Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e74557, doi:10.12957/epp.2025.74557
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
Parentalidade em Famílias Brasileiras em Situação de Vulnerabilidade Social: Fatores Associados
Parenting in Families in Situation of Social Vulnerability in Brazil: Associated Factors
Parentalidad en Familias Brasileñas en Situación de Vulnerabilidad Social: Factores Asociados
Fernanda Papa Buoso a, Marina Rezende Bazon a
a Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
A parentalidade é determinada pela interação entre características dos cuidadores, do contexto e da criança/adolescente. Os objetivos deste estudo foram examinar essas associações, identificar variáveis preditoras da parentalidade e identificar se a parentalidade prediz desfechos desenvolvimentais das crianças/adolescentes em famílias em situação de vulnerabilidade social. A amostra constituiu-se de 120 indivíduos que compuseram 3 grupos de famílias que viviam em diferentes graus de vulnerabilidade social: 60 beneficiários do Programa Bolsa Família, 30 beneficiários do auxílio emergencial e 30 não beneficiários de nenhum desses benefícios, mas residentes nas mesmas comunidades dos outros grupos. Os instrumentos utilizados foram: Questionário Socioeconômico e de Eventos Adversos na Família, Questionário de Apoio Social, Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scale IV, Inventário de Potencial de Maus-tratos Infantil, Child Behavior Checklist e o Inventário de Estilos Parentais. Os resultados apontaram que características psicológicas dos cuidadores, problemas de comportamento das crianças e apoio social são os principais preditores da parentalidade. Além disso, estilos parentais positivos estiveram associados a menores índices de problemas internalizantes e externalizantes e a maiores níveis de competência social. O estudo reforça a necessidade de intervenções que fortaleçam o suporte às famílias vulneráveis.
Palavras-chave: parentalidade, vulnerabilidade social, fatores associados.
ABSTRACT
The interaction between caregiver characteristics, context, and the child/adolescent determines parenting. The objectives of this study were to examine the associations, identify predictors of parenting, and determine whether parenting predicts developmental outcomes in children/adolescents from socially vulnerable families. The sample consisted of 120 individuals divided into three groups based on different levels of social vulnerability: 60 beneficiaries of the Bolsa Família Program, 30 beneficiaries of Auxílio Emergencial, and 30 non-beneficiaries of either of these programs, but residing in the same communities as the other groups. The instruments used were: Questionnaire for Socioeconomic Characterization and Adverse Events in the Family, Social Support Questionnaire, Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scale IV, Child Abuse Potential Inventory, Child Behavior Checklist, and the Parenting Styles Inventory. The results indicated that caregivers' psychological characteristics, child behaviour problems, and social support are the main predictors of parenting. Furthermore, positive parenting styles were associated with lower levels of internalizing and externalizing behaviour problems and higher levels of social competence. The study reinforces the need for interventions that strengthen support for vulnerable families.
Keywords: parenting, social vulnerability, associated factors.
RESUMEN
La parentalidad está determinada por la interacción entre características de los cuidadores, el contexto y el niño/adolescente. Los objetivos de este estudio fueron examinar estas asociaciones, identificar variables predictoras de la parentalidad e investigar si la parentalidad predice resultados del desarrollo en niños/adolescentes en familias en situación de vulnerabilidad social. La muestra estuvo compuesta por 120 individuos distribuidos en tres grupos de familias con distintos niveles de vulnerabilidad social: 60 beneficiarios del Programa Bolsa Família, 30 beneficiarios de Auxílio Emergencial y 30 no beneficiarios de estos programas, pero residentes en las mismas comunidades que los otros dos grupos. Los instrumentos utilizados fueron: Cuestionario para Caracterización Socioeconómica y de Eventos Adversos en la Familia, Cuestionario de Apoyo Social, Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scale IV, Inventario de Potencial de Maltrato Infantil, Child Behavior Checklist y el Inventario de Estilos Parentales. Los resultados indicaron que las características psicológicas de los cuidadores, los problemas de comportamiento infantil y el apoyo social son los principales predictores de la parentalidad. Además, estilos parentales positivos se asociaron con menores niveles de problemas internalizantes y externalizantes y con mayores niveles de competencia social. El estudio refuerza la necesidad de intervenciones que fortalezcan el apoyo a las familias.
Palabras clave: parentalidad, vulnerabilidad social, factores associados.
Segundo Belsky (1984), a qualidade da parentalidade é determinada pela interação entre fatores de risco e de proteção/recursos atrelados às características pessoais e psicológicas dos pais (personalidade e saúde mental), da criança (temperamento) e contextuais, relativas às fontes de estresse e de suporte (relações maritais, rede social e trabalho). De acordo com o autor, os recursos dos pais são os mais efetivos em proteger o funcionamento do sistema. No que respeita à personalidade dos cuidadores, preponderam estudos na perspectiva da teoria do Big Five, como o de Silva e Viera (2018), mas há estudos que destacam outras características de funcionamento psicológico, como as atitudes parentais, empregando instrumentos específicos como o Child Potencial Inventory (Inventário de Potencial de Maus-tratos Infantis). Nessa linha, Nair e colaboradores (2003) verificaram que cuidadoras expostas a maior número de fatores de risco apresentaram pontuações mais elevadas na escala de potencial de abuso infantil (utilizada para avaliar a atitude) e, consequentemente, maior probabilidade de abusar e/ou negligenciar os filhos. Ainda, estudos que se debruçam no âmbito da psicopatologia observaram que certos transtornos impactam o exercício da parentalidade, como o de Zhong e colaboradores (2021). No que concerne às crianças/aos adolescentes, há evidências de associação entre algumas características e estilos parentais. Verificou-se em um estudo de revisão, por exemplo, a associação entre práticas negativas de cuidado com problemas de comportamento internalizantes e/ou externalizantes (Rosing, 2022).
