Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e74817, doi:10.12957/epp.2024.74817
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Motivações na Transição para a Monoparentalidade Adotiva

 

Motivations in the Transition to Adoptive Single Parenthood

 

Motivaciones en la Transición a la Monoparentalidad Adoptiva

 

Sibely Joaquina Pereira Lima a, Terezinha Féres-Carneiro a

a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este trabalho teve como objetivo investigar as motivações na transição para a monoparentalidade adotiva. Foram entrevistados nove mulheres e três homens, entre 38 e 61 anos, dos extratos socioeconômicos médios da região metropolitana do Rio de Janeiro e de três cidades do sul-sudeste brasileiro. Foi utilizado o método de análise de conteúdo em sua vertente categorial. Para atingir os objetivos deste estudo, foram analisadas duas categorias, usando como referencial teórico as teorias psicanalítica e sistêmica de família: além da infertilidade e motivações para o perfil. Os resultados apontaram que a adoção monoparental foi o meio encontrado para realizar o desejo de ter filho(s) na ausência de um parceiro com quem dividir a parentalidade. Identificações com a história individual do adotante ganharam intensidade e, junto ao desejo de transmitir e de cuidar, motivaram a adoção de crianças com perfis preteridos. Observaram-se identificações envolvendo sentimentos de rejeição, e fantasias de reparação de dívida simbólica, cujos relatos demonstraram um trabalho de reflexão e de conscientização. Concluiu-se que identificações entre perfis preteridos, como o dos adotantes e os das crianças abrigadas, podem constituir motivações para a adoção monoparental, enfatizando-se a relevância de um trabalho de conscientização, favorecendo a adoção.

Palavras-chave: adoção, monoparentalidade, motivações, perfil.


ABSTRACT

This work aimed to investigate the motivations in the transition to adoptive single parenthood. Nine women and three men between the ages of 38 and 61 from the middle socioeconomic strata of the metropolitan region of Rio de Janeiro and three cities in the south-southeast of Brazil were interviewed. The content analysis method was used in its categorical aspect. To achieve the objectives of this study, two categories were analyzed, using psychoanalytic and systemic family theories as a theoretical framework: in addition to infertility and motivations for the profile. The results showed that single-parent adoption was the means found to fulfill the desire to have children in the absence of a partner with whom to share parenting. Identifications with the adopter's individual history gained intensity and, together with the desire to transmit and care, motivated the adoption of children with neglected profiles. Identifications involving feelings of rejection and fantasies of repairing a symbolic debt were observed, whose reports demonstrated a work of reflection and awareness. It was concluded that identifications between neglected profiles, such as those of adopters and those of sheltered children, can constitute motivations for single-parent adoption, emphasizing the relevance of awareness-raising work, favoring adoption.

Keywords: adoption, single parenthood, motivations, profile.


RESUMEN

Este trabajo tuvo como objetivo investigar las motivaciones en la transición a la paternidad adoptiva soltera. Se entrevistaron nueve mujeres y tres hombres entre 38 y 61 años, provenientes de estratos socioeconómicos medios de la región metropolitana de Río de Janeiro y de tres ciudades del sur-sureste de Brasil. Se utilizó el método de análisis de contenido en su vertiente categórica. Para lograr los objetivos de este estudio, se analizaron dos categorías, tomando como referencia teórica las teorías psicoanalíticas y sistémicas de la familia: además de la infertilidad y las motivaciones para el perfil. Los resultados mostraron que la adopción monoparental fue el medio encontrado para cumplir el deseo de tener hijos en ausencia de una pareja con quien compartir la parentalidad. Las identificaciones con la historia individual del adoptante ganaron intensidad y, junto con el deseo de transmitir y cuidar, motivaron la adopción de niños con perfiles postergados. Se observaron identificaciones que implicaban sentimientos de rechazo y fantasías de reparación de deudas simbólicas, cuyos relatos demostraron un trabajo de reflexión y concientización. Se concluyó que las identificaciones entre perfiles olvidados, como el de adoptantes y los de niños acogidos, pueden constituir motivaciones para la adopción monoparental, destacando la relevancia de un trabajo de concientización, favoreciendo la adopción.

Palabras clave: adopción, monoparentalidad, motivaciones, perfil.


 

 

Este estudo se desenvolveu a partir de um campo de investigação sobre monoparentalidade, aberto em pesquisa anterior sobre o tema, cujo grupo investigado se configurou majoritariamente por via da adoção. No presente trabalho, a adoção se constituiu por meio do Cadastro Nacional de Adoção, sendo destacada a realidade de crianças abrigadas.

Na década de 1980 houve uma mudança de paradigma no campo da adoção, passando de uma visão assistencialista a uma preocupação com a proteção integral à criança e ao adolescente, tendo como marcos jurídicos a constituição Federal de 1988 e o ECA em 1990, pelo qual a adoção deve ser realizada para corresponder ao melhor interesse da criança, e não para o interesse exclusivo do adulto. A adoção por pessoas solteiras foi oficializada no Brasil com a Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Não se faz distinção entre casais e pessoas solteiras, mas é necessário compreender as motivações do adotante e que lugar ocupa o adotado no seu imaginário. Com a Nova Lei da adoção (Brasil, 2009), além do cumprimento do período de convivência, torna-se indispensável uma preparação psicossocial e jurídica, bem como um acompanhamento multiprofissional, tanto no período que antecede a adoção, quanto posteriormente. Segundo dados estatísticos do Sistema Nacional de Adoção (CNJ, 2020), 5.154 crianças e adolescentes estavam aptos a serem adotados em 2020. Entre os pretendentes disponíveis, 9% são pessoas solteiras. Esses dados são continuamente atualizados no portal do Conselho Nacional de Justiça, por meio do novo painel online do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento.

