Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e75447, doi:10.12957/epp.2024.75447
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Funções Executivas, Traços de Psicopatia e Comportamento Sexual em Adolescentes Privados de Liberdade em Rondônia

 

Executive Functions, Psychopathy Traits and Sexual Behavior in Adolescents Deprived of Liberty in Rondônia

 

Funciones Ejecutivas, Rasgos Psicopáticos y Conducta Sexual en Adolescentes Privados de Libertad en Rondônia

 

Pedro Vasconcelos Corrêa a, Rosa Maria Martins de Almeida a

a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Foram avaliadas as funções executivas, traços de psicopatia, idades da primeira relação sexual e trabalho de adolescentes em conflito com a lei. As hipóteses foram que haveria diferenças entre primários e reiterantes e o papel preditor destas variáveis para o ato. O objetivo geral foi avaliar essas funções, comparar intragrupo, identificar associações e predições para a infração. Foram avaliados 109 adolescentes institucionalizados por atos graves, sendo a média de idade de 16,5 anos. Instrumentos utilizados: Wisconsin de Classificação de Cartas, a Escala Hare Psychopathy Checklist-Revised e protocolo neuropsicológico. A análise de variância diferenciou os grupos em oito variáveis, sendo que nos reiterantes houve maiores traços de psicopatia e idade da primeira infração. A idade da primeira relação sexual não diferenciou os grupos, caracterizando-os como precoce exposição. E, as funções executivas explicaram 12,1% no desfecho infração. Houve associações com a história de vida em contexto de adversidades, indicando que as funções executivas em desenvolvimento podem não protegê-los de influências negativas adversas. Realidade que acentua o papel do desenvolvimento neurobiológico nas avaliações, acompanhamentos e intervenções em situação de institucionalização de privação de liberdade socioeducativa de adolescentes por atos com grave uso de violência.

Palavras-chave: flexibilidade cognitiva, controle inibitório, traços de psicopatia, comportamento sexual, conflito com a lei.


ABSTRACT

Executive functions, psychopathic traits, age of first sexual intercourse and work of adolescents in conflict with the law were evaluated. The hypotheses were that there would be differences between r first-time and repeat offenders and the predictive role of these variables for the act. The general objective was to evaluate these functions, compare intragroups, identify associations and predictions for the infraction. 109 adolescents institutionalized for serious acts were evaluated, with an average age of 16.5 years. Instruments used: Wisconsin Card Rating Scale, the Hare Psychopathy Checklist-Revised Scale, and the neuropsychological protocol. The analysis of variance differentiated the groups in eight variables, with the repeat offenders having greater traits of psychopathy and age at the first infraction. The age at first sexual intercourse did not differentiate the groups, characterizing them as early exposure. Furthermore, executive functions explained 12.1% of the infraction. There were associations with life history in context of adversity, indicating that executive functions in development could not protect them from negative adverse influences. A reality that emphasizes the role of neurobiological development in assessments, monitoring and interventions in situations of institutionalization of deprivation of socio-educational freedom of adolescents due to acts involving serious use of violence.

Keywords: flexibility, inhibitory control, psychopathic traits, sexual behavior, conflict with the law.


RESUMEN

Se evaluaron funciones ejecutivas, rasgos de psicopatía, edad de primera relación sexual y trabajo de adolescentes en conflicto con la ley. Las hipótesis fueron que existirían diferencias entre primarios y reincidentes y el papel predictivo de estas variables para el acto. El objetivo general fue evaluar estas funciones, comparar intragrupos, identificar asociaciones y predicciones para la infracción. Se evaluaron 109 adolescentes institucionalizados por hechos graves, con una edad promedio de 16,5 años. Instrumentos utilizados: Wisconsin de Clasificación de Cartas, la Escala Hare Psychopathy Checklist-Revised y protocolo neuropsicológico. El análisis de la varianza diferenció los grupos en ocho variables, presentando entre los reincidentes mayores rasgos de psicopatía y edad de la primera infracción. La edad de la primera relación sexual no diferenció los grupos, caracterizándolos como exposición temprana. Y las funciones ejecutivas explicaron 12,1% del resultado de las infracciones. Hubo asociaciones con la historia de vida en contexto de adversidades, lo que indica que el desarrollo de funciones ejecutivas puede no protegerlos de la adversidad. Una realidad que enfatiza el papel del desarrollo neurobiológico en las evaluaciones, seguimientos e intervenciones en situaciones de institucionalización de privación de libertad socioeducativa de adolescentes por actos que impliquen uso grave de violencia.

Palabras clave: flexibilidad cognitiva, control inhibitorio, rasgos psicopáticos, conducta sexual, conflicto con la ley.


 

 

O problema da violência social impacta a sociedade de diferentes maneiras, causa insegurança e ocasiona a necessidade de pesquisas nessa temática. Um aspecto dessa realidade consiste em estudar a personalidade de Adolescentes em Conflito com a Lei (ACL) autores de atos infracionais por ser um tema crucial ao entendimento da violência interpessoal juvenil (Stepanyan et al., 2020). No Brasil, ACL ao serem privados de liberdade, necessitam de uma avaliação psicossocial da sua personalidade e do seu comportamento face às necessidades do acompanhamento técnico em instituições socioeducativas (Achá, 2011).

Dimensionar neuropsicologicamente os ACL possibilita abordar o desenvolvimento biológico em interação com o ambiente que, nesse contexto, encontra-se diretamente implicado em socializações vividas nas instituições de privação de liberdade (Orendain et al., 2022). Cenário que situa a importância da compreensão de funções da personalidade e das influências ambientais que podem agir negativamente, quando em interação com mecanismos de neuroplasticidade essenciais ao controle emocional (Holz et al., 2023).

Para compreender o indivíduo nesse contexto, implica avaliar os níveis neuropsicológicos e situá-los como auxiliares no processo de reabilitação em cenários da justiça juvenil, do desencarceramento e da escolha de recursos da comunidade na promoção de processos de desenvolvimento na adolescência (Orendain et al., 2022). Assim, para além da biologização da conduta e, considerando o cérebro em interrelações, ao abordar os níveis neuropsicológicos de ACL, buscou-se descrever: as Funções Executivas (FEs), os Traços de Psicopatia (TP) e relações destes domínios com o Comportamento Sexual (CS), entendidos a partir da dimensão da idade da primeira relação sexual que, juntos, carecem de estudos atuais.

