Estudos e Pesquisas em Psicologia
2023, Vol. 01. doi:10.12957/epp.2023.75304
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Implicações da Pandemia para a Psicologia nas Políticas Públicas

 

Pedro Henrique Antunes da Costa*, I; Amanda Figueiredo Falcomer Meneses**, I; Antonio Juvenal da Silva Júnior***, I; Débora Ferreira Couto Pinto****, I; João Gabriel Carvalho Araújo Mello de Oliveira*****, I; Marília Batista Carvalho******, I; Otto Leone Corrêa*******, I; Soraya Souza de Andrade********, I; Kíssila Teixeira Mendes*********, II; Telmo Mota Ronzani**********, II
I Universidade de Brasília - UnB, Brasília, DF, Brasil
II Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, Juiz de Fora, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O artigo objetivou identificar e analisar desafios e potencialidades no trabalho de psicólogas(os) nas políticas públicas brasileiras na conjuntura pandêmica. É um estudo exploratório-descritivo de abordagem mista. A coleta de dados foi realizada por meio de questionário virtual com 123 psicólogas(os) que trabalhavam nas políticas públicas no país. A análise se deu a partir da extração de medidas de tendência central e pela Análise de Conteúdo temática, em um diálogo da psicologia com a tradição marxista. Os resultados apontaram para os efeitos deletérios objetivos e subjetivos do sucateamento das políticas às(aos) profissionais, bem como o tolhimento de suas práticas. Por outro lado, também apontaram algumas potencialidades que contradizem a si próprias(os) e à realidade. Fica a premência de responsabilização do Estado em fornecer melhores condições de trabalho e fortalecer as políticas públicas para o enfrentamento à pandemia, assim como a necessidade de reflexão e transformação da psicologia e sua práxis.

Palavras-chave: psicologia, políticas públicas, Brasil.


 

Implications of the Pandemic for Psychology in Public Policies

 

ABSTRACT

The article aimed to identify and analyze the challenges and potentialities of psychologists' work in Brazilian public policies in the pandemic context. It's an exploratory-descriptive study with a mixed approach. Data collection was carried out through a virtual questionnaire with 123 psychologists working in public policies around the country. The analysis was carried out from the extraction of central tendency measures and by Thematic Content Analysis, in a dialogue between psychology and the Marxist tradition. Results pointed to numerous deleterious effects (objective and subjective) on professionals resulting from the scrapping of public policies and the hampering of their practices. On the other hand, they also pointed out some potentialities that contradict themselves and reality. There is an urgent need for state responsibility to offer better working conditions and to strengthen public policies to fight the pandemic, together with the need for reflection and transformation of psychology and its own praxis.

Keywords: psychology, public policies, Brazil.


 

Implicaciones de la Pandemia para la Psicología en las Políticas Públicas

 

RESUMEN

El artículo objetivó identificar y analizar desafíos y potencialidades del trabajo de psicólogas/os en las políticas públicas brasileñas en el contexto de la pandemia. Es un estudio exploratorio-descriptivo con enfoque mixto. La recolección de datos se realizó a través de un cuestionario virtual con 123 psicólogos que trabajaban en políticas públicas en el país. El análisis se realizó a partir de la extracción de medidas de tendencia central, y por Análisis de Contenido temática, en un diálogo entre psicología y tradición marxista. Los resultados apuntaron los efectos deletéreos (objetivos y subjetivos) del desguace de políticas a los profesionales y la obstaculización de sus prácticas. Por otro lado, también señalaron potencialidades que contradicen a sí mismos y a la realidad. Existe una necesidad urgente de rendición de cuentas del Estado para mejorar las condiciones laborales y el fortalecimiento de las políticas para combatir la pandemia y la necesidad de reflexión y transformación de la psicología y de su praxis.

Palabras clave: psicología, políticas públicas, Brasil.


 

 

Vivemos num quadro de crise generalizada (econômica, política, social e humanitária). Nesse ínterim, emana a pandemia da COVID-19, agregando mais uma faceta crítica à conjuntura, a de uma crise sanitária, intensificando todas as outras e o próprio caráter de crise vivenciado.

É sabido que as implicações da conjuntura de crise e as da pandemia não atingem a todos(as) igualmente, com os maiores impactos deletérios recaindo sobre a classe trabalhadora (Batista et al., 2020). Para a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe [CEPAL], 2020), os grupos populacionais mais afetados pela COVID-19 são: mulheres, crianças, adolescentes e juventude, população rural, povos indígenas, pessoas negras, com deficiência, em situação de rua e imigrantes. Tal panorama diz da própria configuração antagônica do capitalismo, que, na particularidade brasileira, se mostra ainda mais desigual, em decorrência de um histórico colonial, de estruturas racistas, patriarcais e uma condição dependente no desenvolvimento capitalista desigual e combinado.

Por isso, as políticas públicas, conquistas históricas e materializações de direitos, ganham maior relevância. Inclusive, as saídas ao cenário apontam para a necessidade de fortalecimento destas políticas (OXFAM, 2020). No Brasil, isto significa a defesa e o fortalecimento dos Sistemas Únicos de Saúde (SUS) de Assistência Social (SUAS), da educação pública, bem como de outras políticas setoriais, com melhores condições de trabalho e valorização das(os) trabalhadoras(es).

