Estudos e Pesquisas em Psicologia
2022, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2022.71761
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PSICOLOGIA, POLÍTICA E SEXUALIDADES: CRISES, ANTAGONISMOS E AGÊNCIAS

 

A Feminilidade na Psicanálise é Branca? O Desamparo Discursivo Sobre a Feminilidade da Mulher Negra

 

Flávia Angelo Verceze*, I; Christiane Soares Pinto**, II; Gabriela de Souza Rodrigues***, II; Giovanna Menezes Cappucci****, III
I Universidade Estadual de Londrina - UEL, Londrina, PR, Brasil
II Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
III Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar a construção teórica sobre a sexualidade feminina e a feminilidade em Freud, para depois questioná-la a partir de um recorte de raça e gênero. Para isso, foram utilizados como referências principais trabalhos de autoras negras que discutem a temática étnico-racial, além de produções que abordam gênero e teorias do feminismo interseccional. O trabalho observou a concepção de um universal de mulher que parte da atribuição de traços da feminilidade que se vinculam à figura da mulher branca, burguesa e mãe e, portanto, não compreendem em sua totalidade gênero, raça e classe, de forma a apagar a experiência da mulher negra, marcada pelo racismo e pela história escravocrata. Assim, observa-se uma omissão da psicanálise frente à questão racial e, portanto, evidencia-se a necessidade de se pensar uma psicanálise contextualizada, que leve em consideração os aspectos históricos e sociais da realidade na qual se insere.

Palavras-chave: psicanálise, feminilidade, raça, gênero.


 

Is Femininity in Psychoanalysis White? Discursive Helplessness of Black Women's Femininity

 

ABSTRACT

This article aims to present the theoretical construction on female sexuality and femininity in Freud, and then question it from a racial and gender perspective. To this end, the main references employed were works from black female authors who discuss the ethno-racial subject, as well as some which address gender and theories of intersectional feminism. This paper observed the conception of a universal woman that includes the attribution of traits of femininity which are linked to a white, bourgeois and motherly woman figure and, therefore, aren't comprehensive of gender, race and class in their totality, in order to erase the black woman's experience, marked by racism and a slavocratic history. Thus, an omission from Psychoanalysis can be observed regarding to the racial issue and, therefore, the need of think about a contextualized psychoanalysis, which takes into account the historical and social aspects of the reality in which it is inserted, is evident.

Keywords: psychoanalysis, femininity, race, gender.


 

¿La Feminidad en el Psicoanálisis es Blanca? Desamparo Discursivo Sobre la Feminidad de Mujeres Negras

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar la construcción teórica de la sexualidad femenina y la feminidad en Freud, y a seguir cuestionarla a partir de una óptica de raza y género. Para esto, las referencias más importantes son los trabajos de autoras negras que discuten la temática étnico-racial, y también estudios que abordan género y teorías del feminismo interseccional. El trabajo observó la concepción de una categoría de mujer con origen en la atribución de rasgos de la feminidad que se vinculan a la figura de la mujer blanca, burguesa y madre y, por lo tanto, no comprenden en su totalidad género, raza y clase, apagando la experiencia de la mujer negra, marcada por el racismo y los muchos años de esclavitud. De esa manera el Psicoanálisis omite la cuestión racial, lo que revela la necesidad de pensar un Psicoanálisis adecuado al contexto histórico y social en el que se inserta.

Palabras clave: psicoanálisis, feminidad, raza, gênero.


 

 

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E eu não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem - desde que eu tivesse oportunidade para isso - e suportar o chicote também! E eu não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E eu não sou uma mulher? (Truth, 1851, grifo nosso).

O trecho acima faz parte do discurso proferido por Sojourner Truth como uma intervenção na Women's Rights Convention,em Akron, Ohio, Estados Unidos, no ano de 1851. Sojourner Truth viveu grande parte de sua vida como escrava e é conhecida por ser uma abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das mulheres, sendo particularmente lembrada pelo célebre discurso "Ain't I a Woman?" (E eu não sou uma mulher?).

É a partir dessa pergunta que o presente artigo tem como objetivo discutir a noção de feminilidade na psicanálise sob um viés crítico, isto é, tem-se a pretensão de elucidar o quanto a noção de feminilidade, em Freud, trata de uma feminilidade branca e burguesa, que deve ser entendida levando em conta o contexto e época em que foi produzida. Porém, também se configura como um discurso que serviu e serve até hoje para pensar a mulher branca, mãe e passiva como um universal de mulher. É evidente que a noção de feminilidade em Freud teve desdobramentos futuros a partir de alguns autores pós-freudianos, porém, no presente trabalho, pretende-se evidenciar a feminilidade na obra de Freud.

Como se sabe, Freud dedicou-se amplamente para entender o desejo feminino, o que, segundo ele mesmo, não foi possível. Dando um lugar de enigma ao feminino, que é expresso por sua célebre frase: "A mulher é o continente negro da psicanálise" (Freud, 1926/1988, p. 242),associação que faz ao continente africano, tão pouco conhecido por ele e seus contemporâneos europeus.

Talvez por ato falho, Freud nos dê pista de que seu conhecimento sobre a mulher e o feminino trata de uma mulher específica, a mulher branca. Porém, nunca nomeada, já que é vista por Freud e pela maioria dos saberes eurocêntricos como a mulher universal. Uma mulher que é colocada como inferior aos homens por sua própria constituição sexual, a falta fálica. O que atribui um papel social bem demarcado: a passividade, a maternidade e sua pouca aptidão para a cena pública, assim como para a sublimação.