No tocante ao contexto, destaca-se que a coesão familiar pode favorecer a parentalidade, protegendo a criança de problemas de comportamento externalizantes, moderando o impacto em situações de conflitos entres os cônjuges (Coe et al., 2018), por exemplo. Nesse plano, a condição econômica da família deve ser destacada, pois, essa pode funcionar como fonte de estresse para os pais/responsáveis (Silva et al., 2018). O suporte social, por sua vez, mostrou-se como um importante fator protetivo da parentalidade, desde que percebido enquanto fonte de ajuda, como já verificado em estudo com famílias brasileiras em situação de vulnerabilidade (Seibel et al., 2017). Pelos levantamentos e revisão realizada, não se tem conhecimento da aplicação do modelo do Belsky, especificamente, nessas famílias. A vulnerabilidade social, por seu turno, ainda é um conceito pouco operacionalizado na literatura científica e cinzenta - sendo esta última referente a produções documentais não controladas por editores científicos ou comerciais (Botelho & De Oliveira, 2017). Há, contudo, alguns indicadores em comum nas definições disponibilizadas, como a pobreza, o baixo acesso a serviços e a infraestrutura no entorno comunitário, a fragilização dos vínculos relacionais e sociais e a discriminação social (Scott et al., 2018). Compreender a parentalidade na população que vive nessa condição é importante, pois a vulnerabilidade social opera como um obstáculo aos recursos sociais, importantes para o exercício da parentalidade adequada, além de estar diretamente associada a vários desfechos negativos, no plano do desenvolvimento humano - em função da fragilização que gera, ante ao impacto de fatores de risco - como já verificado, principalmente, no que concerne a prejuízos ao desenvolvimento infantil (Galvagno, 2019).
O estudo de Altafim e colaboradores (2018), realizado na região sudeste do Brasil, encontrou que o baixo status socioeconômico (SSE) das mães/responsáveis se relacionou diretamente com altos níveis de problemas de comportamento internalizantes infantil e com práticas parentais negativas nos domínios de comunicação e de disciplina positiva, não havendo, contudo, associação entre o SSE e o domínio de regulação emocional e comportamental, nem efeito de mediação das práticas parentais entre o SSE e os problemas de comportamento infantis. Já o estudo de Rocha e colaboradores (2022), realizado na região nordeste do país, verificou uma alta prevalência de práticas parentais positivas em amostra de baixo SSE, que foram associadas a dimensões do desenvolvimento infantil positivo (Rocha et al., 2022). Assim, denota-se que os estudos focalizam mais especificamente o SSE e que não há dados consistentes sobre a importância desse para a parentalidade.
Mediante tais apontamentos, é importante continuar envidando esforços para estudar os fatores que influenciam a parentalidade em famílias vivendo em condição de vulnerabilidade social, uma vez que esta pode impor desafios importantes para o exercício do cuidado infantil. Desse modo, ao investigar essas relações, diferentes serviços e instituições podem se tornar mais responsivos diante das fragilidades e dificuldades dessas famílias.
Método
O estudo proposto tem recorte transversal, caráter exploratório e abordagem quantitativa, descritiva, comparativa, correlacional e preditiva, lidando com informações relativas a famílias com crianças/adolescentes, representando grupos vivendo em condições de vulnerabilidade social, porém em graus diferentes. Essa diferenciação derivou do contexto de recrutamento dos participantes/famílias. Um dos grupos (G1) foi composto por participantes/beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF), dirigidos a famílias vivendo em "condição de vulnerabilidade social". Outro grupo (G2) foi composto por participantes/beneficiários do "Auxílio Emergencial" - um programa de transferência não condicionada de renda, criado no contexto da Pandemia do Novo Coronavírus (COVID-19) com o objetivo de fornecer proteção emergencial,atinente a uma situação de vulnerabilidade circunstancial. Por fim, outro grupo (G3) foi composto por participantes recrutados em comunidades (regiões/bairros) caracterizadas por baixo status social (os mesmos no quais residiam as famílias beneficiárias do PBF ou do Auxílio Emergencial), mas que não gozavam dos benefícios mencionados por, em princípio, não cumprirem os requisitos de necessidade dos auxílios.
Amostra
A amostra constituiu-se de 120 indivíduos maiores de 18 anos, considerados os principais responsáveis pelo cuidado das crianças/adolescentes, nas famílias. Esses compuseram, como já mencionado, três grupos: G1. Beneficiários do PBF (n=60); G2. Beneficiários do Auxílio Emergencial (n=30); G3. Não beneficiários do PBF e/ou Auxílio Emergencial, porém residentes das mesmas comunidades (bairros/regiões) nas quais residiam as famílias dos dois primeiros grupos (n=30). À exceção de uma participante do G1, que era avó das crianças, todos os outros participantes eram pais biológicos das crianças/adolescentes. No que diz respeito ao sexo, apenas um participante em G2 era do sexo masculino. Os participantes não se diferenciaram em termos de idade (p=0,46), sendo que os do G1 apresentavam uma média de idade de 35,68 anos (DP = 8,382), do G2 uma média de 36,13 anos (DP = 8,299) e do G3 uma média de 37,97 anos (DP=7,228). Quanto ao estado civil, houve diferença entre os grupos (p=0,02), sendo que uma proporção menor do G1 era casada (11,7% Resíduo Padronizado Ajustado - RPA = -2,7) e uma proporção maior do G1 (43,4% RPA=3,0) e menor do G2 (13,3% RPA=-2,4) era separada. No que trata da média do número de filhos sob responsabilidade nas famílias de cada grupo, o G1 apresentou média maior (M=2,9 DP=1,3) em relação ao G2 (M=1,8 DP=1) e G3 (M=2,1 DP= 1,0) (H=20,2 p=0,00). Para se certificar da diferença dos grupos em termos de grau de vulnerabilidade social, esses foram caracterizados e comparados em alguns indicadores/variáveis socioeconômicos, de acesso à serviços/infraestrutura e de pertencimento social.