Entretanto, sabe-se das iniquidades que atravessam o acesso a tais políticas. Historicamente sucateadas, são alvos de retrocessos no estágio atual de desenvolvimento capitalista, exprimindo o ataque do capital à classe trabalhadora (Behring, 2018). É, inclusive, a partir do desmonte do SUS, SUAS, da falta de verbas para pesquisas e outras ações, aliadas às nossas estruturas antagônicas e processo formativo desigual, que a COVID-19 se torna ainda mais letal e deletéria. Assim, reforça-se a relevância de pesquisas que analisem como o trabalho nas políticas públicas é afetado, e como profissionais se (re)organizam para lidar com as necessidades conjunturais, de modo a sinalizar desafios a serem revertidos, assim como potencialidades que devem ser mantidas e fortalecidas.

Vinculado aos impactos objetivos da pandemia, temos o recrudescimento do sofrimento como expressão da agudização das debilidades societárias; uma saúde mental mais precária numa vida mais precarizada. Esse panorama joga luz sobre a psicologia, que, desde a reabertura democrática, tem nas políticas públicas importantes espaços de trabalho. Para Macêdo et al. (2010), na primeira década dos anos 2000, 40% dos psicólogos assalariados trabalhavam no setor público, tendo como carro-chefe as políticas públicas, sobretudo o SUS e o SUAS.

Conforme Yamamoto (2009), essa ampliação do campo de trabalho psi foi um dos três vetores de mudanças no perfil da profissão. Os outros dois foram: contingências do mercado de trabalho, com retração da demanda clínica nos anos 1980; e disputas oriundas da inserção e vinculação de psicólogos em movimentos sociais, sindicatos etc. Por conseguinte, tal inserção e atuação nas políticas públicas não se deu, necessariamente, por reflexões e mudanças nos fundamentos e práticas psi, mas por transformações no desenvolvimento do país e motivações corporativistas. Apesar de importantes movimentos críticos, a psicologia se insere nestes contextos sem as necessárias mudanças na sua práxis, reproduzindo um modus operandi tradicional individualizante e ajustador (Yamamoto, 2007; 2009; 2012; Yamamoto & Oliveira, 2010).

Assim, o presente trabalho se volta a algumas nuances deste processo, sendo um recorte de uma pesquisa que teve como objetivo principal compreender as implicações da pandemia no trabalho de psicólogas(os) das diferentes políticas públicas setoriais no Brasil. Objetivamos identificar e analisar desafios e potencialidades no trabalho da(o) psicóloga(o) nas políticas públicas na conjuntura pandêmica. Aliado a isso, enseja-se apreender formas de ação empregadas pelas(os) profissionais frente às especificidades do cenário, de modo a compreender suas contribuições, os desafios no enfrentamento da pandemia e suas implicações psicossociais.

 

Método

Trata-se de um estudo exploratório-descritivo, de abordagem quanti-quali (mista) sobre as condições de trabalho de psicólogas(os) nas políticas públicas (saúde, assistência social, educação, sistema prisional, medidas socioeducativas e justiça). Foi conduzido entre maio e junho de 2020.

A coleta de dados foi realizada por meio da plataforma Google Forms, com questões fechadas e abertas a psicólogas(os) em serviços das políticas públicas e que aceitaram participar da pesquisa (amostra por conveniência). O recrutamento foi realizado por divulgação em redes sociais. O questionário abordou as seguintes informações: dados sociodemográficos; formação profissional; características dos serviços; motivações, condições e dinâmica de trabalho; impactos da pandemia na atuação das(os) psicólogas(os). As questões abertas versaram sobre: desafios da pandemia ao trabalho psi nas políticas públicas e as possibilidades e potencialidades neste cenário.

Ao todo, 123 psicólogas(os) participaram do estudo. Os dados quantitativos foram exportados para o software SPSS, com análises descritivas: medidas de tendência central (média e Desvio Padrão - DP), frequências e porcentagens (%). As respostas das perguntas abertas foram analisadas por Análise de Conteúdo, do tipo temática (Gomes, 2011). O percurso analítico foi o seguinte: (a) pré-análise, com organização e familiarização com o material; (b) fase exploratória, definindo as unidades de análise (os temas); (c) categorização e síntese analítica; e (d) interpretação dos resultados, expandindo e significando a síntese da categorização. Os aportes analíticos advieram da tradição marxista em diálogo com a psicologia.

A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília, parecer 4.001.999. As(os) participantes concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Resultados

Primeiramente, apresentaremos os achados das perguntas fechadas (sociodemográficas e condições de trabalho). Em seguida, os da análise das perguntas abertas, sobre os desafios e potencialidades da atuação em psicologia na presente conjuntura.

Informações Sociodemográficas e Condições de Trabalho

Na Tabela 1, temos as características sociodemográficas das(os) respondentes. A idade média das(os) profissionais é de 35,9 anos (DP = 8,9). A maioria (82,9%) se identificou com o gênero feminino. Quanto à raça, a maioria se declarou branca(o) (61,0%); 36,6% negra(o) (parda/o ou preta/o) e o restante, amarela(o) (2,4%). O setor de atuação predominante é o de saúde (SUS), com mais da metade das(os) profissionais entrevistados (51,2%), seguido do campo da assistência social, o SUAS (23,6%). Participaram profissionais de todas as regiões, mas com predomínio do Sudeste (30,1%). Aproximadamente metade possuía pós-graduação lato sensu (especialização) e um pouco mais de um quarto pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado).

