Estudos e Pesquisas em Psicologia
2022, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2022.71759
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PSICOLOGIA, POLÍTICA E SEXUALIDADES: CRISES, ANTAGONISMOS E AGÊNCIAS

 

O Conceito de Violência Atmosférica em Fanon: contribuições aos Estudos de Gênero

 

Fabrício Ricardo Lopes*, I; Maria Juracy Filgueiras Toneli**, I; João Manuel de Oliveira***, II
I Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, SC, Brasil
II Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE, Lisboa, Portugal
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este artigo objetiva colocar em evidência o debate acerca da categoria de violência em Fanon, com o objetivo de discutir seu uso também para os estudos de gênero. Faz-se isso a partir da análise de um conceito específico de sua obra e ainda pouco discutido: violência atmosférica. Diante de um número expressivo de produções acadêmicas sobre este autor no Brasil, este trabalho busca contribuir para o debate em torno deste conceito, na direção de percorrer os momentos em que ele é debatido pelo autor e também algumas das reações ao seu pensamento. É possível afirmar que Fanon apresenta uma epistemologia contracolonial da violência e que esse debate é um fio condutor em seus escritos. Como epistemologia, defende-se que o uso da categoria de violência em Fanon possa ser deslocado também ao campo dos estudos de gênero, de modo a compreender as diferentes formas que a violência se objetifica, bem como os contextos em que ela ocorre.

Palavras-chave: Frantz Fanon, violência atmosférica, gênero.


 

The Concept of Atmospheric Violence by Fanon: contributions to Gender Studies

 

ABSTRACT

The purpose of this work is to put in evidence the debate around the category of violence by Fanon, with the objective of discussing its need to gender studies, too. We've done it from the analysis of a specific concept of his literary work that it is still little discussed: atmospheric violence. Facing an expressive number of academic works about this author in Brazil, this one looks for contributing with the discussion over this concept, to go through the moments when the subject is debated by the own author and some reactions about his thought. It's possible to affirm that Fanon shows a countercolonial epistemology and that this debate is a connection on his writings. As epistemology we defend that the violence category using by Fanon can be also moved to the gender studies area, in a way to understand the different manners which the violence is objectified as well as those contexts where it occurs.

Keywords: Frantz Fanon, atmospheric violence, gender.


 

El Concepto de Violencia Atmosférica en Fanon: aportes a los Estudios de Género

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo mostrar el debate sobre la categoría de violencia en Fanon, con el objetivo de discutir también su uso para los estudios de género. Para ello partimos del análisis de un concepto específico de su obra que es aún poco discutido: la violencia atmosférica. Frente a un número llamativo de producciones académicas sobre este autor en Brasil, este trabajo busca contribuir al debate en torno a este concepto, recurriendo a los momentos en que tal concepto es debatido por el autor y también a algunas de las reacciones a su pensamiento. Es posible afirmar que Fanon desarrolla una epistemología contra colonial de la violencia y que este debate es un hilo conductor en sus escritos. Como epistemología, argumentamos que el uso de la categoría de violencia en Fanon también puede trasladarse al campo de los estudios de género, con el fin de comprender las diferentes formas en que ésta se materializa, así como los contextos en los que se produce.

Palabras clave: Frantz Fanon, violencia atmosférica, género.


 

 

Neste texto colocamos em evidência o debate acerca da categoria de violência em Fanon, com o objetivo de discutir seu uso também para os estudos de gênero. Fazemos isso a partir da análise de um conceito específico ainda pouco discutido: o conceito de violência atmosférica. Esse termo aparece, num primeiro momento, em seu texto ‘Os condenados da terra' e, mesmo que o autor não tenha empreendido esforços teóricos em conceituá-lo ou defini-lo, veremos que acompanha suas obras como uma espécie de fio condutor do seu pensamento. Para fazermos esse debate, colocamos as discussões de Fanon, a respeito da violência atmosférica em particular e o debate da violência de modo geral, em diálogo com seus comentadores, apresentando as reações ao seu pensamento.

