Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e74408, doi:10.12957/epp.2024.74408
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
Práticas de Leituras Compartilhadas em Tempos de Pandemia
Shared Reading Practices in Times of Pandemic
Prácticas de Lectura Compartida en Tiempos de Pandemia
Eliane Cristina Ferreira de Oliveira Coutinho a, Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota a
, Carmen Lucia Martins da Silva a
, Marcos Antônio Ribeiro Andrade b
a Universidade Salgado de Oliveira, Niterói, RJ, Brasil
b Faculdade Maria Thereza, Niterói, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
A leitura compartilhada de livros é uma atividade usual em aulas de crianças pequenas e está relacionada com a expansão do vocabulário nos iniciantes escolares. Estudos demonstram que a forma como os adultos realizam a leitura afeta a expansão do vocabulário. O objetivo deste estudo foi observar as práticas de leitura compartilhada de professoras nas aulas remotas, durante a pandemia, quanto ao trabalho com o vocabulário. Participaram deste estudo nove professoras e seus alunos de cinco e seis anos de idade, matriculados em quatro escolas particulares. Para a coleta de dados, foram utilizados cinco livros de histórias infantis e um questionário sociodemográfico. As 45 sessões de leitura foram gravadas e transcritas. Todas as perguntas feitas pelas professoras foram computadas e depois classificadas em dois grupos: perguntas que promoviam expansão do vocabulário e as que não promoviam. Os resultados encontrados mostraram que apenas 37% das perguntas formuladas pelas professoras foram feitas para desenvolver o vocabulário (χ² =162, 0 [1], p< 0,001), sugerindo pouca interação no sentido de expandir o vocabulário das crianças. Esperamos levantar questões sobre como as professoras têm trabalhado com os livros de história e ajudar na elaboração de estratégias para desenvolver o vocabulário das crianças.
Palavras-chave: leitura compartilhada, vocabulário, educação infantil, leitura.
ABSTRACT
Shared book reading is a common activity in young children's classrooms and is related to vocabulary expansion in school starters. Studies show that the way in which adults perform shared reading affects vocabulary expansion. The purpose of this study was to observe the shared reading practices of teachers in online classrooms during the pandemic regarding how they work with vocabulary. Nine teachers and their five to six-year-old students who were enrolled in four private schools participated in this study. Five children's storybooks and a sociodemographic questionnaire were used for data collection. The forty-five reading sessions were recorded and transcribed. All questions asked by the teachers were computed and then categorized into two groups: questions that promoted vocabulary expansion and those that did not. The results showed that only 37% of the questions asked by the teachers were designed to develop vocabulary (χ² =162, 0 [1], p< 0.001), suggesting little interaction toward expanding children's vocabulary. We hope to raise questions about how teachers work with story books and help devise strategies to develop children's vocabulary.
Keywords: shared reading, vocabulary, early childhood education, reading.
RESUMEN
La lectura compartida de libros es una actividad habitual en las clases con niños y está relacionada con la ampliación de vocabulario en los alumnos de iniciación escolar. Los estudios muestran que la forma que los adultos leen afecta la expansión del vocabulario. El objetivo de este estudio fue observar las prácticas lectoras compartidas de docentes de clases a distancia, durante la pandemia, cuanto al trabajo con vocabulario. Nueve docentes y sus alumnos de cinco y seis años matriculados en cuatro escuelas privadas participaron del estudio. Para recolección de datos, se utilizaron cinco libros de cuentos infantiles y un cuestionario sociodemográfico. Las 45 sesiones de lectura fueron grabadas y transcritas. Todas preguntas realizadas por los profesores fueron computadas y clasificadas en dos grupos: preguntas que promovían la expansión del vocabulario y que no promovían. Los resultados encontrados mostraron que solo 37% de las preguntas realizadas por los docentes fueron realizadas para desarrollar vocabulario (χ² =162, 0 [1], p< 0,001), sugiriendo poca interacción en sentido de ampliar el vocabulario de los niños. Esperamos suscitar interrogantes sobre cómo las maestras han estado trabajando con los libros de historia y ayudar en la elaboración de estrategias para desarrollar el vocabulario de los niños.