 

 

Conforme Tabela 2, mais da metade são trabalhadoras(es) concursadas(os) (55,3%), seguido de trabalhadoras(es) em regime contratual (CLT) (39,8%) e uma minoria em vinculação voluntária ou de estágio (4,9%). Quanto à satisfação com as condições de trabalho, a maior frequência (41,5%) encontra-se num ponto mediano, nem muito satisfatório ou insatisfatório, ocorrendo o mesmo para o salário e a infraestrutura (39,0%). Já para a formação na área (37,4%) e relações interpessoais (35,8%), as frequências de resposta expressam maior satisfação.

 

 

Desafios no Contexto de Trabalho Psi nas Políticas Públicas Durante a Pandemia

A Tabela 3 condensa categorias e subcategorias de análise. Sobre os desafios, as respostas foram categorizadas da seguinte forma: condições e recursos de trabalho; gestão e organização do trabalho; mazelas estruturais e implicações às políticas; práxis psi; reconfiguração das dinâmicas pessoal, familiar e do trabalho; demanda e sobrecarga; e saúde mental das(os) psicólogas(os).

 

 

Sobre as condições e recursos de trabalho, as(os) psicólogas(os) relataram como principal desafio a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs): máscaras, luvas, protetores oculares, faciais etc. Estes se aliaram às carências dos serviços: falta de espaços para as ações respeitando o distanciamento, de estrutura e de insumos básicos, como produtos de limpeza e higiene. Todos os aspectos obstaculizavam o trabalho, impedindo uma série de ações, aumentando a desassistência à população e gerando maiores preocupações quanto à contaminação e o adoecimento da equipe. Houve, ainda, relatos de que, mesmo nessas condições, não houve o pagamento do adicional de insalubridade, evidenciando um cenário de precarização e desvalorização do trabalho.

As observações das(os) participantes também apontaram um quadro lacunar quanto à gestão e organização do trabalho nas diferentes esferas governamentais, inclusive, com articulação desordenada e conflituosa. As principais críticas à gestão foram devido à falta de planejamento, de delimitações e orientações claras quanto às mudanças a serem implementadas e à reorganização do trabalho. Algumas(ns) até relataram a realização de tais ações, mas não na celeridade necessária pelo momento ou pautadas em análises e diagnósticos equivocados da realidade, gerando propostas descontextualizadas que, somadas às dificuldades das condições de vida precarizadas, dificultavam ainda mais o acesso às políticas e o trabalho. Por outro lado, foi evidenciado que tais normatizações e orientações deveriam ser flexíveis, face à excepcionalidade conjuntural.

Atrelados aos problemas de gestão, estão as próprias estruturas antagônicas de nossa realidade e como essas atravessam e constituem as políticas públicas, aguçadas pela pandemia. Temos todo um panorama de ainda maior precarização objetiva e subjetiva da vida, com "aumento do número de pessoas desempregadas e do consequente mapa da fome, [e] dificuldade de pensar ações preventivas ao Corona em territórios altamente vulnerabilizados pelo estado" (Participante 54), explicitando as próprias limitações das políticas no que se prestam: garantia de direitos. Intricando ainda mais o cenário, está a utilização das políticas, especialmente em ano eleitoral (2020), para fins político-partidários, reproduzindo um modus operandi tradicional clientelista e assistencialista que expressa e reforça tais clivagens históricas, com implicações negativas à população usuária dos serviços e políticas, e às(os) profissionais, com maior pressão e riscos.

Sobre a práxis psi, as principais dificuldades foram: restrições às atividades tradicionais da psicologia (acolhimento, atendimento, ações educativas, preventivas, de promoção social e de saúde, visitas domiciliares, acompanhamento familiar e demais trabalhos presenciais com indivíduos e grupos) e até o cancelamento ou adiamento das ações. Nisso, imperaram problemas na comunicação com usuárias(os), obstáculos no acesso às ações e serviços, assim como no acompanhamento e continuidade dos casos, conformando um cenário de carência de ações para grupos populacionais mais vulnerabilizados. Em consonância às nossas mazelas sociais, foi relatado também as inúmeras dificuldades enfrentadas por usuárias(os) devido às condições pauperizadas de vida, por exemplo, "a falta de informações e para compreender os processos para lidar com o COVID, compreender o auxílio emergencial, tarifa social de energia, como manusear os aplicativos etc." (Participante 52), dificultando ainda mais a comunicação e assistência.

Trata-se de um conjunto de empecilhos à práxis psi que, primeiramente, esbarra na própria tradicionalidade da psicologia, bem como no "despreparo técnico-científico da categoria" (Participante 80) e na "falta de uma formação que seja de fato advinda da formação social brasileira" (Participante 10). Não obstante, em decorrência dos pontos apresentados anteriormente, a necessidade de reformulação de tal práxis no âmbito das políticas públicas acaba por recair exclusivamente nos ombros de psicólogas(os) - e demais profissionais -, levando a uma super responsabilização (e culpabilização) destes, junto da desresponsabilização do Estado e uma prática ancorada numa inovação pelo improviso, praticamente por tentativa e erro.