Apesar de algumas psicanalistas contemporâneas de Freud, como Karen Horney, e outros tantos pós-freudianos questionarem o feminino de Freud, constituído pela inveja do pênis, parece que nenhum deles perguntou sobre qual mulher Freud se referia, o que só foi possível a partir dos estudos feministas decoloniais de autoras negras. Algumas dessas autoras inclusive amparadas pelo referencial teórico da psicanálise, como Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza, Izildinha Batista, Grada Kilomba, Cida Bento, entre tantas outras.

Deste modo, o presente artigo tem como pretensão apresentar a construção teórica sobre a sexualidade feminina e a feminilidade em Freud, para depois questioná-la a partir de um recorte de raça, que é dado por uma psicanálise que se pretende brasileira e que leva em conta às questões de gênero e raça para pensar as questões subjetivas e psíquicas. Tal psicanálise é sustentada por meio do pensamento de algumas autoras que vêm denunciando, há alguns anos, a omissão da psicanálise frente à questão racial, da negritude e do racismo, aqui especificamente em relação à mulher negra.

A Sexualidade Feminina e a Feminilidade em Freud

A psicanálise tem a sexualidade como aspecto crucial para a constituição do sujeito e de sua subjetividade. Todavia, Freud, empregando as mesmas interrogações que seus contemporâneos, foi o único dentre eles a inventar uma nova conceituação, articulada ao conceito de pulsão, libido e bissexualidade psíquica.

Para a psicanálise, a sexualidade não é natural, ou seja, da ordem do instinto, mas produto da linguagem, o que marca a diferença dos seres humanos para com outros animais. Nesse caminho de descoberta apresentado por Freud, a sexualidade das mulheres foi fundamental, pois foi através da escuta de suas pacientes histéricas que Freud atribui à histeria uma etiologia sexual, isto é, explica que seus sintomas, principalmente centrados em seus corpos, não tinham qualquer explicação fisiológica, mas tratava-se de uma causalidade inconsciente. Em seu texto "A Sexualidade na Etiologia das Neuroses", Freud (1898/1994) rompe de alguma maneira com o discurso neurológico e da sexologia de sua época, criando um campo discursivo próprio a respeito da sexualidade que abre a possibilidade de pensar o sexual para além do discurso biológico e reprodutivo.

Já em seu texto "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905/1996) estende sua reflexão ao campo da sexualidade infantil, teoria que foi grandemente criticada em muitos países e rejeitada pelos mais célebres dissidentes do movimento freudiano. Neste, Freud (1905/1996) apresenta um estudo pormenorizado a respeito da sexualidade, propondo que esta se inicia na infância, associando-a à formação da personalidade, o que chamou de teoria psicossexual. O autor dá ênfase à sexualidade pré-genital e autoerótica presente no desenvolvimento infantil e aos complexos de Édipo e de castração para a estruturação sexual dos sexos feminino e masculino.

Em seu primeiro ensaio, Freud (1905/1996) apresenta a ideia de que as chamadas "aberrações sexuais" são componentes que raramente faltam na vida sexual das pessoas consideradas "sadias", e que o germe de toda perversão já se encontra na infância e faz parte da constituição do que passa por normal. Assim, Freud define a pulsão sexual infantil como sendo perverso-polimorfa, isto é, perversa por explorar, exagerar e transgredir os diferentes modos de satisfação, e polimorfa, por admitir muitas formas, plásticas e mutáveis.

Deste modo, pode-se dizer que Freud tem passagens revolucionárias ao apresentar uma ideia de sexualidade atrelada ao conceito de pulsão, que desnaturaliza o instinto e coloca a sexualidade para além da reprodução. Entretanto, Freud ainda se vê muito apegado às questões da família tradicional burguesa, que considerava as mulheres identificadas aos papéis de dona de casa e mãe (Domingues, 2014). Neste sentido, ainda no texto de 1905, é possível perceber a insistência de Freud em retornar à questão da reprodução e da diferença anatômica como estruturação sexual em ambos os sexos. O autor supõe que o desenvolvimento sexual pré-genital é idêntico nos meninos e nas meninas e predominantemente masculino, visto que, para Freud, a diferença genital anatômica ainda não se coloca em questão.

Nesse momento, Freud (1905/1996) privilegia a explicação do Édipo no menino, a partir da ideia de um amor pela mãe e um ódio pelo pai, mesmo que haja uma atitude de ambivalência para com este. A dissolução desse complexo só seria efetuada, no caso dos meninos, pela ameaça da castração ou complexo de castração. Isto é, o menino ao se deparar com a diferença anatômica, depois de um tempo de negação, passa a temer que um castigo recaia sobre seu genital por conta de seus impulsos incestuosos dirigidos à mãe. O que o leva a abdicar desse amor, culminando no declínio de seu complexo de Édipo.

Entretanto, em suas últimas edições do texto de 1905, Freud, apesar de um esforço, não consegue mais supor uma similaridade entre o que acontece com os meninos e as meninas em relação ao complexo de Édipo e sua dissolução. Assim, é somente em seu texto "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos", que o autor (Freud, 1925/2018) passa a questionar em que ponto do desenvolvimento humano se daria essa referida distinção entre os complexos de Édipo masculino e feminino. Com uma grande parcela de cautela, avisando de início que o conteúdo desse texto necessitaria de confirmação, Freud (1925/2018) reafirma uma série de asserções já realizadas nos "Três Ensaios Sobre uma Teoria da Sexualidade", além de elencar algumas consequências psíquicas da inveja do pênis.

