Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e75385, doi:10.12957/epp.2024.75385
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Distorções Cognitivas de Autores de Agressão Sexual de Crianças e Adolescentes

 

Cognitive Distortions of Perpetrators of Sexual Assault Against Children and Adolescents

 

Distorsiones Cognitivas de Autores de Agresiones Sexuales a Niños, Niñas y Adolescentes

 

Daniela Castro dos Reis a, Viviam da Silva Silveira a, Lília Iêda Chaves Cavalcante a, Milene Maria Xavier Veloso a, Jhuliane Karine Costa de Souza a

a Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O estudo objetivou analisar distorções cognitivas presentes no conteúdo de entrevistas com cinco autores de agressão sexual de criança e adolescente, sexo masculino, idades entre 19 a 58 anos (M=30,8). A pesquisa, com abordagem qualitativa dos dados, envolveu amostra por conveniência dos participantes. Utilizou-se entrevista semiestruturada, realizada em uma Unidade Prisional de Parauapebas - Pará - Brasil. Procedeu-se à análise de conteúdo das transcrições das entrevistas, considerando categorias pré-existentes na literatura. Identificaram-se as seguintes categorias de distorções: (a) Negação Completa, (b) Negação Parcial, (c) Aceitação da Agressão Sexual, (d) Minimização da Agressão, (e) Minimização da Responsabilidade, (f) Negação/Minimização das Consequências, (g) Negação/Minimização do Planejamento e (h) Negação/Minimização de Tratamento. Os achados estão em consonância com a literatura que sugere a presença predominante de distorções cognitivas que podem ter sido utilizadas para justificar ou negar fatores associados à prática dessa agressão. Cabe destacar a importância da investigação sistemática dessas distorções para compreender fatores presentes na trajetória de vida de autores de agressão sexual, e, assim, potencializar a eficácia de ações capazes de minimizar a reincidência do comportamento agressivo ao prevenir padrões de risco e desenvolver estratégias psicoeducativas, entre outras.

Palavras-chave: distorção cognitiva, agressor sexual, criança/adolescente.


ABSTRACT

The study aimed to analyze cognitive distortions present in the content of interviews with five male perpetrators of child and adolescent sexual assault aged between 19 and 58 years (M=30.8). The research, with a qualitative approach to the data, involved a convenience sample of the participants. A semi-structured interview was used, carried out in a Prison Unit in Parauapebas - Pará - Brazil. A content analysis of the interview transcripts was carried out, considering pre-existing categories in the literature. The following categories of distortions were identified: (a) Complete Denial, (b) Partial Denial, (c) Acceptance of Sexual Aggression, (d) Minimization of Aggression, (e) Minimization of Responsibility, (f) Denial/Minimization of Consequences, (g) Denial/Minimization of Planning and (h) Denial/Minimization of Treatment. The findings are in line with the literature, which suggests the predominant presence of cognitive distortions that may have been used to justify or deny factors associated with the practice of this aggression. It is worth highlighting the importance of systematically investigating these distortions to understand factors present in the life trajectory of perpetrators of sexual aggression, and thus enhance the effectiveness of actions capable of minimizing the recurrence of aggressive behavior by preventing risk patterns and developing psychoeducational strategies, among others.

Keywords: cognitive distortion, sexual offender, child/adolescent.


RESUMEN

El estudio tuvo como objetivo analizar las distorsiones cognitivas presentes en el contenido de entrevistas con cinco perpetradores de agresión sexual a niños y adolescentes, del sexo masculino, con edades entre 19 y 58 años (M=30,8). La investigación, con abordaje cualitativo de los datos, involucró una muestra de conveniencia de los participantes. Fue utilizada una entrevista semiestructurada, realizada en una Unidad Penitenciaria en Parauapebas - Pará - Brasil. Se realizó el análisis de contenido de las transcripciones de las entrevistas, considerando categorías preexistentes en la literatura. Se identificaron las siguientes categorías de distorsiones: (a) Negación total, (b) Negación parcial, (c) Aceptación de la agresión sexual, (d) Minimización de la agresión, (e) Minimización de la responsabilidad, (f) Negación/Minimización de las consecuencias, (g) Denegación/Minimización de la Planificación y (h) Denegación/Minimización del Tratamiento. Los hallazgos están en consonancia con la literatura, que sugiere la presencia predominante de distorsiones cognitivas que pueden haber sido utilizadas para justificar o negar factores asociados a la práctica de esta agresión. Cabe destacar la importancia de la investigación sistemática destas distorciones para comprender factores presentes en la trayectória de vida de autores de agresión sexual, y, así, potencializar la eficacia de acciones capazes de minimizar la reincidencia del comportamiento agresivo, al prevenir patrones de riesgo y desarollar envolver estratégias psicoeducativas, entre otras.

Palabras clave: distorsión cognitiva, delincuente sexual, niño/adolescente.