Palabras clave: lectura compartida, vocabulario, educación infantil, lectura.
O desenvolvimento da linguagem e do vocabulário das crianças são fundamentais para a aprendizagem da leitura. Dickinson e Porche (2011) mostraram o papel que as habilidades linguísticas têm para o sucesso da alfabetização. Por exemplo, as crianças que entram nas escolas com um vocabulário bem desenvolvido conhecem o significado das palavras ao começar a decodificar, o que ajuda na compreensão das palavras. Assim, à medida que a criança começa a ler, ela pode usar mais recursos cognitivos para, além de decodificar e reconhecer as palavras, compreender o texto.
Estudos têm demonstrado que uma maneira eficaz de desenvolver a linguagem das crianças é oferecer oportunidades de conversas com adultos, que linguisticamente mais competentes, podem manter um diálogo aberto com perguntas e respostas, de forma a permitir que a criança use e expanda a linguagem (Harris et al., 2011; Justice et al., 2018). A realização de perguntas abertas que possam ser respondidas com mais de uma simples palavra ajuda no desenvolvimento do vocabulário (Wasik & Hindman, 2018). Buscar atividades em que se possa oportunizar esses momentos de interação pode trazer consequências positivas para o desenvolvimento da linguagem e da literacia da criança.
Uma prática escolar que permite isso é a leitura compartilhada de livros de histórias, por oferecer oportunidades de trocas linguísticas num contexto lúdico e pedagógico ao mesmo tempo. Utilizamos o termo Leitura Compartilhada quando um adulto (ex.: pais ou professores) e uma criança (ex.: filhos ou alunos), sabendo ler ou não, interagem em um momento de experiências conjunta de leitura de um livro. Essa atividade pode envolver vários aspectos da interação com o livro (Pereira et al., 2019). No presente estudo, estamos interessados nas perguntas feitas pelos professores.
A leitura compartilhada é, assim, uma atividade importante, porque a atenção dos pais ou cuidadores está focada e há ampla possibilidade de expansão da linguagem. Além disso, oferece oportunidades de contato com a sintaxe e o vocabulário da língua escrita num contexto afetivo (Sénéchal et al., 2017). Como já citado, é uma atividade realizada usualmente pelos professores nas aulas da Educação Infantil e do primeiro segmento do Ensino Fundamental, de maneira que pode ser uma forma eficaz de desenvolver o vocabulário das crianças e oportunizar a interação entre professor e aluno, aumentando a possibilidade de trocas.
No entanto, a leitura compartilhada precisa ser bem conduzida para que tenha um real impacto no desenvolvimento linguístico e cognitivo da criança, conforme enfatiza Gabriel e Morais (2017). Não basta, simplesmente, ler livros para as crianças, é preciso trabalhar o texto na escola.
Um estudo realizado no Brasil analisou a prática da leitura compartilhada no contexto ecológico da sala de aula e mostrou que durante as interações, as oportunidades de expansões linguísticas que desafiassem as crianças foram escassas. Participaram do estudo de Pereira et al. (2019) nove professoras de alunos da faixa etária entre três e cinco anos. Foi solicitado às professoras a realização da leitura compartilhada de livros, do jeito que faziam todos os dias em suas salas, escolhendo um livro de história diferente para cada sessão. As 18 sessões foram gravadas, transcritas, analisadas e as questões formuladas pelos professores foram categorizadas em questões básicas (aquelas que utilizam as expressões "quem", "o quê", "quando", "onde", "qual") e questões complexas (aquelas que envolvem o uso de "por que" e "como").
Os resultados indicaram que a maioria das perguntas realizadas pelas professoras eram perguntas básicas, ou seja, das 329 perguntas formuladas pelos professores, apenas 13% do total de questões foram perguntas complexas. Nesse sentido, chamamos a atenção para as formas como ocorrem as interações entre os professores e os alunos durante as atividades de leituras compartilhadas. O número de questões que desafiam as crianças à elaboração de uma compreensão mais complexa do texto foi muito baixo.