Tais consequências não se esgotariam com a formação reativa em meninas, de um complexo de masculinidade que poderia, ou não, ser desfeito posteriormente. Havia, igualmente, o reconhecimento de uma ferida narcísica, uma espécie de cicatriz, um sentimento de inferioridade a partir do qual muitas meninas compartilhariam do desprezo de alguns homens pelo sexo feminino, considerado o sexo reduzido. Por compartilhar desse desprezo pelo feminino, "sexo mutilado", haveria um tipo de equivalência ilusória com os homens. Outra consequência do fenômeno da inveja do pênis, apontada pelo autor, é o afrouxamento na relação com a mãe, causado pela compreensão de que esta não lhe concedeu algo tão necessário quanto, nesse momento, julga ser o pênis. Assim, diante dessa vontade de possuir um pênis, outra saída possível apontada por Freud para o Complexo de Édipo feminino seria a recusa [verleugnung] em acreditar que não o possui, obrigando a si mesma a portar-se como um homem.

Ainda em "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos", Freud (1925/2018) apresenta uma nítida distinção entre o final desse complexo nos meninos e nas meninas. No menino, o complexo de castração despedaça o complexo de Édipo, incorporando seu objeto ao Supereu, enquanto no complexo de Édipo feminino faltam elementos destrutivos, de modo que o Supereu feminino seria diferenciado do masculino.

Para Freud (1925/2018), por não haver uma destruição total e completa do Complexo de Édipo, o Supereu feminino seria mais frágil, o que implicaria a formação ética das mulheres ocorrer de uma maneira diferenciada, cabendo destaque a alguns traços de caráter presentes nas mesmas, a exemplo do menor senso de justiça, da "menor inclinação para se submeter às grandes necessidades da vida" (p. 240), além de deixarem-se guiar, com maior frequência que os homens, por sentimentos no momento de tomada de decisões.

Ou seja, para Freud (1925/2018), alguns atributos culturalmente considerados femininos seriam fruto não somente da cultura, mas igualmente oriundos da passagem por essa fase do desenvolvimento psicossexual. A partir daí, desponta o questionamento acerca do quanto tais atributos considerados femininos seriam encontrados em mulheres advindas de diferentes culturas e etnias, tendo em vista a amplitude e a abrangência das diferenças socioculturais existentes na comunidade humana. Nesse ponto, no entanto, o autor relativiza as ideias de masculinidade e feminilidade ao fazer menção à constituição humana bissexual, afirmando, ainda, que não são encontradas formas puras, quer de masculinidade, quer de feminilidade, de modo que seríamos todos seres que transitam entre esses dois polos.

Ainda como uma tentativa de fazer uma diferenciação entre as sexualidades masculina e feminina, em seu texto "Sobre a sexualidade feminina", Freud (1931/2018) levanta algumas questões sobre a constituição da sexualidade da mulher, apontando para a importância do período pré-edípico no desenvolvimento das meninas. Para ambos os sexos, feminino e masculino, a mãe também fica na posição de objeto primário, mas as meninas necessitam realizar o trabalho de se desfazer desse objeto, trocando-o pelo pai. Com isso, ele rejeita a ideia do "Complexo de Electra" como algo oposto ao complexo de Édipo.

Sendo assim, Freud (1931/2018) procura investigar a segunda grande mudança do desenvolvimento sexual da menina, que ocorre concomitantemente com a troca do clitóris pela vagina, que é a troca da mãe pelo pai enquanto objeto. Nesse período pré-edípico, o pai chega até mesmo a ser visto como um rival para a menina, mas de forma menos hostil do que acontece com os meninos. Quando a menina brinca com a boneca, por exemplo, identifica-se um sinal de feminilidade precoce, ligada à relação da menina com a mãe em um período em que ainda há uma negligência do pai como objeto. Outro sinal desse período de ligação exclusiva à mãe, é observado por Freud (1931/2018) nos casamentos, através das brigas de mulheres com os maridos, semelhantes aos conflitos que tinham quando mais novas com suas mães. Nisso, ele conclui que a posição agressiva da menina frente à mãe não é uma consequência do complexo de Édipo, mas vem antes, na fase de ligação exclusiva à mãe. A dependência da mulher em relação ao pai é uma herança de sua relação originária com a mãe.

Para a mulher, a bissexualidade "perversa polimorfa" (Freud, 1905/1996) da constituição humana, fica mais evidente do que no homem, visto que, no homem, a zona erógena orientadora é guiada por apenas um órgão sexual, o pênis. Enquanto na mulher, isso seria formado por duas vias: a vagina, que o autor enxerga como feminina, e o clitóris, que seria um representante do órgão masculino. É durante a infância, período em que a genitalidade da menina ocorre em torno do clitóris, representante genital da masculinidade, que ela precisa trocá-lo pela vagina, órgão feminino. Assim, o amor por um dos pais e a rivalidade pelo outro só ocorre com os homens. Partindo disso, surge uma das grandes questões para Freud (1931/2018), como é feito o abandono da mãe como objeto?

O autor levanta hipóteses sobre o afastamento da menina em relação à mãe: o fato dela ter dotado a menina com o genital "errado" (vagina e não pênis), não a ter alimentado por tempo suficiente, dividido o amor materno com outros e, primeiramente, ter estimulado sua atividade sexual, para depois proibi-la. Antes da mãe, a menina já se masturbava de maneira espontânea, sem fantasia, mas é com a chegada de uma figura sedutora que as fantasias sexuais começam a ser despertadas (Freud, 1931/2018). A pessoa encarregada pelos cuidados maternos, que Freud descreve como a mãe, ama ou babá, quem primeiramente seduz a menina através de cuidados corporais, é a mesma que posteriormente a proíbe de tentar se satisfazer através da masturbação.

