Estudos e Pesquisas em Psicologia
2023, Vol. 01. doi:10.12957/epp.2023.75308
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Função de Cuidar na Educação Infantil: Contribuições de Grupos de Discussão de Trabalho com Educadoras

 

Amanda Schöffel Sehn*; Rita de Cassia Sobreira Lopes**
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

As educadoras que atuam na Educação Infantil participam da subjetivação de bebês e crianças pequenas, o que pode ser extremamente exigente. Nesse sentido, este estudo teve como objetivo oferecer um espaço de escuta para educadoras, com vistas a refletir sobre os desafios da função de cuidar de bebês e crianças bem pequenas na Educação Infantil. Foram realizadas duas edições de um grupo de discussão de trabalho, nas quais participaram cinco educadoras. O material produzido no grupo de discussão de trabalho, juntamente com relatos discutidos em supervisão, foi analisado qualitativamente, a partir de análise temática indutiva. Os resultados evidenciam que o cuidado exige presença, previsibilidade, intimidade e sensibilidade, o que, muitas vezes, é solicitado pelos próprios bebês/crianças que convocam o adulto. Entretanto, responder a essas demandas de forma individualizada num ambiente coletivo pode trazer desconforto, mal-estar e angústia. O grupo de discussão de trabalho oportunizou às educadoras tomarem consciência de como se utilizavam, por vezes, de um estilo de cuidado mais mecanizado e controlador, de forma a se protegerem dessas demandas. Em síntese, o bebê/criança desacomoda o adulto e o convoca a (re)pensar sobre seu fazer, apontando a importância de espaços de escuta e reflexão aos profissionais da educação.

Palavras-chave: grupo de discussão de trabalho, educação infantil, função de cuidar, psicanálise.


 

Role of Caring in Early Childhood Education: Contributions from Working Discussion Groups with Educators

 

ABSTRACT

Working in Early Childhood Education implies that the adult caregiver participates in the subjectivation of babies, which can be extremely demanding. This study aimed to offer a listening space for nursery educators to reflect on the challenges of the role of caring for babies and very young children in Early Childhood Education. Two editions of the work discussion group were held, in which five educators participated. The material was qualitatively analyzed, considering the inductive thematic analysis. The results showed that care requires presence, predictability, intimacy, and sensitivity, requests often made by the babies and the children themselves who call the adult to respond from this place. However, responding to this demand individually in a collective environment can bring discomfort, malaise, and anguish. The group made it possible for educators to become aware of how they used a more mechanized and controlling style of care, to protect themselves from these demands. In summary, the baby and the children discomfort the adult and invite him/her to (re) think about his actions, pointing out the importance of spaces for listening and reflection to education professionals.

Keywords: work discussion group, early childhood education, childcare, psychoanalysis.


 

Función de Cuidado en la Educación Infantil: Grupos de Discusión de Trabajo con Maestros

 

RESUMEN

TrabajarenEducación Infantil implica que el adulto cuidador participe enlasubjetivación de los bebés, lo que puede ser extremadamente exigente. Por eso, este estudio tuvo como objetivo ofrecer un espacio de escucha a los educadores, con el fin de reflexionar sobre los retos del cuidado de los bebés y niños muy pequeños en la Educación Infantil. Se realizaron dos ediciones de los grupos de discusión de trabajo, en las que participaron cinco educadores. El material fue analizado cualitativamente, a partir del análisis temático inductivo. Los resultados muestran que el cuidado requiere presencia, previsibilidad, intimidad y sensibilidad, peticiones, muchas veces, realizadas por los propios bebés y niños que convocan al adulto. Sin embargo, responder a esta demanda de forma individual en un entorno colectivo puede traer malestar y angustia. Los grupos hizo posible que los educadores tomaran conciencia de cómo utilizaban un estilo de atención más mecanizado y controlador, para protegerse de estas demandas. En resumen, el bebé y los niños incomodan al adulto y lo invitan a (re) pensar en sus acciones, señalando la importancia de los espacios de escucha y reflexión de los profesionales de la educación.

Palabras clave: grupo de discusión de trabajo, educación infantil, función de cuidar, psicoanálisis.


 

 

A Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica, a qualpossibilita a participação do bebê/criança pequena em um contexto social diferente do familiar,o que pode contribuir para o desenvolvimento integral na primeira infância (Elfer & Deanrley, 2007). Portanto, a escola não deve ser entendida como a extensão do ambiente doméstico, pois o vínculo estabelecido nesse contexto entre os profissionais e o bebê/criança pequena é diferente daquele que é construído entre pais e filhos (Elfer, 2012; Mariotto, 2009). Além disso, trata-se de um ambiente coletivo, com vários bebês e crianças para cada educador(a) 1, e não um ambiente privado, como pode ser o doméstico, sobretudo nas camadas médias e altas das sociedades ocidentais e capitalistas, numa relação um a um. Isso sugere que os cuidados da criança transcendem o núcleo familiar, especialmente em contextos como o brasileiro, em que diferentes cuidadores estão implicados no processo de subjetivação psíquica da criança (Brandão & Kupfer, 2014; Mariotto, 2009).

Inúmeras discussões surgem no campo da Educação e da Psicanálise, com o intento de situar o lugar que o(a) educador(a)ocupa na subjetivação do bebê (Brandão &Kupfer, 2014; Dias, 2016; Mariotto, 2009), pois muitas crianças têm passado mais tempo no ambiente escolar do que no familiar (Mariotto, 2009; Wiles& Ferrari, 2020). Nesse sentido, coloca-se o desafio de transitar entre o discurso privado da família e o coletivo da escola, com vistas a circunscrever a função de cuidar, que pressupõe o educar enquanto ação implicada no ato de cuidado, salientando a indissociabilidade entre os dois conceitos, como parte do trabalho dos(as) educadores(as) (Dias, 2016; Wiles & Ferrari, 2020).