Para além da legislação e dos dados estatísticos, o desejo de filho corresponde ao aspecto subjetivo inicial da experiência da parentalidade, seja ela biológica ou adotiva. Houzel (2004) diferencia e articula três eixos constitutivos da parentalidade: o exercício, que corresponde aos aspectos jurídicos e prescritos pela sociedade; a prática, que inclui os cuidados físicos, psíquicos e as trocas intersubjetivas com o filho; e a experiência subjetiva, que se refere à percepção do sujeito sobre a sua vivência parental e tem origem no desejo de ter filho. Assim, o desejo inaugura o processo subjetivo de transição para a parentalidade, um conceito complexo, que se instaura em ação e que implica em níveis conscientes e inconscientes do funcionamento psíquico, uma vez que envolve aspectos tanto de construção como de transmissão intergeracional, baseados em padrões oriundos das experiências com os próprios pais (Solis-Ponton, 2004).

As motivações para ter filho têm sido objeto de investigações porque afetam o desenvolvimento e a qualidade dos vínculos. Schetinni Filho (2008) aponta três principais origens motivacionais para a adoção: a biológica, como nas questões relativas à fertilidade; a social, como no caso do altruísmo; e a emocional, como a transmissão familiar ou a perda de um filho. As motivações se expressam de forma manifesta ou latente, de acordo com as fantasias, os medos, os desejos e as demandas individuais e indicam, em certo sentido, o lugar que o filho ocupará no psiquismo dos pais, o que poderá ser identificado a partir de uma escuta atenta por parte de profissionais envolvidos no processo de habilitação para a adoção (Puerta Beltrame, 2021).

Entre as motivações para a adoção, a infertilidade tem sido apontada pela maior parte da literatura como o fator mais frequente e relevante. A impossibilidade de gerar um filho, fruto ou não de um relacionamento, constitui a principal perda que pode ser vivida pelos adotantes e aparece associada às gestações incompletas, à falência dos tratamentos de infertilidade, e aos sonhos de criar uma criança com a qual se tenha uma conexão genética (Child Welfare Information Gateway, 2019). Essas perdas podem vir acompanhadas do sentimento de vergonha nos pais adotivos por não serem capazes de ter um filho biológico. Silva (2014) discrimina ainda o luto da feminilidade e da masculinidade, tal como nas expectativas religiosas e sociais.

Biasutti (2021) pontua que, em décadas passadas, a motivação para a adoção decorria principalmente da infertilidade do casal, implicando questões relacionadas ao luto pela gravidez e pelo filho biológico. Nas últimas décadas, o cenário da adoção tem sido ampliado, e a adoção vem sendo vista mais como uma opção às novas famílias e não apenas uma opção à infertilidade (Silva et al., 2017). As autoras identificaram nas avaliações de técnicos judiciários, diferenças relacionadas aos perfis das famílias candidatas, e concluíram que os vários arranjos apresentam novos desafios aos profissionais, destacando a importância de que estes conheçam tais questões para melhor lidar com preconceitos e reinventar novos modos de atuação. Algumas motivações não associadas à infertilidade foram denominadas como motivações contemporâneas, por serem facilitadas pelas novas configurações familiares, como na adoção por pessoas solteiras e por casais homossexuais. Em 2018, Sampaio et al. destacaram que, embora as motivações sejam individuais, o que pode variar para cada pessoa e família, observa-se como denominador comum o desejo de desempenhar o papel de cuidador, independentemente da configuração familiar, da orientação sexual e da existência de filhos biológicos ou não. Em 2020, Sampaio et al. identificaram em um grupo específico de sujeitos que adotaram crianças maiores, a prevalência do desejo de vivenciar a parentalidade independentemente de uma relação conjugal, e sem a necessidade de ter um bebê. Sobre a relação entre o perfil das famílias e o das crianças adotadas, os estudos são ainda incipientes.

O estudo das motivações para o perfil da criança adquire relevância especial quando há divergência entre o perfil esperado e o real (Ladvocat, 2021). Esse fato retrata a realidade da filiação adotiva na sociedade brasileira atual e sugere questões que destacam o interjogo entre motivadores externos e internos para a ampliação do perfil. Borges e Scorsolini-Comin, (2020) apontam a discrepância entre o desejo dos pretendentes à adoção e a realidade das crianças nos abrigos: no perfil traçado pelos pretendentes são almejadas características como pouca idade, pele branca, ausência de doenças infectocontagiosas ou de anomalias congênitas, o que não corresponde à realidade das crianças e adolescentes que estão disponíveis para adoção, de acordo com o Cadastro Nacional de Adoção. Desse modo, os autores ressaltam a necessidade de que seja conferida maior visibilidade sobre o real perfil das crianças abrigadas, por parte dos profissionais envolvidos na adoção. Por outro lado, Silva (2019) ressalta que o reconhecimento de uma criança como filho requer um processo de elaboração psicológica; a criança já existe no imaginário, mas também na vida real. A autora acrescenta a importância das reflexões sobre as motivações, pois a alteração do perfil envolve questionamentos, sensações e sentimentos diferentes de uma gestação biológica e que, portanto, não deve provir de motivadores externos, segundo a disponibilidade, pois reduziria a relação filiação-parentalidade a uma lógica mercadológica.

