Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e75988, doi:10.12957/epp.2025.75988
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
O Alvo nas Telas: Tecnologias Escópicas e Militarização do Visível
The Target on the Screens: Scopic Technologies and the Militarization of the Visible
El Blanco en las Pantallas: Tecnologías Escópicas y la Militarización de lo Visible
Danilo Saretta Verissimo a
a Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Nosso propósito, no artigo, é caracterizar a associação contemporânea entre visão, conhecimento e mira, que deságua, segundo nossa hipótese, em um dispositivo escópico calcado na ação de mirar e na constituição do sujeito como um alvo. Partimos do conceito de skopos, e da análise de dois grandes regimes de atenção, o projetivo e o imersivo, o que permite a distinção da posição dos agentes nos conflitos sociais e econômicos de captação da atenção. Com base nisso, realizamos um exercício arqueológico voltado ao exame do desenvolvimento de tecnologias de visão militares, e indicamos elementos constitutivos de uma inter-relação perceptiva na qual uma forma de atenção estabelece alvos, além de instituir a própria atenção como um alvo. A argumentação se encaminha para a caracterização de uma política da visão calcada na prescrição de alvos e para a análise das suas formas de se impor como dispositivo social. Ressalta-se, além disso, não apenas a dimensão epistemológica, mas moral, associada às práticas científicas que sustentam o dispositivo de mira como um todo.
Palavras-chave: atenção, alvo, militarização.
ABSTRACT
Our purpose in this article is to characterize the contemporary association between vision, knowledge and targeting, which ends, according to our hypothesis, in a scopic device based on the act of targeting and in the constitution of the subject as a target. We start from the concept of skopos, and the analysis of two major regimes of attention, the projective and the immersive, which allows us to distinguish from the position of the agents in the social and economic conflicts of attention capture. On this basis, we conduct an archaeological exercise aiming to exam the development of military vision technologies, and indicate constitutive elements of a perceptual interrelationship in which a form of attention establishes targets, as well as instituting attention itself as a target. The argument goes on to the characterization of a vision politics based on the prescription of targets and on the analysis of its ways of imposing itself as a social device. We also highlight not only the epistemological, but the moral dimension associated with the scientific practices that sustain the targeting device as a whole.
Keywords: attention, targeting, militarization.
RESUMEN
Nuestro propósito en este artículo es caracterizar la asociación contemporánea entre visión, conocimiento y mira, que desemboca, según nuestra hipótesis, en un dispositivo escópico basado en la acción de mirar y en la constitución del sujeto como blanco. Partimos del concepto de skopos, y del análisis de dos grandes regímenes de atención, el proyectivo y el inmersivo, que nos permite distinguir la posición de los agentes en los conflictos sociales y económicos de la captación de atención. Sobre esta base, llevamos a cabo un ejercicio arqueológico destinado a examinar el desarrollo de las tecnologías de visión militar, e indicamos elementos constitutivos de una interrelación perceptiva en la cual una forma de atención establece blancos, así como instituye la atención misma como blanco. El argumento avanza hacia la caracterización de una política de visión basada en la prescripción de blancos y hacia el análisis de sus formas de imponerse como dispositivo social. Se destaca, además, no sólo la dimensión epistemológica, sino también la moral, asociada a las prácticas científicas que sustentan el dispositivo de mira en su conjunto.
Palabras clave: atención, focalización, militarización.
Sabe-se o quanto a faculdade da visão é associada, no pensamento ocidental, à constituição do saber e, a partir disso, à posição e à superação das distâncias entre sujeito e objeto, e à assimilação ou domínio da alteridade. É igualmente importante, e longa, a associação entre visão, conhecimento e mira (targeting) (Weber, 2005). Jean-Luc Nancy (1985), ao tratar da questão dos fins, ou das finalidades, no contexto de uma discussão sobre sua relação com os imperativos morais, lembra que na filosofia antiga encontram-se dois conceitos do fim, ou, antes, que, nela, o fim se deixa dividir em dois conceitos: o skopos e o telos. O conceito de skopos vem da palavra grega sképtomai, que significa observar, examinar, e compreende, nele mesmo, outra partição, que acaba por unir as partes a que se reporta. Skopos designa o que se tem em vista, aquilo que é visado, o alvo, a meta que se apresenta a uma visada, sem que se possa omitir o quanto a visada é determinada pela meta. Talvez por isso mesmo a palavra também designe, no grego, aquele que visa, aquele que observa atentamente, que vigia e que guarda, inclusive na qualidade de um protetor. A palavra skopos determina, portanto, o sujeito e o objeto do olhar atento, aquele que mira e o seu alvo. Quanto ao telos, trata-se do "acabamento de uma ação ou de um processo", escreve Nancy (1985, p. 41), o seu mais pleno desenvolvimento. O gênero de fim compreendido no telos não é da ordem de algo visado. No tiro com arco, exemplo clássico para a diferenciação do skopos e do telos entre os estoicos, o arqueiro visa seu alvo, mas apenas espera acertá-lo, levando-se em conta os inúmeros fatores que podem servir de obstáculo a este fim. Um genuíno fim dessa ação apenas poderia ser determinado como algo que dependeria tão somente da vontade do próprio arqueiro, como, por exemplo, o propósito de visar bem. Aliás, diferentemente da distância que separa o arqueiro e a flecha do alvo, na boa visada não há separação entre o olhar e a meta: é aqui e agora que se visa com excelência o alvo (Compte-Sponville, 1998). O telos residiria, portanto, na própria visada (Voelke, 1973, p. 55). Nancy vai além dessa relação de visada e afirma: "Skopos é o tiro com arco, telos é a vida e a morte".