A função de cuidar de um bebê exige presença, previsibilidade e intimidade, o que pode se tornar um desafio quando as educadoras não compartilham uma história em comum com a criança, encontram-se num ambiente coletivo e recebem pouca formação e suporte para exercer essa função (Wiles & Ferrari, 2020). Inclusive, cabe lembrar que a condição de fazer laço com o bebê sequer pode ser ensinada, pois se refere à possibilidade de o(a) educador(a) investir libidinalmente 2 num sujeito em processo de subjetivação, o que implica que ele(a) se coloque a partir do seu desejo enquanto sujeito e profissional na relação com o bebê (Brandão & Kupfer, 2014). Assim, o trabalho do professor na Educação Infantil não está relacionado apenas à transmissão de conteúdos formais, que aliás, pouco reflete a forma de aprendizado nessa faixa etária (Martins et al., 2019; Wiles & Ferrari, 2020).

O profissional da Educação Infantilé convocado, muitas vezes pelos próprios bebês e crianças pequenas, para serum ponto de referência em seu vir a ser, participando do seu processo de subjetivação (Figueiredo, 2009; Mariotto, 2009). Para isso, Figueiredo (2009) propõe que o cuidar, em suas diferentes faces e em variados contextos, envolve a presença implicada, assim como a presença em reserva. Em outras palavras, o autor refere que aquele que cuida de um outroestá comprometido e atuante, no sentido de identificar e atender às necessidades deste sujeito (ex.: trocar fralda, alimentar etc.). Ao mesmo tempo, o cuidador se coloca como presença em reserva, o que implica em um cuidar silencioso, representado pela presença que responde quando e se for necessário(ex.: colo, apoio em alguma tarefa etc.). Nesse sentido, devido ao intenso trabalho emocional envolvido na função de cuidar, a atividade laboral de educadores(as) que atendem essa faixa etária tem sido descrita como complexa (Elfer, 2012; Polli & Lopes, 2017).

Além disso, as práticas de cuidado, especialmente aquelasrelacionadas ao corpo, como troca de fraldas e alimentação, tendem a ser desqualificadas e menosprezadasna Educação Infantil, conforme relatado em outros estudos (Almeida & Valentini, 2013; Elfer & Deanrley, 2007; Puccinelli & Silva, 2020). Já o educar é entendido como as práticas pedagógicas que caracterizam o principal trabalho do professor (Mariotto, 2009; Martins et al., 2019), levando a uma antecipação da escolarização de bebês e crianças pequenas, conforme sugerem Polli e Lopes (2020). Por ser considerado um trabalho inferior que demanda maior contato físico e, em tese, não exige outras competências da criança e do profissional (Dias, 2016; Elfer & Deanrley, 2007), o cuidado tende a ser realizado de forma a desconsiderar o investimento nas interações afetivas (Almeida & Valentini, 2013; Pessôa et al., 2016).

A dificuldade em reconhecer a importância do cuidado também pode estar associada aos sentimentos que o contato próximo e íntimo com o bebê e a criança pequena desperta, que vão desde satisfação e alegria, até raiva, culpa e ansiedade (Elfer et al., 2018a; Stammers & Williams, 2019; Wiles & Ferrari, 2020). Assim, as educadoras estão sujeitas a projeções intensas de sentimentos das crianças (Elfer & Deanrley, 2007; Elfer et al., 2018b; Polli & Lopes, 2017), o que pode aproximá-las de suas próprias infâncias (Zornig, 2010).

Para Brandão e Kupfer (2014), participar da subjetivação de bebês na Educação Infantil implica que o(a) profissional se mostre interessado em escutá-los ao invés de privilegiar uma proposição pedagógica que considera o anonimato (Mariotto, 2009). Isso coloca em cena o receio em estabelecer vínculo por medo de ocupar um lugar de substituto da função parental (Elfer, 2012; Mariotto, 2009). Devido a isso, muitas vezes, os profissionais da Educação podem adotar práticas de cuidado múltiplo e indiscriminado, que pressupõem interações breves, em que qualquer adulto pode realizar as tarefas para qualquer bebê ou criança, sem continuidade e atenção individualizada (Elfer et al., 2018a; Mariotto, 2009).

Diferentes documentos voltados à Educação Infantil têm preconizado a indissociabilidade entre cuidar e educar, como sugere a Base Nacional Comum Curricular (Ministério da Educação [MEC], 2017). Com vistas à formação humana integral, esse documento propõe como eixo estruturante do trabalho pedagógico a centralidade na criança e nas interações e brincadeiras, apontando para a indissociabilidade entre cuidar e educar. Entretanto, muitas vezes, os(as) educadores(as) se deparam com condições precárias do seu próprio percurso formativo, que dificultam a sustentação dessa posição (Almeida & Valentini, 2013; Mariotto, 2009; Monção, 2015; Wiles & Ferrari, 2020), além de rotinas rígidas nas escolas e ausência de estrutura e de profissionais (Mariotto, 2009; Pessôa et al., 2016).

Em conjunto, esses aspectos ilustram a complexidade emocional envolvida no trabalho com bebês e crianças pequenas, o que é pouco discutido nas instituições de Educação Infantil (Martins et al., 2019; Oliveira et al., 2020; Page & Elfer, 2013), demonstrando a necessidade de espaços de escuta às educadoras (Elfer et al., 2018a; Polli & Lopes, 2017; Wiles & Ferrari, 2020). Uma proposta de intervenção nessa direção é o Grupo de Discussão de Trabalho (WorkDiscussion) (GDT), com raros estudos no campo da Psicologia, no contexto brasileiro, apesar de ser reconhecido internacionalmente como um recurso efetivo para a formação de professores (Elfer et al., 2018a; Elfer et al., 2018b; Hover-Reisner et al. 2018). Trata-se de um dispositivo formativo, que tem como principal objetivo oportunizar a reflexão acerca da complexidade das interações estabelecidas no trabalho, visando a troca de experiências e o reconhecimento das diferentes emoções que atravessam a atividade laboral (Elfer et al., 2018a).