Entre os motivadores internos para a adoção, a identificação exerce função fundamental para o estabelecimento do vínculo parento-filial, por constituir o elo emocional essencial entre os pais e seus filhos adotivos. Machado (2014) encontrou, em pais adotivos, uma necessidade de reconhecer semelhanças em comportamentos e traços de personalidade da criança para criar uma identidade de parentesco, possíveis metáforas do narcisismo dos pais na adoção. Entretanto, as motivações narcísicas encontram-se presentes não apenas nas identificações, mas também nas idealizações sobre os filhos, sejam biológicos ou não, e podem surgir tensões entre elas e a realidade da criança.

Para além do luto pela impossibilidade de gerar, com todas as suas representações em termos de continuidade de si e de sua imagem narcísica, outras motivações constituem pontos importantes a serem considerados como: a morte de um filho, a identificação com a criança abandonada, a fantasia idealizada de "fazer o bem", e a necessidade de fazer reparações em relação a fantasias inconscientes (Levinzon, 2019). Sobre motivações inconscientes, Bègue (2013) procurou compreender se as pessoas férteis também precisariam fazer algum luto antes de se lançarem ao projeto de adoção. Em sua pesquisa, foram identificados, no contexto de suas histórias de vida particulares, três principais motivos inconscientes: o pagamento de uma dívida simbólica pela qual se sentiam culpados, reparar a injustiça da morte devido a perdas sofridas na infância e no início da vida adulta e a intenção de se realizarem enquanto casal. Peiter (2016) acrescenta que sentimentos de vazio e impotência não existem apenas em situações de infertilidade, mas também em diversos contextos da vida das pessoas. No contexto da monoparentalidade, Minuchin e Fishman (1990) destacam que o risco de que o filho possa ser desejado para preencher um vazio não é prerrogativa de famílias monoparentais, pois o vazio também está presente em casais em decorrência de problemas na conjugalidade, e não apenas no fato de não estar em um relacionamento afetivo. Peiter (2016) enfatiza que quando não é possível encontrar espaços para trabalhar esses sentimentos relacionados a feridas narcísicas, é possível que alguns pretendentes desloquem inconscientemente as dores de seu próprio desamparo à criança adotada, o que poderia sustentar inconscientemente a busca pela adoção de uma criança desamparada. Motivações dessa natureza são de difícil acesso, e a intervenção psicanalítica poderá ajudar os pretendentes a elucidá-las, de forma que a adoção não se efetive por razões desconhecidas deles mesmos.

A partir dessas considerações, compreendemos que o estudo sobre as motivações tem a contribuir não só para a avaliação da disponibilidade emocional do adotante monoparental para a criança disponível à adoção, como para um melhor preparo e efetividade da adoção, prevenindo devoluções, e promovendo saúde emocional às famílias. Face à carência de estudos que contemplem as especificidades de famílias monoparentais no que concerne às motivações para a adoção, o objetivo deste trabalho é investigar as motivações de adotantes na transição para a monoparentalidade.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 12 sujeitos - nove mulheres e três homens - com idades entre 38 e 61 anos, oriundos das camadas socioeconômicas médias, sendo nove residentes na região metropolitana do Rio de Janeiro, e três em outras cidades do Brasil: Campinas-SP, Santos-SP e Gravataí-RS. Todos com escolaridade superior e com processo de adoção concluído por meio das respectivas Varas da Infância e Juventude. Foram critérios de inclusão que os filhos tivessem, no momento da entrevista, idades entre dois e 18 anos, e sido adotados há pelo menos dois anos. Foram critérios de exclusão famílias com filhos biológicos e adoções na mesma família. Foram 13 crianças adotadas, sendo seis com mais de oito anos e seis com saúde vulnerável - dois bebês soropositivos. Houve nove adoções foram inter-raciais, tratando-se de dois pais brancos e sete mães brancas que adotaram crianças negras ou pardas. As características descritas acima são aquelas preteridas pela maioria dos pretendentes à adoção na sociedade, configurando assim o grupo das adoções necessárias. Os participantes foram nomeados com letras e números, a saber: P (Pai), M (Mãe). A tabela 1 contém os dados biosociodemográficos dos participantes.

 

Tabela 1

Dados biosociodemográficos dos participantes

 

Participante /
Cidade

Idade

Profissão

Sexo / Idade
da Criança

Idade na adoção

Características da criança / adoção

M1
Rio de Janeiro

58

Professora e
Fonoaudióloga

F 6 a

3 d

Inter-racial

P1
Gravataí-RS

40

Assistente social

M 15 a

9 a

Inter-racial

M2
Rio de Janeiro

58

Advogada

F 13 a

1 a e 9 m

Inter-racial

P2
Rio de Janeiro

61

Engenheiro aposentado

M 14 a

9 a

Inter-racial
3 devoluções

M3
Campinas-SP

43

Desempregada Form. Jornalismo

M 13 a e 6 m

1a e 4 m

Soropositivo
Inter-racial

P3
Rio de Janeiro

38

Farmacêutico e
Veterinário

M17 a

11 a

Doença renal crônica

M4
Rio de Janeiro

41

Pedagoga

F 17 a
F 15 a

10 a
11 a

Doença autoimune Dermatomiosite

M5
Rio de Janeiro

61

Bióloga

M 9 a

4 m

Bronquiolite
Inter-racial

M6
Rio de Janeiro

61

Aposentada – Form.Administração

M 14 a

8 a e 8m

-

M7
Rio de Janeiro

57

Bióloga

F 4 a

1m 17 d

Hemorragia cerebral / Inter-racial

M8
Santos-SP

50

Professora particular

M 12 a

2 m

Soropositivo
Inter-racial

M9
Rio de Janeiro

43

Consultora de beleza

F 12 a

2 a e 6 m

Inter-racial

M = mãe, P = pai, F = feminino, M = masculino
Fonte: Elaborado pelas autoras (Janeiro / 2023)