Frantz Omar Fanon era francês, da ilha de Martinica, psiquiatra, filósofo e intelectual da diáspora africana. Segundo sua própria definição de um homem negro: "[...] o negro não é um homem. [...] o negro é um homem negro". (Fanon, 2008, p. 26). Parte dessa ideia para dizer que existe uma zona de não-ser, uma região árida, estéril, mas onde é possível renascer várias vidas. Para ele, "A maioria dos negros não desfruta [sequer] do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros infernos." (Fanon, 2008, p. 26). A identidade do negro é inventada pelas mãos dos colonos, "... se estabelece no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo." (Fanon, 2008, p. 26), ou seja, para este autor, a negritude é resultado de processos históricos, econômicos e psicológicos que culminam na invenção de uma suposta identidade.

No célebre texto Pele Negra, Máscaras Brancas, rejeitado pela banca francesa que o avaliou e que se tratava do trabalho de conclusão do seu curso de medicina na universidade de Lyon, na França em 1952, Fanon empreende uma análise sobre a condição do negro em períodos e contextos de disputa colonial. Trata-se, segundo o próprio autor, de uma análise "psicológica" na qual discute a relação dos processos de racialização com o advento e fortalecimento de um capitalismo selvagem e seus efeitos de produção subjetiva.

 Os condenados da Terra, por sua vez, é um texto que Fanon escreveu no leito de morte, e é, ao mesmo tempo, manifesto e produção teórica, análise psicológica e econômica. Tendo em vista as discussões presentes nesta obra, que passam, por exemplo, pelo marxismo e psicanálise, o texto desse autor é considerado a partir de múltiplas posições teóricas possíveis. Essa heterogeneidade de seu pensamento, acaba por posicioná-lo de formas diferentes a depender de qual ênfase e perspectivas de análise são adotadas para compreendê-lo. Isso parece depor muito mais a favor de sua importância do que de sua correspondência à intelectualidade colonial das universidades embranquecidas, que não permitem concomitâncias teóricas e analíticas.

É evidente que as contribuições de Fanon sobre a violência devem ser compreendidas avaliando o cenário específico e as intenções políticas que ele pretendia em seus trabalhos. Há em seu pensamento, no entanto, caminhos profícuos para a compreensão da violência na atualidade e, inclusive, para a compreensão de matrizes não só raciais, mas também de gênero, precisamente em função da forma como este autor concebe a categoria de violência.

Para oferecer essa discussão, dividimos este texto em duas partes. Na primeira delas localizamos o conceito em si. Buscamos evidenciar em que momento da obra de Fanon ele aparece, assim como as influências teóricas que recebeu e que contribuíram para discussões que ele apresenta. Em seguida, mostramos algumas reações ao seu pensamento, sobretudo no tocante às discussões relacionadas diretamente à temática da violência.

Sobre a Violência Atmosférica em Fanon

A análise que Fanon emprega é, precisamente, uma análise psicológica, como ele mesmo defende, o que não significa dizer que seja uma análise no sentido individual, mas antes empenhada em compreender os efeitos violentos dos processos de colonização em sua relação com a formação subjetiva dos sujeitos. (Fanon, 1968; 1980; 2008).

O autor aponta os mecanismos de sujeição do negro, e afirma que sua tomada de consciência, ou seja, sua desalienação, só seria possível a partir de uma tomada de consciência dessas estruturas de opressão. "Quero sinceramente levar meu irmão negro ou branco a sacudir energicamente o lamentável uniforme tecido durante séculos de incompreensão." (Fanon, 2008, p. 28).

Para compreendermos melhor o que defende Fanon (1968; 1980; 2008) quanto a sua ideia de violência, é preciso percorrer um certo caminho que o antecedeu. Aqui destacamos a influência da obra de Aimé Césaire, publicada originalmente em 1955, sobre os escritos fanonianos e, além dela, a amizade entre os dois. Césaire, assim como Fanon, era martinicano, oriundo dessa pequena colônia francesa localizada no Caribe, e foi também seu professor. Foi um grande incentivador de Fanon para que ele publicasse seu livro Pele Negra Máscaras Brancas, após o texto ter sido rejeitado pela banca que o avaliou.