 

 

Ao longo dos anos, o termo distorção cognitiva (DC) sofreu alterações conceituais importantes em sua definição e estrutura. Atualmente é utilizado com distintas conotações, tais como: crenças desadaptativas, justificações, racionalizações, minimizações, negação, entre outros (Fernandes, 2022; Reis & Cavalcante, 2019). Embora na literatura científica não exista consenso acerca da origem do conceito, o termo aparece associado à investigação do comportamento agressivo, utilizado para se referir genericamente às atitudes de apoio à agressão, aos processos cognitivos durante o ato, bem como às justificações pós-agressão ou motivos para a sua ocorrência (Coutinho-Pereira & Gonçalves, 2009; D´Urso et al., 2021; Petruccelli et al., 2022).

Entre os estudiosos da temática, o conceito de DC utilizado sobre os autores de agressão sexual contra criança e adolescente (AASCA) deriva da teoria cognitiva de Aaron Beck (Szumski & Zielona-Jenek, 2016). Em um levantamento acerca dos significados atribuídos ao termo na atualidade, Guglielmo (2015) definiu categorias conceituais fundamentadas na literatura da área que baseiam a discussão sobre a natureza do conceito e o modo como as pesquisas empíricas o têm utilizado.

Para Guglielmo (2015), teoricamente, o termo tem sido conceituado de diversas maneiras: (a) distorção cognitiva como função de processamento (mantenedoras de condutas); (b) distorção cognitiva como forma de processamento (meio de manter uma conduta); (c) distorção cognitiva como processo de informação (informações constituídas a partir de processo). Para esta última categoria conceitual, as DC devem ser entendidas como pensamentos individuais e/ou crenças construídas ao longo de um processo.

No entanto, a literatura sobre DC não possui uma definição única e consistente. Neste estudo, o termo DC é compreendido como crenças disfuncionais e desadaptativas que podem estar relacionadas à visão que o indivíduo tem sobre outras pessoas, sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca (Araújo et al., 2022; Ó Ciardha et al., 2016; Szumski et al., 2018), ou seja, duas pessoas podem ter acesso à mesma informação e, ainda assim, absorver crenças muito diferentes sobre elas. Todavia, os pensamentos podem mudar ao longo do tempo, a depender da disponibilidade da informação e dos fatores biopsicossociais envolvidos. Desse modo, entende-se que o termo DC refere-se a atitudes que estão na base da constituição de um influente sistema de crenças capazes de explicar e até justificar o que pensam os autores de agressão sobre o próprio comportamento, e o quanto consideram legítimas as relações sexuais praticadas (Lim et al., 2021; Steel et al., 2020; Ware et al., 2015).

Desta forma, as DC podem ser categorizadas em três momentos: muito antes da perpetração cometida, pouco antes do cometimento da agressão e após o cometimento da ofensa (Nogueira, 2020). Conforme sinaliza Ward (2000), as DC com efeitos distais podem estar associadas a suposições, crenças ou teorias desadaptativas e implícitas formadas ao longo da trajetória de vida, servindo para interpretar o mundo e fazer previsões sobre os comportamentos dos outros. Neste aspecto, as distorções estão conectadas à cultura, às crenças sociais e às experiências de vida.

Quanto às DC formadas pouco antes do cometimento da agressão, estas servem como pensamentos permissivos que atuam na motivação para a perpetração da agressão sexual contra criança e adolescente, e tais crenças podem ser premeditadas, situacionais ou relacionadas à excitação sexual. Para Szumski et al. (2018), a função da DC cognitiva, nesse momento, é a de justificar o cometimento, com o intuito de minimizar o sofrimento e as emoções desconfortáveis, resultantes do conflito entre a ação sexual e as crenças sociais do autor da agressão sexual.

Por último, destacam-se as DC formadas após a perpetração. Diversos autores (Nunes, 2012; Sullivan & Sheehan, 2016) propõem que, essas distorções se organizam para confirmar teorias implícitas que foram formadas muito antes do cometimento da agressão e evitar as consequências negativas do ato (emoções negativas do próprio agressor e emoções direcionadas do meio social a ele), resultantes do contato estabelecido no meio social. Essas DC têm a função de manutenção do cometimento da agressão, aumentando a probabilidade de reincidência da perpetração.

Nessa direção, este estudo compreende que as DC podem ser entendidas como características da pessoa, constituídas por um conjunto de crenças que convencem o indivíduo de que algo (pessoas, objetos, valores, regras) que ele acredita ter validade em sua realidade e que podem não existir exatamente da forma como percebe. Por isso, as DC remetem à existência de pensamentos desviantes ou deturpados, com certo grau de imprecisão e compromisso com a realidade, a partir de crenças construídas e modificadas no decorrer de uma trajetória de desenvolvimento (Nunes, 2012; Reis & Cavalcante, 2019; Sigre-Leirós et al., 2015; Subramaniam et al., 2017). Para Coutinho-Pereira e Gonçalves (2009), tais crenças podem se originar a partir de um contato com o ambiente familiar abusivo ou disfuncional em termos de dinâmica e estrutura familiar, reforçado por uma modelagem parental ineficaz, que pode favorecer experiências interpessoais distorcidas.