É necessário então não apenas adaptar, mas inventar alternativas. As adequações aos protocolos e usos de equipamentos de proteção individual, que não faziam parte de nossa formação. Acompanhar continuamente o volume de informações e atualizações que chegam, não apenas sobre aspectos de saúde e saúde mental, mas os decretos que dispõem sobre as medidas sociais. (Participante 85, comunicação pessoal)

Aliam-se a isso as alterações na dinâmica de trabalho, ocasionadas principalmente pelo trabalho remoto, que impactaram negativamente na esfera familiar das(os) respondentes, se chocando com reconfigurações das relações e dinâmicas mais íntimas e, mesmo, da rotina pessoal. Segundo as(os) psicólogas(os), o trabalho remoto significou um aumento da carga horária de trabalho. A infraestrutura e recursos necessários a tal modalidade ficaram sob a responsabilidade das(os) próprias(os), implicando em gastos adicionais e no uso de recursos próprios, acarretando até mesmo em problemas de saúde (p. ex., cansaço das horas em frente ao computador, problemas de coluna) devido à falta de estrutura de suas casas para realização de tais atividades. Além disso, foram relatadas dificuldades para a conciliação com o trabalho doméstico e de cuidado familiar, os quais também aumentaram com o isolamento, sobretudo para as mulheres - a maioria na psicologia.

Todos os desafios supracitados resultaram no crescimento da demanda e sobrecarga em "um contexto de trabalho que já estava com uma demanda superior à capacidade de atendimento" (Participante 53) e "número reduzido de trabalhadores na linha de frente" (Participante 97). Isso se deu pela necessidade de novas ações em decorrência do contexto (p. ex., demandas por acesso a benefícios como o auxílio emergencial no SUAS), os novos formatos de trabalho (remoto ou semipresencial), a maior frequência na realização de outras atividades ou as dificuldades adicionais para que fossem realizadas. Ademais, as respostas apontam para o aumento da demanda de acolhimento e atendimento de usuárias(os) e das(os) profissionais das políticas, dada a intensificação do sofrimento que também as(os) afeta, gerando um ciclo vicioso de defasagens e precarização objetivo-subjetiva que, no caso da saúde mental, centra o atendimento na Psicologia.

Por fim, os resultados evidenciaram o aumento da demanda em relação ao cuidado em saúde mental por usuárias(os) e pelas(os) próprias(os) trabalhadoras(es). Destaca-se o reposicionamento da(o) profissional psicóloga(o), também afetada(o) pelo momento:

São inúmeros os desafios, mas destaco ainda os efeitos psicossociais da pandemia, medidas de isolamento, da crise econômica, da possibilidade de adoecer, das mortes recorrentes e etc., que me afetam enquanto classe trabalhadora nesse momento, e que observo nos demais colegas, gerando sentimentos de impotência, medo, quadros de ansiedade perfeitamente justificáveis à gravidade da situação, torna-se difícil atividades laborais cotidianas, como comer e dormir. (Participante 85, comunicação pessoal)

Possibilidades e Potencialidades no Trabalho Psi Durante a Pandemia

Ainda conforme a Tabela 3, as respostas sobre potencialidades e possibilidades de trabalho na pandemia foram organizadas em sete categorias e respectivas subcategorias, a saber: condições e recursos de trabalho; relações interpessoais do trabalho e com os(as) usuários(as); reorganização da dinâmica do trabalho; utilização de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs); práxis psi; sensação de bem-estar profissional e pessoal; relevância da psicologia em situações de crise; não visualização de potencialidades no trabalho. Sobre as condições e recursos de trabalho, as(os) profissionais relataram maior economia de tempo ao não precisarem se deslocar. Complementar a isso, o trabalho remoto também trouxe para algumas pessoas melhores condições de trabalho, pela disponibilidade de um ambiente mais silencioso e mais propício à concentração.

Mudanças nas relações entre trabalhadoras(es) e com as(os) usuárias(os) também se apresentaram como potencialidade, podendo ser sistematizadas em: (a) uma maior quantidade de tempo para discussão de casos e fortalecimento de vínculos com a equipe; (b) maior possibilidade de integração, apoio e união entre as(os) colegas de trabalho, no geral, apesar das condições precárias de trabalho; (c) uma maior coletivização do trabalho, das responsabilidades e das decisões; e (d) importância de reuniões mais frequentes para estruturação do trabalho nesse período. Para as(os) participantes, essa organização conjuga "[a] união da equipe, a força de vontade da maioria em buscar soluções para oferecer um serviço humanizado e de qualidade" (Participante 41). O maior cuidado com o outro, por meio do respeito às medidas sanitárias e de higiene, foi outro aspecto importante na reconfiguração dessas relações.

Referente à reorganização da dinâmica do trabalho, destaca-se a coletivização das decisões de trabalho, o aumento das reuniões realizadas e, principalmente, o fortalecimento da atuação em rede. Através do trabalho articulado com outras redes intersetoriais tem-se "um rompimento do isolamento de segmentos/setores" (Participante 15).