 

Instrumentos e procedimentos

Como instrumentos de investigação foram utilizadas fichas biosociodemográficas e entrevistas gravadas por meio da plataforma Zoom que foram transcritas posteriormente na íntegra. O roteiro semiestruturado das entrevistas foi formulado a partir da revisão da literatura.

Um participante foi indicado a partir da rede de relacionamento do pesquisador, três vieram de pesquisa anterior e foram reentrevistados para a finalidade desta pesquisa. Um deles indicou profissional do Direito que trabalha no campo da adoção, que indicou outros participantes e outro profissional (coordenador de Grupo de Apoio à Adoção), que participou dos processos de alguns entrevistados. O contato inicial para a marcação da entrevista foi feito via WhatsApp. As entrevistas foram realizadas por meio da plataforma Zoom em data e hora determinados pelos participantes e tiveram duração média de uma hora. A modalidade de entrevista on-line deveu-se às medidas de saúde pública adotadas por instituições governamentais e universitárias, por ocasião da coleta de dados em 2022, que restringiram contatos presenciais em virtude da pandemia de COVID-19. Durante a entrevista, a ordem de abordagem dos temas foi determinada pela fala do entrevistado. Quando os sujeitos não abordaram espontaneamente alguns temas contemplados no roteiro, coube à entrevistadora formular as perguntas correspondentes.

Cuidados Éticos

O projeto que deu origem à pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da PUC-Rio 79/2021 (Protocolo 92/2021). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando a utilização dos dados colhidos em ensino, pesquisa e publicação, sendo a identidade dos participantes e das pessoas e instituições mencionadas devidamente preservada.

Análise dos dados

Os dados coletados foram submetidos ao método de análise de conteúdo com a finalidade de investigar, a partir do material discursivo, as significações atribuídas aos fenômenos pelos entrevistados (Bardin, 1977/2016). Por meio da técnica categorial, foram destacadas categorias temáticas, organizadas a partir do critério de repetição e de relevância. Para tanto, procedeu-se uma "leitura flutuante", agrupando-se dados significativos, identificando-os e relacionando-os até se destacarem as categorias de análise.

 

Resultados e Discussão

Este estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla, em que surgiram várias categorias de análise. Para alcançarmos o objetivo deste artigo, discutimos duas categorias: além da infertilidade e motivações para o perfil.

Além da infertilidade

Embora a literatura aponte a infertilidade como uma das motivações mais frequentes para a adoção, em nosso estudo, ela foi fator minoritário. Os participantes relataram como lidaram com as questões biológicas em seu percurso até a decisão de adotar.

A minha mãe quase morreu.… então eu sempre tive muito medo … eu falava "Gente, eu vou ser mãe, vou ter o filho e vou morrer"… Então a adoção sempre foi a minha primeira opção. Eu nunca me imaginei gerando, entendeu?… Eu queria ser mãe e não importava o caminho também. A adoção é só mais um meio de ser mãe.(M4)

Sempre quis adotar um filho, porque eu sou adotiva também, né?…eu não queria engravidar, eu tinha pavor de ficar nove meses com aquele barrigão. (M3)

Eu até cheguei a fazer inseminação artificial… e aí eu estava na cidade quando eu comecei a abortar. Aí ali eu falei "Gente, que loucura que eu estou fazendo com o meu corpo… se eu posso ir por outros caminhos que vai dar no mesmo"…  Eu quero … uma criança, e vou adotar. (M5)

A minha irmã tinha feito… inseminação artificial… mas eu não acho legal ficar grávida de alguém que você nem conhece, eu acho estranho. (M7)

Por ser evangélica, eu não queria fazer uma reprodução independente. (M9)

Os relatos enfatizaram os aspectos positivos das adoções e foram variados, envolvendo aspectos biológicos, emocionais e sociais, conforme as experiências individuais dos pretendentes à adoção. Do ponto de vista biológico, preponderaram entre as mulheres receios quanto a predisposições genéticas a riscos no parto, o desejo de não engravidar e os inconvenientes da inseminação artificial, sejam de ordem física, psicológica ou religiosa.