Em resumo, sabe-se que os AASCA apresentam, geralmente, um histórico de pensamentos negativos autodirigidos que influenciam o próprio comportamento, produzindo, com isso, uma forma distorcida de perceber as pessoas, a si próprio e a vida (Coutinho-Pereira & Gonçalves, 2009; Nunes & Jung, 2012; Pereira, 2007; Wallinius et al., 2011). Esse funcionamento das DC possibilita uma racionalização, justificação e minimização dos atos praticados, por mais graves ou socialmente condenáveis que sejam, como defende Pereira (2007).

Além disso, entende-se que as DC, por serem às vezes constituídas por meio de informações inadequadas e experienciadas tempos atrás, podem gerar crenças que alteram o sentido dado pelo indivíduo aos processos, aos objetos e aos símbolos constituintes do contexto ecológico, e estas podem levá-lo a transgredir regras sociais, códigos morais, princípios políticos. Em razão disso, as DC podem levar o indivíduo a agredir sexualmente quem deveria estar a salvo de qualquer forma de violência, como exemplo, a criança e/ou o adolescente, que está sob sua guarda e seus cuidados (Brown, et al., 2013; Coutinho-Pereira & Gonçalves, 2009).

Além desse aspecto, o produto dos processos cognitivos envolvidos, isto é, as próprias crenças, podem ser detectáveis na maneira como os AASCA lidam com a informação processada, e que sofre variações, ou seja, pode ser utilizada para justificar a agressão em termos da moralidade ou da necessidade psicológica; minimizar as atitudes ou as consequências; deslocar a responsabilidade por meio da desvalorização da vítima (Coutinho-Pereira & Gonçalves, 2009; Dietz, 2020). Portanto, este estudo teve como objetivo geral identificar e analisar as DC presentes no conteúdo das entrevistas com os AASCA.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa empírica, com delineamento transversal, amparado no método de estudos com abordagem qualitativa dos dados, que utilizou técnica de análise de conteúdo para examinar as transcrições das entrevistas realizadas com os AASCA. Utilizou-se amostra por conveniência dos participantes, selecionados no município de Parauapebas - Pará.

Participantes

Participaram da pesquisa cinco AASCA sentenciados pelo crime de agressão sexual contra criança e adolescente que cumpriam pena à época da pesquisa: todos os participantes eram do sexo masculino, com uma média de idade 30,8 anos, variando de 19 a 58 anos. Três participantes eram solteiros, um casado e um separado, e quatro deles não concluíram o ensino fundamental, nem tinham ocupação definida.

Os participantes foram selecionados a partir de uma amostra dos processos jurídicos. Para que a pesquisa fosse desenvolvida, solicitou-se à direção da Unidade Prisional autorização da participação de custodiados, cujos autos dos processos tivessem sido analisados pelos pesquisadores e que atendessem aos seguintes critérios de elegibilidade: os participantes deveriam estar livres de perturbações psicóticas (antissocial, esquizofrenia, depressão grave, etc.), além de síndrome cerebral orgânica (Acidente Vascular Cerebral) e/ou de condições médicas graves (cardiopatias).

Instrumentos

Com base na pesquisa de Coutinho-Pereira e Gonçalves (2009), que utilizou um instrumento denominado de Checklist de Distorção Cognitiva para Ofensores Sexuais, elaborou-se um roteiro que contém perguntas abertas e fechadas, o qual norteou a condução da entrevista semiestruturada. A entrevista pretendeu identificar a presença de distorções cognitivas e seus conteúdos, por meio de um roteiro composto por 45 perguntas que abordavam temas diversos, mas, sobretudo, as percepções dos participantes sobre infância, adolescência, agressão e violência sexual (questões de 1 a 10) e as concepções destes sobre a agressão sexual contra criança e adolescente (questões de 11 a 45).

Contexto da Pesquisa

Parauapebas foi escolhido por ser um município importante da mesorregião do Sudeste do Pará. Segundo dados do Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, CPI da Pedofilia, como ficou conhecida. Parauapebas, em 2010, à época da elaboração do Relatório da CPI foi considerada como o quinto município em número de autos processuais.

Ambiente da pesquisa

A coleta de dados da pesquisa foi realizada em uma Unidade Prisional vinculada à Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (SUSIPE). A instituição em questão apresenta uma estrutura física adequada, com uma sala privada, mesa e cadeiras, na área administrativa da carceragem, de forma que possibilitou a condução das entrevistas respeitando e atendendo todos os procedimentos éticos estabelecidos em pesquisas com seres humanos. Nela, os participantes ficaram sozinhos com a entrevistadora na sala, mas, eventualmente, um agente penitenciário adentrava no ambiente com o objetivo de averiguar a segurança dos presentes.

Procedimentos

Coleta de dados

Na primeira etapa, obteve-se a autorização dos órgãos competentes para se entrevistar os AASCA, que estavam cumprindo a pena atribuída pelo judiciário em ambiente carcerário. Após a autorização, o pesquisador apresentou a proposta de pesquisa aos participantes, sendo-lhes solicitada a leitura e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas duraram 120 minutos, em média, com total de 600 minutos (10 horas de gravação), armazenadas em áudio e transcritas na íntegra para posterior análise.