Assim, em revolta à pessoa castradora, a menina abandona a mãe, apesar de mais tarde fundir-se com ela. Parte desse sentimento de recusa retorna em uma situação semelhante, quando a mãe passa a querer proteger a castidade da filha na puberdade. Quando a menina passa a ter noção que aquilo também ocorre com outras crianças e adultos, surge uma desvalorização daquilo que é da ordem do feminino e, em consequência, à mãe.

Todas essas justificativas acabam não sendo suficientes para explicar o abandono da mãe pelo pai, visto que o menino também passa por essas mesmas situações, mas adota um caminho diferente ao adentrar o complexo de Édipo. Por conta disso, o autor retoma a ambivalência entre amor e ódio das primeiras fases da vida amorosa, presente em ambos os sexos. Para os meninos, é possível manter essa ambivalência, já que os sentimentos opositores são dirigidos ao pai. Já a menina não dirige essa hostilidade ao pai, pois é ele quem aparece como uma esperança de ter aquilo que ela não tem, o pênis.

Com isso, para Freud (1931/2018), a partir do complexo de castração, surgem três caminhos possíveis para a mulher em relação à sua sexualidade: o afastamento total desta a partir de sua insatisfação com o clitóris, desistindo assim tanto do masculino quanto do feminino; A masculinidade, que é vista pela esperança de voltar a ter um pênis; ou a feminilidade definitiva, que é quando a menina toma o pai como objeto através do complexo de Édipo. Sendo assim, na mulher, o complexo de Édipo, diferente do menino, não é destruído pela castração, ele é formado através dela. O afastamento da mãe pela menina não representa apenas a troca de objeto, mas é o que funda a feminilidade. Esta, então, é desenvolvida com o final da passagem para o pai como objeto.

A viragem de objeto da mãe para o pai diz de uma expectativa de que o pai entregue para a menina o que a mãe a negou: o pênis. Em "A feminilidade", Freud (1933/2018) discute que a situação feminina só se consolida se, na troca de objeto, a menina substituir o desejo do pênis pelo do filho, em uma equivalência simbólica na qual o filho entra no lugar do pênis.

Assim, Freud (1933/2018) abre uma discussão sobre atividade e passividade, afirmando que comumente a atividade é relacionada ao masculino, enquanto a passividade, ao feminino. Porém, aponta essas associações como insuficientes. Reconhece a mãe como ativa sobre o filho, assim como desvenda uma docilidade passiva do homem para que possa conviver com seus iguais. A mulher é dissociada do lugar de passividade, mas tem sua feminilidade atrelada a uma ideia de metas passivas, o que, afirma Freud (1933/2018), é muito diferente de passividade, uma vez que é necessária muita atividade para que metas passivas possam ser estabelecidas. A conduta passiva e o anseio por metas passivas da mulher são explicados como uma preferência que parte da participação de sua função sexual, mas também são consideradas normas sociais que empurram a mulher para situações de passividade.

Apesar de sua tentativa em descrever o processo de constituição da feminilidade se baseando principalmente em conflitos edípicos e na diferença anatômica, Freud, em alguns momentos, nega uma explicação unicamente organicista a respeito da sexualidade. Posteriormente, Freud (1927/1996) retoma a influência da cultura sobre as mulheres, questionando a suposta inferioridade intelectual atribuída ao sexo feminino como consequência das restrições e proibições as quais as mulheres eram submetidas, apesar de, anteriormente (1925/2018), ter afirmado que isso seria fruto da falta de uma resolução edípica satisfatória. Freud também chega a afirmar que a função do clitóris viril se prolonga na vida da mulher, mas ainda não saberia dizer como, o que é retomado por outros psicanalistas, como Lacan, ao discutir a função do falo. Embora tenha dedicado trabalhos, como os que foram apontados, sobre a sexualidade feminina, Freud ainda deixa questões em aberto, elucidando uma insuficiência epistemológica de sua época, necessários para a compreensão do feminino.

Feminilidade: Condição Universal ou Imposição Social?

Experiências tidas como universais, no tocante a definição do feminino, vêm sendo questionadas por diversas autoras feministas. Isso porque a experiência de ser mulher abarca não somente razões biológicas, mas, igualmente, questões psíquicas, sociais, históricas, políticas, econômicas e relacionais.

Scott (1995) salienta que teorias que tomem por base somente diferenças físicas são consideradas problemáticas para historiadores, uma vez que desconsideram qualquer construção sociocultural. A autora aponta, ainda, para a necessidade de compreensão da complexa relação existente entre a sociedade e a formação de estruturas psíquicas binárias e persistentes. As maneiras por meio das quais as sociedades representam o gênero, utilizando-o para articular regras de relações sociais, implicam na construção de sentido na experiência. Para que surja o sentido, segundo a autora, é necessário "tratar do sujeito individual tanto quanto da organização social" (Scott, 1995, p. 10), assim como das inter-relações existentes entre os mesmos, uma vez que ambos têm importância crucial para a compreensão do funcionamento do sistema de gênero. Em sua definição de gênero como "um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos" e como "uma forma primeira de significar as relações de poder" (Scott, 1995, p. 10), a autora indica que, nas relações de gênero, estaria presente o primeiro exercício de poder realizado sobre nossos corpos.