Césaire (1978) foi pioneiro na denúncia sobre as violências causadas pelo colonialismo europeu. O autor cunha a equação: "... colonização = coisificação." Segundo ele o processo de colonização desciviliza não apenas colonizados, mas também colonizadores, que despertam "... para os instintos mais ocultos, para a cobiça, para a violência, para o ódio racial, para o relativismo moral ..." (Césaire, 1978, p. 17).

Um dos principais exemplos discutidos por Césaire (1978) é o do nazismo. A Segunda Guerra Mundial acabara recentemente - pensando a época de sua primeira edição - e ele questiona a surpresa europeia com a violência cometida durante o holocausto. Não se trata de um crime em si mesmo sendo questionado, o que é questionado nesse caso é "... o crime contra o homem branco e o ter aplicado à Europa ..." (Césaire, 1978, p. 18).

... ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente; que uma nação que coloniza, que uma civilização que justifica a colonização - portanto, a força - é já uma civilização doente, uma civilização moralmente ferida que, irresistivelmente, de consequência em consequência, de negação em negação, chama o seu Hitler, isto é, o seu castigo. (Césaire, 1978, p. 21)

No livro ‘Em defesa da Revolução Africana' (1980), publicado postumamente, ficam ainda mais evidentes as influências do pensamento de Césaire na vida e obra de Fanon. Como dito, ambos martinicanos, o primeiro empenhou seus esforços na compreensão do colonialismo, colocando em pauta a negritude do povo da ilha de Martinica. Fanon (1980) afirma que Césaire foi responsável pela primeira experiência metafísica que viveram os martinicanos. A saber, a obra de Césaire impactou a colônia na direção da autopercepção como povo negro, isto porque, esta colônia viveu a guerra alinhada aos interesses franceses em detrimento do povo árabe e africano.

Antes de 1939, o Antilhano voluntariamente alistado no exército colonial, analfabeto ou sabendo ler e escrever, servia numa unidade europeia, enquanto o Africano, à exceção dos originários dos cinco territórios, servia numa unidade indígena. O resultado, para o que queremos chamar a atenção é que, fosse qual fosse o domínio considerado, o Antilhano era superior ao Africano, de uma outra essência, assimilado ao metropolitano. (Fanon, 1980, p. 24)

Para Césaire (1978), embora o discurso do colonizador apareça revestido de uma ideia de progresso, definitivamente não é isso que ocorre nas colônias, esse progresso só ocorre nas metrópoles coloniais, alimentadas com a exploração das colônias. Para ele, enquanto o discurso colonialista fala de realizações, doenças curadas, ele entende que o que existe realmente são "... sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas." (Césaire, 1978, p. 25).

Fanon, por sua vez, compreende o mundo colonial a partir da mesma ideia de compartimentalização. Segundo ele, há uma divisão bastante evidente no mundo colonial entre a cidade do colono e a cidade do colonizado. "A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada ..." (Fanon, 1968, p. 28). O mesmo já não se pode dizer da cidade do colonizado, "... um lugar mal afamado, povoado por homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros e as casas umas sobre as outras" (Fanon, 1968, p. 29).

Embora sejam evidentes as aproximações entre esses autores, há um distanciamento importante no pensamento entre eles e que está assente, justamente, na ideia do que vem a ser o povo negro. Para Césaire, há algo eminentemente bom na ideia de tornar-se negro e discute isso como a negritude. Fanon percebe essa afirmação e ratifica que sim, perceber essa negritude foi um passo muito importante ao povo das Antilhas, uma experiência metafísica, segundo ele. Contudo, para Fanon (1980) a negritude não se associa diretamente a essa experiência de autoconhecimento, mas ela é, definitivamente, uma invenção do colonizador. O negro é inventado, construído pela exploração colonialista e supor a existência de um único povo negro é supor confluências entre eles que na verdade não existem. Em suas palavras, "Quando se diz povo negro, supõe-se sistematicamente que todos os negros estão de acordo sobre certas coisas; que existe entre eles um princípio de comunhão. A verdade é que não existe nada, a priori, que permita supor a existência de um povo negro." (Fanon, 1980, p. 22).

