Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e73248, doi:10.12957/epp.2024.73248
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Experiências Subjetivas de uma Estudante Ingressante pelo Sistema de Cotas na Universidade Pública Brasileira

 

Subjective Experiences of a Student Entering the Quota System at a Brazilian Public University

 

Experiencias Subjetivas de una Estudiante que Ingresó a la Universidad Pública Brasileña a través del Sistema de Cuotas

 

Mallu Stephanie de Almeida Nunes a, Wilsa Maria Ramos a

a Universidade de Brasília, Asa Norte, DF, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

A Lei Federal Brasileira 12711/2012 ampliou o acesso ao ensino superior federal público assegurando vagas para os estudantes concluintes do ensino médio em escolas públicas. A pesquisa teve por objetivo compreender como a condição de estudante universitário está configurada subjetivamente para uma estudante cotista da Universidade de Brasília, identificando os tensionamentos e os desafios vividos na sua trajetória de vida. O estudo baseia-se na Teoria da Subjetividade e na Epistemologia Qualitativa, na perspectiva histórico-cultural. Em termos metodológicos, realizou-se o estudo de caso baseado nos princípios da Metodologia Construtivo-Interpretativa, organizado por meio de dinâmicas conversacionais e instrumentos indutores da produção subjetiva. A análise das informações evidenciou que, no curso das experiências da estudante no espaço sociorrelacional universitário e em outros contextos, foram gerados recursos subjetivos favorecedores de novos processos de subjetivação rompendo com o sistema normativo hegemônico de não pertencimento à universidade e se posicionando na condição de sujeito, ativa, participativa e cidadã. Conclui-se que, como os valores hegemônicos da universidade e sociedade em geral ainda são marcados por atos discriminatórios contra os estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, recomenda-se aos gestores a promoção de ações que busquem a integração social e acadêmica, possibilitando o desenvolvimento dos estudantes.

Palavras-chave: experiência subjetiva, tensionamentos, configuração subjetiva, sistema de cotas.


ABSTRACT

The Brazilian Federal Law 12711/2012 expanded access to public federal higher education by reserving places for students who graduated from high school in public schools. The research aimed to understand how the university student condition is subjectively configured for a quota student at the University of Brasília, identifying the tensions and challenges experienced in her life trajectory. The study is based on the Theory of Subjectivity and Qualitative Epistemology, from a historical-cultural perspective. In methodological terms, a case study was carried out based on the principles of the Constructive-Interpretative Methodology, organized through conversational dynamics and inductive instruments of subjective production. The analysis of the information showed that, in the course of the student's experiences in the university socio-relational space and in other contexts, subjective resources were generated that favored new processes of subjectivation, breaking with the hegemonic normative system of not belonging to the university and positioning themselves in the condition of subject, active, participative and citizen. It is concluded that as the hegemonic values of the school, university and society in general are still marked by discriminatory acts against students in a situation of socioeconomic vulnerability, it is recommended that managers promote actions that seek social and academic integration, enabling student development.

Keywords: subjective experience, tensions, subjective configuration, quota system.


RESUMEN

La Ley Federal Brasileña 12711/2012 amplió el acceso a la educación superior federal pública al reservar plazas para estudiantes que completan la escuela secundaria en escuelas públicas. La investigación tuvo como objetivo comprender cómo la condición de estudiante universitaria se configura subjetivamente para una estudiante de cupo en la Universidad de Brasilia, identificando las tensiones y desafíos experimentados en su trayectoria de vida. El estudio se basa en la Teoría de la Subjetividad y la Epistemología Cualitativa, en la perspectiva histórico-cultural. En términos metodológicos, se realizó un estudio de caso basado en los principios de la Metodología Constructivo-Interpretativa, organizado a través de dinámicas conversacionales e instrumentos inductores de la producción subjetiva. El análisis de la información mostró que en el transcurso de las experiencias de los estudiantes en el espacio socio-relacional universitario se generaron recursos subjetivos que favorecieron nuevos procesos de subjetivación, rompiendo con el sistema normativo hegemónico de no pertenecer a la universidad y posicionándose en la condición de sujeto, activo, participativo y ciudadano que aporta a la universidad. Se concluye que como los valores hegemónicos de la escuela, la universidad y la sociedad en general aún están marcados por actos discriminatorios contra los estudiantes en situación de vulnerabilidad socioeconómica, se recomienda a los directivos promover acciones que busquen la integración social y académica y desarrollo.

Palabras clave: experiencia subjetiva, tensiones, configuración subjetiva, sistema de cuotas.


 

 

Ações afirmativas são políticas que objetivam reparar os efeitos de históricas desigualdades, seja por questões de raça, gênero, classe, origem, dentre outras, em prol do atendimento ao princípio constitucional da igualdade. A reserva de vagas nas instituições públicas de ensino faz parte de tais políticas, uma vez que o acesso à educação é essencial no enfrentamento ao cenário de inúmeras desigualdades no contexto brasileiro. Embora o número de estudantes frequentando instituições de ensino superior no país tenha aumentado nas últimas décadas (Senkevics & Mello, 2019; Maia, Araújo & Oliveira, 2021), a composição da comunidade universitária continua desigual entre os diferentes grupos populacionais (Golgher, 2021).