Considerando os aspectos emocionais, o desejo de transmitir a parentalidade adotiva recebida foi determinante para a consideração da adoção em primeiro plano para M3. Adicionalmente, a abertura legal para adotantes com orientação homossexual foi um fator que promoveu a constituição de duas famílias entre os homens. P3 relata o que o levou a buscar o curso preparatório para apadrinhamento, que antecedeu o processo de adoção:

Apareceu uma reportagem no Fantástico que aparecia um casal homoafetivo com uma criança…já falando "pai, não sei que, não sei que"…Aí aparecia a repórter… perguntando, uma babá … ‘Você já viu? _ ‘Não, não', eu já vi sim, mas assim, eu não quero me meter na relação de ninguém … se são duas mães, dois pais, se é um pai só ou uma mãe só… Eu não quero me comprometer, o que envolve ali somente é amor. (P3)

P1 pensava não alcançar a aceitação do seu desejo de parentalidade adotiva, antes de ter sido escolhido pela criança:

Sendo eu homossexual… de família bem humilde, enfim, eu sempre achei que eu jamais poderia ser pai… Então… eu buscava alternativas… eu sempre fiz trabalho voluntário… que eu sabia… eu ia trabalhar com crianças do abrigo… E aí foi que surgiu o L…  ele que me escolheu, assim, pra ser padrinho dele… Então eu escolhi ser pai e dessa forma… em carreira solo… eu não tenho interesse nenhum em dividir (Risos). (P1)

Conforme os relatos apresentados, o luto pela infertilidade não teve expressão nas falas dos entrevistados, mas o real desejo de vivenciar a parentalidade, sendo a adoção o meio encontrado para isso. Esses dados corroboram a visão de Silva et al. (2017), que apontam que a adoção vem sendo vista cada vez mais como uma opção às novas famílias e não apenas uma alternativa à infertilidade, tratando-se assim de um projeto de vida (Biasutti, 2021). Os dados fazem uma interface com o postulado de Puerta Beltrame (2021), por considerar que, como casais heterossexuais constituem a maioria das famílias que buscam a adoção, seria possível que a relação entre infertilidade e adoção espelhasse uma característica desse contexto, sugerindo assim uma relação entre motivações e arranjos familiares.

No grupo pesquisado, as motivações conscientes para a adoção monoparental se apresentaram predominantemente pela ausência de um parceiro, desejada ou não, com quem compartilhar a parentalidade. Adicionalmente, para os adotantes de mais idade, os impedimentos biológicos derivam da idade avançada após uma vida de estudos e trabalho. Seis participantes tinham idades entre 47 e 56 anos quando adotaram seus filhos:

Desde os 6 anos de idade… era uma coisa óbvia, eu ia ter filho! Só que quando eu me deparei… que o tempo tá passando e tudo mais… porque… profissionalmente eu tava bem… socialmente eu tava bem, mas não tinha filhos… Bom, já que eu não tenho uma companheira para ter um filho comigo, até porque o meu último relacionamento… ela também já tava na fase que já não permitia mais a gravidez, então… por que não adotar? (P2)

Eu sempre tive essa ideia, independente de casar… eu sabia que eu ia adotar uma criança um dia, independente de eu gerar ou não. E aí foi passando o tempo, foi trabalho, faculdade… Quando eu fiz 45… bom tá na hora de adotar. Aí, até a médica falou "Você não quer tentar?", "Tá louca, vou enfrentar uma gestação . . . não vou ficar arriscando a mim e à criança". (M1)

Esses resultados confirmam os achados de Gomes et al. (2014), que apontam que a busca por adoção em fase tardia da vida se deve ao fato de os indivíduos terem privilegiado a vida profissional em detrimento da vida pessoal, e de terem adquirido estabilidade financeira e segurança para se tornarem pai ou mãe apenas tardiamente, o que se relaciona com as novas formas de ser família na contemporaneidade, possibilitadas pela medicina e pela adoção. Em nosso estudo, a parentalidade tardia caracterizou a experiência de metade dos participantes, enquanto os outros adotaram crianças na faixa etária em que, hoje em dia, a maioria das pessoas escolhe ter filhos. A homossexualidade masculina aparece associada à adoção efetuada com as idades mais baixas.

O cuidado esteve presente nas experiências relatadas pela totalidade dos entrevistados, em atenção às necessidades das crianças. Para P3, o desejo de cuidar esteve presente nas motivações para a adoção da criança doente: "Foi querer uma responsabilidade muito maior pra uma pessoa, entendeu? Além de cuidar de mim, de cuidar de uma pessoa, dar mais atenção, carinho, amor e afeto. Entendeu?" (P3).

O desejo de cuidar e de amar outra pessoa concorda com uma das facetas características da parentalidade, biológica ou adotiva. Tais resultados realçam os achados em pesquisas recentes (Sampaio et al., 2018), que apontam que a despeito das motivações para a adoção serem individuais, observa-se como aspecto comum entre as famílias o desejo de desempenhar o papel de cuidador, independentemente da configuração, da orientação sexual e da existência de filhos biológicos ou não. Tais resultados contribuem para a qualificação positiva das famílias monoparentais adotivas, levando em conta que, por muito tempo no passado, a monoparentalidade era estudada predominantemente em seu aspecto deficitário, por não dispor de recursos suficientes para as crianças, quando comparada à família tradicional (Biasutti, 2021).

O desejo de cuidar também se destacou ao considerarmos o perfil das crianças adotadas. É digno de nota que, justamente adotantes que pretendem exercer e praticar solitariamente a parentalidade, adotem crianças com demandas de saúde especiais, o que nos levou a explorar as motivações para adotar as crianças com perfis preteridos pela maioria dos pretendentes à adoção na sociedade.

Motivações para o perfil

Foram observadas motivações para o perfil da criança passíveis de transformações, em resposta não apenas a motivadores externos. Um movimento na realidade interna dos pretendentes relacionado à imagem do filho desejado foi identificado nas falas.