Samuel Weber, em seu livro Targets of opportunity: on the militarization of thinking (2005), evoca o privilégio concedido historicamente, na filosofia, às questões relativas ao telos. A ideia de skopos, ao contrário, é raramente mencionada, mesmo nos dicionários filosóficos. Tudo se passa como se a noção de telos se desenvolvesse à parte da sua sombra escópica, deixando para trás o que seria uma relação exterior e padronizada entre a mira e o alvo que se oferece à visada, e se expandindo numa relação interna de desenvolvimento existencial e entelequial (Voelke, 1973; Nancy, 1985; Weber, 2005). Mas, pergunta Weber, e se o prosaico tiro ao alvo, com a dinâmica nele presente, em outras palavras, e se o skopos, fosse pensado como uma experiência limite? Isso não seria nada estranho, levando-se em conta a força de uma palavra que designa, ao mesmo tempo, o objeto e o sujeito da ação de ver, de mirar, considerando-se as possibilidades de uma expressão cuja semântica já ultrapassa as distâncias e as diferenças do processo designado. O que significaria, então, termos como finalidade, ou telos, precisamente o tornar-se skopos, ou a realização completa do skopos? O que teríamos caso testemunhássemos o pleno desenvolvimento da dialética não apenas entre olhar e ser olhado, mas entre mirar e ser um alvo? Que tipos de sujeitos e objetos, que formas de subjetivação estariam implicados nessa dinâmica, e que espécies de fins seriam requeridos? E como um tal dispositivo seria instaurado?
As condições sociais, culturais e econômicas da vida contemporânea fornecem indícios significativos do que podem ser considerados como desdobramentos radicais das vicissitudes da atitude escópica. Destacam-se, neste contexto, o olhar de sobrevoo das ciências, as tecnologias do ver de aplicação militar e os dispositivos de imagem que permeiam nossa vida diária, todos atravessados pela ideia de alvo. Um importante elemento, que reforça esta leitura, é o que Kenneth Rogers (2014) chama de "complexo da atenção" (p. 2). Desde o século XIX, e de forma intensificada nessas primeiras décadas do século XXI, constata-se uma grande expansão na produção de conhecimento científico, no investimento de capital, e nas técnicas e práticas segundo as quais a atenção é teoricamente compreendida, manejada tecnologicamente, e tratada no âmbito psicológico e psiquiátrico. A atenção como objeto de registro científico, técnico, político e econômico, disposta sob o micro-scópio (micro-scope), alvo específico de uma atenção arranjada para conhecer e controlar, parece manifestar uma "ambiguidade crítica" (Rogers, 2014, p. 2). Ao mesmo tempo forma de ação examinadora e objeto de conhecimento e controle, a atenção, tal como transita nas humanidades, nas disciplinas científicas e nos ambientes sociais, atualiza a potência significativa do conceito de skopos. Ela talvez represente bem, esta é a hipótese de Rogers (2014), a existência de um espaço de ações múltiplas em que a sociedade parece negociar uma "crise do self", "crescentemente dirigido, mediado e controlado" (p. 2) por tecnologias políticas.
O conceito de skopos alude à condição reversível do olhar. O próprio sujeito do olhar torna-se objeto do olhar do outro. A ideia de skopos carrega, ainda, a vinculação entre visão e mira. Com base nesse ideário, nosso objetivo, neste artigo, será encaminhar uma discussão do complexo atencional a partir do exame da posição dos agentes nos conflitos sociais e econômicos de atração da atenção. Tal processo encontra analogia no antagonismo dos regimes de atenção projetivo e imersivo, além de dialogar com o modelo de captação do mundo e do outro como alvos. Poderemos distinguir, então, alguns elementos históricos atrelados à normatização social de uma política da visão calcada no estudo científico da atenção e na prescrição de alvos. Cumpre identificar os componentes desta instituição e as suas formas de se impor como dispositivo social.
A argumentação progredirá em três movimentos. Fundamentados em considerações acerca da ideia de economia da atenção, buscaremos, primeiramente, discernir os regimes de atenção de projeção e de imersão, sempre orientados pelo conceito de skopos, especialmente na sua acepção atrelada ao estabelecimento de alvos. Essa análise, que configura uma espécie de diagnóstico, será seguida de um movimento analítico. Baseando-nos, principalmente, nos trabalhos de Rey Chow (2006) e de Bernard Geoghegan (2019), examinaremos, em um segundo momento, a articulação epistemológica e cultural entre visão, destruição e informação. Poderemos reconhecer o delineamento dos princípios dos regimes de atenção contemporâneos em meio ao desenvolvimento das interfaces entre humanos e dispositivos computacionais de imagem com propósitos militares. Por fim, discutiremos, brevemente, o cruzamento da constituição dos sujeitos como alvos (targets, cibles) de estratégias armadas e de processos comerciais.
