Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e72560, doi:10.12957/epp.2024.72560
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
Evidências de Validade de Conteúdo de uma Medida de Competências Socioemocionais para Crianças e Adolescentes
Evidence of Content Validity of a Measure of Socio-emotional Competencies for Children and Adolescents
Evidencias de Validez de Contenido de una Medida de Competencia Socioemocional para Niños y Adolescentes
Louise do Nascimento Marques a, Ana Clara Capistrano Soares a
, Lucas Barrozo de Andrade b
, Adriana Lima a
, Bruno Oliveira a
, Jesus Landeira-Fernandez a
, Luis Anunciação a
a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
b Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O desenvolvimento de competências socioemocionais de crianças e adolescentes tem sido alvo de intensa investigação ao redor do mundo nas últimas décadas. No Brasil, este tema tem ganhado cada vez mais relevância, embora haja uma escassez de instrumentos com evidências psicométricas que avaliem o curso de desenvolvimento destas competências. Portanto, o objetivo deste estudo consiste em apresentar evidências iniciais na construção de um instrumento de avaliação do desenvolvimento de competências socioemocionais para crianças e adolescentes. Para alcançar este objetivo, foram selecionados cinco instrumentos em língua inglesa listados pelo Collaborative for Academic, Social, and Emotional Learning e foram criados itens. Foi realizado processo de tradução e retrotradução. Ao final desse processo, foi solicitada a análise dos itens por três especialistas, considerando a clareza, pertinência e consistência teórica dos itens analisados. De forma geral, os itens demonstraram níveis de clareza, pertinência e consistência teórica adequada. Tais resultados indicam que o conjunto final de itens apresentou evidências de validade de conteúdo e demonstrar ser consistentes e relevantes para investigação em novos estudos.
Palavras-chave: avaliação educacional, regulação emocional, autocontrole, bem-estar subjetivo, psicometria.
ABSTRACT
The development of the socio-emotional skills of children and adolescents has been the focus of intense research around the world in recent decades. In Brazil, this topic has become increasingly relevant, although there is a shortage of instruments with psychometric evidence to evaluate the course of development of these skills. Therefore, the goal of this study is to present evidence on the construction of a tool that measures the development of socio-emotional skills for children and adolescents. To achieve this goal, five English-language instruments were selected from the Collaborative for Academic, Social, and Emotional Learning website and new items were created. A process of translation and back-translation was carried out. At the end of this process, an analysis of the items was requested by three experts, considering the clarity, relevance, and theoretical consistency of the items. Overall, the items demonstrated adequate levels of clarity, relevance and theoretical consistency. These results indicate that the final set of items presented evidence of content validity and demonstrated being consistent and relevant for further investigation in new studies.
Keywords: educational measurement, emotional regulation, self-control, subjective well-being, psychometrics.
RESUMEN
El desarrollo de competencias socioemocionales de niños y adolescentes ha sido objeto de intensa investigación alrededor del mundo en las últimas décadas. En Brasil, este tema ha ganado cada vez más relevancia, aunque hay una escasez de instrumentos con evidencias psicométricas que evalúen el curso de desarrollo de estas competencias. Por lo tanto, el objetivo de este estudio consiste en presentar evidencias iniciales en la construcción de un instrumento de evaluación del desarrollo de competencias socioemocionales para niños y adolescentes. Para lograr este objetivo, se seleccionaron cinco instrumentos en lengua inglesa en Collaborative for Academic, Social, and Emotional Learning y se crearon nuevos ítems. Se realizó un proceso de traducción y retrotraducción. Al final de esto proceso, fue solicitada el análisis de los ítems por tres especialistas, considerando la claridad, pertinencia y consistencia teórica de los ítems analizados. Los ítems demostraron niveles adecuados de claridad, relevancia y consistencia teórica. Estos resultados indican que el conjunto final de ítems presentó evidencia de validez de contenido y demostró ser consistente y relevante para la investigación en nuevos estudios.
Palabras clave: evaluación educacional, regulación emocional, autocontrol, bienestar subjetivo, psicométria.
