - incluindo a decisão política que definiu o trabalho no setor frigorífico como "serviço essencial", autorizando a não suspensão de sua operação durante o período de confinamento no Brasil.

Olhar para todos esses elementos a partir dos paradigmas teórico-metodológicos da Teoria Ator-Rede nos permite traçar a continuidade do curso de ação que transita e congrega os elementos heterogêneos, humanos e não humanos, e entender que todos são actantes que interagem e interferem no curso dos acontecimentos.

Os abatedouros industriais (especialmente de porcos e aves) foram locais importantes de disseminação da covid-19 em diversos países, entre eles França, Alemanha, Holanda, Irlanda, Austrália, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Brasil. (…) na maioria dos casos devido à situação de vulnerabilidade e precariedade social na qual se encontravam, a origem da contaminação é humana e não tem relação com os animais abatidos (Granada et al., 2021, p. 212-213).

Segundo os dados apontados por Segata et al. (2020), no Rio Grande do Sul, nos seis primeiros meses de pandemia foram confirmados 5.804 casos de covid-19 entre trabalhadores do setor frigorífico, o que causou a interdição de vários estabelecimentos nesse estado; e, em Santa Catarina, inquéritos civis e ações públicas foram abertos para apurar denúncias de irregularidades. No mês de junho de 2020, o número de trabalhadores da indústria da carne positivos para o novo coronavírus chegou a representar 32% dos casos do Rio Grande do Sul ou, como os autores apontam, praticamente "1⁄3 do contingente de contaminados do estado naquele momento" (Segata et al., 2020, p. 360). Ainda assim, em Passo Fundo, foi realizada uma manifestação por funcionários terceirizados do setor frigorífico quando um estabelecimento brevemente foi fechado em maio de 2020. Os manifestantes alegavam que medidas requeridas pelo Ministério Público tinham sido tomadas e que eles tinham medo de perder seus empregos, já que mais de nove mil famílias dependiam - direta ou indiretamente - do trabalho no setor (Lobo, 2020).

O medo da morte pela doença foi suplantado pelo medo da morte pela fome e a miséria num país que, ao dificultar auxílios financeiros emergenciais e manter o ritmo de produção das indústrias dos chamados serviços essenciais (ainda que seus trabalhadores estivessem em condições precárias), afirma que algumas mortes são mais aceitáveis que outras.

No caso dos frigoríficos, aquelas pessoas que abatem e cortam os animais também são classificadas como menos prioritárias. É um setor em que a produção é essencial, mas as pessoas são descartáveis. O controle dos corpos, nesse caso, passa por aqueles cujos corpos não podem parar de produzir, e, se pararem por força da doença, poderão ser substituídos a baixo custo. A necropolítica (Mbembe, 2016 citado por Granada et al., 2021, p. 221) aqui age de forma dissimulada, em um quadro em que a manutenção das atividades essenciais para a vida de certas pessoas pode colocar em risco a vida dos que podem ser deixados para adoecer ou morrer. Constitui-se, assim, nos frigoríficos da região Sul do Brasil um triste cenário. No local onde se abatem e cortam os animais não humanos longe dos olhos dos consumidores, existem também outras taxonomias para os animais humanos, que os dividem em diferentes categorias de humanidade (Granada et al., 2021, p. 221).

O "capitalismo pandêmico" (Antunes, 2020, p. 17) tem como marco histórico o início da segunda década dos anos 2000, quando se iniciou a escalada global da apropriação de terras, principalmente devido ao aumento da demanda global por commodities agropecuárias e a alta dos preços. O aumento dos interesses de agentes privados por novas áreas no Brasil fez com que o complexo econômico agropecuário, antes disperso, começasse a se articular. O debate em torno do Código Florestal brasileiro, no início da década de 2010, oportunizou a mobilização dos atores interessados em pressionar pela flexibilização de suas cláusulas (Pompeia, 2020) - o que inevitavelmente incentivou a ação de desmatadores e a obtenção de terras por meios ilícitos, comumente chamada de "grilagem de terras" no Brasil. Esse movimento consolidou-se quando, no fim da década 2010-2020, a manipulação da máquina governamental para desmonte das conquistas e regulamentações ambientais da Amazônia e dos demais ecossistemas nacionais entraram na agenda oficial presidencial no governo Jair Bolsonaro (2018-2022) (Scantimburgo, 2018).