Antes da aprovação de legislação nacional específica, universidades brasileiras instituíram a reserva de vagas em seus vestibulares como iniciativas próprias, amparadas na autonomia universitária, como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pioneira na implementação da política de cotas, com a reserva de vagas a partir de 2003 a pessoas historicamente excluídas do ensino superior (Santos, 2019). Logo em seguida, também em 2003, a Universidade de Brasília (UnB) instituiu o sistema de cotas para negros, com a reserva de 20% das vagas de seu vestibular 1. Já a Universidade Federal do Paraná (UFPR) aprovou em 2004 o Plano de Ação para a Inclusão Racial e Social, definindo a partir de 2005 a reserva de 20% das vagas para negros e outros 20% para estudantes oriundos de escolas públicas (Bevilaqua, 2005).

Após cerca de treze anos de tramitação no Congresso Nacional, em 2012 foi aprovada a Lei Federal nº 12.711/2012, regulamentada pela Portaria Normativa n° 18 do Ministério da Educação (Bevilaqua, 2015). Conhecida como Lei de Cotas, a legislação propõe a ampliação do acesso ao ensino público federal a partir da determinação da reserva de 50% das vagas nas universidades e instituições federais de ensino aos estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. Destas vagas, metade é destinada a estudantes com renda familiar per capta igual ou inferior a um salário mínimo e meio. Já a proporção de vagas reservadas aos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI) e a pessoas com deficiência deve representar a composição demográfica do Estado, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Estudos e pesquisas que discorrem sobre o sistema de cotas nas universidades públicas são fundamentais para gerar informação sobre o impacto educacional, avaliar a sua implantação, compreender as experiências dos estudantes e identificar melhorias. Moura e Tamboril (2018) destacam que o levantamento de estudos publicados nos periódicos de psicologia revela diversas possibilidades de aproximação com a temática, a partir de pesquisas sobre os discursos e as representações sociais das cotas, as relações estabelecidas pelos integrantes das instituições, as ações institucionais de promoção de inclusão social, a instituição de programas de permanência, dentre outros.

Essa temática se estabelece, portanto, como importante demanda para a produção de conhecimento e atuação profissional em psicologia, assim como reforça o compromisso ético e político de seus profissionais (Moura & Tamboril, 2018). Ademais, as pesquisas têm o potencial de subsidiar programas e ações voltados à permanência do estudante na universidade e à conclusão do curso. Para além do ingresso, a garantia de meios de locomoção, o acesso à alimentação e demais condições básicas é essencial, assim como pensar as práticas educativas e promover oportunidades de crescimento pessoal e profissional para os estudantes.

Mayorga e Souza (2012) apontam que o começo da graduação de pessoas oriundas de escolas públicas e de condição socioeconômica baixa é marcado por muitas dificuldades e pelo sentimento de não pertencimento à universidade. Moura e Tamboril (2018) corroboram com estes argumentos, revelando que estudantes provenientes de escolas públicas relatam vulnerabilidades e dificuldades, sobretudo nos primeiros semestres do curso. Contudo, segundo os autores, os estudantes consideram que as cotas apenas "os diferenciam no acesso, colocando-os numa posição mais equitativa e referem-se a tal condição como fruto de um direito, em função do processo de desigualdade vivenciado pelos grupos sociais aos quais pertencem" (Moura & Tamboril, 2018, p. 599).

A partir do posicionamento de que os grupos sociais são produtores de sua experiência e não resultado do que acontece com eles, ressalta-se a importância de considerar a singularidade de como cada pessoa se posiciona no seu contexto (González Rey, 2016). Tal processo rompe com a ideia de que o indivíduo é determinado socialmente, negando a representação de uma compreensão objetiva da psique como reflexo do externo (González Rey, 2012; González Rey & Mitjáns Martínez, 2017a).

Na perspectiva da Teoria da Subjetividade, a relação entre indivíduo, sociedade e cultura é concebida como um sistema configuracional. Assim, a subjetividade representa um sistema complexo que se integra em dois níveis interdependentes - o social e o individual (Souza & Torres, 2019). Os sentidos subjetivos produzidos no contexto das relações entre os indivíduos que compartilham um espaço social participam da produção da subjetividade social, ao mesmo tempo em que essas produções subjetivas sociais integram a produção da subjetividade individual, sendo singularizadas de formas diversas pelos indivíduos e participando de suas expressões nesses contextos (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017a; 2017b).

Os sentidos subjetivos são a expressão do caráter cultural, social e histórico da subjetividade e estão relacionados ao modo como foram vivenciadas subjetivamente as experiências (González Rey & Mitjáns Martínes, 2017b). Assim, as formas simbólicas da cultura são subjetivadas de modo diferenciado por indivíduos ou grupos a partir de emoções singulares e, somente em sua configuração subjetiva, as construções sociais se tornam motivação para ação (González Rey & Mitjáns Martínes, 2017b).

A categoria configuração subjetiva representa um momento de auto-organização da expressão caótica dos sentidos subjetivos durante uma experiência vivida (Gonzalez Rey & Mitjáns Martínez, 2017a). Uma configuração subjetiva pode constituir uma força motriz geradora de desenvolvimento subjetivo quando são produzidos recursos subjetivos que possibilitam mudanças significativas em diferentes áreas da vida (González Rey, Mitjáns Martínez, Rossato & Magalhães Goulart, 2017). Conforme Rossato e Assunção (2019, p. 47), o desenvolvimento subjetivo "se dá quando novas produções, geradas no tensionamento das ações e relações vividas, ganham força e relativa estabilidade, possibilitando reconfigurações no sistema e abrindo caminhos qualitativamente diferenciados de produção subjetiva".