Considerações Éticas

O projeto de pesquisa foi aprovado em 30/04/2014 de acordo com o parecer emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Núcleo de Medicina Tropical - NMT da Universidade Federal do Pará, e registrado com o número CAAE n. 18209313.1.0000.5172.

Análise de dados

Análise categorial

O exame do conteúdo das entrevistas envolveu a análise por categorias temáticas, segundo Bardin (1977). A organização e sistematização do conteúdo das entrevistas sobre DC foram analisadas a partir das categorias temáticas preestabelecidas na pesquisa realizada por Gonçalves (2004): Negação completa (NC) não assume na íntegra a agressão ao qual foi acusado e condenado; Aceitação da agressão sexual (AAS), admite que praticou a agressão sexual;  Negação parcial (NP), nega de maneira parcial a agressão ao qual foi acusado e condenado; Minimização da agressão (MA), relativiza a agressão, atribuindo-lhe uma intenção menor.

Além disso, Negação/minimização da responsabilidade (NMR) atribui a culpa a terceiros, imputando-lhe alguma participação; Negação/minimização das consequências (NMC) considera que a vítima não ficou magoada e não houve dano, pois ele foi carinhoso e afetuoso; Negação/minimização do planejamento (NMP), tenta justificar que não houve intencionalidade de arquitetar a agressão; Negação/minimização das fantasias (NMF), reporta a ideia de que o ato se inscreve em outro ato e não na área sexual; Negação/minimização do tratamento (NMT), nenhum desejo ou nenhuma necessidade expressa de ajuda; Negação do desvio sexual (NDS), nega qualquer desejo sexual por criança/adolescente; Aceitação do interesse sexual (AIS), aceita que tem desejos sexuais com por criança e/ou adolescente.

Os resultados apresentados trazem o conteúdo das entrevistas dos cinco participantes. Organizado de acordo com as categorias preestabelecidas por Gonçalves (2004), é realizada uma discussão com a literatura da área.

 

Resultados e Discussão

Diversas expressões de DC foram relatadas pelos participantes durante as entrevistas, seja referente à negação do ato ou à minimização da agressão sexual. As categorias encontradas também apresentam justificativas para o ato sexual perpetrado e, em alguns casos, os AASCA delegaram à vítima a culpa. Contudo, considerando as categorias preestabelecidas, observou-se a ausência de três categorias: aceitação do interesse sexual, negação do desvio sexual e negação/minimização das fantasias.

Uma explicação para a ausência das categorias pode estar relacionada às características dos entrevistados, como o fato de serem participantes sem diagnóstico de Transtorno Parafílico. Talvez, por isso, esteja ausente este tipo específico de DC. No entanto, trata-se apenas de uma hipótese explicativa que deve ser investigada em estudos futuros.

Considerando os conteúdos das entrevistas dos participantes, emergiram as seguintes categorias: (a) Negação Completa, (b) Negação Parcial, (c) Aceitação da Agressão Sexual, (d) Minimização da Agressão, (e) Minimização da Responsabilidade, (f) Negação/Minimização das Consequências, (g) Negação/Minimização do Planejamento e (h) Negação/Minimização de Tratamento.

Negação Completa (NC)

A categoria NC foi observada apenas na entrevista do participante 4. Nela, foi possível perceber que o participante considera a denúncia feita como de natureza caluniosa, ou seja, o crime pelo qual foi condenado teria sido planejado pela ex-mulher que pretendia prejudicá-lo, caluniando-o em relação ao comportamento dele. Desta forma, ele se percebe como uma vítima da situação, pois considera que só está na cadeia pelo medo que a ex-mulher tem dele ficar solto novamente, uma vez que já foi preso por atos de violência doméstica praticados contra ela. Destaca-se a negação completa do ato sexual praticado contra a própria filha na seguinte frase: "Não, eu não cometi a agressão sexual contra minha filha. Nunca pratiquei. Não sou culpado. Eu me considero uma pessoa, uma vítima." [...] (P4, 36 anos).

Nas pesquisas de Pereira (2007) e Coutinho-Pereira e Gonçalves (2009), os resultados dos estudos identificaram que 75% dos AASCA afirmavam que pesavam sobre eles falsas acusações. Eles negavam ter cometido os crimes pelos quais foram julgados e condenados, sendo dados que corroboram os estudos apresentados por Ware et al. (2018). Dados similares foram encontrados na pesquisa realizada por Brown et al. (2013) os quais avaliaram a relação entre empatia e DC, sendo comum a negação completa do crime atribuído aos participantes da pesquisa.

Ressalta-se que, apesar da negação recorrente do participante 4, os dados dos processos jurídicos sinalizam que há evidências consistentes da agressão sexual praticada contra a filha. Mais uma vez, a categoria Negação Completa aparece associada a situações em que os acusados/sentenciados negam o ato praticado.