Nesse sentido, Fanon (1980) traz outra contribuição ao debate da negritude que Césaire (1978) discutiu pouco. Trata-se dessa oscilação de sentido sobre ser negro. Para Fanon (1980) é uma categoria variante que se veste de outras faces, sobretudo, de acordo com a realidade econômica de cada local. Além disso, Fanon (1980) reflete, portanto, sobre a imposição desse significante racial na realidade psíquica desses sujeitos negros inventados pela modernidade.

Ser um intelectual negro na Martinica, por exemplo, lhe confere certo prestígio, mas diante da realidade francesa além da colônia, essa estrutura racial inventada pelos europeus se objetifica de outras formas, ainda mais violentas.

Apesar da maior ou menor carga de melanina, existe um acordo tácito que permite a uns e a outros reconhecerem-se como médicos, comerciantes, operários. Um negro operário estará do lado do mulato operário contra o negro burguês. Temos aqui a prova de que as histórias raciais são apenas uma superestrutura, um manto, uma surda emanação ideológica que se despe de uma realidade econômica. (Fanon, p. 22, 1980)

Sendo assim, para Fanon (1980) o racismo é, necessariamente, cultural. Essa invenção do negro é parte central de um processo de racialização que, num primeiro momento, afirma a existência de grupos humanos sem cultura, para em seguida hierarquizá-los e, por fim, relativizá-los (Fanon, 1980).

Racismo e cultura teriam então uma ação recíproca. "Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascidos do encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo é, sem sombra de dúvida, um elemento cultural." (Fanon, 1980, p. 36). O racismo, então, como cultura, contrapõe as ideias de um racismo individual que se pretende justificar pela ordem genotípica e fenotípica. Para Fanon (1980) ele se desloca e assume seu papel como cultura e funda, em suas palavras "... uma certa forma de existir." (p. 36). Para além disso, é categórico ao afirmar: "Temos de procurar, ao nível da cultura, as consequências deste racismo." (p. 37). A criação desta certa forma de existir é, precisamente, a criação de uma atmosfera de violência que não surge a partir do racismo, mas é parte de sua própria invenção.

Violência atmosférica, portanto, é esse espectro, presente em todos os lugares na cena colonial e para além dela. Permanece fincada às estruturas imperialistas dominando a vida nacional. "Este homem objeto, sem meios de existir, sem razão de ser, é destruído no mais profundo da sua existência." (Fanon, 1980, p. 39) Funda-se, assim, essa atmosfera de violência que, em suas palavras: "... depois de ter impregnado a fase colonial, continua a dominar a vida nacional." (Fanon, 1968, p. 62).

Em seu texto Os condenados da terra (1968), o conceito de violência atmosférica aparece numa tentativa de Fanon de explicar o que é, então, essa violência presente no processo de colonização. Buscando responder quais as faces dessa violência, chega à conclusão de que mais do que imposta ao colonizado ela é, também, usada por ele como ferramenta de libertação. "Como vimos, [a violência] é a intuição que têm as massas de que sua libertação deve efetuar-se, e só pode efetuar-se, pela força." (Fanon, 1968, p. 56).

Fanon quando afirma a existência de uma atmosfera de violência, afirma também uma tomada de consciência do povo colonizado que na mesma violência que recebe, encontra meios para ressignificá-la e enfrentá-la.

O povo colonizado não está só. A despeito dos esforços do colonialismo, suas fronteiras permanecem permeáveis às novidades, aos ecos. Ele descobre que a violência é atmosférica [grifos nossos], escala aqui e ali, e aqui e ali derrota o regime colonial. Essa violência triunfante desempenha um papel não somente informador como também operativo para o colonizado. (Fanon, 1968, p. 53)

Essa violência, portanto, está presente nas mãos do colono, mas está também nas mãos dos colonizados. Em seu livro ‘Em defesa da Revolução Africana' (1980), reunião de escritos clínicos e jornalísticos, Fanon faz a mesma referência à ideia de violência como atmosférica, mas nomeando-a, precisamente, a partir da noção de racismo. Segundo ele, "... a atmosfera racista impregna todos os elementos da vida social." (Fanon, 1980, p. 45).