Economias e Regimes de Atenção
O ponto social e cultural no qual nos encontramos distingue-se, entre outras coisas, pela hipertrofia de modos atencionais, sobretudo de alerta, hipertrofia produzida pelas redes numéricas e que caracteriza o que vem sendo designado como economia da atenção (Franck, 2014; Citton, 2014; Boullier, 2020). O fundamento de uma economia da atenção repousa em dispositivos que erigem a atenção como objeto inteligível e útil. Aliado a isso, é preciso considerar, como explica Michel Foucault (2004), em Naissance de la biopolitique, que na fase neoliberal do capitalismo, a análise econômica se lança a domínios antes inexplorados, de modo que a economia conforma-se como uma ciência do comportamento humano. Isso implica, igualmente, que o modelo econômico da oferta e da demanda, do investimento, do custo e do lucro desdobre-se como paradigma social e existencial. A forma econômica do mercado adquire, então, o status de princípio de inteligibilidade das relações sociais e dos comportamentos individuais. Neste enquadramento, qualquer conduta que implique recursos raros e a sua utilização alternativa pode tornar-se objeto de análise econômica. A atenção, entre os economistas, vem sendo, justamente, ligada ao conceito de escassez (Rogers, 2014), dada a condição de profusão de informações em que vivemos. Nesse novo arranjo epistemológico e político, a atenção é considerada um recurso mental limitado e perecível; faltaria atenção para dar sentido a tudo a que somos expostos. Além disso, nossas capacidades atencionais seriam apenas limitadamente expansíveis, seja mediante exercícios cerebrais, que vêm recebendo o nome de neuróbica, seja pela adição de seres sentientes no planeta (Rogers, 2014). Daí o fomento de práticas dirigidas, e em escala industrial, de atração da atenção, configurando uma redistribuição assimétrica dos rendimentos de atenção. Podemos, inclusive, falar em disparidade entre os ricos de atenção e os pobres de atenção, e em camadas sociais enriquecendo pela exploração da atenção de outras (Franck, 2014).
Nota-se que o problema da atenção extrapola a simples caracterização das nossas funções cognitivas e comportamentais, e mesmo a descrição da estrutura vivida do campo fenomenal, como se faz na fenomenologia. A atenção pode ser considerada como um efeito político (Rogers, 2014; Citton, 2014), forjado em meio a ressonâncias sociais e dispositivos culturais, institucionais e técnicos. Dominique Boullier (2014, 2020) investiga, nessa perspectiva, o que chama de regimes de atenção, quer dizer, modalidades de atenção constituídas em meio a relações sociais de grande escala, e que se tornaram difundidas em meio à proliferação dos sistemas midiáticos baseados em mecanismos de imagem.
Boullier (2014, 2020) distingue e analisa, de forma esquemática e associada às sociedades capitalistas contemporâneas, quatro grandes regimes de atenção: a fidelização, o alerta, a projeção e a imersão. Os regimes de fidelização e de alerta dispõem-se como polos opostos no modelo de regimes de atenção. A fidelização refere-se à produção de condições rígidas e estratificadas de interesse, baseadas na cativação duradoura da atenção. São exemplos de fidelização a lealdade da convicção religiosa e os dispositivos comerciais em que técnicas de marketing desenvolvem ambientes protegidos no âmbito de uma mesma marca. Já o alerta concerne a uma condição permanente de estresse, calcada na produção regular de estímulos cujo intuito é instalar brechas na "imunidade construída pela fidelização" (Boullier, 2014, p. 97). São múltiplos os sinais de solicitação e de captação da atenção na condição de alerta, como os anúncios que se multiplicam nos espaços urbanos, as chamadas publicitárias que ocupam, fortuitamente, as telas dos nossos computadores, ou as cores e sons eloquentes que sustentam certas obras cinematográficas. O regime de alerta é a forma de sensibilização predominante nas mídias de massa (Citton, 2014).
No outro eixo do esquema apresentado por Boullier (2014), e que nos interessa especialmente, temos a projeção e a imersão. Neste campo, está em questão não apenas o tipo de captação da atenção e o seu caráter temporal, durável na fidelização e instantâneo no alerta, mas sobretudo a posição dos agentes no conflito da captação da atenção, com o que retornamos ao conceito de skopos. Com efeito, fala-se muito das estratégias para captar e atrair a atenção, mas pouco se discute acerca da posição dos envolvidos nesse processo, aquele que atrai, que visa o olhar do outro, e aquele que se vê atraído, conquistado, cativado (Boullier, 2020; Carbone, 2016). Nessa dinâmica pode residir algo muito próprio do telos contemporâneo, agora profundamente incrustado nas tramas do conceito de skopos.
A definição básica da projeção e da imersão proposta por Boullier (2020) é apresentada como segue:
Na projeção […], o ator atento, aquele que se concentra, conforme a definição mais comum da atenção, deve se apoderar [s'emparer] de um sujeito como de um campo de batalha, para extrair aquilo que o interessa. [...] No regime de imersão [...], o ator aceita estar sob dominação, ser capturado [pris] no interior do mundo do outro, o criador, seja ele artista, produtor de séries ou game designer. A oposição é total neste plano (p. 63, grifo nosso).
Na projeção, portanto, o ator atento domina um sujeito como em um campo de batalha. O termo projeção possui especial significação na esfera militar, e liga-se ao verbo projetar, no sentido de lançar, jogar. Trata-se, também no militarismo, da ocupação, do controle e da exploração de um alvo, um território, tendo em vista um uso antecipado. Tem-se, ainda, conforme Boullier (2020), a seleção e o controle exercidos por um sujeito, que projeta sua visão sobre um material perceptivo. O termo expressa, igualmente, a relação do predador que se concentra sobre sua presa. Voltemos, conforme indicamos, à ideia de skopos. Estamos no polo mais ativo do conceito, do sujeito que mira, que identifica e localiza seu alvo (Weber, 2005). No contexto da batalha, da guerra, aquele que é mirado torna-se suscetível de destruição por parte daquele que define e identifica o alvo. Skopos indica, igualmente, aquele que vigia, que comanda à distância, e normalmente do alto, como o mestre, que se situa acima do combate. Boullier diz que aquele que projeta não se deixa afetar: permanece em suspenso, em condição de sobrevoo. Essa organização da atenção visa propiciar as condições para a seleção de sinais, de modo a se ignorar aqueles que poderiam perturbar o observador, o decididor, o conquistador.