Negação Parcial (NP)

Quanto à categoria NP, os conteúdos apontaram para concepções que tentam justificar, em parte, a agressão cometida, como pode ser verificado nos seguintes exemplos: "uma pessoa sem consciência", "a vítima consentiu", "não utilizei a força física", "estava embriagado". Tais exemplificações podem ser percebidas nos respectivos trechos: "O que eu fiz foi uma coisa sem noção. Eu me comparo a uma pessoa sem noção que não percebeu o que estava fazendo naquele momento." (P1, 19 anos). Ou: "Eu não me vejo como Jack, porque ela também consentiu." (P2, 21 anos). Ou ainda: "Eu estou falando que, realmente, eu não fiz igual aquela pessoa que estuprar penetrar a menina. Eu só cheguei perto dela." (P3, 58 anos).

Os resultados demonstraram a aceitação parcial da agressão sexual praticada, quando no discurso os participantes reconhecem o ato. No entanto, atribuem a culpa pelo ocorrido a eventos internos (ausência de consciência) ou a eventos externos (consentimento da vítima e uso de álcool).

Nos achados de Pereira (2007), os participantes tentaram ferir a imagem da vítima, culpando-a ou responsabilizando-a, além de atribuírem a eventos externos o que havia acontecido, por exemplo, o consentimento da vítima para que fosse consumado o ato ou o fato dele estar sob o efeito de álcool.

Nos estudos de Brown et al. (2013), a negação parcial surgiu também como um tema recorrente entre os AASCA. O aspecto chave deste nível de negação é que os AASCA realmente não negam que o contato sexual ocorreu, mas afirmam que o ato não poderia ser definido como abuso. Essas justificativas podem ajudar a minimizar o sentimento de culpa, como discute a literatura sobre o tema (Brown, et al., 2013; Ware, Marshall, & Marshall, 2015), imputando à vítima ou a eventos externos a responsabilidade pelo ato perpetrado.

Aceitação da Agressão Sexual (AAS)

Na análise da categoria AAS, os conteúdos identificados nas entrevistas dos participantes são demonstrados nos seguintes trechos: "Eu falei para o juiz que eu reconheço que fiz isso. Cometi a agressão sexual. Eu sei que errei e estou pagando por isso. Reconheço que errei, reconheço que não tive consciência na hora que estava sozinho, estou pagando." (P1, 19 anos); "Sim, eu mantive uma relação sexual com uma adolescente. Hoje eu me sinto um homem cabisbaixo por causa disso. Mas estou aqui para aceitar e para pagar por meus erros. Eu me sinto culpado." (P2, 21 anos); "Beijei ela. Eu só tinha tocado nela. Eu não vou mentir. Eu vou mentir para quê? Toquei na vagina, e nos peitos dela." (P3, 58 anos) e por fim: "Eu tinha bebido muito neste dia. Estava bebendo desde 6 ou 7 horas da manhã. Quando eu saí, eu vi essa menina, de 3 anos de idade, fora da casa dela. Levei ela para um galpão." (P5, 20 anos)

Os dados revelam que há uma aceitação da agressão de maneira parcial na medida em que os participantes admitem a agressão e reconhecem que já estariam pagando pelo que fizeram. Por outro lado, eles confirmam que o ato foi praticado, mas consideram que não mereceram a pena que lhes foi imputada, por razões as mais diversas, inclusive pelo fato de que estavam sob o efeito de álcool, como foi dito por um dos participantes.

Na pesquisa de Silva (2013), que comparou a DC de um grupo de AASCA com um grupo de não agressores, identificou-se a não aceitação da agressão sexual no grupo de AASCA a partir do item que avaliava a autocrítica. Conforme sinaliza a autora, apesar da DC não ser exclusivamente característica dos AASCA, o conteúdo das cognições evidenciado pelos participantes foi distinto do apresentado pelo grupo controle. As DC estiveram mais presentes nos AASCA. Tal resultado demonstra que apesar da aceitação, ou da responsabilização pelo ato praticado, os participantes tendem a minimizar a agressão perpetrada.

Minimização da Agressão (MA)

No que se refere aos dados relativos à categoria MA, os resultados apontaram que, apesar do abuso sexual ter sido cometido, os participantes tentaram minimizar os efeitos dos atos sexuais. Os trechos dos conteúdos revelaram a minimização da agressão, com afirmações tais como "a sequela será mínima para a vítima", "agressão sexual só se caracteriza pelo uso da força e isso não aconteceu" e, ainda, a "agressão sexual não deveria ser crime", de acordo com os exemplos a seguir: "Eu acho que ele está bem. Talvez deva ficar sequelas, eu desejo que ele vire homem. Eu quero que ele resolva a vida dele." (P1, 19 anos); "Então, uma agressão, pra mim, é quando uma pessoa mantém uma relação sexual à força, porque quer fazer o mal com ela, pegar à força. Isso é uma agressão pra mim. Agressão sexual querer pegar a pessoa a força." (P2, 21 anos) e ainda: "É uma pena muito grande, porque não é um crime. Crime mesmo era matar, roubar. Crime sinceramente é tirar a vida de qualquer uma pessoa assim." (P3, 58 anos).

Tomando o conjunto dos conteúdos analisados, os resultados obtidos sugerem que as distorções cognitivas estão associadas a várias maneiras de negação e minimização (Nogueira, 2020) do ato praticado pelos participantes. Nos estudos de Coutinho-Pereira e Gonçalves (2009) e Pereira (2007), os participantes afirmaram que o ato observado não foi como a vítima informou, pois não houve emprego de força física, nem existiram antes outras vítimas. Dados estes que corroboram com os estudos de Nicol et al. (2022), nos quais cerca de 50% dos participantes buscaram minimizar da agressão.