Contudo, diferentes autores, a exemplo de Silveira e Nardi (2014), salientam que o gênero não configura o único exercício de poder que nos constitui, apontando para a relevância de se pensar em outros marcadores sociais da diferença, como raça e classe. Scott (1995) aponta, igualmente, para a relevância de se pensar a partir de outros marcadores sociais da diferença, ao afirmar que a análise da tríade raça/classe/gênero implica levar em consideração que as desigualdades de poder estejam organizadas segundo, no mínimo, esses três eixos.

O território da diferença é considerado lugar de poder, desse modo, a compreensão das diferenças, assim como dos principais marcadores sociais destas/delas, mostra-se relevante para a compreensão da interação entre distintos sistemas de subordinação, compreendidos no contexto das relações de poder. Esses sistemas não são sobrepostos, de modo a haver algum tipo de apagamento de um pela presença do outro, mas permanecem em interação. Assim, a experiência de vida de uma mulher negra não pode ser compreendida completamente em termos de ser mulher ou ser negra, considerados de forma independente. Deve ser incluída a compreensão da interação entre essas duas condições, que se influenciam reciprocamente, conforme exemplificam Banuth e Santos (2016).

O movimento feminista dos anos 1970, focado no processo de democratização das relações intergênero, acabou por propagar uma determinada maneira de "ser mulher": a mulher ocidental, branca, heterossexual e de classe média, conforme observou Rodrigues (2013). Desse modo, a solidariedade intergênero, ou sororidade, estava pautada tão somente na identidade biológica, sem considerar as diferenças entre mulheres advindas de "distintos lugares sociais, experiências religiosas, pertença racial, orientação sexual, etc." (Rodrigues, 2013, p. 7).

Pensando em um feminismo branco e elitista, Bento (2002) traz o conceito de indignação narcísica. Ela argumenta que a necessidade de pertencimento e o forte investimento emocional em relação a um grupo, leva a um investimento da própria identidade nesse grupo, de modo que a imagem que se tem de si é a imagem do grupo. Os valores grupais são defendidos, e os que não pertencem são excluídos, de modo que a percepção de violação em relação ao outro só existe quando a violação afeta ao grupo de pertença.

Foi apenas com a inserção de mulheres negras no interior do movimento feminista que a existência de uma multiplicidade de identidades femininas foi acentuada, assim como uma vasta gama de possibilidades de ações políticas a elas vinculadas (Rodrigues, 2013). O feminismo ocidental fracassou ao tentar abordar o 'racismo genderizado', que é a opressão racial sofrida por mulheres negras tendo como base percepções racistas de papéis de gênero (Kilomba, 2019). A mulher negra fica dentro do que Grada Kilomba (2019) chama de terceiro espaço, às margens da raça e do gênero. Assim, raça e gênero são categorias inseparáveis, visto que se baseiam uma na outra.

Ao se falar sobre a mulher e sobre a feminilidade, não existe um sentido universal. A construção de feminilidade branca difere da mulher negra - por conta do racismo, fazendo com que mulheres negras sejam definidas a partir de um referencial de feminilidade branca.

A Feminilidade da Mulher Negra: Questões para a Psicanálise

Virgínia Leone Bicudo foi a primeira não-médica a ser reconhecida como psicanalista, tornando-se essencial para a construção e institucionalização da psicanálise no Brasil. Bicudo defende sua dissertação de mestrado em 1945, intitulada "Estudos de Atitudes de Pretos e Mulatos em São Paulo", que só foi publicada 65 anos depois, passados sete anos de sua morte, permanecendo desconhecida por várias gerações. É preciso indagar: o que levou Bicudo, socióloga, psicanalista e mulher negra, a permanecer por tanto tempo como uma ilustre desconhecida? (Silva, 2011).

É a partir deste questionamento que, antes de entender a questão da feminilidade da mulher negra, é preciso retomar como se dá a subjetivação e a estruturação psíquica do sujeito negro em uma sociedade marcada pelo colonialismo, a escravidão e o racismo. Para tanto recorre-se a mais uma psicanalista negra, Neusa Santos Souza, que é referência para o pensamento da psicologia e da psicanálise brasileira sobre as relações étnico-raciais.

Para Souza (1983), o negro nasce e sobrevive em uma estrutura social fundamentada na ideologia do branco como ideal a ser atingido e, na qual, "sob quaisquer nuances, em qualquer circunstância, branco é o modelo a ser escolhido" (p. 34).  É nesse sentido que a autora afirma que o "Ideal de Ego" do negro é branco, sendo a família como lugar primeiro de sua constituição. É na família que habitam as figuras ancestrais, dotadas de palavras que possuem estatuto de verdade, e que transmitem, como destino, seus projetos não realizados aos descendentes. Como lugar segundo, aparece tudo que é externo à família, no qual o Ideal de Ego "encontra ocasião de reforçar-se, assim adquirindo significado e eficácia de modelo ideal para o sujeito" (Souza, 1983, p. 36). O que primeiro se expressa como regra na construção do Ideal de Ego branco é a negação de qualquer "mancha negra", o que pode gerar uma violação do corpo físico e do corpo erógeno. Assim, a autora destaca que, na busca por atingir um Ideal inalcançável, o Ego e o Ideal de Ego vivem sob tensão. Essa experiência não é exclusiva do negro. A tensão entre essas instâncias existe em todo sujeito não-psicótico, e é marcada por uma insatisfação por não alcançar o ideal desejado.

Porém, o negro é marcado por uma grande defasagem entre o Ego atual e o Ideal de Ego. Isso se traduz em uma profunda insatisfação, apesar dos êxitos objetivos conquistados pelo sujeito. É nesse sentido que Souza (1983) afirma que "ser negro é ter que ser o mais" (p. 40). Porém, ainda sendo o mais ou o melhor, não é garantido ao sujeito negro o êxito. O Ideal de Ego, constituído a partir de ideias dominantes, é branco, e ao sujeito negro é impossível ser branco.