Os processos educacionais vêm se transformando significativamente ao redor do mundo nas últimas décadas. Em meio a este processo de mudanças, há a inclusão do desenvolvimento de competências que vão além dos aspectos acadêmicos, como matemática e línguas, englobando aspectos socioemocionais (Damásio & Semente Educação, 2017; Panizza et al., 2020; Weissberg et al., 2015). Este conjunto de competências se referem:
ao processo de integração de cognição, emoção e comportamento no ensino e aprendizagem, de modo que adultos e crianças desenvolvam habilidades de autoconsciência e consciência social, aprendam a gerenciar suas próprias emoções e comportamentos, tomem decisões responsáveis e construam relacionamentos positivos (Brackett et al., 2019, p. 144).
As competências socioemocionais são essenciais para o desenvolvimento de forma global dos indivíduos, tendo efeito em suas experiências sociais, familiares e desempenho escolar e acadêmico (Chen et al., 2018; Durlak et al., 2011; Oliveira & Muszkat, 2021). Dessa forma, desde o período pré-escolar tais competências são desenvolvidas e se tornam essenciais para outros períodos da vida da pessoa, principalmente nas interações e relações sociais. Além disso, tais competências influenciam em diversos níveis, como na performance cognitiva, bem-estar e qualidade de vida (Berk & Meyers, 2012; Mecca et al., 2012). Sendo assim, a aprendizagem e desenvolvimento das competências socioemocionais é de extrema importância.
No Brasil, o desenvolvimento destas competências está contemplado por meio da implementação das diretrizes previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), prevista no parágrafo 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil & Ministério da Educação, 2018). Tal diretriz tem como objetivo principal o estabelecimento do ensino obrigatório de competências socioemocionais por todo o país, em escolas públicas e privadas.
Com muita frequência, o CASEL (sigla para Collaborative for Academic, Social, and Emotional Learning) tem sido escolhido como a organização de maior credibilidade na área e certificação de programas de ensino de competências socioemocionais. O CASEL é uma organização internacional, sediada em Chicago, nos Estados Unidos e que, por sua atuação, tem sido frequentemente reconhecida como uma das principais autoridades no avanço da Aprendizagem Socioemocional (SEL, em inglês) em educação. Atualmente, o CASEL estabelece cinco principais competências socioemocionais que são desenvolvidas desde o período pré-escolar e, se relacionam diante das demandas cotidianas (Collaborative for Academic, 2020). A partir deste embasamento teórico, diversos programas são desenvolvidos para estimular estas competências.
A avaliação de tais competências costuma ser feita com instrumentos psicológicos, especialmente escalas que são respondidas por crianças ou adolescentes, bem como por seus professores e familiares (Schlegel & Mortillaro, 2019). Durante o processo de elaboração de um instrumento psicológico, seja ele um instrumento novo ou adaptado, é essencial garantir e aplicar processos de robustez teórica e, de forma geral, validade e precisão dos itens.
Portanto, é crucial no momento de criação de um instrumento aplicar procedimentos adequados, desde o processo de pesquisa teórica até o processo de aplicação de um piloto e análises de validade do instrumento. Esses métodos incluem (1) definição de um objetivo geral do instrumento, conjunto de estímulos e duração de aplicação; (2) os itens geralmente são derivados de revisão da literatura, especificamente do constructo que se propõe medir; (3) no caso de tradução de itens (de uma outra língua), é necessário realizar adaptação cultural e contextual, considerando o novo público alvo; (4) verificar a concordância entre especialistas da área em relação aos itens elaborados ou adaptados e a clareza destes; (5) aplicação de um piloto em larga em escala, para avaliação do novo instrumento e (6) análises psicométricas e estatísticas do instrumento (Muñiz & Pedrero-Fonseca, 2019; Zickar, 2020).