Em relação aos indicadores/variáveis socioeconômicos, houve diferença no tocante à escolaridade, mercado de trabalho e renda. O G1 apresentou maior proporção de participantes com ensino fundamental incompleto (53,3%, RPA=4,0), em relação ao G2 (20%, RPA=-2,1) e G3 (16,7%, RPA=-2,5), enquanto o G3 apresentou maior proporção de participantes com ensino médio completo (53,3%, RPA=3,1) em relação ao G1 (13,3%, RPA=-4,2) (X²=35; p=0,00). No que diz respeito ao mercado de trabalho, o G1 apresentou proporção menor (11,7%, RPA=-3,5) que o G3 (66,7%, RPA=5,9) na categoria formal, enquanto o G2 apresentou maior proporção em relação aos demais grupos na categoria autônomo (13,3%, RPA=2,4) (X²=35, p=0,00). No tocante à renda, os grupos se diferenciaram significativamente na variável Renda per capita (F=21,5 p=0,00) e Renda familiar (F=12,1 p=0,00). O G3 apresentou maior média de Renda familiar (M=1756,8 DP=933,0) e Renda per capita (M=489,2 DP=237,5) em relação ao G1 (Renda familiar M=872,6 DP=548,0; Renda per capita M=192,9 DP=130,6) e ao G2 (Renda familiar M=1520,7 DP=1258,7; Renda per capita M=400,3 DP=309,9).
Os grupos, entretanto, não se diferenciaram nas variáveis de acesso a serviços/infraestrutura, exceção da aglomeração (número de habitantes por cômodo da residência). Os resultados no tocante às primeiras foram: Energia (100% em todos os grupos), Água (G1=98,3%, G2 e G3=100%, X²=1,2 p=1,0), Saneamento básico (G1=98,3%, G2=93,3%, G3=100%; X²=2,4 p=0,31), Iluminação (G1=91,7%, G2=96,7%, G3=100%, X²=2,5 p=0,31), Pavimento (G1=98,3%, G2=96,7%, G3=100%, X²=1,2 p=1,0) e Acesso a serviços no bairro (G1=83,3%, G2=80% e G3=76,7%, X²=0,6 p=0,8). No que se trata da aglomeração, o G1 apresentou maior pontuação média (M=1,0 DP=0,4) comparando-se ao G2 (M=0,8 DP=0,3) e ao G3 (M=0,8 DP=0,3) (F=5,2 p=0,00). Nas variáveis de vinculação com o entorno, os grupos se assemelharam: Conta com ajuda da vizinhança (G1=51,7%, G2=80%, G3=62,1%, p=0,11); Rede social (parentes): G1 (M=2,3 DP=1,9), G2 (M=3,6 DP=5,6) G3 (M=2,9 DP=2,4) (H=1,5, p=0,46); e Rede social (amigos): G1 (M=1.3= DP=1.3), G2 (M=1.6 DP=1.5) G3 (M=2.0 DP=1.6) (H=4,9, p=0,09). No tocante à cor/etnia, aspecto que se considera na apreciação da vulnerabilidade social, não se observou distribuição significativamente diferente em termos de Cor autodeclarada (p=0,45): branca (G1=26,1%, G2=44,8%, G3=30%), preta (G1=13%, G2=13,8%, G3=26,7%), parda (G1=56,5%, G2=37,9%, G3=43,3%) e amarela (G1=4,3%, G2=3,4% e G3=0,0%). Sublinha-se que nos três grupos a maior parte se auto identificou como parda.
Instrumentos
Questionário para Caracterização Socioeconômica e de Eventos Adversos na Família (QCSE&EA) Esse instrumento foi elaborado tendo por base um questionário proposto por Santos (2002). Para este estudo, foram utilizados os dados de caracterização visando aferir o grau de vulnerabilidade social (escolaridade, mercado de trabalho, acesso a serviços/infraestrutura, vinculação e renda familiar/per capita) e dados complementares concernentes às características do cuidador principal/respondente: problemas de saúde mental do cuidador.
Inventário de Potencial de Maus-tratos Infantil (Child Abuse Potential Inventory - CAP) Elaborado por Milner (1986), o CAP possui 160 afirmações do tipo concordo ou discordo e foi utilizado para avaliar características de personalidade e bem-estar psicológico dos cuidadores. As subescalas utilizadas - angústia, rigidez e infelicidade - descrevem aspectos de personalidade e/ou dificuldades psicológicas do respondente. A outra escala utilizada - força do ego - remete à percepção de estabilidade emocional e sentimentos de adequação. O instrumento foi submetido a análises de precisão e validade no contexto brasileiro, obtendo-se um índice de precisão de 0,95 (Rios et al., 2013).
Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scale IV (FACES IV). Elaborado por Olson (2011), visa a avaliar o funcionamento familiar e possui 62 afirmações respondidas em uma escala Likert de cinco pontos. Neste estudo, utilizou-se apenas a subescala coesão para avaliar características de contexto da parentalidade. O FACES IV apresenta propriedades psicométricas satisfatórias no contexto de origem (Olson, 2011). No Brasil, sua versão em português foi submetida à adaptação semântica por Santos e colaboradores (2017).