Enfatiza-se que ACL apresentam um cérebro em desenvolvimento e vulnerável às adversidades (Tetteh-Quashie & Risher, 2023), cujos níveis de funcionamento podem auxiliar na compreensão de trajetórias e comportamentos que seguem constructos biológicos de conectividade funcional. De modo que processos de privações em instituições podem modificar a conectividade cerebral e impactar na formação maturacional e hierárquica do cérebro e dos seus funcionamentos de autocontrole subjacentes (Sheridan et al., 2022). Portanto, a adolescência se constitui na relação entre maturação (fisiologia) em interação com o ambiente (stress, sensation seeking e CS), que participam da constituição de bottom-up executivos (Tieskens et al., 2022); sendo necessário, portanto, identificá-los em ACL.

As funções executivas

No entendimento de trajetórias antissociais, as FEs apresentam um papel fundamental (Brown & Yoder, 2022). Sabe-se que há diferenças quanto ao grau de envolvimento infracional e que fatores de prejuízo na regulação emocional e controle executivo compõem os perfis com maior gravidade (Galinari & Bazon, 2020; Moffitt, 2020). Contexto este indicativo da necessidade de conhecer as FEs para descrever a adaptação de ACL ao ambiente.

Na conceituação das Fes destacam-se as habilidades de memória de trabalho, flexibilização e inibição (Diamond, 2013), estas podem ter participação emocional (FEs quentes: na tomada de decisão em contextos afetivos que são desempenhadas em circuitos orbitofrontais do córtex) e funções cognitivas (FEs frias: planejamento, memória operacional, abstração e resolução de problema, com participação do córtex dorsolateral) (Zelazo et al., 2016).

Na avaliação das FEs utiliza-se o Teste Wisconsin de Classificação de Cartas (WCST) (Cunha et al., 2005), que avalia os elementos de tomada de decisão em contextos modificáveis. No estudo das FEs considera-se, também, a influência da idade e a ocorrência de desenvolvimento que ocorre dos aspectos frios em direção aos quentes (Zelazo et al., 2016), sendo os padrões de mudanças em redes de conexões subjacentes indicativos de hierarquias de funcionamento cerebral (Sheridan et al., 2022) e suscetíveis a experiências individuais.

A complexidade das FEs pode ser dimensionada considerando os processos de inibição, flexibilização, planejamento e autocontrole, nos quais se verifica a presença de déficits em ACL (Borrani et al., 2015; Fine et al., 2016). No aspecto da flexibilidade cognitiva, observa-se também que esta função atua como fator de proteção para a influência negativa de pares (Stepanyan et al., 2020). Com isso, destaca-se a importância de conhecer as FEs em ACL face à descrição dos seus aspectos em trajetórias infracionais. No Brasil, Achá (2011) diferenciou dois perfis de ACL (primários e reiterantes), sendo presentes em ambos déficits em FEs. Portanto, emergiu-se a necessidade de identificar as FEs e suas relações com aspectos da personalidade e do comportamento no público ACL.

Os traços de psicopatia e adversidades de desenvolvimento (idades da primeira relação sexual e do início de trabalho)

A conceitualização dos ACL perpassa a descrição dos comportamentos não adaptativos, como a violação de regras sociais e o uso de emoções negativas. Estes elementos, junto à trajetória de vida, podem assinalar a importância de compreendê-los como traços e sendo preferidos às categorias nosológicas que podem atuar para cristalizar a característica de cérebro em desenvolvimento na adolescência (Borrani et al., 2015; Fine et al., 2016). Deste modo, TP são entendidos multifatorialmente e indicam "características de personalidade e de conduta persistentes em pessoas que apresentam as condições prototípicas da psicopatia e que desta forma são mais sujeitas à reiteração criminal" (Morana, 2011, p. 14), ou seja, indicam tendências, mas não cristalizam as ações; sendo, portanto, utilizáveis sem que atuem para a psicologização de ACL.

Na avaliação de personalidade em contextos jurídicos brasileiros, utiliza-se a Escala Hare (Psychopathy Checklist Revised — PCL-R), que foi desenvolvida por Robert D. Hare, sendo a versão brasileira utilizada com adultos (Morana, 2011). Este instrumento mensura os TP em dois fatores (emocional: superficialidade, falsidade, insensibilidade/crueldade, ausência de afeto, culpa, empatia e remorso; e, o comportamental: instabilidades de comportamento, impulsividade e estilo de vida antissocial) (Morana, 2011). O uso desse instrumento, no entanto, precisa considerar o contexto criminal brasileiro marcado pela desigualdade socioeconômica e seletividade racial, para não se produzir dados individualizantes, estigmatizadores e desconexos do ambiente prisional adverso que podem atuar criando engajamentos em atos infracionais, para além do indivíduo.

Acredita-se que a PCL-R utilizada como instrumento de pesquisa em ACL pode proporcionar a compreensão da delinquência autorrelatada e oficial (Morana, 2011). Sabe-se que TP elevados associam-se com dificuldades no reconhecimento emocional, agressão reativa, precoce idade de início no ato infracional e atuam na previsão da reiteração infracional (Achá, 2011; Castellana, 2014; de Barros et al., 2013; Pechorro et al., 2019). Deste modo, ao se considerar a importância da avaliação dos TP em ACL, destaca-se a necessidade de compreendê-los, diferenciando-os quanto ao critério de primeiro ato e de reiteração. Como também, há lacunas no entendimento de aspectos das FEs e TP face às adversidades vividas que, em conjunto, culminaram em atos de violência.

No contexto neurocientífico, vivências como o uso de drogas, negligências, a busca de sensações e a privação de liberdade em instituições, contribuem para mudanças no nível cerebral (Tetteh-Quarshie & Risher, 2023; Sheridan et al., 2022; Tieskens et al., 2022; Orendain et al., 2022), realidade que adverte para a importância de considerar esses fatores na compreensão do ato infracional ocasional e da delinquência (Brow & Yoder, 2022).

Logo, ao serem abordadas as experiências precoces adversas (exposição a violência comunitária e familiar) é importante estudar a relação entre a funcionalidade cortical e o ambiente adverso (Belsky et al., 2020). Verifica-se, por exemplo, que o ambiente adverso desempenha um papel preponderante sobre a maturação precoce (puberdade feminina) e, portanto, salienta para o estudo concatenado das FEs, TP e marcadores da experiência individual (Hamlat et al., 2021). Assim, ao caracterizar as adversidades a partir das idades da primeira relação sexual e de início do trabalho, problematiza-se a realidade de vida presente em trajetórias infracionais de ACL e objetiva-se compreender esses elementos e o funcionamento neuropsicológico. Em resumo, atentou-se a uma perspectiva de avaliar a relação ambiente e cérebro (Andersen et al., 2021; Belsky et al., 2020) para conhecer as FEs, TP, CS e suas associações com o desfecho infracional em ACL.