A minimização do ato esteve presente no conteúdo das entrevistas analisadas e, como nos estudos citados, também aqui pode estar relacionada à crença de que a vítima não sente ou não entende o que aconteceu. Portanto, não deve ter nenhum prejuízo psíquico ou físico.

Minimização da Responsabilidade (MR)

Outra categoria identificada foi a MR a qual se refere às situações em que o AASCA procura imputar à vítima alguma forma de participação na agressão sexual perpetrada por ele. Esta categoria também foi localizada entre os conteúdos analisados, a partir das entrevistas com os participantes, quando eles justificam a agressão sexual como uma forma de assumir parcialmente a culpa pelo ato (Nogueira, 2020). Isso significa atribuir parte da culpa à vítima ou atribuir a responsabilidade pelo que aconteceu a fatores externos, quando, por exemplo, usa o argumento de que a vítima também o provocara, de que a vítima ia até a sua casa, de que ela o enganara, ou mesmo, que havia se comportado dessa forma porque estava sob efeito de bebida alcóolica: "Mas o menino já fazia isso com outras crianças, era comum fazer aquilo com criança. Eu já sabia disso. Ele fazia, às vezes, com menino novo. Olha, para falar a verdade, eu acho que ele talvez tenha me provocado." (P1, 19 anos);"Eu acho que, de alguma forma, ela me provocou. Ela chegava, começa a tirar saliência. Perguntando tanta coisa. Perguntava como é que fazia a relação sexual." (P3, 58 anos) e "Pra mim, eu acho que eu cometi essa agressão sexual porque eu estava bêbado. Eu só pratiquei isso porque estava bebido, foi sim." (P5, 20 anos).

Conforme sinaliza Brown, et al. (2013), a responsabilidade pelos crimes é imputada às crianças, por meio de uma variedade de mecanismos. Uma forma frequente de se fazer isso é a alegação de que a criança tomou a iniciativa do contato sexual ou provocou de forma deliberada esse comportamento.

Nas pesquisas de Pereira (2007) e Coutinho-Pereira e Gonçalves (2009), havia a indicação de que a justificativa da agressão cometida à criança ou ao adolescente estava ligada a fatores externos: o AASCA estava drogado ou alcoolizado, estressado ou, ainda, porque a companheira não mais o satisfazia sexualmente.

Essa categoria de DC, em particular, pode estar relacionada à crença que denota o modo como a criança ou o adolescente é percebido pelos participantes. Remete à crença de que a criança pode manter relação sexual com um adulto desde que ela queira, o que pode ser reconhecido por meio de sinais, tais como os jogos de sedução.

Para os participantes, estes sinais indicam que a criança está disponível e pronta para a relação sexual. Ainda, a crença de que a adolescente consegue discernir entre o certo e o errado, logo a relação sexual estaria permitida desde que ela consinta ou queira manter esse tipo de contato.

Negação/Minimização das Consequências (NMC)

Quanto à categoria NMC da agressão sexual, os conteúdos das entrevistas dos participantes demonstraram que, apesar de não haver disposição por parte deles para negar o ato perpetrado, eles não reconhecem qualquer dano que possa ter sido causado à vítima, decorrente do comportamento deles. Esses conteúdos podem ser exemplificados nas minimizações em que se afirma não se arrepender, diz-se não querer nem pensar na vítima, pois se acha que ela está tranquila, sem problema nenhum, ou que a vítima está sendo manipulada, tal como se destaca nos trechos abaixo em que se afirma que a vítima está bem, pois não sofreu nenhuma agressão física e foi um momento rápido: "Eu não costumo a pensar se ela está bem ou está ruim. Eu não, pra mim, tanto faz." (P5, 20 anos).

E eu acho que ele está bem. Eu comparo assim, que não foi porque ele me seduziu, tipo assim porque eu, neste fato, eu não forcei, eu não esfaqueei. Eu não usei a força física. Foi rápido, digo que não foi uma relação sexual. Mas chegou a ter penetração. Eu creio que ele está bem. (P1, 19 anos)

Ou ainda:

Deus me livre, não quero nem pensar nela. Para que ela continue os estudos dela, para que ela nunca mais faça isso, nunca mais seduza ninguém. Pra que ela larga isso. Que ela seja uma pessoa. Ela vai cometer o mesmo comportamento com outros. Eu acho que ela está tranquila porque depois disso aí ela já passou, já viram ela agarrada no pescoço de um bando de homem. Então, eu acho que ela está tranquila. (P3, 58 anos).

Conforme os dados de Pereira (2007), 80% dos participantes alegaram que as vítimas não tiveram sequelas e nem ficaram magoadas. Segundo Nunes (2012), os participantes distorcem as consequências do comportamento sexualmente abusivo por meio da minimização do trauma sofrido pelas vítimas ou pela desvalorização das consequências. Para Silva (2013), as distorções cognitivas são responsáveis pela formação de crenças desajustadas que legitimam os atos criminosos, desculpando-os, justificando-os e minimizando as consequências e gravidade, servindo de suporte para a agressão.