Os resultados de estudos realizados na Inglaterra e Áustria, por exemplo, evidenciam que o GDT contribui para a observação dos profissionais da Educação Infantil, favorecendo uma resposta mais sensível às situações emocionalmente exigentes (Elfer et al., 2018b), bem como para a capacidade de mentalização dos professores (Hover-Reisner et al., 2018). Outros estudos têm apontado a importância de fomentar reflexões sobre as práticas dos profissionais da Educação (Oliveira et al., 2020; Polli & Lopes, 2017; Wiles & Ferrari, 2020), como forma de contribuir com as funções exercidas pelos educadores(as), possibilitando um fazer crítico, sensível e criativo (Hover-Reisner et al., 2018; Oliveira et al., 2020).

Para tanto, é fundamental escutar as educadoras que atuam junto aos bebês e às crianças, bem como oferecer suporte para que elas possam sustentar a função de cuidar na Educação Infantil. Com base no exposto, o presente estudo teve como objetivo oferecer um espaço de escuta para educadoras, com vistas a refletir sobre os desafios da função de cuidar de bebês e crianças bem pequenas na Educação Infantil.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo cinco educadoras que atendiam bebês e crianças pequenas em turmas de berçário e maternal de três escolas da rede municipal de Educação Infantil de Porto Alegre/RS. As educadoras participaram de duas edições do GDT, que foi inspirado no modelo proposto pela Clínica Tavistock (Elfer, 2012): a primeira edição, realizada em novembro de 2018, contou com a participação de cinco educadoras, e a segunda, ocorreu em junho de 2019, com a presença de três educadoras que haviam comparecido na edição anterior. Na primeira edição do GDT, as profissionais tinham idades entre 26 e 59 anos e diferentes níveis de escolaridade,dados que se encontram detalhados na Tabela 1. Os bebês e as crianças pequenas atendidos pelas educadoras na primeira e na segunda edição dos grupos tinham idades entre 6 meses e 3 anos e 6 meses. Cabe ressaltar que as educadoras trouxeram relatos relativos a diferentes momentos da experiência profissional, não fazendo referência apenas às crianças atendidas no momento das duas edições do GDT. As educadoras participaram de um estudo maior, intitulado "Inclusão de bebês com deficiência - Projeto Incluir", a partir do qual foram convidadas para os encontros do GDT.

 

 

Delineamento, Procedimentos e Instrumentos

Trata-se de um estudo qualitativo, cujo primeiro contato foi realizado com a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED) para autorizar a realização da pesquisa e obter dados acerca das escolas. Em seguida, a direção das escolas foi contatada e foi realizado um encontro individual com cada educadora, na escola, para apresentar o estudo, de modo que foram explicados os objetivos e as etapas da pesquisa. Com aquelas que manifestaram interesse, foi explicado e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Nesse encontro individual, as participantes responderam a entrevistas, cujos dados não serão apresentados neste estudo. Após a conclusão das entrevistas, cada educadora foi novamente contatada individualmente via ligação telefônica para verificar o interesse e a disponibilidade para participar do GDT, quetinha como objetivo oferecer um espaço de escuta e de reflexão, voltado especificamente para profissionais da Educação, para que pudessem compartilhar seus sentimentos e preocupações relacionadas ao trabalho.

A definição de datas e horário ocorreu junto às educadoras que manifestaram interesse em participar do GDT. Os encontros foram realizados em uma sala do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) e aconteciam uma vez por semana, totalizando três encontros, com duração média de 1 hora e 30 minutos cada. As temáticas dos grupos eram trazidas pelas próprias educadoras, sendo que as participantes foram encorajadas a partilharem os desafios e as suas experiências acerca do trabalho na Educação Infantil.

Os grupos foram conduzidos por três facilitadores que mediaram o diálogo com as profissionais da Educação - a primeira autora deste estudo e dois bolsistas de Iniciação Científica - sendo que aquela foi responsável pela coordenação das atividades, enquanto estes privilegiaram a observação das interações grupais. Cada encontro se iniciava com a solicitação dos facilitadores às educadoras para que compartilhassem as suas questões e/ou alguma experiência que quisessem dividir. Geralmente eram feitas perguntas amplas, por exemplo: "Como vocês estão?", "O que vocês gostariam de compartilhar?". Ao final de cada encontro, os facilitadores escreviam relatos individuais acerca do grupo com a descrição dos acontecimentos e com suas impressões, somando nove relatos em cada edição do GDT (ao total foram produzidos 18 relatos). Posteriormente, esses relatos eram lidos e discutidos em supervisão semanal com duração média de 2 horas, coordenada pela segunda autora deste estudo. Em ambas as edições foram utilizados os mesmos procedimentos.

O presente estudo atende às diretrizes éticas da resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde que regulamenta as condições da pesquisa envolvendo seres humanos e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da UFRGS sob o protocolo no 79121717.0.0000.5334.

Análise dos Dados

A partir da leitura exaustiva dos 18 relatos da primeira e da segunda edição dos grupos, elaborados a partir das escritas dos facilitadores sobre os encontros do GDT e da supervisão, foi conduzida uma análise temática indutiva (Braun & Clarke, 2006), na qual os temas não são elencados previamente, mas sim construídos a partir dos próprios dados coletados. Após a familiarização com o material, foi realizada uma codificação inicial, visando o agrupamento de ideias sobre uma mesma temática, que gerou os primeiros temas. Na sequência, esse material foi revisado, visando à similaridade no conteúdo dentro de cada tema, bem como a distinção entre os temas (Braun & Clarke, 2006). Dúvidas sobre a classificação do material foram discutidas entre a primeira e a segunda autora.