Assim, para descrever as FEs, TP e CS (idade da 1ª relação sexual e de início do trabalho), com ACL autores de atos com uso grave de violência, escreveram-se as hipóteses: I. Essas características diferenciam-se no critério primário e reiterante no sistema socioeducativo; II. Esses níveis estão associados entre si e participam como preditores da situação de privação de liberdade. Deste modo, foram objetivos da pesquisa: a) Avaliar as FEs, TP e CS (idades da 1ª relação sexual e de início do trabalho); b) Comparar ACL primários (uma passagem no sistema socioeducativo) daqueles reiterantes (mais de uma passagem) nesses domínios; e, c) Identificar associações entre FEs, TP e CS (idade da 1ª relação sexual e de início do trabalho) e predição destas variáveis para o ato infracional.

 

Método

Participantes

Trata-se de um estudo quantitativo transversal, componente três de um projeto de pesquisa misto, sequencial e explanatório com ACL privados de liberdade por atos infracionais com grave uso de violência, na cidade de Porto Velho-RO, sendo que da fase inicial com n=159 (fase 1 da pesquisa empírica geral, com estudo do tema uso de drogas, raiva e impulsividade), foram selecionados n=109 ACL para a avaliação das FEs e TP. Deste modo, a amostra final do estudo foi composta por 109 adolescentes na faixa etária de 13 a 19 anos (M = 16,5 e DP = 1,3), com privação de liberdade de 1 a 1020 dias (M = 117,4 e DP = 210,7), sendo 70,6% por atos com uso de arma de fogo. Desses indivíduos, 98,1% declararam-se do gênero masculino, 9,2% feminino e 2,8% transsexual. Quanto ao perfil socioeconômico da amostra, 59,6% provêm de famílias na classe D e E, e, 40,4% abaixo da classe B2. Aspectos de fracasso escolar (reprovação e/ou abandono) estiveram presentes em 89,9%; e, no aspecto cor, 19,3% declararam-se negros, 60,6% pardos e 19,3% brancos. Relativo à família, 18,5% moravam com o pai e a mãe juntos, e 56,8% com apenas um dos genitores. Fatores de risco como o uso de drogas no mês anterior ao ato infracional esteve presente em 76,1%, sendo o maior uso na vida para maconha 91,7% e para cocaína 54%. Quanto a autopercepção de agressão no ato infracional, os adolescentes primários relataram apenas uso de agressão física 22% (n = 24). Os reiterantes, qualificaram uso de agressões do tipo física, 9,2% (n = 10), verbal, 11,9% (n = 13) e psicológica, 4,6% (n = 5). Globalmente, a amostra indicou a percepção de não uso de violência como maior frequência 52,% (n = 57).

Instrumentos

O protocolo neuropsicológico investigou aspectos de controle inibitório, flexibilização, planejamento e atenção seletiva, que compõe as FEs (Lezak et al., 2012; Strauss et al., 2006).

a) Teste Wisconsin de Classificação de Cartas (WCST). Avalia a abstração e a capacidade de modificação de estratégias cognitivas. É composto por 128 cartas-resposta, em que as cartas-estímulos são configuradas em cor, forma e número, o avaliando recebe um feedback quanto ao correto uso do princípio de classificação vigente (Cunha et al., 2005).

b) Stroop Color Test. No Brasil, Teste Stroop, versão Victória (VST). Composto por 24 estímulos nas formas retângulo, palavras (cada, nunca, hoje e tudo) e cores (marrom, azul, rosa e verde), dispostos em tamanho A4 e exibidos na tela de computador. Os participantes foram convidados a ler os estímulos, no menor tempo que conseguiam. E, registrou-se o total em segundos e o número de erros (Achá, 2011; Banaskiwitz, 2012).

c) Trail Making Test (TMT). No Brasil:Teste de Trilhas A e B. No qual os participantes ligam letras em sequência alfabética, na forma A. E, na forma B, alternam entre número e letra, sendo ambos em ordem crescente numérica e alfabética. Nesta atividade, mensurou-se o número total de acertos, de erros e o tempo total de execução (Bolfer, 2014; Strauss et al., 2006).

d) Controlled Oral Word Association (COWA). No Brasil, Teste de Associação de Palavras (F, A e S). Avalia a fluência verbal, na forma Fonológica (com uso das letras F, A e S) em que se adotou o tempo de um minuto para a livre expressão de palavras iniciadas pelas letras e sendo a única regra não poder serem nomes de pessoas ou derivações diminutivo e aumentativo. Critérios estes também utilizados no tipo fluência semântica categórica (animais e frutas), que poderiam ser com qualquer letra. Em ambas as tarefas, utilizou-se o tempo máximo de um minuto, computado o número total atingido (Achá, 2011; Banaskiwitz, 2012).

e) Teste de Cancelamento. Utilizando as quatro formas de cancelamento (letras e símbolos; estruturados e randomizados). Neste se verificou o tempo de execução e o número total de erros (Cambraia, 2003; Achá, 2011; Banaskiwitz, 2012).

f) Escala de Inteligência Wechsler. Avaliação da memória operacional com uso do subteste dígitos (Wechsler, 2004).

g) Escala de Inteligência Wechsler Abreviada (WASI). Utilizada na mensuração dos aspectos de QI verbal, execução e total (Trentini, Yattes & Heck, 2014).

h) Questionário socioeconômico. Composto por questões sobre a trajetória infracional e da avaliação dos aspectos sociodemográficos.

i) Hare Psychopathy Checklist-Revised (PCL-R). É uma entrevista estruturada com preenchimento posterior da escala que possui 20 itens que auxiliam na identificação de TP. O teste apresenta ponto de corte de 23 (IC = 21,6 a 24) para psicopatia, sendo a média total 28,63 (IC = 26,9 a 30,5) pontos para adultos brasileiros, com sensibilidade 84,8% e especificidade de 100% quando comparado à prova de Rorschach com índice Kappa de 0,87 (Morana, 2011). A escolha deste teste ocorreu por ele conseguir identificar a trajetória pessoal e por possibilitar o uso de dados oficiais. Cuidados na correção e interpretação foram realizados para não ocorrer compreensões reducionistas do fenômeno ato infracional. Destaca-se que estudo prévio já utilizou este instrumento, sendo importante para a compreensão dos TP e relação com FEs (Achá, 2011). Desse instrumento, identificou-se a idade da primeira relação sexual e do início do trabalho, utilizados neste estudo como medida de caracterização de exposição à adversidade.