Uma configuração subjetiva que desencadeia processos de desenvolvimento subjetivo está associada à emergência do agente ou do sujeito, ou seja, "o indivíduo configurado subjetivamente, que gera sentidos subjetivos para além de suas representações, mas que, ao mesmo tempo, toma decisões, assume posicionamentos, tem produções intelectuais e compromissos, que são fonte de sentido subjetivos e abrem novos processos de subjetivação" (González Rey & Mitjáns Martínez 2017a, p. 72).

O agente e o sujeito emergem na experiência ou trajetória de vida e representam momentos ativos, mas o segundo, diferentemente do primeiro, abre novas vias de subjetivação que transcendem o espaço social normativo (González Rey & Mitjáns Martínez 2017a). A condição de agente ou sujeito favorece a abertura de novas vias de subjetivação, desdobrando em mudanças subjetivas e, possivelmente, no desenvolvimento subjetivo (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017a).

Tendo em vista essas questões e considerando as categorias da Teoria da Subjetividade, neste artigo apresentamos um recorte da pesquisa realizada no ano de 2022 no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar da Universidade de Brasília (UnB). Em termos do objetivo geral visamos compreender como a condição de universitária está configurada subjetivamente para uma estudante ingressante pelo sistema de cotas. A análise incluiu a caracterização das mobilizações frente aos tensionamentos gerados nas experiências no curso de suas interações com familiares, pares e professores nos espaços sociorrelacionais da escola, universidade e em outros contextos e experiências.

Também analisamos como os recursos subjetivos produzidos na história de vida da estudante se entrelaçam na produção da sua subjetividade individual no enfrentamento das contradições e tensões da subjetividade social da universidade. Buscamos identificar, ainda, a emergência do agente e do sujeito no processo de enfrentamento das contradições e tensões no curso de suas experiências, considerando a capacidade geradora de indivíduos e grupos sociais dentro de realidades simbólicas compartilhadas.

Metodologia Construtivo-interpretativa

A metodologia construtivo-interpretativa (MCI), a Epistemologia Qualitativa e a Teoria da Subjetividade constituíram o aporte para o desenvolvimento da pesquisa. A Epistemologia Qualitativa e seus desdobramentos na MCI tem como princípios centrais o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, a legitimação do singular na produção do conhecimento científico e a pesquisa como processo dialógico de comunicação. O posicionamento metodológico se constitui por um processo dialógico orientado ao envolvimento ativo dos participantes da pesquisa, condição essencial para que os sentidos subjetivos possam emergir no processo (González Rey, 2012, 2016; González Rey & Mitjáns Martínez, 2017a).

Na pesquisa com base na Teoria da Subjetividade, a relevância do estudo de caso se dá pelo fato de que cada indivíduo traz de forma singular a sua experiência vivida, contribuindo para a construção de um modelo teórico que gere inteligibilidade sobre os sentidos subjetivos e as configurações subjetivas produzidas pela estudante na condição de cotista. A compreensão da configuração subjetiva da estudante realiza-se por meio da interpretação e construção das informações singulares, com os significados que o pesquisador produz a partir das expressões da participante (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017a).

O cenário social da pesquisa representa o espaço de desenvolvimento da trama relacional, nos momentos comunicacionais de produção de emocionalidades, tensões e conflitos na relação entre o pesquisador e o participante, caracterizando a natureza dialógica da pesquisa (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017a). Assim, a atuação dialógica da pesquisadora foi essencial na constituição de um espaço comunicacional aberto e que pudesse mobilizar a produção de novos sentidos subjetivos.

A construção das informações se baseia na elaboração de hipóteses e conjecturas no curso da pesquisa, que surgem dos indicadores abertos no processo (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017b). Os indicadores representam os significados gerados pelo pesquisador e, portanto, não estão sujeitos ao material empírico explícito, como as falas diretas dos participantes (Rossato & Mitjáns Martínez, 2018). A relação entre indicadores e hipóteses conduz à construção teórica sobre o tema estudado, trazendo inteligibilidade sobre os possíveis sentidos subjetivos relacionados às experiências configuradas subjetivamente na condição de estudante cotista. Assim, o papel do pesquisador é ressignificado no processo de análise interpretativa, destacando-se a importância da interação entre este e o participante, numa construção que oportuniza constantes reflexões (González Rey, 2010).

A pesquisa foi realizada com uma estudante do curso de Letras de uma universidade pública, ingressante pelo sistema de cotas estipulado pela Lei n° 12.711/2012. O convite para participação na pesquisa foi apresentado na turma de uma disciplina de graduação da universidade, com a breve exposição da proposta e a divulgação de um formulário eletrônico para preenchimento pelos interessados. Três estudantes aceitaram participar da pesquisa, mas neste artigo elegemos apenas um caso de pesquisa, visando assegurar espaço para aprofundar a análise.