Na verdade eu queria menino… já tem muita mulher na minha família…mas eu não botei só menino… porque… ah, eu vou diminuir 50% a chance de chegar uma criança, né… Puseram ela na fila de doenças tratáveis, por isso até foi um pouco mais rápido. Se eu tivesse botado que só quero saudável, alguém teria passado a minha frente, né? (M7)

Meu perfil inicial era de 2 a 5 anos. E aí de repente uma cegonha… é a pessoa que faz as apresentações, né, ela falou "Nossa, tem uma menina no orfanato…  que é a sua cara, você não quer conhecer?". Aí eu achei que era brincadeira porque meu nome é [igual ao do orfanato]… "Mas ela já tem 10 anos". Aí eu falei "Gente, meus alunos têm oito! Qual o problema de ter uma filha de 10?… eu quero ser mãe, não interessa!"…  Eu queria que essa criança fosse para a escola comigo já. (M4)

Para a maioria dos participantes, o desejo de vivenciar a parentalidade sobrepujou a preferência por bebês, relativa ao sexo, à cor/raça, e/ou às condições de saúde da criança, contemplando assim as chamadas adoções necessárias (Borges & Scorsolini-Comin, 2020). Esses dados concordam com o pensamento de Silva (2019), que postula que o reconhecimento de uma criança como filho resulta de uma trajetória nem sempre retilínea e requer um processo de elaboração psicológica, que exige do sujeito a capacidade de refletir sobre suas ideias e desejos em um processo permeado por conversas, sentimentos, escolhas e decisões. Desse modo, mudar de perfil pode ser um resultado de um longo trabalho de reflexão e de análise, e acontece favoravelmente quando o pretendente faz uma análise e releitura do seu desejo, o qual pode se construir e se modificar ao longo da espera, não somente em decorrência da exposição dos perfis das crianças disponíveis, incentivada pelos profissionais da adoção, ou simplesmente para acelerar esse processo, mas porque encontra na sua realidade interna, um lugar para um filho diferente daquele inicialmente imaginado.

Entre os motivadores internos para a formalização do perfil ou para a sua ampliação, destacou-se a busca de semelhanças e familiaridades e a capacidade de construir identificações: "Eu queria uma criança soropositivo. Hoje por exemplo, ele tá zerado, e eu tô zerada, porque eu também sou soropositivo, né, há 23 anos". (M3)

Quando ela virou eu levei um choque! Porque ela era a minha cara mesmo… A juíza falou assim "Você vai querer mesmo, ela foi desenganada! Se a V. morrer na sua casa, você vai fazer o quê?"… "Não, Dra., ela vai morrer com nome e sobrenome, ela vai morrer com família"… Eu nunca romantizei a maternidade, não. Eu era uma criança tão doente de bronquite… eu sempre imaginei que eu teria que correr para hospital, e as minhas filhas, elas são muito mais saudáveis…  do que eu fui na infância, né? (M4)

Eu levei um susto, porque eu jamais esperava que viesse assim tão doente, né?… Me ligaram falando "Olha, tem uma criança no hospital… que é o teu filho"… Quando eu cheguei lá, ele era a cara do meu sobrinho… que eu tenho uma adoração por ele, porque eu ajudei a criar… foi amor à primeira vista… Nós conseguimos ir pra… um hospital da Unimed… pra UTI… Ficamos 45 dias nesse hospital, ele estava… entre a vida e a morte (M5).

A capacidade de construir identificações aproximou os pretendentes da realidade das crianças abrigadas, o que constitui um aspecto favorável ao estabelecimento do vínculo parento-filial. Nas famílias monoparentais, as identificações se baseiam em aspectos exclusivamente individuais, sem receber a influência da parentalidade de um parceiro. Machado (2014) enfatiza a função fundamental da identificação na consolidação do vínculo entre os pais e seus filhos adotivos, pois por meio desta, o filho que veio de outra matriz familiar, portador de diferenças e de estranhezas, pode se tornar familiar, uma vez que reconhecível pela sua semelhança.

P1 fala sobre o seu sentimento de rejeição perante a sociedade quanto à possibilidade de ser pai e, em outro momento, discorre sobre a dura realidade da criança maior nos abrigos, preterida pelos pretendentes à adoção.

Eu vinha de um processo de… marginalização… Eu tinha isso como certo, que não era permitido pela sociedade, sei lá, que eu, gay, solteiro e pobre… eu achava que mesmo eu fazendo o processo de apadrinhamento eu não seria… ahn, escolhido, talvez, por um afilhado… E aí, eu fui adotado… fomos adotados, né… Esse processo de ser pai, me tornar pai, ele me ensinou… porque tem várias questões de autoaceitação que eu jamais…não seria nem padrinho. [sobre a criança adotada] Um menino de 8 anos, as chances de ser adotado era quase nula. Não tinha ninguém na fila. Então eu entrei com um advogado com um pedido de guarda dele… alegando vínculo… um ano ele frequentava minha casa… e de não ter interessados nele. (P1)

A expressão usada por P1 "fomos adotados" sugere identificações entre o adotante e o adotado, ao retratar uma relação entre o perfil preterido da criança maior e a identificação do adotante com os aspectos de rejeição oriundos do preconceito de que sofria. Este dado é análogo ao achado de Puerta Beltrame (2021), no que tange ao sentimento de rejeição perante a sociedade, pelas pessoas homossexuais, como fator inconsciente de identificação na motivação para a escolha da criança maior. Em nosso estudo, reforçando a mutualidade entre o desejo de parentalidade e o de filiação, discriminamos o sentimento de identificação oriundo de semelhanças relacionadas à percepção da rejeição, que é comum tanto ao perfil preterido do adotado como também ao do adotante, em virtude da idade da criança maior de um lado, e da homoparentalidade solo de outro.