Em ambas as obras, o contexto dessa afirmativa é o mesmo: a possibilidade que tem o colonizado de agir, também, pela violência, contra o extermínio de suas culturas e sistemas de referência na cena das disputas coloniais. Percebemos com isso que Fanon (1968; 1980) toma a violência como produtora de sentidos e não apenas como coercitiva.

"O racismo não é, pois, uma constante do espírito humano." (Fanon, 1968, p. 45). Definitivamente, o que nos ensina Fanon é que o racismo se inscreve em sistemas determinados e que não se deve afirmar que alguns países são mais racistas do que outros por existirem sistemas de linchamentos, por exemplo, mas que ele se insere também nessas virtualidades, latências, dinâmicas, na vida psico-afetiva e econômica das pessoas (Fanon, 1968).

No entanto, diante da mesma violência, há a possibilidade de descoberta desses sistemas subjugados, um reencontro com a tradição, como afirma Fanon (1968).

Essa redescoberta, esta valorização absoluta de modalidade quase irreal, objetivamente indefensável, reveste uma importância subjetiva incomparável. Ao sair desses esponsais apaixonados, o autóctone terá decidido, com conhecimento de causa, lutar contra todas as formas de exploração e de alienação do homem. (Fanon, 1968, p. 47)

Fanon (1968; 1980; 2008) oferece, então, pistas de que a violência é uma das categorias fundamentais de sua obra. Isto porque sob a violência e o racismo como cultura, o psiquismo se funda numa dialética não apenas entre dominação e liberdade, mas como um emaranhado complexo de influências sobre os sujeitos racializados, através dos quais certa possibilidade de (re)existência se apresenta.

A violência é atmosférica, portanto, não só pelas várias possibilidades de seu uso, mas por como impacta os sujeitos e impregna todo o tecido social. As próprias cidades redimensionam - muitas vezes fundam - sua arquitetura em função de um processo violento. Segundo Fanon (1980) existem duas cidades distintas, uma para colonos outra para colonizados. Em suas palavras, a cidade do colono,

É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes do lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas. Os pés do colono nunca estão à mostra, salvo talvez no mar, mas nunca ninguém está bastante próximo deles. ... A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros." (Fanon, 1968, p. 28)

A cidade dos colonizados, por sua vez:

... se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade:' acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes. (Fanon, 1968, p. 29)

A compartimentalização do mundo é um efeito direto dessa atmosfera de violência colonial. Para Fanon (1968), neste mundo que se divide em compartimentos, habitam seres muitos distintos, espécies opostas. Em suas palavras "... o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça" (Fanon, 1968, p. 29).

Por este caminho também reside parte das análises psicológicas do autor. Diante da violência colonial e da compartimentalização do mundo, resta ao sujeito colonizado ter seus próprios desejos violentados e modificados. Diante, portanto, da insurgência de uma cidade do colono, funda-se a inveja do colonizado, bem como seu complexo de inferioridade que o faz desejar ser parte da estrutura que o oprime. "O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja. Sonhos de posse" (Fanon, 1968, p. 29).

O colonizado tem seus sistemas de referência completamente subsumidos aos do colono que destruiu modelos de economia, vestuário e modos de relações do colonizado. Este, por sua vez, diante do cenário violento, evoca, por um lado o desejo de se tornar parte da realidade e da cidade do colono, por outro um desejo imediato de também explodir o mundo colonial (Fanon, 1968, p. 30).

Esse efeito compartimentalizado da vida colonial, que cria condições diametralmente opostas de existência, não se mantém, também, sem violência. A estrutura policial se funda em nome da proteção aos valores do colono, que lança mão de seus poderes para limitar fisicamente esses espaços e o trânsito entre eles. Faz mais do que isso. Nas palavras de Fanon (1968)

Não basta ao colono limitar fisicamente, com o auxílio de sua polícia e de sua gendarmaria, o espaço do colonizado. ... o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal. A sociedade do colonizado não é apenas descrita como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor jamais habitaram, o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores, como também negação dos valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores. Nesse sentido, é o mal absoluto. (Fanon, 1968, p. 31)