Após análise e discussão, os dados foram organizados em dois grandes temas, a saber: 1) "Como oferecer um cuidado de qualidade aos bebês se eles são tantos e nós tão poucas?": os desafios do cuidado coletivo de bebês/crianças na Educação Infantile 2) "Não [dá para] se apegar demais": os desafios acerca da vinculação educadora-bebê/criança. As vinhetas foram nomeadas com a seguinte legenda: Ed para designar a edição do GDT, podendo ser Ed1 ou Ed2, para a primeira ou segunda, respectivamente; Enc para designar o número do encontro dentro de cada edição, podendo ser Enc1, Enc2 ou Enc3; e F para designar o facilitador, podendo ser F1, F2, F3.

 

Resultados

1) "Como Oferecer um Cuidado de Qualidade aos Bebês se Eles são Tantos e Nós Tão Poucas"?: Os Desafios do Cuidado Coletivo de Bebês/Crianças na Educação Infantil

Esse tema agrupa os diferentes desafios que atravessam a função de cuidar, assumida pelas educadoras na Educação Infantil, os quais foram compartilhados nas duas edições do GDT.As educadoras, ao receberem os bebês e as crianças bem pequenas na creche, são responsabilizadas pelo cuidado e pela educação desses pequenos sujeitos. Isso inclui exercer os cuidados voltados ao corpo (como sono, alimentação e troca de fraldas) e ao processo de aprendizagem (como o brincar e a realização de atividades pedagógicas), ambos fundamentais para o processo de subjetivação psíquica dos bebês, apesar de serem tarefas descritas como desafiadoras pelas educadoras no GDT.

Logo no momento inicial de apresentação do grupo, as profissionais compartilharam espontaneamente suas angústias relacionadas à Educação Infantil, como o grande número de bebês nas salas diante de um número pequeno de educadoras. Essa questão foi apontada e retomada pelas participantes nas duas edições do GDT, em diversos momentos. No entendimento dessas profissionais, o número restrito de educadoras em sala dificultava um "cuidado de qualidade", que implica presença, previsibilidade e intimidade. Por isso, costumavam seguir a rotina coletiva (ex.: horário de sono, do lanche etc.) para dar conta de atender todas as demandas. Nesse sentido, as educadoras se questionaram: "como oferecer um cuidado de qualidade aos bebês se eles são tantos e nós tão poucas?" (Ed1, Enc1, F1).

As profissionais também relataram que, por vezes, o cuidado tendia a ser realizado de forma mecânica, sendo que cada educadora era responsável por um determinado número de bebês para trocar a fralda, alimentar e acompanhar as atividades de forma mais próxima. Devido ao grande númerode crianças, passavam a maior parte da rotina trocando fraldas e alimentando-as. Uma estratégia encontrada pelas profissionais para lidar com os momentos de maior agitação dos bebês era a contenção do corpo e o controle por meio de comandos verbais, tais como: "não gritem, não corram, fiquem sentados, etc." (Ed1, Enc1, F1). Estes pedidos demandavam grande esforço por parte das educadoras e dificilmente eram atendidos. Uma educadora trouxe como exemplo que, durante as refeições na creche, geralmente se solicitava aos bebês que não gritassem, não falassem alto e não fizessem algazarra, exigências que elas próprias, quando estavam reunidas na hora do intervalo ou em alguma confraternização, dificilmente conseguiam cumprir (ex.: ao estarem reunidas costumavam falar alto, conversar e dar risadas, inclusive nos seus próprios intervalos).

As educadoras discutiram ainda sobre as diferentes dinâmicas das escolas no momento das refeições, sendo que em algumas é necessário ir ao refeitório, enquanto outras têm espaço para realizar a refeição na própria sala. Apontaram algumas críticas em relação aos horários pré-estabelecidos para a Educação Infantil, em particular, para o berçário/maternal, pois geralmente é necessário agilizar a refeição para outra turma utilizar o refeitório. Embora nem todas as instituições tenham possibilidade de rever suas rotinas, devido ao espaço e ao número de funcionários disponíveis, as educadoras parecem se dar conta de que era possível uma mudança na forma como elas conduziam esses momentos juntos às crianças.

As exigências solicitadas à turma também acabavam sendo física e emocionalmente desgastantes para as educadoras que, numa tentativa de controle do comportamento das crianças, queriam que todas ficassem em silêncio e obedecessem, quando isso dificilmente acontecia. Nesta direção, um exemplo que as profissionais trouxeram foi o falar alto, como uma forma de "assumir o comando", para justamente não "perder o controle das crianças" (Ed1, Enc1, F3). Para as educadoras, "erguer o tom da voz" era uma tentativa, na maioria das vezes fracassada, de assumir o controle para não ser controlada.

Essas práticas também levavam a um cuidado não singularizado, ou seja, a uma exigência de que todas as atividades e/ou cuidados fossem realizados no mesmo tempo, sem considerar os diferentes ritmos de desenvolvimento (ex.: solicitar que todas as crianças dormissem em determinado horário). Para as educadoras, essa concepção de cuidado seria mais confortável, pois evitaria entrar em contato com a singularidade e a necessidade de cada criança, produzindo uma ação "em série" (ex.: trocar as fraldas de todos os bebês, um após o outro). No entanto, parece ser justamente a intenção de controle que faz com que a criança, em parte, desafie a educadora e não cumpra as suas exigências, o que era desgastante e gerava ainda mais trabalho para as profissionais. Por outro lado, muitas vezes, as educadoras esbarravam em direções, além de outros obstáculos (ex.: ausência de recursos e de estrutura física etc.), para os quais não havia concessões, o que dificultava a execução de um trabalho que considerasse o sujeito antes do planejamento pedagógico.