Negação/Minimização do Planejamento (NMP)

Ainda nas análises das DC, observou-se que os conteúdos das entrevistas confirmaram a presença da disposição dos participantes para negarem/minimizarem o planejamento, isto é, a intencionalidade contida no ato praticado. Esta categoria compreende a ausência de intencionalidade de arquitetar a agressão.

No decorrer das análises dos conteúdos, os participantes justificaram que não houve intenção da agressão, ou seja, ela não teria sido planejada, nem premeditada como um ato intencional. No entanto, percebeu-se que, mesmo que os participantes insistam em negar que a agressão fora planejada ou premeditada, o comportamento sexualmente agressivo era esperado até certo ponto, dadas as circunstâncias em que a agressão ocorrera e o histórico dos fatos relatados. A intenção do ato como algo premeditado para ferir, machucar ou agredir alguém foi negado diante da situação que se apresentou no momento: "Na verdade, eu creio que foi uma situação, tinha uma namorada que eu fiquei pensando na nossa relação, e aí teve uma vez que a gente fez sexo anal. Aí eu fiquei naquela curiosidade. Queria saber como que era." (P1, 19 anos) e "Não sabia nem onde ela morava. Ela passava na hora de ir pra escola em casa. Ela foi duas vezes à minha casa. Passava pra escola. Aconteceu em casa. Foi duas vezes que ela foi em casa à tarde" (P3, 58 anos).

Resultados similares nos estudos de Pereira (2007) e Pereira e Gonçalves (2009) foram encontrados, quando os participantes afirmaram comumente que não planejaram o ato praticado. Eles desvalorizam a conduta apresentada ao reconhecê-la como um ato que teria resultado exclusivamente das contingências do momento: as coisas aconteceram e o ato praticado resultou da existência de condições que o favoreceram.

Os participantes disseram ter agido em razão das circunstâncias apresentadas que influenciaram o comportamento deles, por exemplo, "ela foi até minha casa" ou eles estavam sob o efeito do álcool. É possível notar que os participantes alegam várias razões para negarem ou minimizarem a intencionalidade ou a premeditação da agressão praticada e sempre afirmam tratar-se de algo cometido de forma impulsiva.

Em hipótese alguma assumem que o ato praticado fora planejado ou intencional. Alguns participantes afirmam taxativamente que não pensaram no ato antes dele ter acontecido, ou seja, não o planejaram. Tal atitude parece permitir aos AASCA se considerarem menos culpados ou menos desorganizados psicologicamente (Sigre-Leirós et al., 2015; Silva, 2013).

Negação/Minimização de Tratamento (NMT)

Os dados sobre a categoria Negação/Minimização de Tratamento, que estárelacionada à necessidade expressa de ajuda, também surgiram no conteúdo das entrevistas. As justificativas utilizadas para negação do tratamento estão associadas à afirmação de que a agressão sexual contra criança/adolescente não teria qualquer chance de ocorrer novamente, uma vez que alegam ter controle sobre o comportamento doravante e, com isso, podem evitar a reincidência do ato sexual. Tal conteúdo pode ser verificado nos trechos de entrevistas feitas com os participantes: "Eu acho que pode se repetir eu não sei [...]. [...] dava de eu ter controlado, nas outras vezes eu tinha controlado. Olha eu estou com o discernimento para nunca mais isso acontecer." (P1, 19 anos)

Quando eu fiquei com ela, eu estava tranquilo. Depois que eu matei ela, eu estava irado. Pra mim, se acontecesse de novo, eu iria saber lidar com isso. Sim eu não teria dificuldade de lidar com esse comportamento e eu saberia me controlar. Se eu namorar de novo e ela me aborrecer, acho que eu vou me controlar e não vou cometer o crime novamente. (P2, 21 anos).

Outro entrevistado afirma: "Não sei não. Não vou voltar a beber não, porque lá onde meus pais estão morando agora não conheço ninguém mais não. E vou fazer amizade só com as pessoas da igreja." (P5, 20 anos).

De maneira geral, é possível perceber a relevância das distorções cognitivas no comportamento sexual, mais concretamente a influência da negação, da minimização, da DC e das crenças inapropriadas. A literatura (Nunes & Jung, 2012; Wallinius, et al., 2011) sinaliza que as principais DC estão presentes nos perpetradores e que eles têm a tendência a sobrevalorizar as atitudes autocentradas, assim como pensamentos que possibilitam aos AASCA adaptar comportamentos desviantes.

Essa DC apresenta afinidade com a anterior e corresponde à racionalização para neutralizar a consciência ou culpa, reduzindo o stress que pode aparecer devido à culpabilização por empatia ou dissonância cognitiva, causada pela agressão sexual (Ó Ciardha et al., 2016). As justificativas e pensamentos racionais são utilizados para fundamentar os atos agressivos e a função da racionalização seria proteger a identidade social do indivíduo, retirando os estigmas sociais daquele comportamento indesejado. É esse comportamento de desculpabilização que suaviza ou elimina a exigência de responsabilidade e apela para a pouca probabilidade do acontecimento ou culpabiliza a vítima por ter iniciado o próprio ato criminoso (Wallinius et al., 2011).