Outra possibilidade de exploração do texto é a utilização de estratégias de expansão da linguagem durante a leitura como procedimento de ensino, que favorece o crescimento do vocabulário da criança. Um estudo de Batista e Mota (2022), por exemplo, mostrou que as interações estabelecidas pelos pais, durante a leitura compartilhada, afetam o desenvolvimento linguístico das crianças.
No estudo, as autoras pediram aos pais de crianças de quatro a cinco anos, do último ano da Educação Infantil, que respondessem a um questionário sobre como realizavam suas atividades de leitura compartilhada. Participaram do estudo 43 famílias e suas crianças. Os filhos de pais que liam as histórias e expandiam o vocabulário tiveram melhores escores nos testes de vocabulário e de consciência fonológica (uma habilidade metalinguística importante para aquisição da leitura). Esses resultados sugerem que a qualidade das interações ocorridas durante a leitura compartilhada tem um efeito no desenvolvimento linguístico da criança.
Zuker et al. (2013), em um estudo realizado anteriormente ao de Batista e Mota (2022), com crianças falantes do inglês, obteve resultados em consonância com o que foi obtido pelas autoras. Os resultados do estudo de Zuker et al. (2013) sugeriram que tanto a frequência da ação de leitura compartilhada, quanto as formas de interação entre os professores e os alunos durante essa atividade são importantes para o crescimento da linguagem e da literacia emergente (conjunto de precursores cognitivos que facilitam a aquisição da leitura) na Educação Infantil. Os autores concluíram que essas questões precisavam ser mais bem investigadas e a literatura mostra que ainda precisam. Como vimos, as interações entre a criança e o adulto quando leem juntos podem fazer diferença no desenvolvimento linguístico, como mostraram Batista e Mota (2022). A literatura nacional ainda é escassa sobre esse tema.
Diante da conjuntura da pandemia do Coronavírus Sars-CoV-2, novos desafios foram impostos para a educação. Com o fechamento das escolas, nos anos 2020-2021, professores e alunos tiveram que interagir de modo remoto, instrumentalizados por equipamentos tecnológicos e acesso à Internet. Este estudo volta-se para a interação de nove professoras com os seus alunos, analisando a formulação de perguntas durante as práticas de leituras compartilhadas remotas. O foco da análise foi verificar se as professoras provocavam a expansão do vocabulário enquanto compartilhavam as histórias com as crianças no ensino remoto.
Sim-Sim et al. (2007) apontam que a capacidade da leitura é um procedimento complexo envolvendo, além de outros fatores, as estratégias que os leitores precisam desenvolver para se apossar do assunto e do conceito lançado pela escrita. O ensino da compreensão de leitura deve fazer parte das estratégias pedagógicas indicadas para o crescimento do conhecimento linguístico das crianças, para o aumento das vivências que influenciam o entendimento delas sobre o mundo e para o progresso de competências específicas de leitura. Para se alcançar estratégias pedagógicas eficientes, o professor precisa conhecer o que ocorre durante o processamento da leitura de um texto. Já observamos que esse processamento, envolvendo ler um texto fluentemente, requer que o estudante reconheça, com rapidez, as palavras, liberando espaço da atenção e a da memória para a recuperação de informações que garantam o significado da frase (e do texto). Uma criança que lê com fluência em sua língua, por exemplo em português, naturalmente reconhece as palavras, processando a sintaxe do texto, clareando rápido o significado de frases e de expressões (Sim-Sim et al., 2007).
Tendo em vista a importância do vocabulário e os argumentos de Sim-Sim et al. (2007) e o contexto da Pandemia do Coronavírus, se destaca a relevância desse estudo. Ao se observar as práticas de leitura compartilhada de professoras com foco na expansão do vocabulário nas aulas remotas, durante a pandemia, podemos traçar um perfil de como essa nova forma de ensino afeta as práticas dos professores neste contexto. Esses dados podem servir de reflexão para futuras situações em que as populações se vejam em situação de isolamento, bem como para discussões sobre a adoção dessa modalidade de ensino para crianças pequenas. Destaca-se que o ato da leitura vai além de decifrar os símbolos linguísticos.