As profissionais também referiram que, muitas vezes, exigiam que a criança lidasse bem com situações que sequer os adultos conseguiam manejar. Inclusive, a cobrança das educadoras em relação às crianças parecia refletir, em parte, a própria dificuldade delas em lidar com as situações. Essas exigências das educadoras dirigidas às crianças também podem estar associadas à reflexão que surgiu no GDT sobre os desafios que o contato com o bebê e a criança pequena coloca para o adulto.

2) "Não [dá para] se Apegar Demais": Os Desafios Acerca da Vinculação Educadora-Bebê/criança

Esse tema discorre sobre os desafios acerca da vinculação da educadora na relação com os bebês e as crianças pequenas. Segundo as profissionais que participaram do GDT, criar vínculo com os bebês e as crianças pequenas implicava em entrar em contato com sentimentos ambivalentes, o que costumava ser evitado.

É possível afirmar, a partir dos grupos, que o bebê provoca o encontro da educadora com sua própria história, o que por si só pode ser extremamente angustiante. A educadora também é convocada a se deparar com a dependência e a vulnerabilidade do bebê, condições inerentes à natureza humana que, por vezes, causam desconforto e mal-estar. Como exemplo, uma educadora referiu que o trabalho no berçário era isolado, devido à localização e ao tamanho da sala, aos horários das atividades (ex.: almoço mais cedo e lanches realizados na sala) e à impossibilidade de olhar para fora/para a rua, pois o contato ficava restrito à equipe do berçário. Em função disso, descrevia-se como estando "presa/enjaulada junto aos bebês" (Ed1, Enc1, F1/F2), mencionando sobrecarga e cansaço diante dessa intensa rotina de trabalho. Assim, estar "enjaulada" com os bebês e não ter muitas possibilidades de "olhar para fora" convocava, em parte, ao extenuante trabalho de voltar-se para si.

De forma semelhante, uma educadora compartilhou uma situação em que "ela não conseguia se vincular com uma menina, pois ela [educadora] simplesmente não a suportava" (Ed2, Enc2, F2), mas pôde reconhecer o quanto isso se referia à sua história pessoal. No GDT, as profissionais pareciam se dar conta de que refletir sobre a relação educadora-criança é fundamental, o que inclui reconhecer o seu limite pessoal e profissional, no sentido de não oferecer para além daquilo que ela dá conta de suportar internamente. O colo pode ser um exemplo disso, uma vez que é um cuidado que muitas educadoras não costumam oferecer, por entender que deixariam os bebês e as crianças pequenas "manhosas". Essa recusa elucida, em parte, a dificuldade do(a) profissional em compreender, o que significa oferecer colo a um bebê em processo de subjetivação psíquica. Relaciona-se, ainda, aos sentimentos ambivalentes presentes no encontro com o bebê/criança pequena e, consequentemente, no seu cuidado.

Nessa direção, parece haver um entendimento de que, ao se aproximar do bebê com afeto e intimidade, a educadora poderia ocupar e/ou substituir o lugar materno e paterno, quando seu vínculo com o bebê deveria ser estritamente profissional, levando-a a privilegiar certo distanciamento das crianças para "não se apegar demais" (Ed1, Enc1, F2). Por isso, outra questão que dividia as educadoras era acompanhar a mesma turma ao longo dos anos (ex.: atender a turma de berçário I e seguir no berçário II) ou deixar as crianças seguirem com outros profissionais na virada do ano letivo. Em ambas as situações era exigido que as educadoras se separassem dos bebês, processo descrito como difícil e doloroso, devido ao tempo de convivência, mesmo que elas "evitassem se apegar" (Ed1, Enc1, F2).

Diferentemente dos bebês, as educadoras se referiam às crianças da pré-escola (ao mencionar experiências anteriores), que têm idades entre quatro e cinco anos, como "os alunos mais velhos" que não precisariam de tantos cuidados, especialmente os de ordem afetiva. Essa forma de se dirigir às crianças maiores da Educação Infantil é comum na escola, mas, para as profissionais que participaram do GDT, anteriormente à aprendizagem existiam outras necessidades que precisariam ser atendidas. Como exemplo, uma das educadoras relatou: "ele tem que escrever o próprio nome, mas ele não consegue nem entrar na creche sem chorar, depois ele aprende a escrever o nome dele!" (Ed2, Enc1, F2). Nessa direção, outra educadora apontou que "os grandes também precisam de colo" (Ed2, Enc1, F1), na tentativa de ilustrar o quanto os aspectos pedagógicos, muitas vezes, se sobrepõem aos de cuidado no espaço da creche e da pré-escola.

Sentimentos ambivalentes estavam presentes no espaço da Educação Infantil, especialmente no manejo de situações conflitivas. Por exemplo, as educadoras relataram que adotavam uma postura mais incisiva em alguns momentos, na tentativa de "acalmar" as crianças bem pequenas, como nas seguintes vinhetas compartilhadas pelas profissionais no GDT: "se tu não parar tu vais ficar de castigo no meu colo", "se tu continuares fazendo essa bagunça eu vou dar [comida] na tua boca" (Ed1, Enc2, F1). Ao trazer essa afirmação para o GDT, a educadora refletiu sobre o duplo sentido que ela poderia transmitir à criança, na medida em que "dar na tua boca" também poderia significar "eu vou te bater", embora esta não fosse a sua intenção. Ao mesmo tempo, as reflexões trazidas evidenciam como é desafiador e, muitas vezes, tarefa impossível, nesse ambiente coletivo, acolher as comunicações não verbais do bebê e da criança pequena, já que fazer bagunça/estar agitado pode ser a forma que a criança encontra para expressar aquilo que ela deseja ou até mesmo seu entusiasmo ou (des)prazer.