Participantes também relataram pontos positivos acerca do uso das TICs. Muitas(os) entendem essa utilização como uma adaptação (positiva) à crise, com novas possibilidades de atuação a partir do atendimento online e da educação à distância, mesmo que também tenha surgido como desafio, impossibilitando parte das atividades tradicionais da psicologia. Ademais, as(os) participantes relataram maior alcance das ações online e a ampliação do acesso ao atendimento.

Em relação à práxis profissional, destacam-se: (a) organização do trabalho em rede e o fortalecimento do trabalho territorial; (b) maior comunicabilidade com outras áreas de atuação; (c) reinvenção diária e a exigência de uma posição mais ativa e criativa frente ao trabalho, que também se traduziu na criação de novos campos de inserção e atuação; e (d) necessidade de reflexão sobre a concepção de normalidade e da própria prática psicológica. Esses elementos reforçam que o atual momento serve para a capacitação das(os) mesmas(os), ampliando possibilidades de uma prática ainda não muito bem definida ou explorada, mas ancorada numa inovação pelo improviso.

Outras potencialidades que surgiram nas respostas a respeito do cotidiano de trabalho versaram sobre a sensação de bem-estar profissional e pessoal. Acerca das dinâmicas pessoais, as(os) participantes relataram maior sentimento de solidariedade e mais tempo para cuidado com a própria saúde - física, psicológica e espiritual. Também foram apontados maior usufruto do tempo para capacitação pessoal e a possibilidade de viabilização de antigos projetos.

O aumento da relevância da psicologia em situações de crise também compôs as respostas das(os) participantes. Muitas(os) consideraram que o atual momento pandêmico intensificou a demanda e valorizou a(o) profissional de psicologia, com uma "possibilidade de repensar o lugar da Psicologia nas políticas públicas. Possibilidade de valorização da Psicologia perante a sociedade e aos entes públicos." (Participante 124). Nesse sentido, foram mencionadas potencialidades de melhorias individuais de empatia, zona de conforto, criação e inventividade.

Houve também relatos de que o presente cenário não possui potencialidades, visto que, para essas(es) profissionais, tal lacuna gera contraditoriamente a "potencialidade" de denunciar aspectos da contradição capital-trabalho prejudiciais às(aos) trabalhadores. Para a Participante 58, "o isolamento poderia servir para mostrar para a sociedade o absurdo que é trabalhar mais de 6 horas na atualidade". Para a Participante 80, "uma potencialidade seria se o governo compreendesse a necessidade de uma proteção universal e se os direitos alcançassem a todos". A intensificação da reflexão sobre a conjuntura, voltada ao reconhecimento da saúde, assistência social, educação, dentre outras, como direitos foi um ponto crucial para uma das profissionais. Para a mesma, no cenário vivido não há potencialidades no âmbito laboral, devido ao fato de que "o nosso contexto é muito precário e o pouco que tínhamos está suspenso" (Participante 115). Por esse prisma, o aumento do adoecimento e da carga de trabalho também se mostram pertinentes nos relatos.

 

Discussão

Constatou-se a predominância de psicólogas(os) trabalhando nas políticas de saúde e assistência social (SUS e SUAS, respectivamente), coadunando com o histórico da profissão e sua condição de profissional da saúde - mesmo que não restrito ao trabalho na saúde (Yamamoto, 2009; 2012). Cabe ressaltar que há uma tendência de crescimento da inserção de psicólogas(os) no SUAS, resultante de sua expansão tardia em comparação ao SUS (desde 2004, com a Política Nacional de Assistência Social). Tal processo tem provocado "a expansão e a interiorização da profissão de psicólogo em todo o país" (Macedoet al., 2011, p. 479).

A hegemonia de participantes mulheres e que se autodeclaram brancas(os) coaduna também com o histórico da psicologia e sua caracterização recente enquanto profissão branca e feminina. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2016), a profissão é constituída por 90% de mulheres e apenas 16,5% negras(os). Referente à raça, etnia, cor, 39% das(os) participantes se autodeclararam não brancas(os). Mesmo considerando os vieses de seleção da pesquisa, não conformando uma amostra representativa, estudos futuros podem investigar se as políticas se configuram como espaços mais propícios ou "convidativos" a psicólogas(os) negras(os) ou se essas(es) se inserem mais em tais lócus, e, se sim, quais os motivos.

Acerca das dificuldades evidenciadas, temos a reprodução, na excepcionalidade do momento, de um cenário histórico de sucateamento e subfinanciamento das políticas públicas. As dificuldades mencionadas, a despeito do que trazem de novo em termos da forma, dizem, no conteúdo, da própria natureza limítrofe e contraditória das políticas públicas como mediações estatais no seio do desenvolvimento capitalista (Lacerda Júnior, 2015) e da continuidade do velho, em termos de condições de trabalho precárias, aguçadas por uma ofensiva do capital neoliberal de desmontes, retrocessos e ainda maior precarização do trabalho, não se restringindo à psicologia (Behring, 2018; Yamamoto, 2007; 2009; Yamamoto & Oliveira, 2010). Numa conjuntura em que se intensifica a dinâmica de crise, com a adição de mais uma faceta crítica - a sanitária -, tais insuficiências se apresentam às(aos) profissionais de maneira ainda mais recrudescida.