De forma geral, a integração e robustez de informações teóricas e análise psicométricas e estatísticas garante maior segurança em relação a validade e fidedignidade de um instrumento. Tais evidências psicométricas impactam diretamente no processo de padronização dos critérios de aplicação e correção do instrumento e no processo de normatização possibilitando que os resultados sejam comparados com dados amostrais. Ou seja, se o instrumento mede adequadamente o constructo que se propõe a medir e, se os itens avaliam tais conceitos de forma precisa e consistente. No caso da avaliação das competências socioemocionais, é importante destacar pontos como a existência de legislação específica, a relevância do tema e a importância de procedimentos que verifiquem acerca da validade de uma medida. Apesar disso, os instrumentos que avaliam as competências socioemocionais de crianças com estudos psicométricos robustos, ou são ainda escassos na comunidade científica brasileira (Alvarez-Nuñez et al., 2020; Guerra et al., 2022), ou apresentam fragilidades especialmente em relação a aspectos de validade e fidedignidade (Arruda et al., 2022).
Tal escassez de estudos psicométricos de competências socioemocionais (Alvarez-Nuñez et al., 2020; Guerra et al., 2022) afeta, em relação ao número de instrumentos disponíveis e adequados para uso, principalmente em contextos clínicos e escolares. A ausência de estudos psicométricos é prejudicial, pois os resultados obtidos com novos instrumentos, sem estas análises, apresentam limitações de interpretação científica e de forma geral não são recomendados a serem utilizados (Andrade et al., 2021; The American Educational Research Association [AERA] et al., 2014). É essencial a realização dos processos de análise teórica e psicométrica durante a construção de qualquer instrumento, assim como no caso da construção de instrumentos utilizados no contexto educacional para avaliação das competências socioemocionais.
A partir da escassez de estudos psicométricos na área e, considerando a importância da avaliação das competências socioemocionais, bem como sua importância no contexto escolar brasileiro, o atual estudo tem finalidade de apresentar um conjunto de evidências psicométricas relacionadas ao desenvolvimento de uma nova medida de competências socioemocionais em crianças e adolescentes. Serão apresentadas evidências relacionadas ao processo de construção e seleção de itens, realizado através de uma revisão da literatura e análises de especialistas na área.
Método
Participantes
Para a etapa de tradução e retrotradução, quatro especialistas fluentes nos idiomas inglês e português participaram. Na primeira etapa, dois profissionais independentes fizeram a tradução dos itens pertencentes aos instrumentos selecionados da língua inglesa para a língua portuguesa. Na etapa de retrotradução, dois outros profissionais independentes realizaram a retrotradução dos itens dos instrumentos listados, passando-os da língua portuguesa para a língua inglesa.
Na etapa de análise do Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC), foi utilizado o método semelhante ao proposto por Lawshe (1975): participaram três juízes especialistas que analisaram as características de clareza, pertinência e relação dos itens com competência socioemocionais específicas. Um dos juízes possui doutorado e todos os juízes tinham pós-graduação e atuavam na área de educação.
Procedimentos
Em relação à etapa de revisão da literatura, foram estabelecidos três critérios para a seleção dos instrumentos: (1) Instrumentos de autorrelato e ter como público-alvo crianças em idade escolar; (2) Instrumentos que avaliam competências socioemocionais trabalhadas pelo programa Gênios (Gênios Educacional, 2024; Marques et al., 2023); (3) instrumentos com itens disponíveis para acesso. Feito isso, solicitou-se ao CASEL uma lista de instrumentos recomendáveis de acordo com os parâmetros definidos anteriormente. Foi realizada uma triagem selecionando instrumentos de autorrelato que estivessem de acordo com os constructos trabalhados pelo Programa Gênios: autoconhecimento, autogerenciamento, consciência social, tomada de decisão responsável e relacionamento (Tabela 1).