A imposição do medo como forma de controle foi outro assunto discutido, quando as profissionais destacaram que as crianças agiam de maneiras diferentes, conforme a educadora. Referiram que a mesma turma, por vezes, é mais silenciosa com um educador e mais agitada com outro, o que indicava a capacidade da criança de discriminar a forma com que poderia se manifestar com cada adulto. Quando do início de suas práticas profissionais, entendiam que não ter esse "controle" sobre a turma era um "defeito" do trabalho delas (Ed2, Enc2, F2), mas com o passar do tempo puderam perceber que não concordavam com essa postura.

Uma experiência descrita como fonte de muita angústia foi compartilhada no GDT por três educadoras, que atendiam a mesma criança na turma de berçário e foram acusadas pela mãe de "não terem cuidado direito da menina" (Ed1, Enc3, F1), pois ela havia se machucado durante o turno letivo. Entretanto, as educadoras alegavam que a criança já tinha chegado na escola com alguns arranhões. Essa situação gerou um desconforto na relação entre família e escola e fez com que, amparadas pela direção, as profissionais adotassem uma rotina de verificação do corpo da menina, como uma espécie de vistoria, na tentativa de identificar possíveis marcas/machucados para evitar futuras acusações. A partir desse caso, é possível pensar no quão constrangedora se tornou essa situação para todos os envolvidos, em especial para a criança, que tinha seu corpo verificado diariamente como se fosse um objeto. Diante disso, cabe questionar a quem se dirige esse ato de verificação, pois certamente não é para o bem-estar e o cuidado da criança pequena.

 

Discussão

O objetivo deste estudo foi oferecer um espaço de escuta para educadoras, com vistas a refletir sobre os desafios da função de cuidar de bebês e crianças bem pequenas na Educação Infantil. Por meio do material produzido nas duas edições do GDT, foi possível identificar que as educadoras, ao compartilharem as suas experiências, puderam produzir questões e reflexões acerca do seu fazer profissional, especialmente sobre a função de cuidar. Cabe destacar que apesar das diretrizes legais no campo da Educação Infantil, como as apresentadas pela BNCC (MEC, 2017), ainda há dissonâncias entre o proposto na legislação e o trabalho efetivo dos(as) educadores(as). Nesse sentido, o espaço de escuta oferecido pelo GDT oportunizou que as profissionais da Educação pudessem compartilhar os desafios da complexa função de cuidar de bebês e crianças pequenas.

Uma queixa apontada pelas profissionais se referia ao grande número de bebês/crianças por educadora, aspecto também destacado em outros estudos (Almeida & Valentini, 2013; Brandão & Kupfer, 2014; Martins et al., 2019; Wiles & Ferrari, 2020). Em função do número reduzido de profissionais, há diminuição da atenção individualizada aos bebês, bem como menos momentos para o brincar livre devido ao atendimento de necessidades de higiene e alimentação, por exemplo (Almeida & Valentini, 2013; Pessôa et al., 2016). Isso também acaba sobrecarregando a educadora em termos de atividades a cumprir no trabalho, uma vez que cada profissional tende a ser responsável por até oito bebês com idade entre zero e dois anos (Brandão & Kupfer, 2014; Oliveira et al., 2020).

Essa situação faz com que o cuidado oferecido, em parte, seja realizado de forma mecanizada, como uma ação que se caracteriza muito mais por ser automática do que construída a partir da demanda e da relação com o bebê/criança pequena, conforme exposto pelas educadoras no GDT. Dificilmente eram respeitados os ritmos e as particularidades de cada um, realidade que é comum em muitas escolas de Educação Infantil, como destaca Martins et al. (2019). O funcionamento rígido de algumas escolas também acaba por dificultar esse olhar à singularidade do bebê e da criança pequena. De acordo Mariotto (2009), parece que a via escolhida por aqueles que cumprem a função de cuidar junto às crianças na escola de Educação Infantil têm se dado a partir do anonimato e da execução de um projeto pedagógico, dentro de uma perspectiva padronizante e tecnocrata, o que pode culminar em um risco para o processo de subjetivação psíquica desses pequenos sujeitos. Isso pode se associar à necessidade de realizar atividades pedagógicas, como se brincar não fosse condição importante e suficiente para este momento do desenvolvimento (Oliveira et al., 2020; Polli & Lopes, 2020).

O controle também foi mencionado no GDT como uma estratégia, muitas vezes, confundida com cuidado. Tentativas de controlar o corpo do bebê e da criança ou aumentar o tom de voz com o objetivo de serem respeitadas eram formas que as educadoras encontravam para lidar com muitas situações. A condição de maior dependência e de comunicação não verbal dos bebês e crianças bem pequenas pode levar o adulto a ações mais diretivas e menos sensíveis, segundo Martins et al. (2019). O fato de que a reação das crianças a tais condutas costuma ser mais passiva e menos explícita pode contribuir para que essas ações, justificadas por seu fim pedagógico, sejam realizadas na Educação Infantil (Page & Elfer, 2013; Martins et al., 2019; Wiles & Ferrari, 2020). É importante destacar que a tentativa de controlar a situação de sala de aula pode trazer ainda mais sobrecarga física e emocional para a educadora. Trata-se de uma tentativa em vão, que acaba produzindo um ambiente de estresse para os bebês e as crianças e para a própria educadora (Elfer, 2012).