Procedimentos

O acesso aos participantes ocorreu após autorização da rede socioeducativa e vara infracional. Os participantes foram recrutados no momento em que estavam no atendimento psicológico individual, em que foram convidados e expostos aos objetivos da pesquisa. A coleta dos dados foi realizada em duas instituições masculinas (uma provisória e uma sentenciada) e uma unidade feminina (funcionamento misto provisório/sentenciado), abrangendo toda a rede socioeducativa da respectiva capital. O processo de avaliação neuropsicológica teve duração que variou de uma a três sessões de até 1h e 30 minutos. O processo foi iniciado com criação de rapport, explicação dos objetivos da pesquisa e com a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (pais) e Termo de Assentimento (adolescentes). A avaliação ocorreu em sala do setor psicossocial, organizada para não se ter interrupções no decorrer da aplicação dos instrumentos. Foram critérios de inclusão a condição de ato infracional com grave uso de violência, ter idade entre 12 e 21 anos, apresentar condição cognitiva para resposta aos instrumentos e a voluntariedade de participação. Deste modo, da fase inicial com n=159 (fase um da pesquisa empírica geral, com estudo do uso de drogas, raiva e impulsividade), foram selecionados n=109 ACL privados de liberdade com base nos critérios de inclusão e incluídos para serem avaliados em um protocolo neuropsicológico (FEs, TP e CS). Nenhuma exclusão destes ocorreu no processo de análise. A coleta dos dados durou de março de 2021 a outubro de 2022, sendo realizada devolutiva individual verbal com cada participante. E, foi interrompida por questões institucionais. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com parecer 5.492.733, CAAE 59004422.1.0000.5334, e seguiu as recomendações presentes nas Resoluções n.º 466/12 e 510/16, do Conselho Nacional de Saúde.

Análise dos dados

Estatísticas de frequência absoluta e relativa descreveram a amostra quanto ao sexo, classe, aspectos da família, acesso a armas, percepção de violência e uso de drogas; e, parâmetros de média e desvio padrão, descreveram a idade, escolarização, FEs, TP e CS. Adotou-se o critério primário (uma) e reiterante (mais de uma) passagens no sistema de justiça, para agrupamento; não ocorrendo distinção de gênero por não ser o objetivo desse estudo. Com isso, os grupos foram comparados considerando os scores brutos de médias com uso da Análise de Variância ANOVA do tipo MANOVA. Por apresentarem distribuição não normal (Shapiro-Wilk) e por não homogeneidade de variâncias (teste de Levene), optou-se por realizar correção de Welch e uso de post-hoc Games-Howell para identificar diferenças.

Para a verificação de associações entre as variáveis, realizaram-se Correlações de Spearman considerando FEs, TP, CS e ato infracional. Relação de predição foi identificada com uso de Regressão Linear Simples para uma variável preditora (TP) do desfecho ato infracional, por apresentar distribuição normal de resíduos (Shapiro-Wilk).

Nas variáveis com distribuição não normal, utilizou-se Regressão Log-Linear do tipo Quase-Poisson, da família de modelos lineares generalizados, sendo descrito o Exp(B) considerando um conjunto de cinco variáveis preditoras nos domínios de FEs, TP e CS, para o desfecho número de passagens na central de polícia. Destaca-se que o pressuposto de equidisposição da variável desfecho não foi acatado, caracterizando uma sobredispersão (variância robusta). Em todas as análises adotou-se significância a p < 0,05 e IC de 95%, sendo realizadas no The jamovi project versão 2022.

Na descrição dos níveis neuropsicológicos encontrados, optou-se pelo uso de médias e desvios, sem estabelecer comparação com valores normativos; pois, considerou-se que ACL apresentam trajetórias de vida singulares e que a comparação com outros públicos resultaria na perda de especificidades próprias ao grupo.

 

Resultados

As funções neuropsicológicas foram identificados para a amostra a partir da média geral para o grupo ACL e médias para as condições primário e reiterante  que, na análise de variância, diferenciou oito variáveis com significância estatística. Sendo no grupo dos reiterantes verificado menor tempo em Teste Stroop, tempo em palavras e cores, com menor idade de início no ato infracional, maiores médias em dígitos direto, níveis em TP e número de passagens na central de polícia (ver Tabela 1). As idades da primeira relação sexual (M = 12,8 e DP = 1,9; 7 - 16) e do início de atividades de trabalho (M = 13 e DP = 2,1; 5 - 17) não apresentaram diferença estatística entre primários e reiterantes, porém, indicaram a presença de precocidade de início desses dois domínios. E os aspectos de QI classificaram a amostra como limítrofe.

 

Tabela 1

Níveis Neuropsicológicos (FEs, TP e Adversidades) em Adolescentes Privados de Liberdade por Atos com Grave Violência classificados como Primários e Reiterantes

 

Total
N = 109

Primário
N = 51

Reiterante
N = 58

F

gl1

gl2

p

 