A projeção, tanto no sentido militar como no cognitivo, pode ser identificada como o "modo dominante de captação do mundo" (Boullier, 2020, p. 66-67) no período moderno. Os projetos e as projeções constituem programas de ação e de focalização da atenção em torno de um objetivo, "de uma visada e seus marcadores" (Boullier, 2020, p. 67). Da modernidade em diante, inúmeros suportes técnicos de projeção foram inventados, como no aprimoramento das técnicas de mapeamento geográfico, um dos emblemas do poder de racionalização moderno. A perspectiva, tal como formalizada no século XV por Leon Battista Alberti, é outro equipamento técnico de projeção, e que funciona como uma potente grade de visão. Todas as linhas de uma pintura são concentradas no olhar de um espectador exterior. O quadro funciona, então, como uma tela de projeção à distância, que mantém o espectador em posição de proteção e de visão completa. Em que pese as diferenças entre os primeiros dispositivos modernos de visão e as técnicas e mídias que vêm sendo criadas mais recentemente, pode-se dizer que estas últimas ampliam e aprofundam as possibilidades do regime projetivo, na medida em que permitem o desenvolvimento dos métodos de identificação de alvos e o aprimoramento das formas de sedução (Carbone, 2016).
No regime atencional de imersão, a posição é inversa, "exatamente simétrica em matéria de poder e de controle", diz Boullier (2020, p. 71). Mas o resultado é, em realidade, uma assimetria total, posto que os ambientes imersivos são pensados deliberadamente; eles são projetados para provocar a experiência imersiva. Digamos que a atenção do sujeito da imersão é o alvo de um sujeito projetivo, do arquiteto das estratégias de imersão. Configura-se, portanto, o "olho perfeito" de que fala Foucault (1975/2011, p. 204), em Vigiar e punir, e que se refere à desarticulação do ver e do ser visto. O sujeito da imersão encontra-se totalmente exposto ao ponto de vista do sujeito projetivo, cuja racionalidade se exprime na forma de uma agência própria aos mais variados dispositivos midiáticos e que lhes confere o caráter de "quase-sujeitos [quasi-sujets]", de que fala Mauro Carbone (2016, p. 132). É bem verdade que o sujeito da experiência imersiva também percebe o tempo todo; ele encontra-se imerso em uma experiência que explora toda a sua potência sensível, uma experiência repleta de caracteres "perceptivo-afetivos" (Carbone, 2016, p. 132). Mas a intencionalidade que fundamenta o dispositivo e que explora o comportamento do sujeito da imersão permanece invisível para este último, configurando "um olhar sem face" (Foucault, 1975/2011, p. 249). Pode-se afirmar, portanto, que o dispositivo vê sem ser visto. O que é simétrico na situação é a intensidade da experiência da imersão perceptiva, tão forte quanto a projeção. Ela pode ser bastante durável, razão pela qual configura um quadro de experiência significativo no mundo contemporâneo (Boullier, 2020). Diferentemente do modelo projetivo, contudo, na experiência de imersão perceptiva, como dizíamos, o sujeito entrega o controle da sua focalização atencional. Um bom exemplo, hoje, é o jogador de videogame: "O jogador se encontra capturado e se deixa capturar, abaixando sua barreira imunitária", afirma Boullier (2020, p. 72). O sujeito encontra-se inteiramente afetado pelo mundo no qual penetra, e isso de forma deliberada ou imposta. Mas a atenção, neste caso, não se organiza em torno de uma meta ou um alvo: ela é multifocal e integrada, centrada e periférica, tudo ao mesmo tempo. E, lembremos, mais uma vez, de que, aqui, a atenção do consumidor é o alvo.
Tipos variáveis de imersão são proporcionados, por exemplo, pelo cinema, pelo jogo de videogame, pela Web e pela televisão, que é inclusive pouco imersiva. Têm-se envolvimentos parciais ou totais, de longa ou curta duração, individualizados ou coletivos, a depender dos aparatos pelos quais se efetua a ação perceptual. Há mecanismos, hoje em dia, capazes de criar um forte ambiente imersivo, que faz apelo a todos os sentidos. Boullier (2020), ao tratar das redes sociais, por exemplo, afirma:
Os sinais das nossas plataformas de redes sociais pretendem finalmente nos atrair, elas também, para um interior. Alguns, apegados aos alertas e às notificações, podem, finalmente, viver dias inteiros absorvidos, imersos de reações em reações. Os sinais das plataformas são, em todo caso, pensados para nos fazer voltar sem cessar a este mundo sempre desperto, sempre deslumbrado por sensações, por vibrações, e não por argumentos (p. 74-75, grifo nosso).
Evidentemente, os níveis de estresse, de reatividade e de intensidade dos ambientes midiáticos, com os diferentes graus de imersão proporcionados, são projetados segundo o propósito de regular e gerir a atenção, e não de exauri-la.
Um Exercício Arqueológico-analítico
Conjugado a estes movimentos introdutórios de diagnóstico (Deleuze, 2003), cabe um breve exercício analítico. O propósito é passar por algumas indicações que permitam compreender de que modo elementos tais como a ação de mirar, a atenção - projetiva e imersiva -, o ideário da colonização, da conquista e do conquistador, puderam se misturar e se generalizar, adquirindo uma grande importância nas nossas culturas tecnológicas e midiáticas.