Tabela 1
Competências socioemocionais analisadas
Macrocompetências |
Definição teórica |
Microcompetências |
Autoconhecimento |
É reconhecer com precisão as próprias emoções, pensamentos e valores e sua influência no comportamento. |
Autopercepção e Autoconfiança |
Autogerenciamento |
Gerenciar as emoções e pensamentos, se autorregulando, de forma saudável, os comportamentos em diferentes situações, gerenciando stress, controlando impulsos e demonstrando resiliência diante dos obstáculos. |
Autocontrole, Determinação e Flexibilidade |
Consciência social |
Envolve entender a perspectiva dos outros e ter empatia, valorizando as diferentes culturas e vivências. |
Empatia e Valorização da diversidade |
Tomada de decisão responsável |
Capacidade de fazer escolhas construtivas e respeitosas sobre o comportamento pessoal e as interações sociais com base na consideração de padrões éticos e avaliação realista das consequências de várias ações e bem-estar de si mesmo e dos outros. |
Solução de problemas, Pensamento crítico e Pensamento criativo |
Relacionamento |
Capacidade de estabelecer e manter relacionamentos saudáveis e gratificantes com diversos indivíduos e grupos. |
Construção de relacionamentos, Comunicação e argumentação e Trabalho em equipe e cooperação |
Fonte: Os autores (2024)
Isto posto, foi solicitado aos autores dos instrumentos resultantes da triagem, a autorização para iniciar o processo de utilização destes instrumentos. Para as fases de tradução e retrotradução dos instrumentos em língua inglesa para o contexto brasileiro, seguiu-se as etapas iniciais previamente propostas por Andrade et al. (2021) e os critérios apresentados pelo International Test Commission(2017). Para os instrumentos de língua inglesa, dois tradutores independentes fizeram a tradução contextualizada dos itens de cada instrumento para o idioma português. Em seguida, os resultados foram comparados em termos de equivalência semântica e uma síntese da tradução foi realizada para todos os itens. Em um segundo momento, outros dois tradutores independentes realizaram a retrotradução dos mesmos itens da língua portuguesa para o idioma inglês.
Uma revisão semântica foi realizada para os itens que apresentaram alguma disparidade entre os tradutores. Finalmente, tais versões foram traduzidas para a língua portuguesa, constituindo as versões finais dos itens. Todos os profissionais envolvidos foram informados acerca dos objetivos da pesquisa, que foi submetida pela Plataforma Brasil, recebendo a autorização do Comitê de Ética do setor da Universidade Católica de Petrópolis, CAAE n. 56387122.3.0000.5281.
Análise de dados
Em relação ao CVC, o primeiro processo utilizado foi computar, por meio de uma métrica de pontuação (escala politômica de 5 pontos), as avaliações para verificar a clareza e pertinência dos itens. Um segundo processo realizado foi a verificação da porcentagem de concordância de cada item em relação à sua competência, que poderia ser 0 ou 1. Dessa forma, para computar o cálculo de concordância teórica de cada item, era feito a razão da concordância do item na competência sobre a quantidade de juízes, que variava de 0% (nenhum juiz concorda) até 100% (os três juízes concordam). As etapas iniciais de consolidação bem como as demais de análises foram realizadas no Software R (2020) e Rstudio (versão 4.1), utilizando os pacotes Tidyverse (2016), Psyco, SummaryTools, Janitor e DataExplorer.
Resultados
Revisão da literatura
Foram selecionados cinco instrumentos na língua inglesa para a criação do primeiro conjunto de itens do instrumento em desenvolvimento, que foram o Washoe County School District Student Social and Emotional Competency Assessment (WCSD) (versão longa), Social Skills Improvement System Rating Forms (SSIS SEL Rating Forms), CORE Districts Social Emotional Learning Surveys, Panorama Social-Emotional Learning - Student Measures e Six Seconds Emotional Intelligence Youth Version (SEI-YV).
O WCSD é um instrumento que se propõe a medir oito competências socioemocionais, como habilidades de relacionamento, tomada de decisão responsável, autoconhecimento das emoções. O SSIS SEL Rating Forms contém 46 itens tem como objetivo avaliar cinco competências socioemocionais, sendo estas: habilidades de relacionamento, autoconhecimento, consciência social, tomada de decisão responsável e autogerenciamento.
O CORE Districts Social Emotional Learning Surveys é um instrumento disponível para diversos contextos culturais visto que foi adaptado do inglês e se propõe a medir quatro competências socioemocionais de estudantes: mentalidade de desenvolvimento, autoeficácia, autogerenciamento e consciência social. O instrumento é composto de 25 itens respondidos pelos alunos em forma de autorrelato.