Arregimentações como estas servem de base para que, mesmo durante uma pandemia, o capitalismo não cesse a sua máquina de "moer gente" (Mamed, 2017, p.162), alimentando-a com pobres, imigrantes, negros, mulheres e demais categorias que "são convertidos em ‘serviço essencial' para a manutenção do novo normal das elites e da classe média branca" (Segata et al., 2020, p. 366).

 

Considerações finais

Este trabalho procurou traçar um panorama do aumento significativo do fluxo da imigração haitiana no Brasil ao longo da década 2010-2020 e do seu perfil de inserção laboral na indústria de frigorificação, que se concentra principalmente no Sul do país. Como sustentado no intercurso textual, embasado em relatórios técnicos oficiais e de fontes secundárias sobre o tema, tal deslocamento converge e demonstra a interdependência sistêmica de fatores ambientais e sociotécnicos que, acompanhados na perspectiva da Teoria Ator-Rede (TAR), evidenciam como actantes humanos e não humanos afetaram e foram afetados no recorte aqui abordado.

As pessoas imigrantes do Haiti só passaram a vir expressivamente para o Brasil após 2010, em função de um abalo sísmico que atingiu sete pontos na escala Richter, seguido de um surto de cólera. A receptividade política governamental na época e o contexto de pleno emprego e de valorização da moeda brasileira no início da década 2010-2020 também foram determinantes para a composição desse fluxo.

Inicialmente encontrando vagas de emprego na construção civil aquecida, com o fim das obras essas pessoas foram facilmente absorvidas pelo setor frigorífico como mão de obra barata para alimentar sua máquina; o que torna este segmento produtivo alvo de inúmeras denúncias do Ministério Público e de outros órgãos, chegando a ser apontado em 2017 como "a atividade industrial que mais gera adoecimentos no país" pelo procurador do trabalho, Sandro Sardá (2017) - e que evidentemente gerou também muitos adoecimentos e mortes à época do confinamento da pandemia da covid-19 em 2020.

É importante ressaltar que, embora nos refiramos aos imigrantes haitianos e haitianas, foi possível evidenciar que as condições de trabalho e de vida não se colocam da mesma forma para ambos os gêneros. Por mais que as haitianas estejam em primeiro lugar como a nacionalidade com maior movimentação no mercado de trabalho formal brasileiro no período mencionado acima, sendo responsáveis por iniciar o processo de feminização das migrações no Brasil (Tonhati & Pereda, 2021), estas encontram menos chance de mobilidade social ascendente em relação à sua posição na sociedade de origem (comparando-se às possibilidades dos homens) (Mamed, 2017). Assim, enquanto homens haitianos costumam se inserir na construção de edifícios e no abate de aves e suínos nos frigoríficos, chegando a cargos de supervisão e chefia, as mulheres costumam ficar com trabalhos na área de limpeza, alimentação e no abate de aves.

A relevância de olhar para essa diferença é evidenciar como o trabalho de reprodução social (que envolve ações como limpar, cuidar de crianças e idosos, educar, cozinhar…) acaba sendo desempenhado majoritariamente por mulheres. Sendo um trabalho desvalorizado socialmente, contribui para a lógica de manutenção de privilégios dos que se favorecem de serem permanentemente servidos por uma força de trabalho braçal e repetitiva, invisibilizada e/ou precarizada. Como acontece com o próprio trabalho realizado por mulheres dentro dos frigoríficos, quando elas ocupam funções predominantemente subalternas e de menor remuneração, sem acesso a condições propícias de conciliação da maternagem e do trabalho (como licenças remuneradas e creches).