M

dp

M

dp

M

dp

Nº ensaios administrados

120,4

17,0

121,5

13,0

119,4

20,1

0,43

1

89,8

0,515

Total correto

75,2

15,7

74,9

17,2

75,5

14,4

0,04

1

94,0

0,846

Total erros

45,6

18,4

44,9

18,7

46,2

18,2

0,12

1

99,0

0,746

Respostas perseverativas

36,4

17,6

37,3

18,9

35,5

16,4

0,28

1

95,4

0,598

Erros perseverativos

25,3

11,9

25,2

13,2

25,3

10,6

0,00

1

91,9

0,955

Erros não-perseverativos

18,9

12,6

19,0

13,5

18,8

11,7

0,01

1

95,4

0,933

Nível conceitual

8,9

4,1

8,8

3,9

9,0

4,4

0,09

1

99,6

0,769

Nº categ. Completadas

4,1

1,6

4,1

1,6

4,1

1,6

6,15

1

99,4

0,980

Ensaios 1ª categoria

18,5

18,3

16,0

12,0

20,7

22,5

1,79

1

81,0

0,185

Fracasso mant. Contexto

2,0

1,6

2,2

1,9

1,8

1,3

1,05

1

84,0

0,308

Aprender a aprender

2,4

6,4

2,4

7,9

2,5

5,8

0,00

1

75,0

0,956

Stroop Tempo retângulo

19,3

6,0

19,1

6,9

18,8

5,1

0,7

1

89,6

0,416

Stroop Tempo palavras

22,5

6,5

24,2

8,2

21,0

4,0

6,0

1

68,8

0,017

Stroop Tempo cores

32,5

8,8

35,5

9,0

29,9

7,7

11,9

1

97,0

0,001

Stroop Erros retângulos

0,6

1,3

0,6

1,5

0,5

1,2

0,2

1

94,9

0,639

Stroop Erros palavras

0,4

1,2

0,4

1,4

0,4

1,0

0,0

1

90,0

0,913

Stroop Erros cores

3,4

2,9

3,6

2,8

3,2

3,0

0,3

1

105,0

0,600

Dígitos Direto

6,9

1,9

6,5

2,0

7,2

1,7

4,3

1

96,0

0,041

Dígitos Inverso

3,0

1,4

2,9

1,4

3,1

1,4

0,4

1

103,6

0,506

Fluência Fonológica

24,8

8,7

25,8

8,6

23,9

8,8

1,3

1

104,3

0,250

Fluência Semântica

27,3

6,9

27,2

7,2

27,3

6,7

0,0

1

100,8

0,913

Trilha A - tempo

39,1

13,5

41,7

15,4

36,9

11,2

3,2

1

88,2

0,075

Trilha A - Erro

0,9

1,3

0,9

1,4

1,0

1,3

0,1

1

98,5

0,757

Trilha B - Tempo

128,0

65,8

130,0

63,8

126,3

68,1

0,1

1

104,5

0,777

Trilha B - Erro

3,7

12,0

2,2

2,5

5,1

16,2

1,8

1

59,1

0,183

Letra estruturada tempo

116,1

40,8

114,4

33,8

117,4

46,2

0,1

1

88,5

0,720

Letra randomizada tempo

120,3

44,3

120,0

48,9

120,6

40,5

0,0

1

79,9

0,955

Símb. estruturado tempo

106,1

39,1

109,4

46,3

103,4

32,2

0,5

1

71,2

0,480

Símb. randomizado tempo

96,0

29,0

97,1

29,4

95,0

28,9

0,1

1

82,6

0,741

Letra  estruturada erro

2,2

3,4

2,0

2,4

2,3

4,1

0,1

1

80,5

0,736

Letra randomizada erro

2,7

3,4

2,9

3,7

2,6

3,2

0,1

1

82,1

0,740

Símb. estruturado erro

3,4

4,0

3,6

4,5

3,2

3,6

0,2

1

77,9

0,645

Símb.  randomizado erro

2,4

3,5

2,5

3,6

2,4

3,5

0,0

1

86,3

0,927

PCL-R fator 1

11,0

3,1

10,2

3,2

11,5

2,9

4,9

1

98,0

0,029

PCL-R fator 2

8,7

3,3

7,7

2,9

9,5

3,5

8,9

1

103,9

0,005

PCL-R total

20,8

6,6

18,7

5,9

22,6

6,7

10,2

1

104,0

0,002

QI verbal

77,9

9,9

79,1

10,2

76,8

9,5

1,3

1

97,1

0,253

QI execução

69,6

12,0

69,9

12,9

69,3

11,2

0,1

1

93,6

0,793

QI total

71,9

11,6

72,6

12,4

71,3

10,8

0,3

1

94,0

0,567

Idade 1ª relação sexual

12,8

1,9

13,2

2,18

12,5

1,49

2,8

1

79,5

0,097

Idade início trabalho

13,0

2,1

13,0

2,4

13,0

1,9

0,0

1

81,5

0,920

Escolarização

6,6

2,1

7,0

1,9

6,3

2,2

3,7

1

107,0

0,058

Idade 1º ato infracional

14,6

1,6

15,9

1,2

14,0

1,8

16,7

1

97,9

0,001

Nº passagens na polícia

3,7

3,3

2,2

1,8

5,0

3,7

26,9

1

83,7

0,001

Nota. Primários (1ª vez) e reiterantes (duas ou mais vezes) no sistema jurídico - passagem em unidade socioeducativa. Classificação de autorrelato e conferida com documentos oficiais. IC 95% e p < 0,05.

 

Associações significativas identificadas por Correlações de Sperman para as variáveis FEs, TP, CS e passagens no sistema de justiça e na polícia foram achadas. O desfecho número de passagens no sistema de justiça apresentou associações positivas significativas com PCL-R total (r  =  0,3, p < 0,002), dígitos direto (r  =  0,2, p < 0,02), correlação negativa com idade da primeira relação sexual (r  = -0,3, p <0,004) e com o Teste Stroop tempo em cores (r  = -0,3, p < 0,003). E, apenas uma variável do WCST, número de categorias completadas, associou-se com o número de passagens na central de polícia (r = 0,201, p < 0,043). Para outras associações, ver Figura 1. As correlações, ainda que muito pequenas, permitem visualizar a presença de relações entre as variáveis internalizantes e o ato infracional.

 

Figura 1

Associações entre Funções Executivas, Traços de Psicopatia, Adversidades e Ato Infracional

 

 

Nota. Correlações de Sperman com p < 0,05.

 

Para investigar relações de predição da PCL-R fator 1 no desfecho privação de liberdade realizou-se análise linear simples na qual se observou (F(1,104) = 32,6, p <,001; R2ajustado = 0,231) e, o coeficiente de regressão B (B = 3,25, 95% [IC = 0,685-1,41]) indicou que, em média, o aumento de um ponto na PCL-R 1 aumenta em 3,25 pontos no desfecho privação de liberdade.

E, considerando o papel preditor das variáveis FEs, TP e CS para o desfecho n.º de passagens na central de polícia, verificou-se por meio da análise multivariada em regressão do tipo Poisson que o WCST-CC elevou em 12% (IC 95%: 1,028-1,225), o Teste Stroop erros em cores elevou em 7,3% (IC 95%: 1,030-1,115) e a PCL-R total elevou em 2,6% (IC 95%: 1,003-1,049) a incidência de número de passagens na central de polícia. Sendo que a variável idade da primeira relação sexual não foi estatisticamente significativa no modelo. (Ver Tabela 2).

 

Tabela 2

Papel preditor de variáveis independentes de FEs, TP e CS para o desfecho Nº de Passagens na Central de Polícia (Autorrelato) - Variável Dependente

 

Estimate

SE

IC 95%

Exp(B)

IC 95%

z

p

Lower

Upper

Lower

Upper

(Intercept)

1,170

0,073

1,021

1,311

3,223

2,777

3,712

15,82

< 0,001

PCL-R Total

0,025

0,011

0,003

0,047

1,026

1,003

1,049

2,21

0,029

Id. 1ª Rel. Sex.