Vale iniciar este movimento com menção ao livro intitulado The age of the world target, da autora sino-americana Rey Chow (2006). No capítulo que dá nome ao livro, Chow afirma que o lançamento, pelos EUA, das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, no final da II Guerra Mundial, configurou um pivô no progresso da ciência e que continuou tendo impacto "em todos os aspectos da vida humana" (Chow, 2006, p. 29) após o término do conflito. A autora acrescenta que aquilo que sabemos sobre as explosões das bombas é inseparável da conhecida imagem da nuvem em forma de cogumelo. Chow (2006) pensa ser preciso "[…] explorar o significado da bomba atômica como um evento epistêmico numa cultura global na qual tudo se tornou (ou é mediado por) representação visual e realidade virtual" (p. 26-27). Dentre as pistas a que se apega nesta tarefa de compreender o significado da bomba, Chow destaca o fato dela sumarizar uma história de invenções militares na qual possui particular importância o desenvolvimento de tecnologias representacionais, principalmente de tecnologias do ver (technologies of seeing). Amparada em Guerra e cinema, de Paul Virilio (1991), Chow refere-se às afinidades entre guerra e visão. De fato, desde a I Guerra Mundial, com o desenvolvimento da aviação militar, os campos de batalha foram reconfigurados como campos de percepção visual. A preparação para a guerra podia lembrar, inclusive, a organização para um filme, visto que as futuras operações dependiam de film-makers e fotógrafos que olhassem uma região como alguém que procura locações. As vistas aéreas passaram a ser essenciais na preparação dos projetos militares. As tecnologias da visão militar, desde então, produzem imagens operatórias, imagens que não simplesmente representam objetos, mas que fazem parte de operações projetivas, que visam à ação, e que, portanto, marcam as coisas como alvos (Chamayou, 2013). Ao mesmo tempo, teve início, desde o final da I Guerra a "fusão/confusão", referida por Virilio (1991, p. 27), entre a tecnologia militar e o cinema, posto que documentos cronofotográficos aéreos passaram a ser veiculados ao grande público como um espetáculo inédito, numa espécie de prolongamento da guerra.
Décadas depois do segundo grande conflito mundial, constatávamos a plena normalização da guerra e da tecnologia de guerra, inclusive entre os perdedores. O Japão do pós-guerra, proibido de efetuar avanços militares, entrou numa nova competição, "a competição para bombardear o mundo com um tipo diferente de implosão - informação", escreve Chow (2006, p. 34). Segundo a autora, a precedência do "ver-como-destruição" e a normalização da "tecnologia-como-informação" estão ligadas a um "deslocamento epistêmico [epistemic shift]" que vem ocorrendo gradualmente a partir de tecnologias rápidas que "virtualizam o mundo" (Chow, 2006, p. 34). A guerra foi absorvida na fábrica das nossas comunicações diárias. Participamos da guerra ao utilizarmos monitores de televisão e de computadores, telefones celulares e outras tecnologias a eles associadas, quando nos lançamos na rede de atividades projetivas e imersivas.
O trabalho de Chow evidencia um amálgama entre ver, destruir, ou alvejar, e a virtualização do mundo. Alguns estudos detalham este processo, e revelam as camadas fundamentais de imperativos estratégicos (Foucault, 2001) ligados aos dispositivos de percepção contemporâneos. Bernard Geoghegan (2019), por exemplo, descreve e analisa a emergência de uma "ecologia de operações" (p. 59) baseada em computational screening, algo que pode ser traduzido como triagem computacional. O autor precisa como gráficos digitais e a visualização computadorizada surgiram da necessidade de integrar respostas humanas em tempo real a sistemas de radar computadorizados no seio das atividades militares norte-americanas nas primeiras décadas da Guerra Fria. Vê-se, com base em sua investigação e na trama de trabalhos mobilizados pelo autor, como um complexo sistema de pesquisas foi posto em marcha, reunindo instituições governamentais de defesa e de pesquisa, assim como laboratórios universitários, e estimulando a reunião e a cooperação de profissionais especializados em tecnologias de radar, ciência da computação, psicologia, imagens móveis, fisiologia e geografia, entre outros.
As demandas militares nos campos da defesa aérea e naval, naquele momento, envolviam, além da proteção da integridade do território nacional norte-americano, a expansão das fronteiras temporais e espaciais de supervisão e de manejo beligerante. As dificuldades para se obter esta inspeção do espaço exigiram a busca por novas tecnologias de visão atreladas a sistema de controle da performance humana mais eficazes. O lapso da defesa aérea estadunidense em Pearl Harbor continuava na memória (Rogers, 2014).
Ainda durante a II Guerra Mundial, deu-se um rápido desenvolvimento das técnicas de radar que desaguou em diferentes modelos de imagens eletrônicas (radar data display). O princípio técnico do radar, acrônimo advindo da expressão radio detection and ranging, é razoavelmente simples: trata-se de sinais de energia eletromagnética que, propagados por uma antena, retornam ao ponto de emissão após se depararem com os mais variados obstáculos, de montanhas a aviões. Os obstáculos tornam-se telas, por assim dizer, para os sinais de energia dissipados. No contexto militar, os obstáculos podem ser concebidos como fins, dado que o objetivo do dispositivo de radar é definido como a detecção de alvos de interesse, derivando daí informações como a sua distância, suas coordenadas angulares, sua velocidade e as suas características de reflexividade (Eaves, 1987). Na medida do conhecimento técnico e empírico, os sinais a serem emitidos podem ser ajustados às características de respostas desejadas, selecionando o tipo de alvo esperado.