Sim-Sim et al. (2007) sugerem algumas estratégias pedagógicas que podem ser usadas durante a leitura realizada pelos professores para as crianças a fim de ajudar na compreensão de leitura. Entre as que se adequam à Educação Infantil, podemos citar: selecionar as leituras; ajudar as crianças a fazerem uma imagem ou mapa mental do que está sendo lido (por exemplo, ajudar as crianças a fazer associações com cheiros, sabores, sentimentos etc. que podem reconhecer ou imaginar); sintetizar o texto, de forma gradativa, para as crianças, a fim de ajudar na compreensão; ajudar no esclarecimento do significado de palavras desconhecidas. Devemos pensar como essas estratégias estariam presentes nas diversas modalidades de ensino.
Método
Participantes
A amostra consistiu em nove professoras com os seus alunos, na faixa etária entre quatro e seis anos de idade, oriundos de quatro escolas particulares dos municípios de Niterói e São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. O critério de inclusão foi ministrar aulas remotas para turmas de Educação Infantil ou do primeiro ano do Ensino Fundamental. Assim, a amostra final foi composta por nove professoras (entre 27 e 57 anos de idade; M = 43,11; DP = 8,8), todas com nível superior há mais de 10 anos, três delas com especialização completa. Das nove professoras participantes, quatro lecionavam para o último ano da Educação Infantil e cinco para o primeiro ano do Ensino Fundamental.
Instrumentos
Foram utilizados cinco livros de história adequados à faixa etária das crianças. Os livros foram escolhidos dentre aqueles que conseguimos a autorização do autor, para a utilização de modo remoto. Para a seleção dos livros, foram consultadas as coordenadoras pedagógicas das escolas participantes. Os livros escolhidos foram todos do tipo narrativo, que abordavam temas como: convívio familiar, medos, afetividades, sonhos e diversidades. Quanto ao número de páginas, variou entre 16 e 24. A lista dos livros se encontra nas referências. Todos apresentavam imagens coloridas e textos escritos. Ademais, também utilizamos um questionário sociodemográfico com perguntas abertas e fechadas para caracterização da amostra (exemplos de itens: "tempo de magistério" e "nível de escolarização"). O questionário foi aplicado após as sessões de leitura compartilhada para não influenciar nas práticas habituais das professoras.
Procedimentos éticos e de coleta de dados
A participação ocorreu de forma voluntária. Os responsáveis assinaram as autorizações para a gravação das aulas por meio de Termos de Assentimento e de Consentimento Livre e Esclarecido (TALE e TCLE). Os termos foram entregues juntos às atividades semanais na própria escola. A data e a hora das gravações foram informadas aos responsáveis. Trabalhamos com cinco livros de histórias diferentes e com a partilha dessas histórias pelas professoras para as suas turmas de crianças da Educação Infantil e do primeiro ano do Ensino Fundamental.
Participaram deste estudo quatro escolas particulares escolhidas por conveniência. Cada escola assinou a declaração de anuência, concordando com a participação na pesquisa. Cada professora contou, na íntegra, cinco histórias em cinco sessões. A escolha da ordem de utilização dos livros foi feita a critério da professora. A leitura compartilhada ocorreu de modo natural, conforme a professora costumava realizar com os seus alunos. Todas as sessões de histórias foram gravadas pela plataforma que a escola disponibilizou. Os dias e horários também foram definidos pelas professoras, de modo a não atrapalhar as rotinas das salas de aula.