-0,041

0,036

-0,111

0,030

0,960

0,895

0,895

-1,14

0,259

Stroop Cor Tempo

-0,032

0.008

-0,049

-0,015

0,968

0,952

0,952

-3,70

<0,001

Stroop Cor Erros

0,070

0,020

0,029

0,108

1,073

1,030

1,030

3,51

<0,001

WSCT-Categ. Completada

0,114

0,044

0,027

0,202

1,121

1,028

1,028

2,56

0,012

 

 

Discussão

A presente pesquisa investigou se as funções neuropsicológicas (FEs e TP) e de exposição a adversidades (CS e idade de início do trabalho), diferenciariam ACL na condição primário e reiterante. Essas características são essenciais nas práticas psicossociais em contextos socioeducativos de privação de liberdade, por demandar de avaliações e intervenções que promovam o desenvolvimento humano, considerando a complexa relação entre cérebro, ato infracional e adversidades do desenvolvimento (Achá, 2011; Fine et al., 2016).

Os aspectos das FEs avaliadas, em conjunto, não foram diferenciadores das condições primário ou reiterante no sistema socioeducativo, sendo as diferenças encontradas no Teste Stroop, entendidas como sutis e não oportunizando uma análise de diferença entre as condições de grupo. O desempenho no WCST, interpretado face aos valores de referências estandardizados (Cunha et al., 2005), sugeriu diferenças que qualificaram a amostra como apresentando baixo desempenho executivo. Porém, por não ser o foco do estudo diferenciar os dados aqui apresentados com valores padronizados, impossibilita a análise comparativa. No entanto, o achado quanto a semelhança entre primários e reiterantes assemelha-se ao demonstrado em outro estudo (Achá, 2011), e pode auxiliar na compreensão das FEs em déficits.

Assim, a descrição neuropsicológica encontrada pode ser utilizada para reforçar o conhecimento prévio que demonstra ser o déficit executivo em agressores um fator que atua provocando pouca regulação emocional e controle executivo (Galinari & Bazon, 2020). E, pois, sendo elemento importante no entendimento das trajetórias desse público (Moffitt, 2020).

Os dados encontrados possibilitaram caracterizar a flexibilidade cognitiva e o controle inibitório como níveis de FEs em desenvolvimento (Borrani et al., 2015; Fine et al., 2016). Realidade que desafia a interpretação de que ainda não podem, no cenário identificado, desempenhar o papel de proteção contra o envolvimento infracional, tal como já verificado em pesquisa anterior (Stepanyan et al., 2020). Tornando-se, portanto, um fator que precisa de maior investigação quanto ao seu papel no funcionamento neuropsicológico nessas trajetórias, por ser uma habilidade essencial para a mediação de conflitos emocionais (Brown & Yoder, 2022).

A presença de indicadores de FEs interpretados como déficits ecoa para o fortalecimento dos dados prévios de pesquisas com adultos e juvenis (Galinari & Bazon, 2020). Problematiza-se, a partir destes, o desenvolvimento de mecanismos bottom-up do controle do comportamento (Tieskens et al., 2022), e a diferenciação de perfis de ACL brasileiros. Contexto este importante na pesquisa em criminologia do desenvolvimento (Moffitt, 2020).

Em ambientes socioeducativos, entender as FEs nos aspectos de flexibilização da conduta e do controle inibitório (Diamond, 2013; Zelazo et al., 2016) possibilita desenvolver intervenções específicas que contemplem essas habilidades (Vilà-Balló et al., 2015). E nos faz refletir sobre o cuidado quanto às socializações a serem vivenciadas na privação de liberdade, que podem contribuir para a manutenção ou rupturas com os comportamentos infracionais.

Essa realidade é importante por indicar que os níveis de FEs desempenham papel de preditores em 12% quanto à chance de incidências na central de polícia. Enquanto nessa pesquisa, TP (PCL-R total) foi preditor com 2,6% de participação no desfecho infracional. Ou seja, ACL apresentaram elementos internalizantes que não os protegem do envolvimento infracional. Dados que endossam estudos sobre a dificuldade de reconhecimento emocional, da precoce idade de início no ato infracional e da previsão de reiteração, em contextos de presença de níveis de TP elevados (Achá, 2011; Castellana, 2014; de Barros et al., 2013; Pechorro et al., 2019).

Observa-se que predisposições indicativas de trajetórias infracionais existem na amostra. E, faz-se uma reflexão do quanto, na condição de reiteração, a passagem prévia em instituições de privação de liberdade pode ter contribuído de modo a participar ou fomentar a manifestação de comportamentos de grave envolvimento, realidade pouco estudada no Brasil. Enfatiza-se, também, que os dados não oferecem suporte a afirmação de como os fatores externalizantes (trajetória em instituições de privação de liberdade) podem ter contribuído para o desenvolvimento de traços prévios, sendo necessários outros estudos com esse objetivo.

Os níveis de TP encontrados nessa amostra, no entanto, foram similares aos níveis estandardizados quando caracterizando a presença de traços parciais de psicopatia em adultos (Morana, 2011),indicando que os níveis dessa variável nessa amostra podem ser interpretados como elevados. Esses elementos foram estatisticamente diferentes nos grupos, sendo maiores nos reiterantes, tal como em estudos prévios (Castellana, 2014; de Barros et al., 2013; Pechorro et al., 2019). Realidade que encontrou na idade da primeira relação sexual, de início do trabalho e idade do primeiro ato infracional, indicadores que reforçam a compreensão de que a precocidade de exposições ambientais participa no desenvolvimento neuropsicológico de ACL.

Nesse contexto, a escolarização com presença de fracasso (reprovação e abandono escolar) auxiliou no entendimento do papel desempenhado pela escola que, na vida desses adolescentes, não foi um elemento capaz de suavizar essas influências, tal como evidenciado em outras pesquisas sobre o efeito do ambiente no desenvolvimento cerebral (Tetteh-Quarshie & Risher, 2023; Sheridan et al., 2022; Tieskens et al., 2022; Orendain et al., 2022). Deste modo, no entendimento da delinquência em ACL, apresenta-se como fundamental considerar as trajetórias pessoais de exposição a adversidades, por serem estas características presentes no desenvolvimento neuropsicológico e por reforçarem o conhecimento prévio do papel do ambiente no amadurecimento individual precoce (Belsky et al., 2020; Hamlat et al., 2021).