Segundo Souza (1983), pelo branco ser tomado como lugar de referência, o negro será definido e se autodefinirá como diferente, inferior e subalterno. Isso tem como resultado variadas tentativas de branqueamento, levando a um imenso sofrimento psíquico, pois a distância entre o ideal e o possível cria um fosso vivido com efeito de autodesvalorização, timidez, retraimento e ansiedade fóbica - "Ama-se a brancura como diz Fanon" (Souza, 1983, p. 43).

Seguindo esse pensamento, em sua tese de doutoramento, de 1998, Isildinha Baptista Nogueira questiona a elaboração que os sentidos do racismo abarcam no plano psíquico. Sem negar as singularidades psíquicas/subjetivas, a autora parte da ideia de que a realidade histórico-social do racismo impõe configurações psíquicas peculiares ao negro, por conta notadamente da existência de uma "interação dialética entre as representações sociais [...] produto das estruturas socioeconômicas, e as configurações que constituem os universos psíquicos dos indivíduos" (Nogueira, 1998, p. 16).

Com base em Freud, a autora constata que no plano inconsciente, quando da formação do Supereu, há uma introjeção de regras e normas sociais. Isso ao lado da introjeção defensiva, que ocorre por meio da identificação como mecanismo de defesa. Tal mecanismo explica o fenômeno da identificação com o agressor, onde a pessoa ameaçada, ao introjetar características dos objetos geradores de angústia, transforma-se em pessoa ameaçadora (Nogueira, 1998).

Assim, por meio da cultura, ocorre a introjeção do sistema de representações. Se tal sistema, por um lado, dota os sujeitos da sensação de segurança, por operar como uma estrutura valorativa, por outro, produz rejeitos, interditos e tabus. A distância social, dessa forma, fica estabelecida por meio da diferença, da separação entre "sagrado e profano", assim como entre "próximo e distante"(Nogueira, 1998).

Essa estrutura social, ao ser reproduzida no corpo humano, privilegia algumas características e atributos, em detrimento de outros. O corpo, contudo, não é afetado somente por seu caráter biológico, mas, igualmente, pela religião, pela família, classe, cultura, etc. Assim, "a aparência funciona como garantia ou não da integridade de uma pessoa'' (Nogueira, 1998, p. 43).

Partindo dos estudos de Lacan, Nogueira (1998) concebe o corpo como irrepresentável, de modo que busca diferenciar o corpo real, o corpo imaginário, e o corpo simbólico. O corpo real corresponde ao que é "impossível de ser capturado numa representação, o real do corpo permanece, fantasmaticamente, ligado às experiências arcaicas de despedaçamento, anteriores à fase do espelho" (Nogueira, 1998, p. 71). O estádio do espelho é um conceito cunhado por Jacques Lacan para designar o momento em que "a criança antecipa o domínio sobre sua unidade corporal através de uma identificação com a imagem do semelhante e da percepção de sua própria imagem num espelho" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 194), ou seja, momento em que a criança consegue integrar a imagem refletida no espelho consigo mesma. Para isso é preciso que um outro esteja atuando nesse processo investindo a criança de palavras e afeto.

A partir daí, a autora compreende a complexidade que o processo do espelho impõe para os negros, por produzir uma identificação com a brancura, sendo essa brancura exatamente aquilo que na imagem especular lhe escapa. Ao lado de considerar a "pele negra como significante, do ponto de vista do corpo simbólico, enquanto aquilo que representa a condição de negros para negros e não negros", buscando explorar os sentidos a que tal significante são associados (Nogueira, 1998, p. 71).

A partir de tais constatações, Nogueira (1998) levanta diferentes questionamentos acerca da formação psíquica de negros e negras, uma vez que o corpo branco permanece como ideal de sujeito, como uma identificação inatingível. Desse modo, o negro estaria relegado a um lugar no qual a continuidade narcísica estaria comprometida. O negro como sujeito desejante enfrentaria, igualmente, outro desafio, uma vez que seu equipamento para satisfação de desejos aparece, de saída, ao lado de um entrave representado pela cor. Assim, são associadas à condição de ser negro diversas condições psíquicas, a exemplo da despersonalização, vergonha de si, relação persecutória com o corpo, automutilação, ao lado de outras formas de autodestruição.

Em relação ao ser mulher e ser negra, todas as vivências sócio-históricas associadas ao homem negro, a exemplo da desumanização realizada pelo processo de escravização e da ocupação de um não-lugar em virtude de ser o outro do homem branco, são, igualmente, vivenciadas pelas mulheres negras. Nesse caso, contudo, ocorre, ao lado de tais vivências, àquelas relacionadas à condição de ser mulher. Desse modo, ser mulher negra implica habitar um corpo historicamente coisificado, como aponta Nogueira (1999), que em determinados momentos alimentou a perversidade sexual de seus senhores e, atualmente, segue alimentando fantasias de muitos senhores em relação a posse de outro ser, tendo em vista o recente histórico do processo de escravidão.

A mulher negra é historicamente desinvestida dos atributos considerados femininos, uma vez que suas vivências se distinguem radicalmente daquelas vivências de mulheres brancas. A condição de ser mulher, considerada por Freud e por muitas sociedades como inferior a condição de ser homem, somada a condição de negritude que, conforme exposto, coloca o sujeito numa posição que apresenta desafios em seu processo de constituição como sujeito, para além dos desafios enfrentados por indivíduos brancos, representa uma complexa questão a ser pensada não somente a partir da teoria psicanalítica, mas que requer a interação desta com outras disciplinas, a exemplo da sociologia e da antropologia, de modo a ampliar as possibilidades de compreensão desse fenômeno tão abrangente e atual, em nosso país.