Questionário de Apoio Social (QAS). Originalmente proposto por Sherbourne e Stewarte (1991), o QAS possui 24 questões e busca avaliar o grau de apoio social percebido e a rede social do respondente. No estudo, utilizou-se a escala de rede social para caracterizar a vulnerabilidade social, e o escore total das escalas de apoio social para avaliar o apoio social percebido. No Brasil, estudos sobre suas qualidades psicométricas apontaram para bons indicadores: consistência interna satisfatória (Alpha de Cronbach variando de 0,86 a 0,91) e validade de construto (correlações entre os itens variando de 0,30 a 0,80) (Griep et al., 2003).
Lista de Verificação Comportamental (Child Behavior Checklist - CBCL). Desenvolvido e atualizado por Achenbach (2001), o CBCL avalia os problemas de comportamento e o grau de competência social de crianças/adolescentes na perspectiva de pais e/ou cuidadores. No presente estudo, empregou-se a versão para a faixa etária dos 6 aos 18 anos, e trabalhou-se com avaliações em termos de problemas de comportamento internalizantes e externalizantes e competência social. O CBCL foi traduzido para o contexto brasileiro por Bordin e colaboradores (2010). Amorim (2020) buscou identificar evidências de validade de conteúdo e de critério do CBCL (6-18 anos). Foi identificado, por meio da medida Kappa de Fleiss (k), uma concordância quase perfeita para a maioria dos itens (84%). Verificou-se validade de critério com variáveis externas, em que as escalas de síndromes (à exceção de Ansiedade e Depressão e Queixas Somáticas) se diferenciaram entre os grupos de comparação (p < 0,05) e apresentaram tamanho de efeito de médio a forte (d ≥ 0,5). Foram encontradas evidências de precisão por meio de análise de consistência interna de todas as escalas de síndromes (ωh = 0,74). Não havia evidências de validade baseadas na estrutura interna do instrumento.
Inventário de Estilos Parentais (IEP). O IEP foi desenvolvido por Gomide (2006) e avalia os estilos parentais por meio de 42 itens que devem ser respondidos em escala likert de três pontos: (0) nunca (1) às vezes (2) sempre. Empregou-se, no presente estudo, a versão que se aplica aos pais/cuidadores, tendo os participantes sido orientados a responder ao instrumento, pensando nas práticas que prevaleciam, quando possuíam mais de um filho. As respostas permitem calcular o índice de estilo parental (iep) pelo somatório das práticas parentais positivas subtraídas pelo das práticas parentais negativas. As primeiras incluem a "monitoria positiva", que remete à supervisão e ao estabelecimento de regras adequadas, e ao "comportamento moral". que compreende a transmissão de valores pró-sociais (Gomide, 2006). As práticas negativas compreendem "abuso físico", "disciplina relaxada" (essencialmente a falta de imposição de regras), "monitoria negativa" (remete a um controle excessivo), "negligência" (baixo nível de responsividade dos pais) e, finalmente, a "punição inconsistente" - remete à variação na disciplina, conforme o humor dos cuidadores (Gomide, 2006).
Um IEP negativo remete à prevalência de práticas negativas, em detrimento das positivas, e a interpretação do resultado varia conforme a seguinte classificação do estilo parental: ótimo, regular acima da média, regular abaixo da média e de risco. No presente estudo, se considerou o IEP como medida da parentalidade. Vale ressaltar que pelo manual do instrumento, estilo parental é definido como o "conjunto das práticas educativas parentais ou atitudes parentais utilizadas pelos cuidadores com o objetivo de educar, socializar e controlar o comportamento de seus filhos" (Gomide, 2006, p. 7). Ademais, decidiu-se por agrupar as classificações regular acima da média e abaixo da média em uma única categoria: "regular". Quanto às propriedades psicométricas, o IEP materno e paterno apresentaram cargas fatoriais superiores a 0,42, e cargas fatoriais elevadas no que diz respeito à validade de construto e aos coeficientes de consistência interna, que variaram de 0,47 para monitoria negativa a 0,82 para abuso físico.
Procedimentos de Coleta de Dados
Parte dos dados da amostra (relativos a 48 famílias/participantes do G1) estavam armazenados em banco de dados devidamente regularizado, tendo sido coletados, em função dos mesmos objetivos, em procedimento implementado entre 2018 e 2019, em municípios do interior do estado de São Paulo, seguindo normativas do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CAAE n.: 88094318.0.0000.5407). Buscou-se contatar novamente esses participantes, visando a complementar a coleta de dados, com a aplicação do CBCL e com questões adicionadas ao QCSE&EA. No entanto, dos 48 participantes, não foi possível recontratar a maioria, pois o número de telefone disponibilizado não funcionava mais (n=38); outra parte, embora contatada, não aceitou colaborar nessa etapa (n= 2). Apenas oito participantes, novamente contatados, aceitaram colaborar.
A coleta de dados dos demais participantes foi realizada entre janeiro de 2021 e junho de 2022 (CAAE n.: 37821920.4.0000.5407). Ela foi intermediada pelas seguintes instituições da assistência social: dois CRAS (Centros de Referência de Assistência Social) do município de Ribeirão Preto e seis instituições que executam o SCFV (Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos), sendo cinco de Ribeirão Preto e um de Americana. O convite para participação na pesquisa variou conforme a instituição, dependendo da forma com que cada uma optou por intermediar o acesso entre a pesquisadora e os potenciais participantes.