O operador dos aparelhos, principalmente quando se fala dos primeiros modelos de radar, comportava-se como uma tela adicional, responsável por filtrar sinais de interesse em meio aos ruídos, termo técnico com o qual se remete a tudo aquilo que não interessa em determinado contexto de percepção e de ação orientado por radares. Além disso, o operador dava início a um complexo processo de tratamento das informações, visto que, a depender do tipo de alvo, sua posição geográfica apenas poderia ser mais corretamente estabelecida com o auxílio de recursos estatísticos (Eaves, 1987; Barret Jr., 1987; Geoghegan, 2019). Vale ressaltar que, na vigilância por radar, o problema da identificação precisa dos alvos envolve, habitualmente, o fato do alvo encontrar-se em movimento. Durante a II Guerra Mundial, soluções científicas e tecnológicas, como o Norden bombsight, foram rapidamente desenvolvidas no sentido contrário, o de aumentar a precisão dos bombardeios aéreos, que deveriam atingir alvos estacionários a partir de veículos em movimento (Kaplan, 2006).
Os desafios práticos que se delinearam, no pós-guerra, foram, principalmente, os de aprimorar a transposição das ondas de rádio em dispositivos eletrônicos mais eficazes, e criar aparelhos visuais (visual displays) capazes de permitir uma melhor integração entre as funções e os dados apresentados pelas máquinas e o corpo humano.
Os trabalhos científicos e técnicos convergiram em torno da criação e o aprimoramento do SAGE, Semi-Automatic Ground Environment, um sistema computadorizado de defesa por radar, desenvolvido no final dos anos 1950 no âmbito das forças militares estadunidenses. Um problema parecia central na criação do sistema: justamente, o da relação entre visão e computação. Certos teóricos não consideravam o computador, com seus sinais eletrônicos, como um dispositivo visual. Outros, como Joseph Licklider, entreviam na tela do computador, enquanto superfície de exposição, ou visualização (display surface), um dos pontos vitais para a efetiva interação entre computadores mecânicos e usuários humanos. Seu artigo intitulado Man-computer symbiosis (Licklider, 1960) adquiriu o status de referência unificadora na ciência da computação da época. Licklider tinha experiência como psicólogo da percepção - seus trabalhos neste campo se deram predominantemente em torno da percepção auditiva e da percepção da fala -, e participou ativamente do projeto da interface do SAGE, uma das primeiras a mostrar informações em uma unidade de exposição visual (VDU - visual-display unit) (Boden, 2006, p. 829).
A interface do SAGE ia muito além da simples apresentação de dados visuais. As conexões entre o sistema digital e o aparato sensório do usuário foram bastante expandidas por meio de uma mesa (console) multimídia interativa, repleta de telas, botões, notificações sonoras, além de telefone, e até cinzeiro. Surgia um padrão de interatividade digital que permitia controle, comando, comunicação e trabalho em equipe, tudo em uma atmosfera de ansiedade difusa (Geoghegan, 2019; Boden, 2006). Cumpre sinalizar, aqui, nessa reunião de máquinas de imagem, corpos e ansiedade, um importante estrato de agenciamentos ligado ao que Foucault (2001), ao tratar da ideia de dispositivo, chama de "processos de sobredeterminação funcional" (p. 299) e que concernem à ressonância de efeitos, desejados ou não, ligados à instauração de práticas estratégicas.
A psicologia desta nova interface digital, centrada em imagens eletrônicas, era calcada na vigilância de extensos horizontes. Nessa atividade, mediada pelos novos computadores, a monotonia ligava-se à necessidade de um estado de alerta permanente. A atenção exigida era constante e precisa; os operadores deveriam ser capazes de tomar decisões rápidas em contextos de eventos inesperados e de crise (Geoghegan, 2019). Os estudos que embasavam esta nova disciplina do corpo eram orientados pela preocupação em conhecer em que medida, e com qual acurácia, um sujeito poderia entender e extrair informações de dispositivos computacionais. Fatores como estresse, ambiguidades visuais, estimulação acústica e atenção seletiva, entre inúmeros outros, precisavam ser investigados no contexto de corpos humanos expostos durante horas ao novo aparato de estimulação sensório-motora. O conhecimento desse novo contexto ambiental tornava-se um problema urgente para engenheiros, psicólogos, fisiólogos, tanto para que se pudesse aprimorar continuamente o design dos novos computadores como para treinar a adaptação dos sujeitos às suas novas tarefas. Nas tramas de novas práticas sociais, como a monitorização de telas de radar, e da formação de conhecimento, a atenção, é oportuno assinalar, tornou-se, progressivamente, um fator funcional para um complexo de relações sociais, de sistemas econômicos, de testes experimentais e de teorias que faziam dela uma faculdade humana universal (Rogers, 2014).