O Panorama Social-Emotional Learning - Student Measures se propõe a medir nove competências socioemocionais, como estratégias de aprendizagem, tomada de perspectiva social, regulação emocional e esforço em sala de aula. O SEI-YV se propõe a medir 26 competências socioemocionais. Ele é composto por 99 itens objetivos disponíveis em inglês e espanhol e é um instrumento de autorrelato de estudantes, mas também apresenta uma versão para resposta de professores, responsáveis e funcionários da escola.
Além dos itens dos instrumentos já listados na plataforma do CASEL, um grupo de especialistas na área de competências socioemocionais formado por pedagogos e psicólogos dedicou-se à criação de itens inéditos para serem avaliados. Foram desenvolvidos 27 itens compatíveis com as competências socioemocionais, autoconhecimento, autogerenciamento, consciência social, tomada de decisão responsável e relacionamento e as micro competências.
Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC)
Os itens selecionados e adaptados passaram em seguida por uma avaliação de três especialistas das áreas de Pedagogia e Psicologia, que julgaram as características de clareza, pertinência e validade fatorial dos itens em três plataformas de formulário via Google forms. A primeira plataforma era voltada à avaliação das características de clareza. Os especialistas eram solicitados a se atentarem ao vocabulário utilizado valorizando uma linguagem adequada para o público-alvo de adolescentes de 11 a 15 anos de idade, que pudesse evitar qualquer tipo de confusão ou má interpretação por parte dos respondentes. Assim, uma nota de um a cinco era atribuída a cada um dos 188 itens, sendo um o item nada claro e pouco adequado para o público, e cinco atribuída ao item muito claro e de fácil entendimento.
A segunda plataforma tinha o objetivo de coletar as avaliações dos juízes a respeito da pertinência dos itens, ou seja, a sua capacidade de medir um constructo específico. Para isso, foram apresentados à seguinte definição: "As competências socioemocionais se referem a um conceito multidimensional, que abrange habilidades sociais e psicológicas que auxiliam no desenvolvimento dos indivíduos, em relação às suas identidades, manejo emocional e estabelecimento de objetivos" (Collaborative for Academic, 2020). Diante disto, os itens foram avaliados em uma escala de 1 (nada pertinente) a 5 (muito pertinente).
Por fim, a terceira plataforma visava avaliar a concordância teórica dos itens. Dessa forma, os 188 itens foram apresentados de acordo com as competências socioemocionais, que seriam: (1) autoconhecimento, (2) autogerenciamento, (3) consciência social, (4) tomada de decisão responsável e (5) relacionamento. Os juízes por sua vez receberam as definições destas competências e apontaram de forma dicotômica, sendo um para sim e zero para não, se o item avaliado é compatível com a competência que se propõe a medir.
Foi utilizado um ponto de corte de 0,8 para o CVC clareza e pertinência e no mínimo 66% de concordância teórica do item com a competência (endosso). Foi usado o ponto de corte de 0,8 para o Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC) de clareza e pertinência proposto por Lynn (1986). Ele sugeriu que um valor de CVC igual ou superior a 0,8 indica um alto nível de concordância entre os avaliadores em relação à clareza e pertinência dos itens. Dessa forma, foram retirados 147 itens do conjunto inicial de itens avaliados. A versão final foi composta de 42 itens, sendo seis itens para a competência de Autoconhecimento, 10 de Autogerenciamento, oito de Consciência Social, oito de Tomada de decisão Responsável e 10 de Relacionamento. A Figura 1 ilustra o processo de seleção dos itens.
Figura 1
Seleção de itens e versão após CVC
Fonte: Os autores (2024)
O resultado total do CVC foi de 0,91 para pertinência, 0,89 para clareza e 93% de endosso dos itens nas suas competências. Este resultado indica que o conjunto final de itens que compõem o instrumento apresenta índices adequados, tanto para a clareza e entendimento do item, quanto para a pertinência teórica e prática das competências socioemocionais de maneira geral (CVC pertinência) e específica.