Para aqueles que aceitavam colaborar com a pesquisa era marcado um dia e um horário de sua preferência. Nesse, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) era disponibilizado e a pesquisa era explicada verbalmente. Uma vez obtido o consentimento, explicava-se o Termo de Formação de Banco de Dados, que também era disponibilizado, e prosseguia-se com a coleta de dados. Esta etapa da coleta de dados foi realizada no contexto das instituições de assistência social ou na casa do participante (n=21), conforme sua preferência. Com o agravo da situação sanitária, em função da pandemia da COVID-19, os participantes tinham a opção de realizar a coleta na modalidade remota (n=51). Nesses casos, os termos eram disponibilizados como arquivo digital e o consentimento era oral e gravado. A duração média da coleta de dados nessa etapa durou cerca de 120 minutos. A coleta complementar junto aos participantes que já haviam colaborado em um primeiro momento foi de 45 minutos. A aplicação dos instrumentos aconteceu com todos na forma de uma entrevista oral estruturada, tendo em vista a necessidade de padronizar a coleta.
Procedimento de Análise de Dados
As análises foram conduzidas no Software SPSS v.25. Para as comparações dos grupos, empregou-se os testes Qui-quadrado - considerando-se um valor de RPA (de -1.9, se o valor de um grupo estava significativamente abaixo do esperado, e de 1.9 quando se encontrava um valor acima do esperado) - e o Teste U de Mann Whitney e o Teste T, conforme a natureza das variáveis. Utilizou-se o método de Bonferroni para controlar erros tipo I. Em seguida, realizou-se o teste de correlação na amostra total e em cada um dos grupos, elegendo-se as variáveis que apresentaram a correlação mais forte em cada um dos domínios e excluindo-se variáveis que apresentaram multicolinearidade em um mesmo domínio e/ou ausência de relação significativa, para compor o modelo de regressão logística multinomial, no qual foi empregado o método stepwise. Em seguida, empregou-se a análise de covariância multivariada (MANCOVA) para verificar a predição dos estilos parentais em relação aos desfechos desenvolvimentais nas crianças e nos adolescentes da amostra. Para isso, os problemas de comportamento internalizantes e externalizantes e a competência social foram incluídos como variáveis dependentes, os estilos parentais ótimo, regular e de risco e os grupos foram incluídos como variáveis independentes, e a idade das crianças como covariável. Em seguida, foram realizadas análises univariadas e utilizado o método de Bonferroni.
Resultados
Considerando os três domínios do modelo de análise da parentalidade de Belsky (1984), foram realizadas análises de correlação entre as variáveis em cada domínio. Verificou-se que houve multicolinearidade entre as variáveis angústia (que foi excluída) e força do ego: r(118)=-.974, p=.000, e que a variável problemas de saúde mental (no cuidador/participante) não apresentou associação significativa em nenhuma das análises de correlação com o estilo parental (iep) (p>.05) - nem na amostra total e nem em cada grupo. Nas análises de correlação da amostra total, todas as demais variáveis apresentaram correlações significativas com o iep: Rigidez negativa moderada r(116)=-.539, p=.000; Infelicidade negativa fraca r(116)=-.241, p=.009; Força do ego positiva forte r(116)=.607, p=.000; Problemas internalizantes negativa moderada r(78)=-.459, p=.000; Problemas externalizantes negativa forte r(78)=-.665, p=.000; Competência social positiva fraca r(75)=.300, p=.008; Apoio social positiva moderada r(118)=.355, p=.000; Coesão positiva fraca r(118)=.195, p=.033; Renda per capita positiva moderada r(118)=.304, p=.001; e Grupo positiva moderada r(118)=.323, p=.000.
Quanto às correlações no G1, houve associação significativa do iep com as seguintes variáveis: Rigidez negativa moderada r(57)=-.534, p=.000; Força do ego positiva moderada r(57)=.544, p=.000; Problemas externalizantes negativa forte r(21)=-.625, p=.001; e Apoio social positiva moderada r(58)=.334, p=.009. As correlações significativas no G2 foram: Rigidez negativaforte r(27)=-.614, p=.000; Força do ego positiva moderada r(27)=.521, p=.004; Problemas internalizantes negativa forte r(27)=-.693, p=.000; Problemas externalizantes negativaforte r(27)=-.788, p=.000; Competência social positiva forte r(27)=.601, p=.001. Por último, no G3, verificou-se relação significativa apenas com as seguintes variáveis: Força do ego positiva forte r(28)=.663, p=.000; Problemas externalizantes negativa moderada r(26)=-.553, p=.002; e Apoio social positiva moderada r(28)=.379, p=.039. Posteriormente, foi realizada a regressão logística multinomial. Verificou-se no teste de razão de verossimilhança que não houve efeito global das variáveis força do ego e dos Grupos. A Tabela 1 sintetiza os dados do modelo de regressão.