As sessões de leitura ocorreram, como previsto no TCLE, entre 30 e 40 minutos no início de cada aula em vídeos ou áudios, conforme as possibilidades de gravação disponíveis pela escola participante. Os vídeos e os áudios foram enviados por e-mail ou por mensagens de WhatsApp para as pesquisadoras, pelas coordenadoras pedagógicas participantes. Isso se deu porque as pesquisadoras não participaram das sessões. A pesquisa teve início após todos os procedimentos éticos serem finalizados. As professoras foram instruídas para lerem os livros como normalmente o faziam na escola.
Procedimentos de análise de dados
A análise se deu a partir das observações e transcrições dos vídeos e áudios enviados. O foco das transcrições foi nas perguntas feitas pelas professoras, quando elas contribuíam para a expansão do vocabulário. Inicialmente, foi computada a frequência de frases em que as professoras faziam perguntas para as crianças. Essas frases foram classificadas por três juízas e o índice de concordância Kappa foi obtido.
As questões foram avaliadas por três juízas que compõem o grupo de pesquisa das três autoras. As juízas foram instruídas a julgarem as sentenças a partir de um protocolo com critérios e um texto de exemplo que foi, previamente, oferecido a elas. O texto apresentava a seguinte instrução: "Vamos solicitar que você avalie perguntas ou frases feitas pelos professores aos seus alunos durante sessões de histórias (leituras compartilhadas). Pedimos que você assinale aquelas perguntas nas quais você acha que a professora desenvolveu a promoção do vocabulário das crianças. Por promoção de vocabulário, estamos nos referindo à inclusão de palavras novas ou que encoraje as crianças a utilizarem palavras na sua linguagem, de forma a enriquecê-la. Por exemplo, numa história sobre uma blusa que Marcelo ganhou com formas geométricas, consideramos perguntas que estimulam o vocabulário:
"- O que são formas geométricas?"
"- Você tem uma forma geométrica favorita? Qual?"
"- Como você acha que Marcelo se sentiu com a blusa?"
"- Você gostaria de ganhar uma blusa assim? Diga por quê?"
Não consideramos perguntas com respostas fechadas, de sim ou não, ou também que a resposta já tivesse sido apresentada pela professora. Seguem exemplos:
"- O triângulo é uma forma geométrica?"
"- Você prefere um triângulo ou um quadrado?"
"- Você gosta de ganhar presente?"
Após esses procedimentos, calculamos a frequência de situações nas quais as professoras usavam as leituras de histórias compartilhadas para ensinar novos vocabulários às crianças, levando em conta as situações em que as duas juízas com maior concordância selecionaram as questões.
Resultados
Durante as 45 sessões de leituras compartilhadas, as professoras formularam um total de 193 questões. Foram descartadas quatro perguntas consideradas técnicas, ligadas à conexão da Internet, por exemplo: "Está escutando?" ou "Está vendo?". Sobraram, assim, 189 perguntas. Foi feita uma leitura inicial das transcrições para se estabelecer o critério de classificação das perguntas. Todas as perguntas que poderiam resultar na produção de palavras (possivelmente) novas para as crianças foram consideradas perguntas que estimulavam o vocabulário.
Após o julgamento das juízas, foi feita uma análise de Kappa Fleiss para obter o nível de concordância. O índice de concordância entre as juízas foi de 0,41. Esse índice é considerado moderado. Para determinar, então, quais sentenças seriam incluídas na análise final, foram consideradas as que duas juízas, com maior índice de concordância, apontaram como sendo questões que desenvolvem o vocabulário. O total de sentenças selecionadas, como de expansão, foi 71, equivalente a menos de 38% das perguntas feitas pelas professoras. As perguntas remanescentes eram perguntas que, em geral, pediam às crianças para responderem com "sim" ou "não" ou com respostas monossilábicas.
Três análises estatísticas foram feitas. Um teste Qui-quadrado comparou a frequência de perguntas de expansão feitas pelas professoras com as perguntas que geravam respostas monossilábicas simples e o resultado foi significativo. O número de perguntas de expansão foi muito baixo (χ² =162, p< 0,001). Dois outros testes Qui-quadrado compararam a frequência de expansão da linguagem usada por cada professora e por título de livro. Os resultados mostram que há diferenças entre professores. Alguns professores expandiam mais a linguagem do que outras (χ² =0,02, GL = 8, p< 0,05), mas não houve diferença entre os livros (χ² =0,66, GL = 4, p< 0,05).