Nisso constata-se uma desresponsabilização do Estado, tendo como corolário a super-responsabilização das(os) psicólogas(os) e demais profissionais. A essas(es) cabe: arcar com as mudanças oriundas do momento (e seus custos materiais, financeiros, físicos e psíquicos); se atualizar e capacitar; e inventar novas possibilidades de ação. Essa super-responsabilização esbarra nas próprias limitações do Estado, com as insuficiências no planejamento, condições precárias de trabalho etc., como mencionado. As respostas são individualizadas, recaindo às(aos) profissionais e gerando uma tendência de (auto)culpabilização das(os) mesmas(os), que pode resultar em imobilizações destas(es), face às inúmeras dificuldades vivenciadas (Yamamoto, 2007) e, até mesmo, na intensificação de seus sofrimentos - num contexto já de aumento do sofrimento.

Todavia, a análise dos resultados evidencia que desafios e potencialidades guardam intensa proximidade, permeada de contradições. Por exemplo, chama atenção que a disponibilidade de tempo para estudo e convivência com familiares surja como potencialidade em um cenário de aumento das demandas de trabalho, associado à sobreposição de atividades profissionais e domésticas. São recorrentes as falas sobre as restrições ou impossibilidades de realização de práticas convencionais da psicologia como desafios, e os apontamentos sobre a adoção de posturas ativas e criativas em relação às práticas cotidianas como potencialidades do cenário pandêmico.

Discorrendo sobre as lacunas estatais com as(os) profissionais, os achados coadunam com a literatura. Em estudo sobre os desafios da atenção básica no enfrentamento da pandemia (Bousquat et al., 2020), apenas 24,1% das(os) profissionais respondentes (de uma amostra de 2.566) relataram terem disponibilidade permanente de EPIs em suas unidades básicas de saúde e 25,4% relataram indisponibilidade permanente (ou seja, nunca há todos os EPIs). Em pesquisa com trabalhadoras(es) do SUAS, apenas 38,50% das(os) respondentes (de 439) avalia ter recebido materiais para trabalhar diariamente com segurança, e 36,67% avaliaram a qualidade dos EPIs como boa ou excelente (Lotta et al., 2020). Trata-se, pois, de uma realidade que não se restringe à psicologia, afetando todas(os) as(os) trabalhadoras(es) das políticas públicas.

Os relatos sobre aumento da demanda e sobrecarga de trabalho também encontram eco na literatura, assim como são convergentes com outros estudos: as tentativas de reorganização das ações, da dinâmica de trabalho e serviços; trabalhos em rede, de maneira intersetorial. Ao mesmo tempo, esbarram nas próprias fragmentações das políticas setoriais enquanto parcializações da realidade social e, principalmente, da ausência de apoio, de planejamento e inúmeras carências da gestão (federal, estadual, municipal e intrassetoriais) (Bousquat et al., 2020; Lotta et al., 2020).

Essas lacunas fazem com que as(os) profissionais das políticas não se sintam preparadas(os) para lidar com a pandemia e a precarização de suas condições de trabalho e vida convergindo com o aumento do sofrimento. Contudo, o suporte em termos de saúde mental a elas(es) também é precário ou inexistente (Bousquat et al., 2020; Lotta et al., 2020).

Mesmo em tal panorama restritivo, algumas(ns) participantes viram como potencialidade a tomada de uma posição reivindicatória de práticas, bem como em rearticulações internas para suprir as carências. Porém, para Yamamoto (2007; 2012), a reorientação prática na psicologia costuma ser técnica e não política, com as(os) psicólogas(os) não articulando trabalho e realidade brasileira. Até nas respostas de caráter conjuntural, se apresenta a natureza contraditória e limítrofe do Estado e as dificuldades de se materializar um trabalho direcionado às necessidades concretas que não atravessam só a(o) psicóloga(o), demonstrando dificuldades de visualizarem proposições coletivas.

A partir das respostas, é possível afirmar a continuidade de um movimento hegemônico de se buscar na própria atuação respostas para os antagonismos e mazelas sociais, mas que ainda recorrem às práticas tradicionais da clínica psicológica enquanto um "novo" lugar a ser reinventado e/ou desbravado. A oportunidade de estudar, se capacitar, é enunciada nas respostas, consoante à discussão proposta por Yamamoto e Oliveira (2010), de um movimento histórico de tensionamento da prática psicológica, que não necessariamente se traduz em ações menos tradicionais da psicologia, corroboradas pela hegemonia da prática psicoterápica/clínica, mesmo nas políticas.

As contradições apontadas e as dificuldades na construção de uma reflexão coletiva também são evidenciadas quando se focaliza a/o virtualidade/trabalho remoto imposto pela conjuntura pandêmica. A ambivalência do uso de tecnologias aparece como potencialidade para algumas(ns) respondentes, ao mesmo tempo que significa materialmente um gasto adicional e de recurso próprio. Cabe ressaltar a disponibilidade precária ou inexistente de internet tanto para usuárias(os) quanto para profissionais na realidade brasileira. No caso das(os) últimas(os), soma-se à pequena disponibilidade de celulares institucionais e outros equipamentos (Bousquat et al., 2020).