Tabela 1
Modelo de Regressão logística multinomial para os estilos parentais
Variável |
B |
Erro Padrão |
Estatística |
p |
RC |
IC 95% |
||
inferior |
superior |
|||||||
regular |
(Intercept) |
-3,71 |
4,72 |
-0,79 |
0,43 |
|||
regular |
Força do Ego |
-0,10 |
0,06 |
-1,66 |
0,10 |
0.90 |
0.80, |
1.02 |
regular |
Prob. Extern. |
0,20 |
0,08 |
2,59 |
0,01 |
1.22 |
1.05, |
1.41 |
regular |
Apoio Social |
-0,04 |
0,03 |
-1,27 |
0,20 |
0.96 |
0.90, |
1.02 |
regular |
Grupo |
0,32 |
0,56 |
0,58 |
0,56 |
1.38 |
0.46, |
4.10 |
risco |
(Intercept) |
-8,08 |
5,26 |
-1,53 |
0,12 |
|||
risco |
Força do Ego |
-0,16 |
0,07 |
-2,14 |
0,03 |
0.86 |
0.74, |
0.99 |
risco |
Prob. Extern. |
0,35 |
0,09 |
3,88 |
0,00 |
1.41 |
1.19, |
1.68 |
risco |
Apoio Social |
-0,08 |
0,04 |
-2,22 |
0,03 |
0.92 |
0.86, |
0.99 |
risco |
Grupo |
0,03 |
0,67 |
0,04 |
0,97 |
1.03 |
0.28, |
3.81 |
Pseudo R² de Nagelkerke: 0.656
Categoria referência: ótimo
Depreende-se da Tabela 1 que um (1) ponto de aumento na escala de problemas externalizantes aumentou a probabilidade do estilo parental regular em 22%, em relação ao ótimo; um (1) ponto de aumento na escala força do ego diminuiu em 14% a chance de estar na categoria de estilo parental de risco, em relação ao estilo parental ótimo; um (1) ponto de aumento na escala problemas externalizantes aumentou em 41% a probabilidade de estar na categoria de estilo parental de risco, em relação ao estilo parental ótimo; e um (1) ponto de aumento na escala apoio social diminuiu em 8% a chance de estar na categoria de estilo parental de risco, em relação ao estilo parental ótimo.
Em seguida, os resultados da MANCOVA revelaram um efeito multivariado significativo para o estilo parental [Wilks' λ = 0.534, F(6, 130)= 7.983, p= .000]. Não foi observado efeito multivariado significativo do grupo [Wilks' λ = 0.954, F(6, 130)= 0.520, p= .792] e da idade da criança [Wilks' λ = 0.954, F(3, 65)= 1.046, p= .378]. Não houve interação multivariada significativa entre o grupo e o estilo parental [Wilks' λ = 0.858, F(12, 172)= 0.857, p= .591]. Os resultados univariados subsequentes indicaram efeitos dos estilos parentais sobre problemas de comportamento internalizantes [F(2, 67) = 10.188, p= .000], externalizantes [F(2, 67) = 23.825, p= .000] e competência social [F(2, 67) = 5.869, p= .004]. As comparações post hoc utilizando-se a correção de Bonferroni mostraram diferenças significativas nas médias dos estilos parentais em relação às características da criança, com exceção das comparações entre o estilo parental regular com o estilo parental de risco em relação aos problemas internalizantes, conforme verifica-se na Tabela 2.
Tabela 2
Diferenças significativas entre estilos parentais obtidas no teste post-hoc de Bonferroni.
Variável dependente |
Diferença média (I - J) |
Erro Padrão |
p |
95% IC |
|||
(I) |
(J) |
Limite inferior |
Limite superior |
||||
Problemas Internalizantes |
ótimo |
regular |
-6,4 |
2,5 |
0,04 |
-12,7 |
-0,2 |
risco |
-11,3 |
2,5 |
0,00 |
-17,4 |
-5,1 |
||
regular |
ótimo |
6,4 |
2,5 |
0,04 |
0,2 |
12,7 |
|
risco |
-4,8 |
2,1 |
0,07 |
-9,9 |
0,2 |
||
risco |
ótimo |
11,3 |
2,5 |
0,00 |
5,1 |
17,4 |
|
regular |
4,8 |
2,1 |
0,07 |
-0,2 |
9,9 |
||
Problemas Externalizantes |
ótimo |
regular |
-8,8 |
2,5 |
0,00 |
-15,0 |
-2,6 |
risco |
-17,0 |
2,5 |
0,00 |
-23,1 |
-10,8 |
||
regular |
ótimo |
8,8 |
2,5 |
0,00 |
2,6 |
15,0 |
|
risco |
-8,2 |
2,1 |
0,00 |
-13,2 |
-3,1 |
||
risco |
ótimo |
17,0 |
2,5 |
0,00 |
10,8 |
23,1 |
|
regular |
8,2 |
2,1 |
0,00 |
3,1 |
13,2 |
||
Competência Social |
ótimo |
regular |
7,2 |
2,6 |
0,02 |
0,7 |
13,7 |
risco |
8,8 |
2,6 |
0,00 |
2,4 |
15,2 |
||
regular |
ótimo |
-7,2 |
2,6 |
0,02 |
-13,7 |
-0,7 |
|
risco |
1,6 |
2,1 |
1,00 |
-3,7 |
6,8 |
||
risco |
ótimo |
-8,8 |
2,6 |
0,00 |
-15,2 |
-2,4 |
|
regular |
-1,6 |
2,1 |
1,00 |
-6,8 |
3,7 |
Por último, as médias marginais estimadas indicaram que, quanto mais positivo o estilo parental, menor a pontuação em problemas de comportamento e maior em competência social. As médias marginais estimadas dos estilos parentais ótimo, regular e de risco para problemas de comportamento internalizantes foram, respectivamente, M=53,64 e DP=2,06; M=60,06 e DP=1,49; M=64,90 e DP=1,44. Para problemas de comportamento externalizantes, o estilo parental ótimo apresentou valores de M=45,73 e DP=2,05; o regular M=54,53 e DP=1,48; e o estilo parental de risco M=62,69 e DP=1,43. Já a competência social apresentou os seguintes valores para os estilos ótimo, regular e de risco: M=43,62 DP=2,14; M=36,41 DP=1,54; e M=34,84 DP=1,50, respectivamente.