Foi possível também verificar os resultados do CVC em função de cada competência socioemocional analisada. De maneira geral, todas as competências apresentaram índices adequado de validade de conteúdo para clareza, pertinência e concordância teórica. A competência socioemocional de Autoconhecimento e Relacionamento foram as que apresentaram maior validade de conteúdo para pertinência teórica e prática (ambos com CVC = 0,94). Em relação à clareza, as competências socioemocionais de Autogerenciamento e Relacionamento foram as que apresentaram maior coeficiente de clareza para o público-alvo (CVC = 0,93 e 0,92, respectivamente). Por fim, em relação à porcentagem de endosso, a competência socioemocional de Autogerenciamento e Relacionamento foram as que apresentaram maior concordância teórica dos seus itens em relação à sua competência socioemocional (96% e 97%, respectivamente). A Tabela 2 apresenta os resultados.
Tabela 2
Síntese dos resultados do CVC
Competências Socioemocionais |
N de itens |
CVC Pertinência |
CVC Clareza |
% de Endosso |
Autoconhecimento |
6 |
0.94 |
0.85 |
94% |
Autogerenciamento |
9 |
0.92 |
0.93 |
96% |
Consciência social |
8 |
0.85 |
0.84 |
83% |
Tomada de decisão responsável |
8 |
0.91 |
0.89 |
92% |
Relacionamento |
10 |
0.94 |
0.92 |
97% |
Total |
41 |
0.91 |
0.89 |
93% |
Fonte: Os autores (2024)
Discussão
O ensino das competências socioemocionais é cada vez mais valorizado no contexto escolar, considerando que estas têm se mostrado fortemente associadas ao desenvolvimento tanto das habilidades escolares e acadêmicas quanto dos domínios de interação social e manejo das emoções (Chen et al., 2018; Oliveira & Muszkat, 2021), tendo um impacto direto na qualidade de vida dos indivíduos (Berk & Meyers, 2012). O desenvolvimento desses benefícios é essencial desde o período pré-escolar e pode influenciar no futuro desempenho acadêmico e profissional. Diante destes benefícios, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) passou a exigir a implementação do ensino das competências socioemocionais nas escolas brasileiras (Brasil & Ministério da Educação, 2018).
Considerando que esta implementação no currículo escolar brasileiro ainda é inédita, as instituições de ensino estão em processo de adaptação e desenvolvimento dos seus programas de educação socioemocionais. Assim, é importante a criação de um sistema que possa avaliar a efetividade destes novos programas contribuindo para identificação de seus pontos fortes e fracos, auxiliando na adaptação e potencialização de suas práticas. No entanto, a tarefa de medir as competências socioemocionais, como outras características psicológicas, é extremamente complexa considerando o seu espectro de definições e nível de subjetividade (Guerra et al., 2022; Marin et al., 2017). Além disso, existe uma escassez de instrumentos brasileiros com o intuito de avaliar as competências de crianças em idade escolar. Portanto, este estudo visou apresentar um conjunto de evidências psicométricas preliminares de validade de conteúdo, relacionadas ao desenvolvimento de uma nova medida de competências socioemocionais em crianças e adolescentes.
Diante das análises conduzidas, foi possível identificar um conjunto de itens que se propõem a avaliar características de competências socioemocionais, sendo estes resultados de uma revisão da literatura por instrumentos listados pelo Collaborative for Academic, Social, and Emotional Learning (CASEL), quanto da criação de itens originais. Estes, por sua vez, passaram por avaliações de juízes nos domínios de clareza, pertinência e concordância teórica e obtiveram resultados adequados sugerindo evidências de validade de conteúdo.
Dessa forma, apesar da dificuldade de se analisar competências socioemocionais, os resultados dos juízes indicaram alto índice de clareza, pertinência, e foi observada concordância entre as respostas. Estes resultados podem ser associados com o processo de triagem da seleção dos itens, pois foram utilizados em sua maioria, itens previamente listados por uma organização internacional que analisa programas socioemocionais (CASEL). Além disso, tais achados também podem ser relacionados com modelo teórico escolhido e pelo critério de escolha dos itens finais (CVC = ou > 0,8) e a partir de uma avaliação qualitativa, considerando principalmente a clareza e pertinência para o público-alvo.