Ademais, é premente refletir como tais processos corroboram uma maior precarização das condições de trabalho, apesar do que possibilitam. Pesquisa sobre as condições de trabalhadoras(es) de diversos segmentos e setores econômicos do Brasil durante a pandemia, com prevalência de profissionais do setor público (Bridi et al., 2020), detectou que, com o trabalho remoto, houve: aumento de horas diárias trabalhadas e de dias trabalhados e aceleração do ritmo de trabalho (menor descanso). Foram também apontadas as seguintes dificuldades: falta de contato com os colegas, aumento no número de interrupções, dificuldades na separação da vida familiar da profissional e, no caso das mulheres, as imbricações com o trabalho doméstico. Temos uma configuração perversa, aparentando maior autonomia, flexibilização, economia do tempo e contato com a família, ao passo que, na essência, diz da maior responsabilização e do aguçamento da exploração.

Ainda sobre as TICs, as(os) profissionais apontaram como potencialidades: possibilidade de atendimento online, de ensino à distância, ampliação do acesso e maior alcance das atividades. Porém, outras(os) psicólogas(os) questionaram se essa ampliação e maior alcance são reais. Analisando o contexto brasileiro e as caracterizações já explicitadas no âmbito da presente reflexão, é possível afirmar que, com a pandemia, se aprofundou o conjunto de desigualdades sociais, aguçando e adicionando "camada[s] de violações de direitos básicos" (Observatório de Favelas, 2020). O acesso já precário aos serviços e políticas públicas foi ainda mais obstaculizado, sobretudo no que se refere às populações mais pauperizadas e subalternizadas. Mesmo com a possibilidade de ampliação de tal acesso em certos casos, é necessário indagar-se sobre a qualidade de tais processos, seus conteúdos e seus impactos. Conforme indagou Yamamoto (2012, p. 9), "a ampliação do leque populacional atingido ou a focalização nos segmentos de menor renda representa, por si só, uma ampliação do alcance social da profissão", isto é, a potencialização das contribuições da psicologia no fortalecimento das condições de vida das maiorias populares?

Nesse panorama, estão as respostas que oscilaram entre o reconhecimento da necessidade de se aproximar dos territórios, articular movimentos sociais e comunidades, e perspectivas autocentradas, individualizadas e corporativistas de que se ganhou mais tempo para si, e uma maior valorização da profissão. Corrobora-se, então, com as reflexões de Yamamoto (2012) acerca da dificuldade da(o) psicóloga(o) refletir sobre o seu trabalho, as múltiplas determinações, limitações e reais potencialidades, decorrente do próprio histórico da profissão, que culminou numa inserção da psicologia nas políticas sociais também com base em corporativismos (Yamamoto, 2009).

O trabalho da psicologia atua na lógica do cuidado, na função reprodutiva (Federici, 2019) de um bem-estar psicológico hegemonicamente fundamentado na exploração de gênero - não à toa, a maioria psicólogas - plasmada à de classe, raça e etnia num capitalismo dependente, de gênese colonial (González, 2020). No contexto das políticas públicas, se orienta predominantemente às parcelas populacionais mais exploradas e oprimidas, mais afetadas pela pandemia e sua gestão estatal nos marcos já discorridos. Com isso, constata-se que a pandemia, ao recrudescer nossos antagonismos sociais, aguçou e, nisso, desvelou conjuntamente as contradições e limitações das políticas públicas e do Estado na particularidade capitalista brasileira, somadas às da própria psicologia e sua especificidade de inserção e atuação nas políticas.

Ademais, quebra-se com a concepção romantizada e mistificadora da(o) psicóloga(o) como a(o) cuidador(a), responsável pelo entendimento do sofrimento em sua totalidade e do atendimento à saúde mental. Reforça-se a compreensão da saúde mental enquanto produção dos indivíduos em suas concretudes históricas, a síntese das múltiplas determinações econômicas, políticas, sociais e culturais nas singularidades dos indivíduos (Martín-Baró, 2017); que, apesar de historicamente designada à psicologia, é "objeto" das políticas como um todo. Inclusive, considerar acriticamente o crescimento da relevância da profissão durante a pandemia reforça uma apologética ao sofrimento, precarização da saúde mental e à própria crise como propulsores da profissão.

Sendo assim, são necessárias ações orientadas à assistência das(os) profissionais e usuárias(os) em suas totalidades. Especificamente para a psicologia, faz-se mister a reflexão e transformação de sua práxis, desde os seus fundamentos como ciência e profissão, até a sua prática, como resultante de tal processo (auto)crítico e transformador. Em suma, a produção de um projeto ético-político orientado às maiorias populares, que parta do entendimento e abordagem às suas necessidades, e que passe pela própria transformação da psicologia e sua orientação histórica e hegemônica de perpetuação da ordem (Yamamoto, 2009; 2012; Yamamoto & Oliveira, 2010).

Ao mesmo tempo, há o caráter contraditório e limitado das políticas públicas, acentuado pela ofensiva do capital neoliberal, ascensão conservadora e a dialética da desresponsabilização do Estado e super-responsabilização das(os) profissionais. Tais determinações são exemplificadas no atual governo federal, que acaba por tolher a visualização e organização de possibilidades de reivindicação de direitos, garantia de necessidades básicas e melhores condições de trabalho. Essa dinâmica de individualização se orienta também às(aos) usuárias(os) das políticas, sendo elas(es) responsabilizados pelo Estado por suas condições de vida e pelas saídas, a partir do momento que as mediações estatais para minorar tais realidades - as políticas públicas - estão sendo precarizadas.