Discussão
No presente estudo, buscou-se descrever fatores relacionados à parentalidade, conforme o modelo preconizado por Belsky (1984), em famílias em situação de vulnerabilidade social brasileiras. Vale frisar que se buscou pela composição de três grupos diferenciados em termos de grau de vulnerabilidade social. Do maior para menor grau - G1, G2, G3 - pode-se afirmar que o G1 caracteriza-se como mais vulnerável, pois refere-se a famílias chefiadas por mulheres com mais baixa escolaridade, trabalhadoras informais, vivendo em situação habitacional com maior aglomeração, com renda média per capta e familiar menor que o valor do salário-mínimo e mais crianças/adolescentes sob sua responsabilidade. O G2, embora com renda per capita e familiar e número médio de crianças/adolescentes sob sua responsabilidade semelhante ao G1, caracteriza-se como menos vulnerável que o G1 por remeter a famílias com maior escolaridade. Este grupo teria grande proporção de adultos desempregados, mas tal condição seria recente e vinculada à Pandemia. Ademais, o G3, embora reunindo famílias vivendo nas mesmas localidades que as do G1 e as do G2, caracteriza-se como o grupo menos vulnerável do três: em sua maioria, teria escolaridade mais elevada, mais adultos com trabalho formal e maior renda per capita e familiar, sendo essa superior ao valor do salário-mínimo.
Desse modo, pode-se dizer que as análises subsequentes se referem a grupos de famílias diferentes no tocante aos obstáculos ao acesso aos recursos sociais materiais e simbólicos, importantes ao exercício da parentalidade adequada, em função de uma maior ou menor fragilidade, que podem apresentar frente a fatores de risco específicos (Galvagno, 2019). Contudo, um dos principais resultados obtidos é de que o pertencimento aos grupos não foi preditor da parentalidade, ou seja, aparentemente, a parentalidade opera independente do grau de vulnerabilidade social na amostra, ao menos no que toca aos indicadores que permitiram a diferenciação entre eles.
No que remete às análises de associação, observaram-se relações significativas e positivas entre melhores indicadores de bem-estar psicológico dos pais/responsáveis, mais apoio social, menos problemas de comportamento e melhores indicadores de competência social das crianças/adolescentes e parentalidade mais positiva, na amostra como um todo e no G1 e no G3. No G2, especificamente, a parentalidade mais positiva se mostrou significativamente relacionada apenas com indicadores mais positivos de características da criança/adolescente e do cuidador. Tais relações gerais, entre variáveis nos diferentes domínios da parentalidade vão ao encontro ao que já foi descrito na literatura. Vásquez-Echeverría e colaboradores (2022), fazendo uso do modelo de Belsky (1984), em estudo no Uruguai, encontraram correlações entre desenvolvimento infantil positivo, traços de personalidade - baixas pontuações em neuroticismo e altas pontuações em extroversão, agradabilidade, abertura à experiência e conscienciosidade -, práticas parentais positivas e renda. Esses autores encontraram, contudo, relações positivas também para sintomatologia depressiva materna. Afora este aspecto contraditório (relativo à sintomatologia depressiva), os dados assemelharam-se aos da amostra geral, no presente estudo, havendo semelhança com o encontrado na análise por grupo - no tocante às dimensões de personalidade, desenvolvimento infantil e práticas parentais.
Resultados de estudos brasileiros sobre parentalidade são corroborados com os resultados aqui encontrados, de que a parentalidade se associa com características desenvolvimentais das crianças/adolescentes (Mosmann et al., 2017; Altafim et al., 2018; Rocha et al., 2022). Ainda, comparando esses estudos com os dados obtidos, sugere-se que haja uma relação complexa entre a parentalidade e indicadores de SSE em famílias brasileiras que merecem ser alvo de futuras investigações. Isto porque, no presente estudo, verificou-se que a renda familiar/per capita apresentou relação significativa com a parentalidade apenas na análise de correlação da amostra total (mas não nos grupos). Os estudos supracitados não apontaram para uma relação consensual entre o SSE e a parentalidade.
É interessante destacar que o G2 foi o único grupo em que não houve associação da parentalidade com nenhuma variável do domínio contextual, diferentemente do observado em relação ao G1 e ao G3, quanto ao apoio social. No G2 se sobressaíram as relações entre parentalidade com as características psicológicas do pais/cuidadores e comportamentais das crianças/adolescentes. É importante considerar que a situação social gerada pela Pandemia da COVID-19, sobretudo no que respeita à perda abrupta de renda da família, é mais evidente neste grupo. A pandemia implicou diminuição do suporte social disponibilizado aos cuidadores de forma geral (Vescovi et al., 2021), mas isso não se destaca no G2 - é possível que haja outros determinantes contextuais, operando no G2, não abarcado neste estudo.
Voltando aos resultados das análises preditivas, no que tange os resultados da amostra geral, aqui estudada, sugerem uma contradição com o pressuposto do modelo de Belsky (1984), de que as características do cuidador se apresentariam como as mais efetivas em proteger o sistema parental, sendo estas seguidas pelas características do contexto e da criança/adolescente. No presente estudo, as pontuações relacionadas às características comportamentais das crianças se mostraram mais relevantes na predição do estilo parental: pontuações mais altas em problemas externalizantes separaram o estilo parental regular do estilo parental ótimo; uma maior pontuação em problemas externalizantes concorreram para o aumento da probabilidade de um estilo parental de risco, seguido, em termos de probabilidade, de pontuações mais altas na força do ego e em apoio social - variáveis com correlação negativa com a probabilidade de um estilo parental de risco.