Uma das contribuições centrais do trabalho de Geoghegan (2019) encontra-se na proposição, embasada no seu esforço arqueológico, de que começava a se conformar naquele período uma "estética marcial" (p. 61) que anima as economias da atenção nas culturas digitais do século XXI. Em meio às urgências do estado de guerra de meados do século XX, as estratégias dominantes fizeram convergir visão, território e controle em aparatos que, centrados em imagens interativas, registram "corpos, atenção e cálculo na produção do espaço" (Geoghegan, 2019, p. 60). Trata-se da organização de "um novo tipo de disposição psíquica e estratégica" (Geoghegan, 2019, p. 85), de um novo "aparato psíquico" (Geoghegan, 2019, p. 87), ou de um "novo paradigma sócio-técnico" (Geoghegan, 2019, p. 87), em que se transmite uma temporalidade de vigilância constante e de crise. A figura representativa deste paradigma é a própria tela digital, de caráter processual, interativo, modular e temporo-crítico. Na interação com a tela, a percepção envolve-se numa lógica de triagem (screening) contínua, de regulação, de registro, de análise do espaço, de mapeamento e de operações temporo-sensíveis segundo as quais se esperam continuamente sinais novos, aos quais, por sua vez, deve-se estar sempre preparado a responder.
A difusão social dessa estética se dá no contexto do que Caren Kaplan (2006) chama de rede militar-industrial-midiática da tecnociência. A empresa responsável pelo desenvolvimento do software do SAGE, a Systems Development Corporation (SDC), por exemplo, teve bastante sucesso ao levar seu modelo a outros clientes, como o Departamento de Polícia de Los Angeles, a NASA, e o Departamento de Transportes dos EUA. No campo da mídia de entretenimento, os primeiros jogos de videogame, como Tennis for two (1958), Pong (1972), Space Invaders (1978) e Radar Scope (1979) nada mais eram do que exercícios digitais de interceptação aérea modificados para fins recreacionais (Geoghegan, 2019). Vale retornar a Chow (2006), que lembra que, em 1991, na Guerra do Golfo, a guerra já não podia ser lutada "sem as habilidades de jogar videogames" (p. 35). As manobras de batalha aérea, por parte das forças estadunidenses, já eram mediadas por telas de vídeo (video screen) e realizadas por soldados "habituados, quando adolescentes, a jogar videogames em casa" (Chow, 2006, p. 35).
Prolongamentos
Com base no que foi explorado até este ponto, já há algo conjuntural a se dizer sobre uma política da visão que atrela o controle da atenção, a captação de alvos e tecnologias de percepção. Se observa, no tocante aos controladores de radar da aviação militar estadunidense, por exemplo, uma dinâmica de desdobramento da dimensão escópica (skopos). Os psicólogos voltam-se ao estudo da sua atenção no intuito de torná-la disponível ao trabalho com telas de computador, e os controladores voltam-se à vigilância de alvos. De um lado, a atenção vai sendo constituída como objeto de discurso científico, como objeto de conhecimento e de manejo técnico, conforme a dinâmica dos corpos dóceis descrita por Foucault (2011). De outro, põe-se em prática uma nova forma de olhar, mediada por imagens eletrônicas de longo alcance, e que institui seus objetos como alvos, atualizando o que o filósofo, no mesmo trabalho, chamou de atenções móveis.
A continuação deste nosso exercício pode centrar-se no estudo de mais uma etapa deste processo: a inter-relação que se estabeleceu, a partir dos anos 1960, entre o aperfeiçoamento, mediado pelas tecnologias de satélite, da prática de mirar com armas e das práticas de mirar em campanhas de marketing. Trata-se, nestes casos, de compreender as intersecções entre a constituição dos sujeitos como alvos (targets, cibles) de armas e de processos comerciais. Kaplan (2006), por exemplo, mostra como tecnologias de localização geográfica, tais como o Geographic Information Systems (GIS) e o Global Positioning System (GPS), ambas desenvolvidas no âmbito militar, passaram a embasar discursos e práticas de precisão no âmbito do marketing. O resultado, segundo ela, é a constituição de sujeitos adaptados a uma cultura visual militarizada.
O vocabulário do alvo se estabelece no marketing nos anos 1990, graças à televisão a cabo e, principalmente, à Internet. A partir destes dispositivos, torna-se plenamente possível visar nichos de consumidores sem perder de vista o grande público. Começa-se a falar em "marketing individualizado de massa" (Le Texier, 2022, p. 165). A ideia é simples: se não é possível forçar as pessoas a verem ou a escutarem alguma coisa, é possível, contudo, saber quem tem mais chances de perceber a sua mensagem (Le Texier, 2022). Mas o conceito é antigo, e fazia parte das principais estratégias das primeiras agências publicitárias norte-americanas que, desde os anos 1920, defendiam uma propaganda científica. Ao lado dos princípios da engenharia de demanda, que envolvia a criação de desejos por produtos que sem a propaganda não teriam razão para existir - Listerine para mal-hálito, por exemplo -, e da fidelização a uma marca, como Cadillac e Coca-Cola, a propaganda dirigida (ciblé, targeted advertisements) já alimentava estes laboratórios privados de captura da atenção (Wu, 2016). Mulheres, grupos étnicos e crianças têm sido, desde o início, os principais objetos do marketing ciblé, ou dirigido (Le Texier, 2022).
Caren Kaplan (2006) e Tim Wu (2016) enfatizam o papel de Jonathan Robbin, sociólogo da New York University, no desenvolvimento do marketing ciblé. Com base em sua experiência no estudo de comunidades como ecossistemas, Robbin fundou, nos anos 1960, a General Analytics Corporation, mais conhecida como Claritas. A empresa explorava o potencial comercial de uma nova ciência, a geodemografia, que, a partir de técnicas computadorizadas, possibilitadas pelo Geographic Information Systems (GIS), mapeava subgrupos da população estadunidense por código postal e bairros. A Claritas especializou-se, então, na realização de projetos publicitários baseados na identificação geodemográfica de diferentes aglomerações sociais interativas que, em função, não de marcadores clássicos, como sexo e idade, mas de suas características partilhadas de práticas de consumo, de entretenimento e de educação, por exemplo, poderiam ser miradas por campanhas específicas.