O controle tende a se mostrar ineficaz no espaço coletivo da Educação Infantil, pois o envolvimento e a participação efetiva da criança são mais importantes do que o interesse de que todos façam a mesma atividade ao mesmo tempo ou estejam em silêncio. Isso pode ser construído por meio da escuta sensível do bebê e da criança bem pequena, que comunicam o seu engajamento em uma atividade por meio de manifestações verbais e não-verbais, o que inclui o olhar e as expressões corporais e faciais (Martins et al., 2020; Oliveira et al., 2020; Polli & Lopes, 2017; Puccinelli & Silva, 2020). É nessa direção que o trabalho da educadora precisa ser atravessado pelo seu desejo enquanto sujeito e profissional, a partir da possibilidade de reconhecer no bebê um sujeito que também deseja, tem interesses e intenções, as quais comunica de diferentes formas (Brandão & Kupfer, 2014; Mariotto, 2009).

É preciso que os conceitos de cuidar e educar sejam tomados como indissociáveis, no intento de superar a visão de cuidado associada a um entendimento estritamente assistencialista, e de educação enquanto atividade puramente pedagógica (Mariotto, 2009; Martins et al., 2019). Ressignificar estes conceitos, de modo a considerar a subjetividade nas atividades realizadas na Educação Infantil parece ser tarefa urgente. Mais uma vez, reitera-se a possibilidade de que as educadoras possam exercer a função de cuidar e educar, enquanto uma condição essencial para possibilitar o advir de um sujeito (Brandão & Kupfer, 2014; Mariotto, 2009), tornando, assim, a Educação Infantil como uma instituição que sustenta o processo de subjetivação do bebê em parceria com a família (Mariotto, 2009).

Para além do trabalho pedagógico, a convivência diária com bebês e crianças pequenas pode exigir que as educadoras lidem com situações envolvendo ambivalência, hostilidade e conflito, vivências consideradas cruas e primitivas, apesar de inerentes à natureza humana (Elfer et al., 2018a; Polli & Lopes, 2017), conforme foi compartilhado pelas profissionais no GDT. Por isso, Elfer e Deanrley (2007) entendem que a proximidade e a intimidade podem levar os bebês e as crianças pequenas a projetarem seus sentimentos nas educadoras, cujo conteúdo precisaria ser contido e depois significado, trabalho que costuma ser evitado no ambiente da Educação Infantil quando se toma o corpo como um objeto a ser manipulado (Elfer et al., 2018a; Puccinelli & Silva, 2020; Wiles & Ferrari, 2020).

Evitar o vínculo, por exemplo, pode ser uma tentativa de não entrar em contato com os sentimentos que o bebê/a criança pequena desperta no cuidador, mas também pode ser uma forma de evitar olhar para a própria história (Zornig, 2010). Como consequência, para se defender desses sentimentos, muitas educadoras tendem a estabelecer um limite na relação com o bebê e a criança pequena (Elfer & Deanrley, 2007; Elfer et al., 2018a), em que é preciso criar uma fronteira para "não se apegar demais". Nesse sentido, Brandão e Kupfer (2014) destacam que, na maior parte das vezes, há uma boa intenção da educadora em seu fazer (ex.: quando querem que todas as crianças durmam num mesmo momento), entretanto, a questão que as autoras propõem é pensar quem é favorecido com esta boa intenção, ao que compreendem que, em geral, são as próprias educadoras.

Outro questionamento compartilhado pelas profissionais no GDT diz respeito à função e ao lugar que ocupam na relação com os bebês e as crianças pequenas, o qual vem sendo discutido na literatura (Brandão & Kupfer, 2014; Dias, 2016; Mariotto, 2009; Wiles & Ferrari, 2020). Ter intimidade com o bebê/criança pequena, em alguma medida, se aproxima de um lugar parental e pode ser considerado pelas profissionais da creche como muito perigoso, pois seria difícil ter que se separar posteriormente, conforme também identificado no estudo de Elfer (2012). Essas questões estiveram presentes no GDT, em especial quando as educadoras discutiam sobre seguir ou não com as turmas ao longo dos anos e as implicações que isso trazia para elas e para os bebês/crianças pequenas. Nesse sentido, as escolas de Educação Infantil de forma alguma vem substituir as funções parentais, mas oferecer um espaço de cuidado e educação de forma complementar à família, no sentido de dar continuidade aos cuidados oferecidos ao bebê para sustentar a sua constituição subjetiva (Dias, 2016; Wiles & Ferrari, 2020). Inclusive, Mariotto (2009) destaca como diferença entre a função da família e da escola de Educação Infantil o fato de que a primeira transmite as marcas simbólicas a partir do ambiente privado e é caracterizada pela gratuidade, enquanto a segunda oferece uma transmissão social, que se dá no coletivo, tendo o salário e a carga horária do profissional como balizadores dessa função.

Em geral, as educadoras demonstraram ter conhecimento teórico acerca do desenvolvimento infantil, entretanto, ao colocá-lo em prática, surgiamos desafios, conforme relatado pelas profissionais que participaram do GDT deste estudo. Nesse sentido, Martins et al. (2020) apontam que, apesar da rigidez da rotina, é importante que o(a) professor(a) se permita conhecer a criança, utilizando ferramentas como a observação, para que esteja atento(a)às suas manifestações e possa atendê-las caso seja necessário. A observação é indispensável para que o(a) educador(a) se coloque, conforme destaca Figueiredo (2009), como presença implicada e presença em reserva, respondendo às demandas da criança quando e se for necessário. Em outras palavras, é preciso que a educadora possa sensivelmente escutar as demandas de cada bebê e criança pequena, para além do seu conhecimento teórico sobre infância e desenvolvimento infantil (Elfer et al., 2018a; Wiles & Ferrari, 2020). Contudo, trata-se de uma tarefa difícil de se concretizar na realidade atual das escolas, devido à ausência de recursos materiais e profissionais, bem como ao pequeno número de educadoras que precisam se responsabilizar pelos bebês/crianças pequenas(Almeida & Valentini, 2013; Brandão & Kupfer, 2014).