McKenry e colaboradores (1991), por sua vez, ao avaliarem atitudes parentais de mães adolescentes de baixa renda estadunidenses, confirmaram a ordem de importância das dimensões/variáveis preditores, conforme proposta no modelo original de Belsky (1984). Dessa forma, uma possível explicação das diferenças nos resultados aqui apresentados remete a diferenças propiciadas pela realidade sociocultural de cada país, ou mais especificamente, entre diferenças nas características dos grupos vulneráveis de interesse lá e aqui focalizados, ou seja, pode haver mecanismos culturais específicos que estejam refletindo nessa diferença, a exemplo do evidenciado no estudo de Cardoso e colaboradores (2010). Os autores empregaram o modelo de Belsky para comparar o estresse parental em populações de diferentes etnias nos Estados Unidos da América (EUA). Encontraram que os mecanismos relacionados ao estresse em mães de descendência ou naturalidade mexicana residentes nos EUA eram diferentes daqueles de outros grupos étnicos residentes no mesmo país (mães caucasianas não-hispânicas e mães negras não-hispânicas). Enquanto os determinantes da parentalidade das "mães não-mexicanas" foram consistentes com o modelo original, para as mães mexicanas apenas as variáveis relativas às crianças (temperamento) e ao contexto (suporte social) se associaram com o estresse parental. Cogita-se que esses resultados decorram do uso das escalas do CAP. Ainda que o instrumento seja sensível a cuidadores com maior ou menor potencial de abuso infantil e a escala utilizada na análise remeta à recursos psicológicos dos cuidadores, talvez não seja o mais adequado para captar todas as características que podem operar na proteção do sistema parental. Ainda, talvez, o resultado seja decorrente de efeitos de moderação que não foram mensurados no estudo. Nessa linha, Taraban e Shaw (2018) sugerem uma atualização do modelo de Belsky (1984) para entender os determinantes da parentalidade na primeira infância, acrescentando variáveis moderadoras nos domínios e apontando a necessidade de se compreender a interação entre elas, ao invés de se assumir relações diretas.
A respeito do terceiro objetivo do estudo, verificou-se capacidade preditiva dos estilos parentais para cada desfecho desenvolvimental estudado nas crianças/adolescentes (Salvo et al., 2005) - com exceção da comparação entre o estilo parental regular e o estilo parental de risco, em se considerando problemas de comportamento internalizantes. Talvez, essa não diferenciação deva-se à necessidade de revisão normativa, para os estilos parentais intermediários. É possível que o tamanho da amostra investigada não tenha sido suficiente para apreender diferenças mais significativas entre os estilos de risco e regular e que o fato de os pais/cuidadores responderem a um único inventário de estilo parental, pensando em todos os filhos de uma vez, possa gerar mais inconsistência nos dados da amostra.
Destaca-se que, lembrando que os problemas de comportamento predisseram os estilos parentais, que há, provavelmente, uma relação bidirecional entre esses com a interação das características desses dois domínios com os estilos parentais (Belsky, 1984). Nessa linha, sugere-se que a interação da díade criança-cuidador, ao longo da primeira infância, concorra para estilos parentais que promovem o desenvolvimento de problemas de comportamento externalizantes dos filhos. Isto explicaria a maior probabilidade de os problemas externalizantes predizer a parentalidade no estudo, pois no recorte empregado, esses problemas de comportamento já estariam estabelecidos, tornando as práticas parentais contingentes a eles. Uma evidência nesse sentido é o estudo longitudinal desenvolvido nos EUA de Padilla, Hines e Ryan (2020). Os autores encontraram que a reatividade negativa predisse menos suporte emocional e estimulação cognitiva, e maior frequência de palmadas em famílias com diferentes graus de escolarização e renda. Em termos de desfecho, as crianças de pais menos escolarizados apresentaram mais problemas de comportamento externalizantes e o restante das crianças com negatividade emocional apresentou problemas internalizantes em famílias de diferentes SSE (Padilla et al., 2020).
Considerações Finais
Este estudo investigou os fatores associados à parentalidade em famílias brasileiras em situação de vulnerabilidade social, com base no modelo de Belsky (1984). Os resultados indicaram que as características psicológicas dos cuidadores, os problemas de comportamento das crianças/adolescentes e o apoio social percebido foram os principais fatores relacionados à qualidade da parentalidade. Observou-se que uma parentalidade mais positiva esteve associada a menores níveis de problemas de comportamento externalizantes e internalizantes, bem como a maiores níveis de competência social nas crianças/adolescentes. Além disso, constatou-se que o grau de vulnerabilidade social não foi preditor da qualidade da parentalidade, sugerindo que outros fatores exercem um papel mais relevante. Importante destacar que o estudo não buscou um olhar estigmatizante, mas sim fornecer subsídios para apoiar grupos mais suscetíveis às fragilidades decorrentes da vulnerabilidade social, uma vez que famílias em diferentes contextos podem enfrentar desafios.
As principais limitações do presente estudo incluem o recorte transversal, que impede inferências causais, e o tamanho da amostra, que pode limitar a generalização. Além disso, a coleta em diferentes momentos pode ter gerado variabilidade nas respostas. Ainda assim, o estudo destaca a importância dos fatores psicossociais na parentalidade e reforça a necessidade de intervenções focadas no suporte social e na saúde mental dos cuidadores.
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Endereço para correspondência
Fernanda Papa Buoso - fernanda.buoso@usp.br
Recebido em: 30/03/2023
Aceito em: 10/03/2025
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CAPES, No. Processo 88887.636000/2021-00 e No. Processo 88887.816983/2023-00)
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