Apesar de todas as competências apresentarem em média diversos itens adequados a partir da análise de CVC, foi observada uma sutil diferença em comparação dos resultados entre as competências. A competência de Relacionamento, de forma geral apresentou os maiores níveis de CVC. Tal resultado pode ser analisado a partir de dois pontos específicos: 1) diferença do número de itens e 2) aspectos teóricos. Esta competência foi a que mais apresentou número de itens, tanto de itens previamente listados pelo CASEL, quanto itens criados pelos especialistas. Esta pequena discrepância em comparação às outras competências pode ter influenciado os resultados do CVC.
Uma segunda característica relacionada aos resultados das competências Autogerenciamento e Relacionamento e ao número de itens selecionados refere-se ao fator teórico. Vários autores retratam a importância das emoções no processo ensino-aprendizagem e na tomada de decisão. Segundo Damásio (2003) "a emoção bem dirigida parece ser o sistema de apoio sem o qual o edifício da razão não pode funcionar eficazmente", ou seja, tanto a emoção como a razão estão na base do processo de tomada de decisão (Damásio, 2003). Lev Vygostky diz que para compreender o funcionamento cognitivo (razão ou inteligência), é preciso entender o aspecto emocional (Fonseca, 2018). Os dois processos são uma unidade: o afeto interfere na cognição e vice-versa. Desta maneira, é imprescindível ações que envolvam o Autogerenciamento, compreendemos a capacidade e eficácia de regulação de emoções, pensamentos e comportamentos de uma pessoa em suas vivências situacionais.
A competência de Relacionamento é essencial para o estabelecimento e manutenção de relações saudáveis em diversos contextos da vida dos indivíduos, estimulando características individuais e coletivas (Collaborative for Academic, 2020) e destacada por autores na literatura, desde 1995 (Marin et al., 2017). Por se tratar de uma competência que influencia de forma ampla e principalmente nas formas de comunicação e resolução de problemas, torna-se crucial o destaque de tal competência ao analisar o contexto escolar e pessoal. O número maior de itens criados para esta competência pode ser associado à necessidade de aprofundar os microfatores associados a ela, como construção de relacionamento, comunicação e trabalho em equipe.
No entanto, algumas limitações deste trabalho podem ser pontuadas. Durante o processo de revisão da literatura em busca por instrumentos que já se propunham a avaliar as competências socioemocionais, foram identificadas apenas medidas desenvolvidas internacionalmente, de maneira que estas não foram criadas diretamente para o contexto brasileiro. Porém, ao longo da etapa de tradução e retrotradução, características culturais e sociais foram consideradas para a melhor adaptação dos itens para o público-alvo. Até o presente momento foram conduzidas unicamente análises resultantes da avaliação dos itens feita por juízes, sendo estas o Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC) e a porcentagem de endosso dos especialistas a respeito da concordância teórica dos itens e as competências que pretendem medir. Neste sentido, tem-se por objetivo futuro conduzir análises de precisão e análises fatoriais exploratórias decorrentes da aplicação de uma versão piloto do instrumento com o público-alvo.
Conclusão
O atual estudo teve como objetivo realizar uma revisão e seleção de instrumentos que medem competências socioemocionais e apresentar evidências preliminares de um novo instrumento de competências socioemocionais para crianças e adolescentes. Isto posto, os itens selecionados para uma versão final apresentaram resultados adequados referentes a consistência teórica, clareza e pertinência após uma avaliação por especialistas. A partir da escassez de estudos na área, sugerem novos estudos no contexto brasileiro de adaptação e criação de instrumentos e por isso, tais achados se tornam importantes, pois demonstram robustez inicial de uma nova medida neste contexto.
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Endereço para correspondência
Luis Anunciação - luisfca@gmail.com
Recebido em: 16/01/2023
Aceito em: 10/04/2024
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