Assim, FEs, TP e CS apresentaram associações que, ainda que fracas quanto ao nível correlacional, contribuíram para a visualização de sutis aspectos que auxiliam na compreensão da interação entre esses domínios e quanto ao seu papel de preditores para infrações. Os dados acrescentam elementos importantes quanto a precocidade de exposição a contextos sexuais e de trabalho, que reforçam as compreensões sobre a condição de precarização de vida e dos efeitos neuropsicológicos que se entrelaçam. Destacando, portanto, o papel do ambiente implicado como fator de risco para exposições que antecipam a adolescência e que interage com o cérebro em desenvolvimento (Andersen et al., 2021; Belsky et al., 2020; Hamlat et al., 2021), sem que as funções neuropsicológicas possam desempenhar um papel de proteção de ACL diante de riscos adversos, nesse contexto.

Relativo ao instrumento PCL-R, para além das críticas quanto ao uso com adolescentes, observou-se que a entrevista oportunizou o autorrelato e a verificação de dados oficiais, essenciais para a descrição da delinquência (Morana, 2011). A descrição de aspectos psicossociais, a partir da PCL-R e junto aos níveis de desenvolvimento, contribuiu para a ampliação da compreensão de trajetórias e na qualificação como primário e reiterante. Fator importante na mediação de intervenções com ACL privados de liberdade. No entanto, destaca-se que a complexidade na aplicação e análise da PCL-R pode inviabilizar seu uso cotidiano em instituições socioeducativas, sendo necessário o desenvolvimento de instrumentos breves, para essa finalidade.

Em síntese, para além dos determinismos neurobiológicos na explicação da conduta, este é um fator essencial na descrição e diferenciação de trajetórias entre ACL. Esse conhecimento pode auxiliar no processo de desinstitucionalização, face ao reconhecimento dos efeitos danosos desta experiência para o desenvolvimento neuropsicológico (Tetteh-Quarshie & Risher, 2023; Sheridan et al., 2022; Tieskens et al., 2022; Orendain et al., 2022). Salienta-se, com isso, a importância da avaliação neuropsicológica nesse contexto. Ainda que essa pesquisa seja limitada à descrição e a comparação na condição primário e reiterante, destaca-se que emerge com uma amostra que expressou grave violência no ato praticado e com pouca capacidade de reconhecer esse comportamento a partir da óptica da empatia e dos danos sociais decorrentes. Sendo os achados, portanto, necessários no dimensionamento dos aspectos neuropsicológicos que se articulam como indicadores e elementos presentes na/da relação cérebro e ambiente (Belsky et al., 2020; Hamlat et al., 2021). E enfatiza-se ser a primeira pesquisa no Brasil com a articulação dos domínios FEs, TP e Idades da primeira relação sexual e do trabalho como elementos componentes da interpretação da participação de adversidades no desenvolvimento humano de adolescentes.

 

Conclusão

Com este estudo, foi verificado que os níveis neuropsicológicos das FEs caracterizam-se os TP e demonstram-se marcadores de trajetórias individuais adversas (idades de início do CS e de início em atividades de trabalho). Juntos, estes elementos contribuem para o entendimento de ACL privados de liberdade por ato infracional com grave uso de violência, em seus funcionamentos internalizantes e trajetórias de constituição pessoal.

Destaca-se que na condição de grupo (primário e reiterante), ACL apresentaram diferenças para oito variáveis; realidade importante para intervenções em contexto da justiça juvenil e para o manejo de ações de acompanhamento psicológico em cenários socioeducativos de privação de liberdade. No entanto, se fazem necessários outros estudos para identificar com precisão elementos neuropsicológicos no processo de institucionalização e com populações não ACL para verificação de outros efeitos estatísticos.

A relevância do estudo consiste em propor a avaliação neuropsicológica na descrição de ACL e para verificar avanços em intervenções. Como também, para manusear escalonamentos de gravidade de envolvimento infracional, descrições de comprometimentos e potencialidades que manejados em medidas de privação de liberdade podem avançar ao propor contextos com menor tempo de institucionalização e da ampliação da inclusão social desses jovens. O trabalho contribui, assim, com a pesquisa em neuropsicologia brasileira em intersecção com o público adolescente em conflito com a lei. Estes, foram considerados nos elementos essenciais do autocontrole, personalidade e trajetórias de desenvolvimento humano, sem que esses dados mascarem outros elementos sociais, econômicos e culturais, que compõem o ato infracional praticado na adolescência. Sendo uma limitação a amostra apenas de ACL que inviabiliza comparações e generalizações.

Por fim, destaca-se ser urgente no Brasil, a concretização de uma socioeducação que promova o sujeito em sua emancipação, pois a socialização impacta o desenvolvimento neuropsicológico (Orendain et al., 2022; Holz et al., 2023), sendo partícipe em um cérebro plástico e constituído em interrelações historicamente vividas. Assim, esta pesquisa, avança ao demonstrar os níveis neuropsicológicos de ACL (primários e reiterantes) e suas relações com o ato infracional com uso grave de violência.

 

Referências

Achá, M. F. F. (2011). Funcionamento executivo e traços de psicopatia em jovens infratores [Dissertação de Mestrado, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo]. http://doi:10.11606/D.5.2011.tde-07122011-150839

Andersen, S. H., Steinberg, L., & Belsky, J. (2021). Beyond early years versus adolescence: The interactive effect of adversity in both periods on life-course development. Developmental psychology, 57(11), 1958-1967. https://doi.org/10.1037/dev0001247

Banaskiwitz, N. H. V. C. (2012). Estudo da função executiva em crianças com epilepsia focal benigna da infância com pontas centrotemporais [Dissertação de Mestrado, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo]. http://doi:10.11606/D.5.2012.tde-01082012-082156

Belsky, J., Caspi, A., Moffitt, T. E., & Poulton, R. (2020). The origins of you: how childhood shapes later life. In Havard University Press. Cambridge, Massachusetts & London: Harvard University Press.