Reforça-se a premência de responsabilização do Estado em disponibilizar apoio e suporte a todas(os) as(os) trabalhadoras(es) das políticas públicas, ao passo que a saúde e a saúde mental, estão consubstanciadas; afinal, tal responsabilização estatal pela saúde das(os) profissionais está implicada em um projeto de fortalecimento das próprias políticas, com melhores condições de trabalho e assistência. O recrudescimento das mazelas e antagonismos sociais e da precarização objetiva e subjetiva da vida com a pandemia, também acentua, dialeticamente, a relevância das políticas no gerenciamento de tais mazelas e antagonismos. Mesmo que as políticas públicas não emancipem (Lacerda Júnior, 2015), no sentido da emancipação humana - afinal, são mediações do Estado capitalista e seu caráter classista (racista e patriarcal) -, um projeto de emancipação humana, passa, no presente momento, pela defesa das mesmas como mediações importantes e formas de dirimir ou sanar necessidades concretas do conjunto das(os) exploradas(os) e oprimidas(os). Conjuntamente, coloca-se a necessidade de ação para além delas e do aparato estatal.

Por fim, cabe ressaltar que no presente estudo optamos pela apreensão das implicações do contexto pandêmico ao trabalho psi nas políticas públicas conjuntamente (saúde, assistência social, educação, sistema prisional, medidas socioeducativas e de justiça). Devido à maior presença das(os) profissionais na saúde e assistência, algumas especificidades das outras políticas que impactam diretamente na práxis psi, talvez tenham sido dirimidas. Sendo assim, exercícios futuros podem, por meio de análises comparativas, apreender tais especificidades e diferenças relacionadas não apenas às próprias políticas, mas, também, entre os diferentes serviços que as compõem e as localidades extraindo sinalizações dotadas de mais mediações e contextualidade.

 

Considerações Finais

Os resultados evidenciam que os desafios e as potencialidades para a psicologia nas políticas públicas na pandemia estão permeados de sobreposições e contradições. Em termos dos desafios, constatou-se: precarização das condições de trabalho, com falta de recursos e estrutura; aumento da demanda e sobrecarga; e desresponsabilização estatal com super-responsabilização das(os) profissionais. Para além da precarização objetiva, há também o desgaste subjetivo, resultando em sofrimento não só de usuárias(os), mas também das(os) psicólogas(os). Sobre as potencialidades, as(os) profissionais apontaram para comodidades e autonomia do trabalho remoto, com a pandemia levando à necessidade de aperfeiçoamento teórico e profissional, bem como a um reforço da importância da profissão enquanto "detentora do saber" sobre a saúde mental. Ademais, as possibilidades dizem de iniciativas individuais de adaptação às necessidades do momento, só que ainda ancoradas no modus operandi tradicional da profissão, o que acrescenta mais desafios à materialização de um trabalho orientado às necessidades concretas das(os) usuárias(os).

Alertamos para a necessidade de fortalecimento das políticas e de melhores condições de trabalho às(aos) psicólogas(os) e demais profissionais frente ao recrudescimento das mazelas e antagonismos sociais. Conjuntamente, cabe à psicologia o exame crítico-reflexivo sobre si, de sua práxis e sua contextualização nas políticas. Nisso, pesquisas e análises totalizantes que considerem o saber e realidade profissional mostram-se importantes, ao permitirem uma compreensão não só dos desafios dessa práxis psi, mas das políticas públicas, sinalizando possibilidades de ação.

 

Referências

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Recebido em: 27/09/2021
Aceito em: 06/08/2022

 

 

Notas

* Psicólogo, graduado e doutor pela Universidade Federal de Juiz de Fora, professor da Universidade de Brasília.
** Graduanda em Psicologia pela Universidade de Brasília.
*** Graduando em Psicologia pela Universidade de Brasília.
**** Graduanda em Psicologia pela Universidade de Brasília.
***** Graduando em Psicologia pela Universidade de Brasília.
****** Graduanda em Psicologia pela Universidade de Brasília.
******* Graduando em Psicologia pela Universidade de Brasília.
******** Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, doutora em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará e pesquisadora na Universidade de Brasília.
********* Psicóloga, graduada pela Faculdade Machado Sobrinho e Cientista Social, graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora, doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora e professora na Universidade Federal de Goiás.
********** Psicólogo, graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, doutor pela Universidade Federal de São Paulo e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora.

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pelo Decanato de Pesquisa e Inovação (DPI) e o Decanato de Extensão (DEX), juntamente com o Comitê de Pesquisa, Inovação e Extensão de combate à COVID-19 da Universidade da Brasília (COPEI), no Edital COPEI-DPI/DEX N° 01/2020.

 

Agradecimentos: Ao Decanato de Pesquisa e Inovação (DPI) e o Decanato de Extensão (DEX), juntamente com o Comitê de Pesquisa, Inovação e Extensão de combate à COVID-19 da Universidade da Brasília (COPEI) da Universidade de Brasília pelo financiamento da pesquisa.

 

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