Segundo Gonzalez (1984), filósofa e antropóloga brasileira, pioneira nos estudos sobre a cultura negra, o racismo no Brasil deve ser encarado como o indicativo de uma neurose cultural brasileira, que, somado ao sexismo, produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular. A partir disso, a autora propõe que é preciso olhar para a questão da mulher negra numa perspectiva que vai além da socioeconômica. E sim pensar a mulher negra pelas noções de mulata, doméstica e mãe preta a partir do suporte epistemológico da Psicanálise.

Para isso, a autora traz para a análise as noções de consciência e memória. A consciência sendo o lugar da alienação, do encobrimento, do esquecimento e até do saber. Enquanto a noção de memória é o não-saber que conhece, um lugar de inscrições, de emergência da verdade que se estrutura enquanto ficção. A consciência seria o discurso dominante e seus efeitos - "Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus" (Gonzalez, 1984, p. 226), que opera ocultando a memória. Porém, essa sempre aparece nas falhas do discurso da consciência (Gonzalez, 1984).

A partir disso, Gonzalez (1984) apresenta um dos nomes, um lugar, dado pela branquitude à mulher negra - "a mulata deusa do meu samba" (p. 228). Aquela que é estranhamente sedutora, exercendo assim uma violência simbólica sobre esta, pois, ao lado desse "endeusamento" fetichista, no cotidiano dessa mulher, ela é a empregada doméstica: "Se constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas" (Gonzalez, 1984, p. 228).

Gonzalez (1984) ainda retoma esses lugares como herdeiros do tempo da escravidão, em que a função da escrava no sistema produtivo era a de prestação de serviços, braçais e/ou sexuais, constatando que o engendramento da mulata e da doméstica se fez a partir da figura da "mucama", a escrava que era escolhida para auxiliar nos serviços domésticos e por vezes servia como ama-de-leite. Deste modo, a autora denuncia que as condições materiais de existência da mulher negra remetem a condicionamentos psicológicos atrelados à figura da mucama, que ora serve como objeto de satisfação sexual do branco ora serve como aquela que dá conta do trabalho doméstico, das demandas familiares e até mesmo dos cuidados dos filhos da família branca.

É a partir daí que a autora traz também a figura da "mãe preta", como aquela que é a mãe da cultura brasileira, enquanto a mulher branca, "a legítima esposa", é justamente a outra, que só serve para parir os filhos, já que quem exerce a função materna é a negra - "a mãe preta é a mãe", que ao exercer a função materna passou todos os valores que lhe diziam respeito para a criança brasileira (Gonzalez, 1984, p. 235).

Lorde (1980/2020) fala da mulher negra como uma "outsider", como aquela que fica de fora. Ainda que inserida nas famílias por meio dessa educação dispensada às crianças, mulheres negras também representam alguns medos da cultura ocidental, variando entre a "mãe negra" e a "prostituta negra", representando o corpo, a fertilidade e a sexualidade, temas temidos pela sociedade branca puritana (Kilomba, 2019). Esses medos são compreendidos ao se pensar que o racismo é formado a partir das projeções de tudo aquilo que é reprimido, temido, no sujeito branco para o negro, formando, assim, uma 'Outridade', nos termos de Kilomba (2019), colocando o negro como o diferente do branco. Nesse sentido, a mulher negra pode ser vista como sendo duplamente essa 'outra(o)': o outro do branco e a outra da mulher branca.

No século XIX, com uma ideologia da feminilidade que vai se tornando popular, a mulher, em geral, passa a ter a imagem de mães e donas de casa, fazendo com que, nesse contexto, as mulheres negras pareçam anomalias (Davis, 1981/2016). Isso porque essa exaltação da maternidade não se estendia às escravas negras, pois elas não eram vistas como mães, e sim como instrumentos de trabalho a serem explorados e como reprodutoras. A 'mulheridade' negra é vista como aquela que precisa se esforçar e cuidar das famílias brancas, sem vida própria e ficando às margens (Kilomba, 2019). Assim, por meio de esforços do feminismo negro dos anos 1960, passou a ser disseminada a imagem da mulher negra como trabalhadora e independente, numa tentativa de mostrar o oposto do que era propagado: a mulher negra como preguiçosa ou negligente.

As mulheres negras, apesar de serem mulheres de fato, não eram vistas como tais (Davis, 1981). Suas vivências no período de escravidão faziam com que agissem de forma oposta aos traços de feminilidade que eram disseminados pelas mulheres brancas. Eram mulheres que trabalhavam pesado, guiavam suas famílias, eram resistentes e exploradas. Mulheres que reagiam aos castigos e formavam rebeliões, dificilmente aceitando a escravidão como um destino natural, opostas à ideia de passividade. Assim, nota-se que o mito da mulher negra forte, como exposto por Kilomba (2019), não diz de algo natural, mas sim de experiências de sobrevivência através de explorações colonialistas. É neste sentido que a feminilidade da mulher negra se difere da construção de feminilidade branca, pois a mulher negra é historicamente desinvestida dos atributos considerados femininos, uma vez que sua história e constituição psíquica abrangem questões outras que não atingem as mulheres brancas.