Foram realizados três encontros com dinâmicas conversacionais (DC) com a participante, seguindo roteiro semiestruturado. A partir da escuta atenta das gravações da dinâmica conversacional e da leitura das observações registradas no diário de campo, os instrumentos foram reorganizados, considerando os caminhos singulares percorridos no processo de pesquisa. Durante a primeira dinâmica conversacional a participante realizou a Linha do Tempo, com a orientação de representar num papel momentos significativos da sua trajetória estudantil, antes e após o ingresso na universidade. Em seguida, reconhecendo a importância da natureza do diálogo como produção de conhecimento, como definido pela Epistemologia Qualitativa, conversamos sobre a produção da participante, favorecendo a produção subjetiva das experiências em curso.

Na segunda dinâmica conversacional utilizamos o Complemento de Frases, instrumento indutivo para analisar a produção subjetiva da participante a partir de temáticas importantes para a pesquisa, como universidade, cotas, medos, sonhos e expectativas sobre o futuro. Orientamos que a participante fosse espontânea nas respostas, favorecendo expressões livres, com o objetivo de identificar processos subjetivos (Rossato & Mitjáns Martínez, 2018). Outro instrumento, denominado Carta à Comunidade Universitária, foi entregue à participante para que pudesse realizar a atividade em casa e entregar para a pesquisadora no terceiro encontro. A orientação é que escrevesse para a comunidade da UnB sobre as suas experiências, sobre o que as cotas representam para ela, assim como as ações que a universidade poderia desenvolver para apoio aos discentes no percurso de formação.

Reiteramos que os instrumentos não foram utilizados de forma isolada como coleta de dados, mas como fonte de produção de informações importantes na construção de indicadores e hipóteses constituintes da subjetividade individual e social (Rossato & Mitjáns Martínez, 2018). Ressaltamos o devido respeito e sigilo a informações e conteúdos confiados no decorrer da pesquisa e a observância de preceitos éticos legais, como a substituição do nome e a omissão de informações que pudessem identificar a participante. Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (parecer nº 5.281.874).

Análise construtivo-interpretativa e discussão do caso

Iniciamos com uma breve apresentação da participante, seguida da análise construtivo-interpretativa elaborada a partir dos indicadores e hipóteses gerados na dinâmica da trama da vida social, implicada na configuração subjetiva da universitária ingressante pelo sistema de cotas.

A estudante Elis tem 24 anos de idade e, no momento de realização da pesquisa, estava regularmente matriculada no último período do curso de licenciatura em Letras de uma universidade pública. Elis é a primeira da família a entrar para a universidade, seus pais foram alfabetizados já adultos e mudaram de cidades do interior do Piauí e de Minas Gerais para Brasília, onde trabalham como prestadores de serviços na área de limpeza.

A participante cursou o ensino fundamental e médio na rede pública de ensino do Distrito Federal. Após outras tentativas de cursar a universidade, foi aprovada no vestibular no segundo semestre de 2017, nas vagas de cotas destinadas a pessoas oriundas de escolas públicas com renda familiar per capta de até um salário-mínimo e meio. A estudante se identifica como branca, não concorrendo às vagas reservadas a pretos, pardos e indígenas.

Durante os encontros da pesquisa, Elis manteve-se motivada e curiosa nas dinâmicas conduzidas. Na primeira atividade, a Linha do Tempo, ela criou o cronograma detalhado de sua trajetória de vida enquanto estudante, vinculada às suas vivências familiares. O seu pai, criado em uma cidade do interior do Piauí, teve pouco acesso à educação. Ele retoma os estudos na época em que Elis era adolescente, o que impacta afetivamente a relação deles. A participante expressa com entusiasmo que, no período em que este cursava o supletivo, auxiliava o pai nas tarefas escolares e define a si mesma como professora dele: "Eu tava na sexta série ensinando coisas da quarta série pro meu pai. Eu era professora dele, eu era professora do meu pai!" (DC, Elis, 2022).

Em outros momentos da dinâmica conversacional, Elis também recorda de suas brincadeiras com coisas que ganhava do pai, como as pranchetas de madeira e outros objetos que ele recolhia do lixo dos prédios em que trabalhava: "Meu pai, como ele trabalhava com serviços gerais, ele retirava o lixo e achava muita coisa divertida (…). Uma das coisas foi isso. Aí eu tinha duas e fazia como se fosse o meu quadro e ficava brincando de dar aula" (DC, Elis, 2022). Na experiência em curso de contar sua história de vida, a brincadeira representa um exercício de sua imaginação em um contexto familiar de proximidade com o seu pai.

Já no período em que estava concluindo o ensino médio, Elis expressa preocupações e desejos relacionados à sua ocupação profissional: "Eu precisava fazer alguma coisa, a minha mãe era empregada doméstica, o meu pai o mesmo serviço" (DC, Elis, 2022). Em outro trecho: "Eu tava com vontade de fazer alguma coisa, de estudar, sabe, porque senão eu vou ser empregada doméstica igual a minha mãe" (DC, Elis, 2022). O seu pai, contudo, a direciona para desempenhar as mesmas atividades deles: "Quando eu terminei o ensino médio o meu pai conseguiu um apartamento para eu ser empregada doméstica e ter trabalho fichado, porque para pobre ter trabalho fichado é tipo um sonho de princesa" (DC, Elis, 2022).