Discussão
Lemos por vários motivos, inclusive pelo simples prazer de ler, mas, quando se lê para letrar, como atividade pedagógica na sala de aula, a leitura deve envolver práticas específicas que visem o desenvolvimento da linguagem oral e escrita, como apontam Sim-Sim et al. (2007). Dentre as habilidades necessárias para o desenvolvimento da linguagem, encontramos o vocabulário. Argumentamos que uma atividade pedagógica merecedora de destaque, no sentido do desenvolvimento léxico, é a leitura compartilhada. Esse foi o foco desta pesquisa. Considerando a importância do vocabulário, este estudo discutiu a prática de professoras durante as leituras compartilhadas de textos de literatura infantil no ensino remoto na pandemia do Coronavírus Sars-CoV-2, com foco primordial na frequência em que os professores formulavam perguntas com o objetivo de desenvolver o vocabulário de crianças pequenas. Para atingir os objetivos do estudo, foram avaliadas 189 perguntas feitas pelas professoras durante as interações professoras-alunos na leitura de livros. De um modo geral, os resultados mostram que as perguntas feitas pelas professoras não favorecem a expansão da linguagem. A maioria das questões levantadas pelas professoras eram perguntas fechadas, que requereriam respostas simples e rápidas. Apenas 38% eram perguntas abertas, que permitiam às crianças interagirem com o adulto de forma a expandir o vocabulário.
Há algumas questões a serem discutidas a partir desses resultados. A primeira, baseada na literatura da área, retoma as pesquisas de autores como Zuker et al. (2013), os quais defendem que as vivências enriquecidas e criativas de leitura compartilhada exposta como uma rotina nas salas de aula de crianças pequenas devem ser uma atividade diária dos professores. Os autores mostraram que a frequência da ação de leitura compartilhada na Educação Infantil é importante para o crescimento da linguagem e da literacia emergente. Porém, para que essas vivências sejam efetivas ao desenvolvimento linguístico, precisam ser sustentadas por teorias educacionais que estabeleçam os objetivos a serem alcançar e como se vão alcançar.
Batista e Mota (2022) demonstraram que, quando a leitura compartilhada envolve a expansão da linguagem, ela é mais efetiva para desenvolver o vocabulário do que, simplesmente, quando se lê os livros para as crianças sem qualquer intervenção do adulto. Tanto o estudo presencial de Pereira et al. (2019) quanto este, demonstram que os professores não usam a oportunidade de leitura compartilhada para trabalhar o desenvolvimento linguístico. O baixo número de perguntas observadas que levavam à expansão do vocabulário, apenas 38%, demonstram a dificuldade dos professores de promover práticas de expansão da linguagem durante as aulas de leitura compartilhada.
Entretanto, não podemos deixar de considerar o contexto em que a pesquisa foi feita. Os resultados podem ser provenientes da condição do ensino remoto, em que as crianças se encontravam no momento das observações. Considerando os problemas vividos em torno dessa modalidade de ensino emergencial, em especial, problemas com a conectividade, dificuldade de interação com o grupo em função do isolamento natural causado pela situação física, uma vez que cada criança estava em sua casa, a própria tela dificultava a interação de grupos, entre outros problemas comuns a essa modalidade. É possível que as professoras possam ter escolhido, propositalmente, perguntas que levassem a respostas mais rápidas, diretas e imediatas das crianças, dadas por meio de poucas palavras e/ou gestualmente (por exemplo, sinalizando com a cabeça se ela seria afirmativa ou negativa), conforme pôde ser observado, claramente, em alguns vídeos durante a transcrição.