Dois participantes falaram sobre os sentimentos vivenciados quando crianças no relacionamento com seus pais, que se atualizam no desejo de adotar.

Muitas das vezes essas crianças são deixadas até os 18 anos e depois… não sabe nem pra onde que vão, né? Ficam abandonadas… [o que reconhece da sua família de origem na sua família atual] O meu padrasto, como não era o meu pai biológico, ele era meu pai adotivo sem ser adotivo. Minha família também não deixou de ser uma família adotiva… da parte dele. Isso tudo… só não tem o nome de "adoção", mas é uma adoção. (P3)

Eu fui criada pelos meus avós, né? Então, assim, não foi uma adoção, mas eles foram nossos tutores, meu e do meu irmão, quando meus pais separaram. Meu pai fez questão que meus avós maternos assumissem porque ele não confiava muito, é… que os cuidados ficassem com a minha mãe, entendeu? Então, não foi adoção, mas… na prática foi. (Risos)… Apesar de agradecer imensamente por isso ter acontecido, não deixa de ser um abandono, né? Porque ninguém veio me reivindicar. (M2)

Para P3 e M2, os sentimentos oriundos das memórias da criança que eles foram, bem como a alta sensibilização referente aos aspectos de negligência ou rejeição sofridos pelas crianças em suas histórias, sugere uma mobilização em direção a identificações com essas crianças. Levinzon (2006) explora o aspecto delicado das identificações, particularmente quando se trata da identificação de mães ou pais com o filho, visto por eles como em situação de abandono, uma vez que, quando crianças, eles mesmos se sentiram abandonados em razão de desencontros com sua família de origem. Nesses casos, a autora salienta o valor das diferenciações, pois, se ao acolherem e fornecerem um lar ao seu filho, se sentirem como se estivessem recuperando a criança carente que reside inconscientemente em seu interior, isso pode trazer dificuldades com o filho. Seria necessário discriminar entre os sentimentos do/a pai/mãe e o do filho adotivo, para que este não se ressinta por ser visto como uma parte encoberta de outro, ao invés de uma pessoa com individualidade própria.

Por outro lado, o fato de os participantes terem podido falar sobre as suas vulnerabilidades emocionais, nos relacionamentos com os pais, demonstra um trabalho de conscientização. Tal dado concorda com Bicca e Grzybowski (2014), segundo os quais o conhecimento da própria história é apontado como um aspecto facilitador na adoção entre crianças com perfis preteridos e os pretendentes à adoção, assim como também a idade e o desejo de exercer a paternidade/maternidade. Em nosso estudo, a consideração da própria história se constituiu como uma experiência consolidadora para o processo de transição à monoparentalidade adotiva, favorecendo o desejo de transmissão de um patrimônio psíquico, em certa monta, transformado. Esses processos se destacam entre as motivações das famílias monoparentais, uma vez que as experiências individuais ganham proeminência, na ausência da parentalidade de um parceiro.

Para M6, a motivação para assumir sozinha a parentalidade adotiva de uma criança maior aparece como um resgate do passado, e relatou como fator determinante:

Poder reencontrar uma alma e cumprir um resgate, né [chora]. Eu tenho um débito, e a espiritualidade tá me conduzindo nessa oportunidade de resgatar… Eu havia feito aborto na juventude, né, de um rapaz que eu tinha sido noiva, achava que ia casar… e aí, quando chegou na hora…  me vi sozinha…  isso daí me acompanhou durante muito tempo e eu achava que na hora que eu tivesse um relacionamento… que me passasse essa confiança, eu conseguiria. Só que aí avançou a minha idade… eu conheci esse companheiro, né, e aí eu não consegui… Quando… ele faleceu… durante um tratamento, um mentor espiritual falou pra mim que eu devia me preparar porque tinha uma criança pra vir… a espiritualidade sabia… tudo que tinha acontecido comigo. E foi então que realmente eu fui trabalhar essa questão do aborto, de todos esses traumas que havia sofrido. Então, assim, eu fui conduzida, né, pra… seguir o meu processo com a minha terapeuta… encontrar, né, os meios jurídicos, legais. (M6)

A fala acima pode ser analisada em dois aspectos: a reparação de fantasia de pagamento de uma dívida simbólica, e o luto pelo filho que não nasceu. O sentimento de dívida como o fator determinante na decisão de adotar, sugere a tentativa de fazer uma reparação em sua fantasia de "poder reencontrar uma alma e cumprir um resgate". Esse resultado corrobora com o achado de pesquisa obtido por Bègue (2013), em que o pagamento de uma dívida simbólica pela qual os participantes se sentiam culpados constou entre os três principais motivos inconscientes para a adoção. Além disso, o entrelaçamento dos temas luto e adoção aponta a importância de uma melhor identificação das interfaces entre adoção e luto na sociedade contemporânea, uma vez que estes temas ainda são considerados tabus e, portanto, pouco discutidos (Silva, 2014). Nesses casos, Levinzon (2020) aponta a necessidade de um olhar atento à superação desse trauma, pois se não tiverem sido bem absorvidas e resolvidas, tais perdas criam condições para o surgimento de problemas na relação com o filho adotivo, considerando que o ser humano precisa ser visto em sua individualidade e não como substituto de outra pessoa. Isso se intensifica com a criança adotada, devido à sua história anterior, pela sua necessidade de ter bem claro o seu lugar próprio na nova família. Assim, a elaboração do luto do filho biológico é compreendida como processo psíquico necessário para o surgimento de um lugar no psiquismo dos pais para o filho adotivo.