Elis se emociona ao relembrar a decisão de não aceitar a vaga de emprego, expressando o conflito de valores que se estabeleceu com a família, sobretudo com o pai, que não apoia a sua decisão e distancia-se da filha. Nas suas expressões, o pai caracteriza-se como um interlocutor significativo, o outro social, que pode constituir, ao longo das relações, processo de compreensão mútua, de construção do vínculo e de conflitos. Elis aponta: "A relação com o meu pai é ruim até hoje, mas como eu trabalho, tenho um pouco de grana do meu estágio, ele fica na dele" (DC, Elis, 2022). Os valores de Elis entram em contradição com os da família, constituindo em dilemas e sentimentos de decepção consigo mesma: No complemento de frases a participante escreve: Me decepcionei quando… "Não honrei de onde vim, a profissão dos meus pais e todo o meu corre para estar onde estou".

Elis compreende o trabalho dos pais como uma fonte de subsistência de sua família que possibilita que ela frequente a escola e consiga se manter na universidade, mas manifesta as contradições da sociedade na interseccionalidade do trabalho e classe social. A representação do trabalho dos pais para Elis expressa sentidos subjetivos de sua condição de classe: "É muito difícil pobre pensar em ter ensino superior, precisa de trabalhar, precisa de ter dinheiro rápido, vira mão de obra barata, não tem tempo de pensar nada" (DC, Elis, 2022).

As experiências em curso e na história de vida de Elis formam um sistema dinâmico e complexo que se integra reciprocamente e de forma recursiva nas configurações subjetivas sociais da família. A tessitura das informações nos permitiu abrir o indicador de sua produção subjetiva, expressa pela desejabilidade de seguir outra trajetória de vida por meio dos estudos e ingresso na universidade, se contrapondo aos valores da subjetividade social da família.

Quando Elis provoca a ruptura com os valores familiares e opta por cursar a universidade, ela busca seus próprios recursos para se preparar para o vestibular. Uma possibilidade foi o processo seletivo para o ingresso em cursinho preparatório voltado a pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica: "Eu só sei que eu consegui passar e até hoje eu não sei como (…), porque eu acho que na seleção do cursinho eles escolheram as pessoas que tinham menor nota, deve ter sido isso" (DC, Elis, 2022).

O ingresso na universidade ocorreu após um ano de estudos preparatórios, conforme relatado: "E eu fui só olhar, porque lógico que eu não tinha passado. Mas aí eu vi lá o meu nome e eu ri porque eu passei!" (DC, Elis, 2022). Mesmo sendo aprovada nas seleções dos cursinhos com bolsa de estudos e no vestibular da universidade, Elis não reconhece suas capacidades e potencial de realização. Assim, elaboramos a seguinte hipótese: subjetivada pela sua posição de classe social, a estudante produz por sentidos subjetivos limitadores de sua ação, constituídos por baixa autoestima e falta de reconhecimento de seus feitos, embora tenha conquistado aprovações.

Na sua trajetória enquanto universitária, Elis expressa sentidos subjetivos de que o seu ingresso não se dá por suas próprias capacidades e merecimento: "Não era para eu estar aqui, essas pessoas que estão aqui elas são inteligentes, elas realmente tiraram nota no vestibular. Eu estou aqui foi na sorte, eu não sei o que eu tô fazendo aqui" (DC, Elis, 2022). No complemento de frases escreve: Quando eu faço coisas da faculdade eu… "Geralmente me sinto desafiada, como se eu não fosse capaz" (DC, Elis, 2022).

Como vimos, Elis pertence à família da classe trabalhadora, na qual o ingresso à universidade representa uma realidade social distante. Santos (2019), ao pesquisar o discurso sobre as cotas e a ampliação do acesso ao ensino superior no Brasil, ressalta que é recente a chegada à universidade de grupos que historicamente tiveram limitados ou mesmo negados o acesso à educação. No debate sobre as cotas, um dos argumentos produzidos socialmente contrários à sua implementação está relacionado à desqualificação dos estudantes cotistas (Santos, 2019). Segundo a autora, o estudante "que de alguma forma não tenha participado de contextos sociais que propiciem o desenvolvimento de gêneros privilegiados em meio acadêmico seria visto como um problema para a universidade e, portanto, inapto" (Santos, 2019, p. 19).

A subjetividade social dos espaços sociorrelacionais da universidade e de outros contextos, caracterizada como racista, classista e excludente, participa da produção subjetiva de Elis enquanto estudante cotista. Segundo González Rey e Mitjáns Martínez (2017a), a subjetividade é inseparável do mundo simbólico da cultura em que emerge. As produções sociais se configuram subjetivamente nas produções simbólicas de Elis, que se constitui na subjetividade social dos contextos dos quais participa e integra os valores da subjetividade social de sua família.

A participante relata que ao longo dos dois primeiros semestres da graduação não se permite aprofundar nas interações sociais, evita fazer amizades e participar de eventos estudantis: "Na recepção de calouros eu nunca fui, eu saia, eu fugia de todo mudo. Tanto é que nos primeiros anos eu acho que quase fiquei com depressão, porque foram anos muito solitários" (DC, Elis, 2022). Em outro momento de conversação aponta: "Eu tinha muita dificuldade de me relacionar, porque eu não queria me expor, tipo assim, falar de mim, onde eu morava, o que eu vivia. Eu achava que devia manter essas informações em segredo, porque era perigoso me expor" (DC, Elis, 2022).