Nesse caso, a DC consiste em aceitar a responsabilidade por um comportamento particular, mas não o estigma a ele associado. Para Wallinius et al. (2011), os mecanismos que ativam ou inibem os comportamentos estão relacionados a justificações morais, rótulos eufemísticos, comparações vantajosas, deslocação da responsabilidade, distorção das consequências dos atos, desumanização e atribuição equivocada de culpa. Estas estratégias verbais são a forma como os autores da violência sexual veem as próprias agressões e como interferem na própria conduta e no processo terapêutico.

Em contrapartida, verifica-se que as explicações dadas pelos AASCA sobre os comportamentos deles têm variado ao longo do tempo. Ainda assim, continuam sendo utilizadas para evitar que eles assumam, completa ou parcialmente, a responsabilidade pelo ato criminoso.

 

Considerações Finais

O objetivo desta pesquisa foi alcançado à medida que se procurou identificar e analisar as distorções cognitivas identificadas no conteúdo das entrevistas, e relacioná-las às características relatadas dos participantes. Assim, a pesquisa procurou discutir as DC, conceituadas como crenças construídas ao longo do desenvolvimento humano, a partir dos discursos dos participantes, considerando as características do contexto mais imediato ou mais remoto.

Neste sentido, foi possível identificar, no conteúdo das entrevistas, evidências da presença de distorções cognitivas. As DC estão permeadas pela trajetória de vida dos autores de agressão sinalizando a presença de justificativas para a perpetração, seja pela tentativa de culpabilização da vítima, pelo ato mediante uso da força física, pelo uso do argumento de estar sob efeito de álcool ou outras drogas, seja pela minimização das consequências, entre outros (Nogueira, 2010; Pereira, 2007; Ware, Marshall, & Marshall, 2015).

Os resultados mostraram que os AASCA apresentam distorções cognitivas, pois percebem a agressão de acordo com as crenças estabelecidas, tentando de uma forma ou de outra justificar o ato perpetrado (Fernandes, 2022; Petruccelli et al., 2022; Reis & Cavalcante, 2019). Como relatado na literatura, tais crenças têm sido utilizadas para justificar, minimizar e negar os atos sexuais praticados contra criança e adolescente (Brown et al., 2013; Nicol et al., 2022; Nogueira, 2020; Ware et al., 2018).

Considerando a contribuição teórica, este estudo aponta para uma discussão recente, sobretudo, no Brasil, no sentido de testar hipóteses teóricas a partir de investigações empíricas, por exemplo, as DC como parte das características da pessoa e da promoção dos processos proximais. Pensar esse tipo de pesquisa pode contribuir não só para testar e validar teorias, mas também, em termos acadêmicos, para a formação profissional de alunos que irão atuar em diferentes setores das políticas públicas. A relevância social desse tipo de pesquisa referenda a aplicabilidade no campo das políticas públicas, à medida que possibilita a proposição de ações, métodos de intervenção psicossocial e técnicas mais eficazes, propiciando a minimização do desperdício de recursos e de tempo, diminuindo a chance de reincidência e estimulando a promoção do retorno à convivência em sociedade.

Observa-se que, para a aplicação e desenvolvimento de políticas públicas voltadas para o enfrentamento do fenômeno da violência sexual, é necessário conhecer as características biopsicossociais dos AASCA, as distorções cognitivas apresentadas por estes, e a suas respectivas trajetórias de vida. Assume-se que conhecer as distorções cognitivas pode fornecer subsídios de enfrentamento da possibilidade da reincidência à medida que contribui para prevenir padrões de risco e desenvolver estratégias psicoeducativas, entre outras que têm sido aplicadas por profissionais que trabalham diretamente com os AASCA nos centros de privação de liberdade. Tais medidas podem possibilitar a elaboração de programas de acompanhamento mais eficazes para a promoção da autonomia e reinserção à sociedade.

Sugere-se a necessidade de novos estudos empíricos que conduzam uma análise em termos quantitativos e qualitativos sobre as DC. Um aporte quantitativo pode ser uma opção, no sentido de mensurar as DC por escalas, testes e inventários que permitam acessar padrões de pensamento distorcido entre AASCA, aspecto não utilizado nesta pesquisa.

Sugere-se que pesquisas futuras considerem a temática, a fim de se realizar estudos comparando AASCA intra e extrafamiliar, assim como estabelecendo comparação com autores de agressão sexual de adultos, utilizando uma amostra de participante mais ampla. Ainda quanto à realização de pesquisas futuras sobre o AASCA, propõe-se a investigação com autores femininos, com agressores homossexuais e com agentes de múltiplas agressões sexuais, no sentido de se ampliar o conhecimento sobre as DC nessas populações.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Daniela Castro dos Reis - danireispara@gmail.com

Recebido em: 28/04/2023
Aceito em: 05/03/2024

 

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado da primeira autora (CNPq).

 

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