Acrescentamos que temas que envolvam o entrelaçamento entre luto e adoção dificilmente podem ser trazidos em entrevistas do processo de habilitação, como foi o caso de M6, especialmente se levarmos em conta que ela traz, em sua história, o estigma existente na época e contexto social em que vivia, quando o teste de paternidade não era vigente e acessível no Brasil e pesava sobre a maternidade solteira recriminações à mulher, por seu comportamento considerado imoral (Letablier, 2018). A vivência de M6 corrobora os postulados de Rodrigues (2021), que aponta que, devido ao caráter avaliativo das entrevistas no processo de habilitação e pelas limitações de tempo, temas emocionalmente sensíveis e que envolvem juízo de valor podem ser mais facilmente trazidos pelos adotantes em uma escuta especializada e individual, por esta proporcionar melhores condições.

 

Considerações Finais

As motivações para a adoção monoparental mostraram-se variadas e abrangeram vários aspectos como os biológicos, os sociais e os emocionais, como também apresentaram vários níveis, mais próximos ou mais distantes da consciência. Do ponto de vista biológico, as motivações para a adoção diferenciaram-se daquelas mais frequentes apresentadas entre casais, como a infertilidade. Os impedimentos biológicos decorreram da idade, após uma vida de estudos e trabalho em que, apenas tardiamente, o desejo de parentalidade se constituiu como um novo projeto de vida, o que foi constatado para os participantes que efetivaram as adoções entre as idades de 47 e 56 anos de idade, aproximadamente.

A preferência pela adoção, para as mulheres, considerou os riscos de predisposições genéticas em relação ao parto, e a reprodução assistida foi preterida devido aos inconvenientes de natureza física, ou por concepções religiosas, ou ainda devido ao sentimento de estranheza em engravidar de um desconhecido. Para os homens, a abertura legal para adotantes com orientação homossexual favoreceu a constituição de família, o que aconteceu nas idades entre 31 e 34 anos.

No que concerne ao grupo entrevistado, a adoção se configurou prioritariamente como o meio de realizar o desejo de ter filho e as motivações para a escolha da adoção monoparental se devem à ausência de um/a parceiro/a com quem compartilhar a parentalidade ou, minoritariamente, à falta de interesse em dividi-la. Presentes nas motivações encontram-se a capacidade de construir identificações com a criança adotada, o desejo de transmitir a própria história, e o desejo de cuidar.

A capacidade de construir identificações propiciou uma aproximação dos pretendentes ao perfil das crianças abrigadas, contemplando assim, em grande parte, as adoções necessárias. As identificações com a história individual ganham proeminência na ausência da parentalidade de um parceiro, o que exige consideração especial, pois, se por um lado, as identificações são fatores fundamentais para a construção do vínculo familiar, por outro, as identificações com a criança vista como abandonada merecem elaboração psicológica dos adotantes, para que a criança possa ser vista em sua própria individualidade. O mesmo ocorre em relação a motivações relativas a fantasias de reparação de uma dívida simbólica, ou que envolvam o entrelaçamento entre os temas luto e adoção. Deduz-se das experiências relatadas pelos participantes, que um trabalho de conscientização sobre as motivações para a adoção e para o perfil da criança constitui um fator facilitador para a adoção de crianças com perfis preteridos.

Adicionalmente, identificações foram observadas na percepção entre a rejeição social vivida por um pai no seu desejo de parentalidade, por ser homossexual, e aquela vivida pela criança de maior idade. Tal sentimento nos faz refletir sobre o perfil do grupo pesquisado e as motivações por crianças com perfis preteridos, como aquelas que configuram o grupo das adoções necessárias. Embora a adoção monoparental seja legitimada juridicamente desde 1990, por muito tempo foram vistas como uma categoria deficitária, por não dispor de recursos suficientes para as crianças. Em nosso estudo, a observação da escolha majoritária dos entrevistados por crianças que ninguém quer, assim como a obstinação em seus projetos de parentalidade, a despeito dos obstáculos e dos desafios a serem enfrentados, nos levam a sugerir motivações marcadas por identificações emocionais entre uma configuração tradicionalmente preterida e crianças com perfis igualmente rejeitados. Assim, motivações baseadas em identificações entre perfis preteridos podem constituir uma especificidade nas motivações para a adoção monoparental.

Este estudo tem como limitações abordar famílias com adoções efetuadas entre quatro e doze anos, condicionando os resultados a esse período de tempo na vida da família e destacando os aspectos bem-sucedidos de adoções monoparentais consolidadas. Por outro lado, a estabilidade da configuração familiar monoparental, por não estar submetida aos impactos da adoção na conjugalidade, como nas famílias com casais, favorece a pesquisa das dinâmicas envolvidas nas interações parento-filiais em famílias adotivas. Nesse sentido, novas pesquisas poderiam abordar temas relacionados à adoção e seus impactos nas configurações familiares. Em suma, este estudo tornou possíveis reflexões e evidenciou resultados que não estão restritos somente às famílias monoparentais, contribuindo igualmente para as adoções de uma forma geral.

 

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Endereço para correspondência
Sibely Joaquina Pereira Lima - sibely_lima@yahoo.com.br

Recebido em: 08/04/2023
Aceito em: 27/05/2024

 

Financiamento: a pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa CAPES PROSUC 2 da primeira autora.

 

 

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