Em suas produções simbólicas, Elis expressava o receio de ser identificada em sua origem e classe social. A chegada de Elis à universidade produziu conflitos e sentimentos de não adequação ao ambiente universitário, o que a imobiliza no processo de socialização com outros membros da comunidade universitária: "Eu me sentia num dos piores lugares do mundo, sério. Eu ia para a universidade e me dava vontade de chorar, (…) eu me sentia totalmente só e foi muito difícil mesmo" (DC, Elis, 2022).

No fragmento a seguir, a participante fala de suas limitações em participar das aulas: "Eu perguntava bem pouco, sabe, eu filtrava muito para falar e eu só queria responder perguntas dos professores se eu tivesse certeza de que era certo (…), pensava que eu falando isso ou aquilo que fosse besteira, o pessoal ia me achar uma burra" (DC, Elis, 2022). Assim, abrimos o indicador da produção de sentidos subjetivos de não pertencimento à universidade, o que a mantem distante de professores e colegas de curso como forma de não expor a sua situação de vulnerabilidade.

No segundo ano de curso, a participante vivência experiências em grupo e o reconhecimento de suas potencialidades por seus colegas é mobilizadora na produção de novos sentidos subjetivos, favorecendo um processo qualitativo de interação social no cotidiano da universidade:

Eu fiz um grupo com 2 pessoas (…), foi logo quando eu comecei a ter amizades, no terceiro semestre. A gente fez um grupo para uma disciplina num seminário e eu fiquei responsável pela parte do PowerPoint (…). A gente tirou nota boa, eles gostaram da minha apresentação, a professora elogiou a minha apresentação e eu fiquei assim, hein o que esse pessoal viu? Porque pra mim tinha ficado muito ruim. E aí depois eles mencionaram assim como tinha sido bom fazer grupo comigo, eles: massa, você é ótima, foi muito bom fazer grupo com você, legal (DC, Elis, 2022).

A partir deste fragmento observamos que, no curso de suas experiências em atividades grupais, são produzidos novos sentidos subjetivos que permitiram mudanças qualitativas nas relações com os colegas: "Eu fui percebendo, cara, eu acho que eu sou inteligente, sabia? Eu acho que não é loucura desse pessoal não" (DC, Elis, 2022). A participante começa a se posicionar de forma mais ativa na construção de caminhos alternativos que a permitem ir adiante, buscando realizar-se no espaço da universidade e reconhecendo as suas potencialidades: "Hoje eu sinto que eu tenho ritmo, força e várias relações com o mundo, com o conhecimento, com pessoas e realidades diversas" (DC, Elis, 2022).

Os espaços sociais diversificados proporcionam novas experiências, reconfigurando subjetivamente a atuação de Elis como estudante, ampliando a sua participação não apenas em disciplinas, mas em projetos de pesquisa. Abrimos o indicador de que as interações sociais construídas no contexto universitário mobilizam a produção de recursos subjetivos pela estudante, abrindo novas oportunidades em sua vida. Os recursos subjetivos gerados pela participante tiveram implicações em como ela se posiciona perante a sua própria vida, engajando-se em atividades coletivas e buscando interagir mais com seus pares: "A universidade e o que eu desenvolvo como estudante possibilitam várias oportunidades na minha vida" (CCU, Elis, 2022).

Nos complementos de frase são expressas as ações intencionais de interação com os colegas: Quando estou na universidade eu gosto de... "Aprender com colegas de outros cursos". Quando não consigo entender um conteúdo eu... "Partilho com algum colega. Às vezes o outro tá tão desesperado quanto eu, e eu julgando que era a única!".

No curso de suas interações com os colegas, ao reconhecer que estes também enfrentam dificuldades e desafios no decurso de suas experiências enquanto universitários, Elis produz novos sentidos subjetivos. "Em trabalho em grupo eu aprendi que o outro tem o tempo dele (…), que o outro tem demandas, que o outro tem dificuldade de comunicar, assim como eu tive, que o outro tem medo, tem insegurança" (DC, Elis, 2022).

A participante expressa flexibilidade para compreender que as demais pessoas podem estar em situação semelhante, como no fragmento: "Se a pessoa não cumpriu o prazo, eu penso que tem imprevistos, a pessoa tá cansada, tem outras disciplinas que também sugam a alma" (DC, Elis, 2022). O reconhecimento do outro constitui uma unidade simbólica-emocional do reconhecimento de suas dificuldades e potenciais. Assim, abrimos a hipótese de que a sua atuação na universidade e o esforço na compreensão dos demais participa da dinâmica de produção de recursos subjetivos de autoconfiança, implicação pessoal e comunicação.

Articulados aos sentidos subjetivos apresentados nos indicadores, os recursos subjetivos produzidos na história de vida da estudante e no momento atual se entrelaçam na produção da sua subjetividade individual como força motriz para o enfrentamento das contradições e tensões da subjetividade social da universidade. Nesse sentido, construímos a hipótese de que no reconhecimento de si e dos colegas Elis produz recursos subjetivos que mobilizam o sentimento de pertencimento e participação social na universidade, abrindo vias para o seu posicionamento enquanto sujeito.