Uma vez instalada a violência colonial que compartimentalizou e hierarquizou as existências, instaurou mão de obra para seguir limitando os espaços e cerceando os trânsitos, o colono não mais insiste em apenas coexistir. O colono não pretende, necessariamente, ficar no território colonizado. As suas estratégias de violência vão além da divisão de territórios. O colono busca alinhar-se às "elites" do colonizado a fim de fazer perpetuar seus comandos. "É com estas elites que se trava o conhecido diálogo sobre os valores". (Fanon, 1968, p. 33). Sobre isso Fanon (1968) afirmou que acontece uma espécie de combate de retaguarda, o que significa dizer que, para além da disputa pelo domínio de um território, acontece também uma disputa no terreno da cultura, dos valores e das técnicas dos sujeitos colonizados. (Fanon, 1968, p. 33). Para ele, participam nesse processo alguns intelectuais que se rendem ao diálogo com a burguesia colonialista. O autor, ao afirmar a existência de uma violência atmosférica afirma, portanto, um cenário tenso. A disputa que começa pelo território traz consigo um pacote normativo que extrapola essas intenções.

Reações ao Pensamento de Fanon

A categoria de violência no pensamento de Fanon foi algo bastante debatido entre alguns dos estudiosos de seu pensamento. Discutindo especificamente o seu texto Os Condenados da Terra, apresentamos aqui as análises feitas por Jean-Paul Sartre, Gayatri Chakravorty Spivak e Judith Butler. É nesta obra, como já mencionado, que o conceito de violência atmosférica surge pela primeira vez e as análises desses três debatedores incide precisamente sobre a ideia de violência da obra fanoniana.

Sartre escreve o prefácio original da obra e Spivak faz uma análise subsequente que contesta algumas afirmações do filósofo francês. No prefácio sartreano, fica imediatamente evidente certo conhecimento do pensamento de Fanon, uma vez que inicia o texto afirmando parte das discussões já feitas pelo martinicano. Nessa espécie de preâmbulo, Sartre menciona a insistência europeia em disputar certas consciências. "A elite europeia ... selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental ...". (Sartre, 1968, p. 3). Essa passagem guarda relações com o debate de Fanon em torno de uma certa disputa daquilo que ele nomeou como disputa de retaguarda, indicando que além da disputa pelo território em si, há uma disputa direta, também, no terreno da cultura e das consciências.

O filósofo francês indica, a seguir, que a suposta descolonização possa ter gerado efeitos diretos também no modo como os europeus enxergam a realidade nas colônias. Segundo ele "As bocas passaram a abrir-se sozinhas ... De início houve um espanto orgulhoso: Quê! Eles falam por eles mesmos"! (Sartre, 1968, p. 4), e, "com incrível paciência" surgiu uma nova geração de sujeitos nas colônias que passaram a explicar a incompatibilidade dos valores europeus em relação aos dos sujeitos colonizados (Sartre, 1968).

Em sua primeira citação direta à obra de Fanon (1968) menciona como este autor denuncia um avanço desordenado da Europa e como era grande a velocidade dessa expansão, o que estaria levando-a, de certa forma, a um abismo do qual os sujeitos colonizados buscam se afastar. Segundo Sartre, Fanon quis dizer que a Europa "... está atolada". (Sartre, 1968, p. 5) Em seguida afirma que esta é uma verdade não tão boa de se dizer e passa, aqui, a endereçar seu texto a certos leitores, ao dizer: "Uma verdade que não é boa de dizer mas da qual - não é mesmo, meus caros co-continentais? - estamos todos convencidos" (Sartre, 1968, p. 5).

Para Butler (2021), por exemplo, há algo imediatamente estranho e polêmico justamente no modo de endereçamento sobre o qual o texto de Sartre foi escrito. O filósofo aciona a ideia de irmãos europeus e co-continentais, para os quais ele teria endereçado seu texto e indica que Fanon, em sua obra, lida com os seus próprios irmãos. Em suas palavras: "Eis o que Fanon explica a seus irmãos da África, da Ásia, da América Latina: realizaremos todos em conjunto e por toda a parte o socialismo revolucionário ou seremos derrotados um a um por nossos tiranos". (Sartre, 1968, p. 7) Para Butler (2021, p. 224), ao fazer essa distinção, Sartre acaba por delinear duas zonas distintas de masculinidade quando imagina que Fanon fala com seus irmãos colonizados, enquanto ele aos seus irmãos europeus. Segundo ele:

É a seus irmãos que ele denuncia nossas artimanhas, para as quais não dispomos de sobressalentes. ... Europeus, abri este livro, entrai nele. Depois de alguns passos na noite, vereis estrangeiros reunidos ao pé do fogo, aproximai-vos, escutai: eles discutem a sorte que reservam às vossas feitorias, aos mercenários que as defendem. (Sartre, 1968, p. 9)

A dualidade exercida por Sartre, ao afirmar não apenas a quem endereça seu texto, mas também a quem Fanon endereça o seu, acaba por reforçar certo maniqueísmo próprio do sistema colonial, mas faz mais do que isso, produz uma narrativa sobre a obra do martinicano que é limitante considerando seus objetivos e reduz a obra a uma escrita entre iguais. Para Butler (2021, p. 225), tal endereçamento do prefaciador indica que: "... o texto de Fanon é uma conversa apresentada como conversa entre homens colonizados, e o prefácio de Sartre é menos uma conversa entre colonizadores do que um apelo ... para que a Europa leia como se ouvisse uma conversa que não está ali para ele".

Além do problema de endereçamento, é importante destacar a leitura que Sartre faz da violência presente na situação colonial. Em primeiro lugar assume que "A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los". (Sartre, 1968, p. 9). Essa definição não se afasta imediatamente das definições que Fanon apresenta de violência, no entanto, Sartre indica que há no processo de descolonização algo que escapa, precisamente, de uma contradição do colono e não da força do sujeito colonizado.

Segundo ele, domesticar um sujeito pode custar mais do que produz e que "Por esse motivo os colonos veem-se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho. ... Pobre colono: eis sua contradição posta a nu". (Sartre, 1968, p. 10) Para Sartre, essa é uma contradição fundante que culmina no enfraquecimento das forças colonizadoras, o que pode levar ao processo de descolonização, não sem antes ter permitido ao colono reinar por um tempo.

Em suas palavras: "Leiemos Fanon: descobriremos que, no tempo de sua impotência, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos colonizados." (Sartre, 1968, p. 12). Sartre teme a ideia de violência que Fanon apresenta, precisamente porque a interpretou de forma radical e não como efeito direto do processo de colonização. Ele conclui que uma das ideias centrais do autor é que os movimentos sociais se reiniciem e que o necessário é que "... os camponeses lancem sua burguesia ao mar" (Sartre, 1968, p.7). Diante de tal constatação Sartre pergunta: "Não teme ele [Fanon] que as potências coloniais tirem proveito de sua sinceridade? Não. Não teme nada". Para Sartre, a obra valida a violência por si mesma e essa categoria não possui um sentido a priori, é apenas um efeito, como afirma, desse rastro inconsciente e coletivo.

No prefácio ao documentário Concerning violence: nine scenes from the anti-imperialistic self-defense (Sobre a violência: nove cenas de autodefesa anti-imperialista), que recorre a imagens dos arquivos da África colonizada enquanto Lauryn Hill lê o primeiro capítulo de Condenados da Terra (Fanon, 1968), dirigido por Goran Hugo Olsson, Spivak faz a leitura de seu próprio prefácio que posteriormente publica. Sua leitura da obra de Fanon (1968) se afasta em vários pontos daquela realizada por Sartre (1968), sobretudo no tocante à discussão da violência.

Para Spivak (2013/2020), Fanon concebe a luta anticolonial sob a perspectiva de uma nova visão global de mundo e não necessariamente a partir de uma ideia restrita à formação de novos estados-nação dentro do ideal entre dominação e opressão da Europa. Numa análise bastante próxima, Butler (2021) em leitura de Homi Bhabha (2004) também defende que o pensamento de Fanon seja "... uma crítica incisiva dessas polaridades em nome de um futuro que introduzirá uma nova ordem das coisas" (Butler, 2021, p. 233).