A mesma lógica do trabalho ininterrupto e subserviente de reprodução social se faz presente ao se afirmar que determinados setores da sociedade não podem parar para suprir as necessidades dos demais. Por exemplo, no breve período no qual foi determinada a interdição de algumas plantas frigoríficas (no período inicial da vigência da pandemia de covid-19, que culminou na determinação de confinamento da população pelos governos estaduais e municipais brasileiros), associações e sindicatos patronais do setor assinaram uma nota de repúdio afirmando que "a falta de carne nas prateleiras poderia causar um caos social" (Segata et al., 2020, p. 356). Já quanto ao dado de que os trabalhadores e trabalhadoras dos frigoríficos chegaram a representar um terço dos infectados no Rio Grande do Sul em junho de 2020, nenhum protesto foi levantado. Pelo contrário: quando este ocorreu, foi pela reabertura das fábricas, impulsionado inclusive por sua própria classe trabalhadora que, temendo a perda da sua fonte de renda, passou a olhar o vírus como um risco menor.

É imperioso que repensemos a lógica posta por um capitalismo voraz que amplia desigualdades e que, como se não bastasse se alimentar de vidas - de humanos e não humanos -, ainda diminui o valor de algumas quando declara que estas podem morrer para atender às necessidades de outras (Granada et al., 2021), ou quando se diz que a economia deve ser a prioridade governamental. Mamed (2017) nos fala do frigorífico como "lugar ‘de moer gente'" (p. 162), mas a indústria da carne parece ir além, moendo gente, animais, direitos e engendrando-se contiguamente a outras matanças, como a que vem ocorrendo com as populações indígenas e a devastação ambiental (Taylor & Taylor, 2020).

Na vastidão planetária, mecanismos degeneradores são transmitidos globalmente de forma pandêmica como os vírus, condensando-se em generalizações desqualificantes e indignas. Eles são exemplos da exploração como fruto da degradação sistêmica gerada pela concentração do capital, que dá ensejo às migrações forçadas e ao suprimento da cadeia global dos postos de trabalho precarizados, como procuramos demonstrar neste artigo por meio da análise bibliográfica que versa sobre o incremento da imigração haitiana para o Brasil durante a década 2010-2020.

A máquina publicitária busca nos transmitir a ideia de que o "agro" é a indústria da riqueza no Brasil, mas que riqueza é essa que destrói a terra e que acentua as já tão gritantes desigualdades do país? Como ele pode ser "pop", se é o grosso da população que o sustenta, tendo como retorno a precariedade, o adoecimento e a perda das suas vidas? É urgente que não nos deixemos seduzir por essas propagandas que o exaltam, que deixemos de lado as fantasias hierárquicas do capitalismo e do Antropoceno - que propagam a ideia de que determinadas espécies e grupos são superiores a outros - para finalmente entender que estamos inseridos num mundo multiespécie, composto por humanos e não humanos que formam o social e nele atuam, para que, assim, possamos estabelecer uma lógica mais sensível aos modos de coexistência, marcada por uma ética de cuidado e responsabilidade com as nossas relações.

Em conclusão, esperamos que este trabalho possa produzir conscientização sobre as circunstâncias dos frigoríficos; e também pressão por mudanças, seja para a proteção ambiental, seja para melhorias nas condições de trabalho e cuidados com os humanos e não humanos envolvidos em toda a cadeia econômica da indústria da carne. Almejamos, ainda, que ele possa proporcionar desdobramentos e aprofundamentos a partir do que não foi possível ser abarcado, como, por exemplo, uma revisão sistemática da literatura sobre a temática; imersões e acompanhamento do campo com os/as trabalhadores/as e outros atores envolvidos na engrenagem frigorífica; apuração de dados estatísticos num prazo mais extenso após ter sido decretado o fim da crise sanitária global da covid-19; o aprimoramento do estudo no âmbito estrito do segmento das trabalhadoras haitianas na frigorificação; a ampliação do universo de mulheres imigrantes pesquisadas na mesma indústria, como as venezuelanas, dentre outras abordagens.

 

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Endereço para correspondência
Fernanda Sansão Hallack - fernandahallack@gmail.com

Recebido em: 30/05/2023
Aceito em: 17/11/2024

 

Financiamento: Ministério da Ciência Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC); do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); do Projeto Estratégico Emergencial de Pesquisa e Inovação na UERJ (INOVA UERJ); do Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística (PROCIÊNCIA UERJ); da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

 

 

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