O posicionamento de Elis de assumir responsabilidades e de se engajar em atividades na universidade integra-se à produção de sentidos subjetivos relacionados ao posicionamento crítico e implicação nas suas escolhas de vida: "Eu poderia ter passado e eu poderia ter feito várias coisas, sabe. Na universidade mesmo teve várias coisas, mas eu quis continuar e eu estou lá até hoje, sabe. Então assim, tem muito de mim nisso" (DC, Elis, 2022). Elis produz sentidos subjetivos de decisão própria, o que expressa o seu posicionamento ativo na instituição: "Tem várias potencialidades no que eu sou, como eu sou e vejo as coisas. Eu vou mudando a coisa, né, vou mudando, eu como pessoa no geral, e eu acho que também potencializa a forma como eu contribuo na universidade, sabe, nos projetos que eu faço" (DC, Elis, 2022).

A questão de classe social foi um elemento paradigmático que recursivamente atuou como força motriz, gerando novos sentidos subjetivos constituintes da emergência da condição de sujeito "Eu vou ser a primeira pessoa da família, assim, da família mais próxima que eu conheço, a me formar numa universidade. E para mim, eu fico assim: nossa, isso é muito incrível, eu tô quebrando um paradigma gigante" (DC, Elis, 2022). Na trama de vida de Elis foram gerados sentidos subjetivos do reconhecimento da universidade como uma via para o seu crescimento e transformação.

No complemento de frases expressa: O ensino superior é... "Uma nova faceta! Sinto como se fosse uma nascente. A partir do momento que tive e tenho a oportunidade do ensino superior de qualidade, numa universidade pública, é como se essa nascente se transformasse em um rio". Geramos o indicador da implicação motivacional de Elis, que se expressa na produção de sentidos subjetivos de pertencimento e contribuição pessoal para a universidade.

Em outro momento da conversação, Elis expressa sentidos subjetivos sobre a sua condição enquanto estudante universitária cotista, ampliando o seu universo e seus papéis sociais no mundo:

Eu estou lá e eu não sou só universitária, né, eu sou universitária, mas (...) eu sou filha da minha mãe, prima de não sei de quem, amiga de não sei de quem, namorada de ciclano e revisora de textos, professora de não sei o que, mãe da minha cachorra Duquesa. Eu sou tudo isso (DC, Elis, 2022).

Como vimos anteriormente, o sujeito representa aquele que abre uma via própria de subjetivação e exerce opções criativas no decorrer das suas experiências (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017a). Elis expressa o reconhecimento sobre as suas escolhas de vida:

Eu realizei meu sonho de ser careca, porque eu descobri que era um sonho, mas na época da escola isso nunca passaria na minha cabeça. Hoje eu sou cheia de tatuagem, tenho piercing e eu amo a pessoa que eu sou" (DC, Elis, 2022).

Assim, abrimos o indicador da emergência do sujeito com a produção de novos sentidos subjetivos, provocando mudanças no seu papel social em diferentes contextos, ressaltando a sua origem e classe social como aspectos importantes de sua constituição subjetiva.

Os processos de mudanças na configuração subjetiva de Elis como estudante cotista nos permitem construir outra hipótese: o desenvolvimento de recursos subjetivos abriu vias para novas experiências na universidade e em outros contextos de sua vida, o que, na Teoria da Subjetividade, pode ser entendido como desenvolvimento subjetivo. Esta hipótese encontra fundamento ainda na compreensão de que houve a emergência da condição de sujeito, que pode ocorrer concomitantemente como um processo de desenvolvimento subjetivo (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017b).

A construção de um modelo teórico do caso Elis

No decurso da graduação percebemos os processos de transformação em decorrência da produção de recursos subjetivos próprios de Elis, possibilitando que ela vivenciasse as experiências na universidade e em outros contextos de sua vida de forma singular. Compreendemos que o ingresso na universidade estava subjetivado pela desejabilidade de seguir outra trajetória para a sua profissionalização, diferente da orientação e profissão dos seus pais.

Elis expressa os tensionamentos gerados nas experiências vividas na condição de classe trabalhadora e os enfrentamentos das contradições vivenciadas no curso de suas experiências. Há uma produção de sentidos subjetivos de não pertencimento à universidade no início da graduação, expressos pela limitação de interações com colegas e professores como forma de autopreservação num ambiente em que, historicamente, pessoas negras, moradoras de regiões periféricas e oriundas de escolas públicas foram excluídas.

No decorrer de sua trajetória estudantil, contudo, os valores hegemônicos da subjetividade social da família, da universidade e da sociedade produziram contradições que tensionaram a subjetividade individual de Elis em um processo contraditório e gerador de novos sentidos e recursos subjetivos relacionados à emergência do sujeito e ao seu posicionamento ativo frente aos desafios enfrentados.

A partir destas informações, construímos um modelo teórico dinâmico que engloba os vários momentos de decisão e ação da participante, com a compreensão da condição de universitária configurada subjetivamente no momento de chegada e nos primeiros semestres na universidade como um movimento de invisibilidade, como forma de não expor vulnerabilidades. "Eu cheguei aqui foi na sorte (…). Eu ficava oprimida, sabe, não podia ser descoberta" (DC, Elis, 2022).

No decurso da graduação, mudanças significativas ocorreram, reconfigurando a condição de estudante do ensino superior caracterizada pela emergência da condição de sujeito que assume sua posição ativa, criativa e identitária, de pertencimento social e acadêmico à universidade: "Não tem como a universidade ser a mesma. Cada pessoinha fazendo uma coisa, vivendo la, né... Porque a gente é a universidade!" (DC, Elis, 2022).