Na Educação Infantil, as crianças de quatro a seis anos são consideradas "grandes", por muitas educadoras, por serem os "alunos mais velhos". Esse entendimento foi relatado com indignação pelas profissionais que participaram do GDT, pois para elas os "grandes" também precisam de cuidado em relação às suas necessidades emocionais. Em um contexto diferente e em outra proporção, a educadora pode se sentir nesse mesmo lugar de desamparo diante do cuidado do bebê/criança que lhe convoca e provoca tantas sensações e sentimentos, a partir de sua posição de dependência e de vulnerabilidade (Polli & Lopes, 2017).

Sabe-se que por ser um trabalho relacional são comuns sentimentos de raiva, impotência e culpa, conforme as educadoras mencionaram no GDT aqui descrito e relatado também em outros estudos (Elfer, 2012; Elfer et al., 2018a; Hover-Reisner et al., 2018). O que ocorre é que, na maior parte das vezes, as educadoras não são autorizadas a falar desses sentimentos ambivalentes, assim como não encontram espaços para compartilhá-los por medo de se expor, de receber críticas ou até mesmo por vergonha (Elfer, 2012). Por outro lado, muitas profissionais tendem a ignorar essas vivências mais hostis como uma forma de se proteger do mal-estar que esses sentimentos produzem (Zornig, 2010). Isso evidencia a importância de espaços como o oferecido pelo GDT, na medida em que as profissionais se escutavam e escutavam as colegas ao dividir experiências tão particulares e, ao mesmo tempo, semelhantes.

 

Considerações Finais

A partir do exposto, é possível afirmar que o GDT se mostrou como uma ferramenta potente, que permitiu refletir, de forma livre e coletiva, sobre diferentes possibilidades de atuação junto aos bebês e às crianças pequenas. Os dados possibilitam reiterar a necessidade de espaços de escuta para educadores(as), a fim de sustentar a função de cuidar, alicerçada no seu desejo enquanto sujeito e profissional da Educação, e contribuir para o processo de subjetivação de bebês e crianças pequenas. Somente quando prevalecer o olhar ao sujeito-bebê/criança e ao sujeito-educadora é que será possível abandonar práticas pedagógicas estritamente técnicas e padronizantes. Isso implica em compreender que o trabalho com bebês e crianças pequenas é exigente, demandando presença, intimidade e previsibilidade. Por outro lado, para exercê-lo dentro daquilo que é possível no espaço da Educação Infantil, é necessário reconhecer o desconforto, o mal-estar e a angústia que esse trabalho pode produzir nos profissionais.

Trata-se, portanto, de legitimar a presença da ambivalência na relação com os bebês e crianças pequenas como inerente à função de cuidar e, de forma mais geral, ao trabalho dos profissionais da Educação. Ao passo que se abre espaço para que essas questões circulem e sejam integradas à experiência do(a) educador(a), diminui-se as chances de isso ser atuado na relação com o bebê/criança.

Embora o estudo traga importantes contribuições, é necessário cautela na interpretação dos seus resultados, uma vez que trata de experiências muito específicas. Dessa forma, sugere-se ampliar a investigação para outros contextos, para um número maior de educadoras, bem como para outras faixas etárias, o que pode trazer dados mais robustos para a ampliação do GDT no contexto nacional como intervenção possível, com vistas a promover a formação continuada no campo da Educação.

Os resultados do estudo permitem ainda refletir sobre a urgência de oferecer melhores condições de trabalho para os profissionais da Educação Infantil. Apontam especialmente para a importância de espaços de escuta e de reflexão, como o disponibilizado nos encontros do GDT, enquanto uma alternativa para aliviar as educadoras de suas angústias, contribuindo para a promoção do desenvolvimento infantil integral, com relações mais sensíveis às necessidades de cada bebê ou criança pequena, sem desconsiderar o coletivo. Por isso, mais do que formações conteudistas, os(as) educadores(as) necessitam de espaços contínuos de escuta e de palavra para, assim, poder falar daquilo que causa mal-estar, angústia e desconforto, e, como desdobramento, garantir os direitos de acesso e permanência à Educação de qualidade e à infância.

 

Referências

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Recebido em: 14/04/2022
Reformulado em: 01/10/2022
Aceito em: 25/10/2022

 

 

Notas

* Psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professor (a) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ).
** Psicóloga, graduada pela Universidade de Brasília (UnB), doutora pela University of London, professor (a) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
1 Para contemplar todos os profissionais da educação (professores, monitores e estagiários) que atendem bebês e crianças bem pequenas na Educação Infantil, optou-se pelo termo educadoras ao invés de professora e/ou docente. Exceto quando estiver sendo apresentado um estudo, será mantido o termo empregado pelos autores.
2 O investimento libidinal se refere à manifestação da energia psíquica de caráter sexual que circula no aparelho psíquico. Num primeiro momento, a libido é investida no próprio corpo (ex.: o que origina as fases oral, anal e fálica), para depois ser investida e deslocada para outros objetos (ex.: sublimação). Por isso, a teoria da libido articula-se com o processo de subjetivação da criança, na medida em que se relaciona com os investimentos da pulsão no próprio Eu (ego) e em outros objetos (Freud, 1905/2016).

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado da primeira autora (CNPq, No. Processo 141445/2016-5) e pela bolsa de produtividade em pesquisa da segunda autora (CNPq No. Processo 317289/2021-7).

 

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