De qualquer modo, o que parece orientar o complexo militar-industrial e de entretenimento é a geração de uma racionalidade que ampara discursos e práticas de precisão. O desenvolvimento da Internet e dos cálculos computadorizados, os chamados algoritmos, vem levando a prática do target marketing, assim como a vigilância militar, a extremos de normatização e controle a partir de padrões de classificação e, mesmo, de predição (Wu, 2016; Joler & Pasquinelli, 2020). O projeto de uma cartografia computadorizada das vidas, baseada em captura de imagens, descrição de acontecimentos e registro de comportamentos, uma "crônica meticulosa de todos os fatos e de todos os gestos", como escreve Grégoire Chamayou (2013, p. 63), constitui hoje um eixo epistêmico nos campos científico, militar, político e econômico.
Considerações Finais
O conceito de skopos serviu-nos, portanto, de base para a tematização da associação contemporânea entre visão, conhecimento e mira. A análise do complexo da atenção, mais especificamente dos regimes de projeção e de imersão, e de trabalhos centrados no exame da convergência entre visão, precisão, vigilância e destruição, possibilitou a problematização de um dispositivo escópico, de uma dialética entre mirar e ser um alvo. Trata-se, esta é a hipótese, de uma política do sensível assentada na prescrição de alvos, e que, ao longo do último século, vem se consolidando na forma de uma norma social, de uma instituição. O que se convencionou chamar de economia da atenção se constitui como manifestação da associação entre visão e assujeitamento, no âmbito do deslocamento de estratégias militares a estratégias comerciais, baseadas nas tecnologias de virtualização do mundo. A estrutura militar-industrial e de entretenimento, fundada em dispositivos de precisão, revela, ademais, a participação das ciências, especialmente as mais diretamente vinculadas ao estudo da percepção, no aprimoramento dessa política do sensível.
A delimitação de um dispositivo perceptual de mira favorece, pois, o estudo crítico-ético da percepção e da atenção a partir do reconhecimento (1) de uma dinâmica escópica específica, (2) de um sentido histórico ligado a esta conjuntura, e (3) de um aporte epistemológico e ético associado às práticas científicas que sustentam o dispositivo como um todo. Com base no dispositivo de identificação de alvos é possível estudar a atenção sob um novo prisma, que revela uma dupla condição: a do olhar atento que projeta alvos segundo estratégias de ordem militar, social, econômica e comercial, e a do sujeito que é olhado, quiçá vigiado e ameaçado, como um alvo segundo aquelas forças projetivas, e que se encontra enredado por elas, porventura até imerso nelas. Temos, portanto, a configuração de uma forma de atenção projetiva e de um sujeito, objeto desta atenção. No caso da economização da atenção, ou seja, de um regime social que identifica na atenção um princípio de raridade econômica, é a própria atenção do sujeito que se constitui como alvo, fazendo dele ora um sujeito fascinado, absorvido por sensações espetaculares e lançado em ações repetitivas, ora um sujeito distraído, aberto ao sabor das mais variadas forças de atração sensível às quais se vê exposto. Esse caminho de análise permite, igualmente, e a partir da dinâmica de fixar o alvo e de ser um alvo, a investigação de um sentido histórico ligado às tecnologias de visão e nos leva, especialmente, conforme verificamos em nosso estudo, ao papel da ciência militar no desenvolvimento de grande parte dos dispositivos de imagem com os quais lidamos cotidianamente.
O que se constata é que, a partir do domínio militar, os dispositivos de visão vêm alcançando um elevado grau de penetrância social. A projeção de alvos ampara-se em dispositivos técnicos de imagem, que acarretam o surgimento de novas práticas estratégicas e de uma série de contingências funcionais atreladas a elas. Estas, no caso, referem-se ao aperfeiçoamento de técnicas de computação com fins militares e cujos efeitos advêm da junção, principalmente, de máquinas de imagem, de corpos e de mecanismos de ansiedade. Institui-se, em meio a este aparato, um paradigma técnico cuja difusão social se dá no contexto de redes tecnocientíficas que envolvem, além dos complexos militares, complexos industriais e midiáticos.
O terceiro e último aspecto a se sublinhar acerca da investigação do dispositivo perceptual de mira é a importância de se discutir o papel das ciências, especialmente a psicologia, no desenvolvimento das tecnologias de imagem e comportamentais, vinculadas à interação dos humanos com as máquinas. Como avaliar e pensar a participação dos cientistas na tecnologia militar e na sua difusão social e comercial? Como pensar o lugar da psicologia no estabelecimento de estratégias projetivas, imersivas, de alerta e de fidelização da atenção? Tem-se, aqui, uma dimensão não apenas epistemológica, mas principalmente ética, associada às práticas científicas que sustentam o dispositivo como um todo, sobretudo às ciências psicológicas, e que requer estudos sistemáticos e aprofundados.
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Endereço para correspondência
Danilo Saretta Verissimo - danilo.verissimo@gmail.com
Recebido em: 14/05/2023
Aceito em: 17/11/2024
Financiamento: O trabalho foi realizado no bojo de pesquisa financiada pela FAPESP (Auxílio Regular a Pesquisa, processo 2020/11753-3; Bolsa de Pesquisa no Exterior, processo 2021/07090-1) e pelo CNPq (Bolsa de Produtividade, processo 310519/2021-7).
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