Os recursos subjetivos gerados nas experiências abriram novas possibilidades de mudança, transformando a sua trajetória de vida, como expressa: "O futuro a gente vai descobrir, né. O que eu gosto de fazer, uma coisa muito boa que eu acho é descobrir coisas novas, essa felicidade de descobrir coisas novas na universidade e na vida né, eu gosto muito disso" (DC, Elis, 2022).

Um dos valores heurísticos da Teoria da Subjetividade está na compreensão de que as produções subjetivas podem ser constantemente construídas e reconstruídas por meio de ações específicas (González Rey, 2010). No caso de Elis, um processo de mudança subjetiva importante pode ser observado ao longo da sua trajetória, destacando a sua capacidade de gerar novos espaços de subjetivação dentro dos contextos normativos-institucionais em que estava inserida. Construímos inteligibilidade de que as mudanças na configuração subjetiva da condição de estudante universitária de Elis foram se constituindo como uma configuração subjetiva de desenvolvimento, se desdobrando em outras áreas da vida.

 

Considerações finais

A Teoria da Subjetividade constituiu-se como fundamentação teórica e epistemológica fundamental para o desenvolvimento deste estudo. A partir deste referencial foi possível compreender questões relacionadas ao acesso à universidade, considerando-se a singularidade e a integração de aspectos sociais e culturais na constituição da subjetividade da estudante ingressante pelo sistema de cotas. Como desdobramento metodológico da Epistemologia Qualitativa, foi utilizada a Metodologia Construtivo-Interpretativa para dar inteligibilidade sobre as questões estudadas.

A compreensão da condição de estudante universitária foi permeada pela forma em que, na MCI, realiza-se a interpretação e construção das informações, com os significados que as pesquisadoras produziram sobre as expressões da participante. Reiteramos que a construção do sistema teórico é aberta e está em constante desenvolvimento. Assim, não nos cabe uma apropriação de teorias como obras concluídas, que atingiram o seu ápice na própria elaboração de seus autores (González Rey, 2003).

Vimos que, embora o número de estudantes frequentando instituições de ensino superior no país tenha aumentado nas últimas décadas (Maia, Araújo & Oliveira, 2021; Senkevics & Mello, 2019), a composição da comunidade universitária continua desigual entre os diferentes grupos populacionais (Golgher, 2021). Ações afirmativas são políticas que objetivam reparar os efeitos de históricas desigualdades, seja por questões de raça, gênero, classe, origem, dentre outras, em prol do atendimento ao princípio constitucional da igualdade (Santos, 2019).

A reserva de vagas nas instituições públicas de ensino configura importante exemplo de tais políticas, destacando-se a aprovação Lei Federal nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas. Conforme Oliva (2020), as políticas públicas de democratização do acesso à universidade possibilitam a uma parcela dos estudantes negros e de baixa renda o ingresso no ensino superior e, por conseguinte, ajudam na redução de desigualdades quanto aos anos e níveis de escolaridade, padrão remuneratório e tipos de ocupação profissional.

Visto que os valores hegemônicos do contexto escolar, universitário e da sociedade em geral são marcados por atos discriminatórios contra os estudantes negros, indígenas e/ou em situação de vulnerabilidade socioeconômica (Santos, 2019), recomenda-se o desenvolvimento de ações inclusivas e multiculturais que promovam a integração acadêmica e social destes estudantes. Reiteramos ainda a importância da representatividade discente nas instâncias institucionais, como, por exemplo, a inclusão em comissões e grupos de trabalho, assim como estabelecimento de parcerias entre estudantes, diretorias e coordenações que compõem a estrutura organizacional da universidade. Contudo, destacamos a necessidade de que a participação dos estudantes seja de fato valorizada e não mera formalidade.

No caso em estudo as construções interpretativas apontam elementos que caracterizam a configuração subjetiva da estudante, que envolve a história de vida, a trajetória estudantil, a classe social, o medo do julgamento e da rejeição social. A implicação emocional e motivacional gerada pelas experiências tensionadoras e contraditórias no espaço-tempo universitário gerou recursos subjetivos, abrindo novos processos de subjetivação, transcendendo o espaço normativo e emergindo uma estudante na condição de sujeito ativo, com produções intelectuais próprias.

Assim, o caso de Elis aponta para a importância do espaço sociorrelacional da universidade e das relações e interações constituídas neste contexto no desenvolvimento da sua subjetividade, contudo, apresenta limitações relativas ao tempo de duração da pesquisa, não permitindo maiores investigações de processo tão complexo. A partir do posicionamento de que os grupos sociais são produtores de sua experiência, e não resultado do que acontece com eles (González Rey, 2003; 2012; 2013; González Rey & Mitjáns Martínez 2017a), destacamos a importância de que sejam realizados novos estudos embasados em referenciais teóricos que permitam a compreensão da singularidade com que estudantes cotistas vivenciam as suas experiências nos diversos contextos. Sugerimos ainda que outros estudos possam contemplar as questões de inclusão e projeção social dos estudantes cotistas no mercado de trabalho, contribuindo para desmitificar questões que problematizam a capacidade de estudantes cotistas de perseverarem e obterem sucesso nas universidades e em suas futuras profissões.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Mallu Stephanie de Almeida Nunes - mallununes@gmail.com

Recebido em: 06/02/2023
Aceito em: 19/02/2024

 

 

Notas

1 Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), Resolução nº 38 de 18 de junho de 2003.

 

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