Não estava no escopo desse trabalho observar as respostas das crianças às suas professoras, porém, algumas observações puderam ser feitas que levantam questões para estudos futuros. Em nossa pesquisa, verificamos que, apesar de as crianças não estarem em situação de total escuta passiva, as interações professora-crianças e crianças-crianças podem ter ficado bastante prejudicadas neste contexto de educação remota. Devido ao fato de as aulas terem acontecido de modo on-line, elas dependiam bastante de uma boa conectividade, o que nem sempre era conseguido por parte das professoras e/ou alunos. Assim, as falhas nas conexões de internet pareceram provocar nas professoras certa pressa em terminar as atividades de leituras compartilhadas para estas não ficarem sujeitas às interrupções provocadas pela instabilidade de conexão. Porém, é preciso voltarmos ao estudo de Pereira et al. (2019) e fazermos algumas considerações sobre essas conclusões. Em Pereira et al., que estudou perguntas feitas pelos professores, os resultados encontrados foram muito similares numa situação de ensino presencial. As professoras fizeram perguntas simples/literais com respostas que tinham pouco espaço para expansão linguística, o que sugere não ser um problema apenas de conectividade ou do isolamento causado pela tela, mas da própria prática regular de leitura dos professores. Assim, mais estudos precisam ser realizados sobre o tema.
Os resultados das comparações entre professores e livros também nos apontam algumas hipóteses que precisam ser investigadas em estudos futuros. Houve diferenças entre o número de expansões feitas pelas professoras, mas não entre os livros. Esses resultados mostram que há um conteúdo subjetivo, da sensibilidade do docente em trabalhar os livros e as leituras na sala de aula. Haverá sempre diferenças entre professores, e suas preferências individuais vão aparecer no dia a dia, na forma como conduzem sua prática docente. De modo algum pretendemos sugerir que o professor deva perder sua autonomia, mas a prática docente não pode ser aleatória. Ela deve ser embasada em teorias que a sustente. Portanto, diferenças no trabalho docente, no que tange à linguagem, deveriam aparecer como tendências ou padrões e não como resultados significativos. Ao desenvolver práticas docentes embasadas em teorias científicas, reduzimos as práticas meramente aleatórias por práticas que respeitam a autonomia do professor, mas que são eficazes a nossas crianças.
É preciso destacar que ensinar o vocabulário atende a objetivos importantes para a vida das crianças. A importância do vocabulário para a boa compreensão de leitura há muito é relatada na literatura (Giasson, 2000; Sim-Sim, 2007). Isso significa que as crianças são mais favorecidas, quando o adulto-leitor formula questões que trabalham a expansão do vocabulário e provocam o estudante a refletir sobre o mesmo e não quando simplesmente as deixam sem qualquer tipo de estimulação. Ao discutir o significado das palavras, provocando, possivelmente, uma discussão sobre o texto e/ou a linguagem usada nele, os professores ajudam as crianças a terem uma melhor compreensão do que estão lendo e a ampliarem o seu vocabulário e, assim, os conhecimentos prévios e de mundo os ajudarão em leituras futuras, sobretudo, no desenvolvimento da cidadania.
Esta pesquisa possui algumas limitações. Não tivemos a possibilidade, no momento da coleta de dados, de ter um grupo controle que estivesse em aulas presenciais, para efeito de comparação entre o modo remoto e presencial, o que dificulta a generalização dos resultados. Lançamos mão do estudo de Pereira et al. (2019), que foi próximo, para possíveis comparações, mas os autores não avaliaram as expansões de vocabulário e as amostras não eram equivalentes para que se pudesse, de fato, tecer comparações. Assim, não sabemos se foi a modalidade de ensino remoto, com as inconstâncias características desse modelo emergencial de ensino, ou se outras variáveis afetaram a frequência e a qualidade das perguntas feitas pelas professoras da Educação Infantil e do 1º ano do Fundamental, levando-as a lerem as histórias e fazerem poucas perguntas que exploraram o vocabulário. Estudos futuros devem observar não apenas a frequência de leitura, mas o tempo de leitura também, bem como as interações professor-criança e criança-professor.