Bolfer, C. P. M. (2014). Avaliação neuropsicológica da funções executivas e da atenção antes e depois do uso do metilfenidato em crianças com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade [Tese de Doutorado, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo]. http://doi:10.11606/T.5.2014.tde-24022015-115036

Borrani, J., Frías, M., Ortiz, X., García, A., & Valdez, P. (2015). Analysis of cognitive inhibition and flexibility in juvenile delinquents. Journal of Forensic Psychiatry & Psychology, 26(1), 60-77. https://doi.org/10.1080/14789949.2014.971852

Brown, A., & Yoder, J. (2022). Symptoms of posttraumatic stress and sexual concerns: the intermediary effects of executive functioning on profiles of youth who have sexually harmed. Journal of interpersonal violence, 37(21-22). https://doi.org/10.1177/08862605211050089

Cambraia, S. V. (2003). Teste de Atenção Concentrada. Manual. Vetor Editora Psicopedagógica Ltda.

Castellana, G. B. (2014). Comparação de traços psicopáticos entre jovens infratores e não-infratores [Dissertação de Mestrado, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo]. http://doi:10.11606/D.5.2014.tde-27082014-104205

Cunha, J. A., Trentini, C. M.; Argimon, I. de L.; Oliveira, M. da S.; Werlang, B. G.; & Prieb, R. G. (2005). Teste Wisconsin de Classificação de Cartas: manual. Casa do Psicólogo.

de Barros, D. M., Dias, A. M., Serafim, A. de P., Castellana, G. B., Faria Achá, M. F., & Busatto, G. F. (2013). Dimensional assessment of psychopathy and its relationship with physiological responses to empathic images in juvenile offenders. Frontiers in Psychiatry, 4(11), 1-7. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2013.00147

Diamond A. (2013). Executive functions. Annual review of psychology, 64, 135-168. https://doi.org/10.1146/annurev-psych-113011-143750

Fine, A., Steinberg, L., Frick, P. J., & Cauffman, E. (2016). Self-Control Assessments and Implications for Predicting Adolescent Offending. Journal of Youth and Adolescence, 45(4), 701-712. https://doi.org/10.1007/s10964-016-0425-2

Galinari, L. S., & Bazon, M. R. (2020). Tipologias em delinquência juvenil: uma revisão de literatura. Revista de Psicología (PUCP), 38(2), 577-612. https://dx.doi.org/10.18800/psico.202002.009

Hamlat, E. J., Prather, A. A., Horvath, S., Belsky, J., & Epel, E. S. (2021). Early life adversity, pubertal timing, and epigenetic age acceleration in adulthood. Developmental psychobiology, 63(5), 890-902. https://doi.org/10.1002/dev.22085

Holz, N. E., Berhe, O., Sacu, S., Schwarz, E., Tesarz, J., Heim, C. M., & Tost, H. (2023). Early Social Adversity, Altered Brain Functional Connectivity, and Mental Health. Biological psychiatry, 93(5), 430-441. https://doi.org/10.1016/j.biopsych.2022.10.019

Lezak, M. D., Howieson, D., Bigler, E., & Tranel, D. (2012). Neuropsicological Assessment. Oxford University Press, 1576.

Moffitt, T. E. (2020). Innovations in Life-Course Crime Research - ASC Division of Developmental and Life-Course Criminology David P. Farrington Lecture, 2018. Journal of Developmental and Life-Course Criminology, 6(3), 251-255. https://doi.org/10.1007/s40865-020-00153-5

Morana, H. (2011). Manual da Escala Hare PCL-R: critérios para pontuação de psicopatia - revisado/ Robert D. Hare. Casa do Psicólogo.

Orendain, N., Galván, A., Smith, E., Barnert, E. S., & Chung, P. J. (2022). Juvenile confinement exacerbates adversity burden: A neurobiological impetus for decarceration. Frontiers in neuroscience, 16, 1004335. https://doi.org/10.3389/fnins.2022.1004335

Pechorro, P., Seto, M. C., Ray, J. V., Alberto, I., & Simões, M. R. (2019). A Prospective Study on Self-Reported Psychopathy and Criminal Recidivism Among Incarcerated Male Juvenile Offenders. International journal of offender therapy and comparative criminology, 63(14), 2383-2405. https://doi.org/10.1177/0306624X19849569

Sheridan, M. A., Mukerji, C. E., Wade, M., Humphreys, K. L., Garrisi, K., Goel, S., Patel, K., Fox, N. A., Zeanah, C. H., Nelson, C. A., & McLaughlin, K. A. (2022). Early deprivation alters structural brain development from middle childhood to adolescence. Science advances, 8(40), eabn4316. https://doi.org/10.1126/sciadv.abn4316

Stepanyan, S. T., Natsuaki, M. N., Cheong, Y., Hastings, P. D., Zahn-Waxler, C., & Klimes-Dougan, B. (2020). Early pubertal maturation and externalizing behaviors: Examination of peer delinquency as mediator and cognitive flexibility as a moderator. Journal of Adolescence, 84, 45-55. https://doi.org/10.1016/j.adolescence.2020.07.008

Strauss, E., Sherman, E. M. S., & Spreen, O. (2006). A Compendium of Neuropsychological Tests: Administration, Norms, and Commentary. (Oxford Uni). https://doi.org/10.1037/032065

Tetteh-Quarshie, S., & Risher, M. L. (2023). Adolescent brain maturation and the neuropathological effects of binge drinking: A critical review. Frontiers in neuroscience16, 1040049. https://doi.org/10.3389/fnins.2022.1040049

Tieskens, J. M., van Lier, P. A. C., Buil, J. M., & Barker, E. D. (2022). Sensation-seeking-related DNA methylation and the development of delinquency: A longitudinal epigenome-wide study. Development and psychopathology, 1-9. Advance online publication. https://doi.org/10.1017/S0954579422000049

Trentini, C. M., Yates, D. B., & Heck, V. S. (2014). Escala Wechsler abreviada de inteligência-WASI: manual/ David Wechsler. Pearson Clinical Brasil.

Vilà-Balló, A., Cunillera, T., Rostan, C., Hdez-Lafuente, P., Fuentemilla, L., & Rodríguez-Fornells, A. (2015). Neurophysiological correlates of cognitive flexibility and feedback processing in violent juvenile offenders. Brain Research, 1610, 98-109. https://doi.org/10.1016/j.brainres.2015.03.040

Zelazo, P. D., Blair, C. B., & Willoughby, M. T. (2016). Executive Function: implications for education. National Center for Education Research. https://eric.ed.gov/?id=ED570880

Wechsler, D. (2004). Manual para administração e avaliação-WAIS-III. Pearson.

 

 

Endereço para correspondência
Pedro Vasconcelos Corrêa - pedrovasconceloscorrea@hotmail.com

Recebido em: 01/05/2023
Aceito em: 06/02/2024

 

 

Este artigo da revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.