Há um desamparo discursivo em relação a feminilidade da mulher negra, similar ao que é descrito por Rosa (2012) sobre a perda do laço identificatório do sujeito com seu semelhante, impedindo a identificação de sua subjetividade em uma rede discursiva de poder e saber e seu encontro no laço social. Braga e Rosa (2018) enfatizam esse fenômeno principalmente no que diz respeito a raça e pertencimento social, assim como notamos com a mulher negra, que é ora vista como a outra do branco, ora vista como a outra da mulher branca. Esse desamparo pode ser acolhido pela escuta psicanalítica atenta a tais questões, abrindo espaço para a construção de narrativas onde tais mulheres possam pensar em possibilidades e lugares sociais nos quais possam protagonizar as próprias histórias de vida, a despeito dos papéis sociais que são a elas destinados como herança um passado escravista, que desumanizou e acarretou uma imensa gama de sofrimentos psíquicos não experienciados por mulheres brancas.

Deste modo, a feminilidade não deve ser entendida em um sentido universal. Especialmente ao considerarmos que esse universo é branco e machista, torna-se impossível pensar a mulher negra somente em termos de ser mulher ou de ser negra, isoladamente. É preciso que a feminilidade seja vista sob um ponto de vista que leve em conta as singularidades das diferentes mulheres, escutadas as distintas vivências enquanto mulher e negra ou vivências enquanto mulher e branca.

 

Considerações Finais

Levando em consideração os aspectos apresentados no artigo, pode-se concluir que a teoria freudiana a respeito do feminino abre um caminho para o estudo da feminilidade como uma construção, isto é, como a menina torna-se mulher. Porém, não é possível ler Freud sem levar em conta seu contexto e época, em que muitas vezes afirma uma concepção naturalista ao equivaler a sexualidade feminina à maternidade e dando ao feminino uma concepção baseada na falta do pênis, isto é, a feminilidade como uma masculinidade frustrada. Também é possível perceber que Freud apresenta uma concepção de feminilidade universal, baseada no Édipo, sem levar em conta outros marcadores que estariam presentes nesta construção. A feminilidade em Freud é baseada na mulher branca, burguesa e mãe, o que reforça o argumento de Neusa Santos Souza, de que o Ideal de ego é branco e que tudo que se afasta desse ideal é considerado indiferente, inferior e subalterno.

Sabe-se que o padrão de feminilidade se transformou ao longo dos tempos, abrindo caminhos para novas formas de sexuação da mulher. Porém, os atributos considerados femininos distinguem-se radicalmente da experiência da mulher negra, pela presença do racismo e a história escravocrata, o que a coloca em uma posição que apresenta diversos desafios em seu processo de constituição enquanto sujeito e mulher. Assim, a mulher negra se encontra em local de 'Outridade', isto é, ela pode ser vista como sendo duplamente essa outra: a outra do(a) branco(a) e a outra da mulher branca. Variando sempre entre figuras da mulata, da doméstica e da mãe preta, ela representa, assim, o corpo e a sexualidade que é temida pela sociedade branca.

Seguindo as autoras utilizadas neste trabalho, foi possível perceber que a mulher negra encontra esses lugares sociais, como lugares herdeiros do tempo da escravidão, em que a função da escrava no sistema produtivo era a de prestação de serviços, ora braçais, ora sexuais. Deste modo, os traços de feminilidade que eram e são disseminados para as mulheres brancas, não correspondem à mulher negra. Assim, a feminilidade só pode ser compreendida a partir de distintos marcadores de diferença, como gênero, raça e classe, concomitantemente.

Desse modo, a pluralidade do universo feminino ganha destaque ao pensarmos na multiplicidade de feminilidades existentes, em detrimento de um único padrão feminino universal. Dentre tantas feminilidades, a feminilidade da mulher negra desponta como uma vertente que em muitos aspectos vai contra os ideais de um feminino branco, puro e casto. A mulher negra, ao representar esse outro da mulher branca, apresenta, igualmente, outras possibilidades de ser mulher que, mesmo sendo negadas por grande parcela da sociedade conservadora, seguem resistindo e existindo.

Assim, a interação entre raça e gênero, ainda não pensadas à época de Freud como categorias de análise, apresentam um repertório relevante para a compreensão da formação de feminilidades a partir dos diferentes contextos socioculturais aos quais mulheres possam pertencer. Pensar nas relações de poder como constitutivas dos sujeitos aponta, igualmente, para a relevância das vivências, experiências e relações desses sujeitos, assim como para a relação delas com a constituição de diferentes sexualidades e identidades de gênero.

Embora exista uma omissão ainda presente na teoria psicanalítica frente a essa problemática, nota-se que ela pode ser utilizada como método de investigação, escuta e tratamento dos sujeitos em sofrimento decorrente do racismo. Dessa forma, é preciso pensar em uma psicanálise contextualizada, que se proponha brasileira, levando em consideração os aspectos históricos e sociais para pensar a constituição dos sujeitos. Para isso, torna-se necessário evidenciar autoras e autores negras(os) para a construção dessa prática, através de reformulações de uma teoria eurocêntrica que ainda é utilizada como referência universal.

 

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Recebido em: 27/04/2022
Reformulado em: 10/08/2022
Aceito em: 22/08/2022

 

 

Notas

* Professora na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Psicóloga, especialização em Clínica Psicanalítica, especialista em Saúde da Mulher e Mestre em Psicologia pela UEL.
** Doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.  Pedagoga, Psicanalista, especialista em Saúde Coletiva e Saúde da Família.
*** Mestranda em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Psicóloga. Especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica.
**** Residente em Saúde Mental na UNIFESP. Psicóloga.

 

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