Ratificando os achados de Gabriel e Morais (2017), destacamos que a leitura compartilhada, seja presencial ou remota, precisa ser bem conduzida para ter um real impacto no desenvolvimento linguístico e cognitivo das crianças. Desse modo, o tipo, a qualidade da mediação e da interação são fundamentais para que as respostas das crianças também provoquem novas colocações das professoras, criando, nessa circunstância, oportunidades de maiores reflexões sobre o texto em ciclo virtuoso. Estudos futuros precisarão estabelecer pesquisas que avaliem o impacto das interações em leitura compartilhada, tanto na modalidade presencial ou remota, porque ainda há muitas perguntas a serem respondidas, especialmente, acerca do efetivo impacto das perguntas sobre o desenvolvimento linguístico das crianças.
Por fim, lembremos que a pandemia do Coronavírus Sars-CoV-2 nos atingiu de repente. O uso da modalidade remota emergencial foi imposta aos professores de forma imediata e houve, naquele momento, uma dificuldade de grande parte dos docentes na utilização das tecnologias da informação e da comunicação no trabalho pedagógico remoto. Os trabalhos pedagógicos com crianças pequenas da Educação Infantil, talvez, tenham sido os que mais ficaram prejudicados, uma vez que elas ainda não escrevem e têm um tempo de atenção menor que as crianças mais velhas. Para que não venhamos a ser atingidos de surpresa, no caso de novas crises sanitárias, ou para que tenhamos como ofertar ações em casos de grandes desastres, que podem afetar a vida de nossas crianças de forma muito drástica, seria interessante o desenvolvimento de trabalhos usando novas tecnologias, mesclados com a modalidade presencial, que não pode ser substituída, certamente, no caso de crianças pequenas.
Considerações finais
Em consonância com a literatura revisada, vimos que as interações das docentes, no sentido de desenvolver o vocabulário das crianças durante a leitura compartilhada, foi aquém ao desejado. A leitura compartilhada de histórias infantis é uma prática bastante utilizada por pais, cuidadores e professores de crianças. Esta prática, quando realizada de maneira intencional e segura, pode cooperar significativamente para o desenvolvimento de habilidades linguísticas das crianças.
A presente pesquisa corrobora estudos anteriores, as quais mostram que professores de Educação Infantil até o primeiro ano do Fundamental estimulam pouco o trabalho com os livros de história e se limitam a perguntas fechadas, que não expandem o vocabulário das crianças pequenas. O potencial de expandir o vocabulário das crianças, que pode ser despertado por essas perguntas, acabam não sendo alcançado.
Esta pesquisa sugere que a leitura compartilhada de histórias infantis de modo remoto apresenta limitações significativas quanto à interação dos professores com as crianças e das crianças com as crianças, visto que as plataformas usadas para esse fim não favorecem a interação entre todos os sujeitos do mesmo modo que ocorre no modo presencial. Porém, como não houve grupo de comparação e outros estudos em situação presencial apontaram situações semelhantes, essas conclusões precisam ser consideradas com cautela.
Os achados do presente estudo podem contribuir para orientar os adultos leitores, principalmente os professores, a terem atitudes mais assertivas enquanto compartilham histórias com as crianças, proporcionando a interação entre todos os participantes e, quando este tipo de interação ocorrer na modalidade remota, buscar alternativas de interação. Por assertivas, referimo-nos a práticas fundamentadas que visem um trabalho educacional objetivando a ampliação da linguagem. Sugerimos que esse tema seja abordado em novas pesquisas, as quais investiguem as práticas de leitura compartilhada, por meio de intervenções que detalhem como e com que frequência a leitura foi mediada pelo professor.
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Endereço para correspondência
Eliane Cristina Ferreira de Oliveira Coutinho - eliacris@hotmail.com
Recebido em: 25/03/2023
Aceito em: 02/10/2023
Notas
1 Como todos os docentes participantes desse estudo foram do gênero feminino, optamos por usar substantivos femininos quando nos referimos a elas.
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