A análise de Spivak (2013/2020) reforça o fato de que Fanon não era um argelino, embora lutasse pela independência daquele país. Para ela, obra e vida coexistem, nesse caso. Segundo a autora, uma importante mensagem deixada por Fanon está precisamente no fato dele não ser do país que ajudava, o que condiz com seu pensamento quando defende uma nova visão global do mundo e não apenas no sentido restrito de seus estados-nação. (Spivak, 2013/2020) "Trata-se de aprender a lição de que a mera libertação nacional sem a prática da liberdade não pode, de fato, proporcionar um mundo socialmente justo às pessoas muito pobres". (Spivak, 2013/2020, p. 210) e acrescenta: "Ele consagrou o seu tempo e as suas habilidades profissionais ao alívio daqueles que sofreram alguma violência" (Spivak, 2013/2020, p. 207).

Para a autora, todas as gerações deveriam ser formadas a partir de práticas de cuidado e de liberdade, tal como Fanon defendeu e exerceu durante sua breve vida. Por outro lado, é precisamente isso que a colonização impede (Spivak, 2013/2020, p. 208). Segundo ela, "Trata-se tão somente de que, dentro da lógica gananciosa de acumulação do capital, a colonização permite ao racismo ignorante já existente disseminar-se nos mercados em nome da civilização ou da globalização, como acontece hoje em dia" (Spivak, 2013/2020, p. 208-209).

Spivak (2013/2020) também é categórica ao afirmar que Sartre, ao interpretar o texto de Fanon, compreendeu:

... como sendo um aval à violência em si. Sartre não leu nas entrelinhas, onde Fanon insiste que a tragédia é precisamente que as pessoas muito pobres estavam reduzidas à violência, porque não há outra resposta possível diante de uma ausência absoluta de alternativas e de um exercício absoluto da violência legitimada pelos colonizadores. (Spivak, 2013/2020, p. 209)

Do mesmo modo, Butler (2021) também compreende que a visão sartriana trata a violência contrainsurgente "... como se fosse uma reação determinada ou mecanizada e não fosse precisamente [grifo da autora] a decisão determinada ou deliberada de um conjunto de sujeitos políticos engajados em um movimento político" (Butler, 2021, p. 236).

Spivak (2013/2020) reconhece o esforço de Fanon em empreender uma análise também psicológica da violência, entendendo que um dos maiores esforços dos colonizadores é justamente "... destruir a mente dos colonizados e forçá-los a aceitar a mera violência - sem permitir nenhuma prática de liberdade" (Spivak, 2013/2020, p. 210).

O que é comum nas análises apresentadas acima, de Sartre, Spivak e Butler é a certeza da influência hegeliana no pensamento de Fanon. Em sua obra (1968; 1980; 2008), muitas são as pistas da assimilação que Fanon faz em torno da dialética do senhor e escravo proposta por Hegel. O próprio conceito de alienação também advém dessa leitura de Fanon sobre a obra daquele filósofo.

Além destes, a ideia de reconhecimento, a partir da mesma analogia senhor e escravo, tem fundamental participação em suas ideias. Isto porque, na dialética hegeliana, o escravo escapa da situação de dominação quando se reconhece como consciência independente e não apenas escravo. Essa forma de pensar a relação dominado/dominador tem peso na obra de Fanon, que avança em alguns sentidos, ao afirmar que, precisamente os efeitos psíquicos do racismo interferem nessa possibilidade de superação em função de um processo de embranquecimento do negro, que adquire certo complexo de inferioridade em relação ao branco (Fanon, 2008).

Para Hegel (1988), "A consciência de si é em si e para si quando e por que é em si e para si para outra; quer dizer, só é como algo reconhecido" (Hegel, 1988, p. 126). Significa dizer que a consciência de si, só existe em essência, a partir do contato com outra consciência de si, aqui reside a dialética hegeliana. Para que haja consciência de si, é necessária outra consciência de si, que esteja fora de si (Hegel, 1988).

O que ocorre nesse processo é precisamente a necessidade que uma das consciências tem de suprassumir esse seu ser Outro e fora de si. "... primeiro deve proceder a suprassumir a outra essência independente, para assim vir a ser a certeza de si como essência; segundo, deve proceder a suprassumir a si mesma, pois ela mesma é esse Outro" (Hegel, 1988, p. 126).

No entanto, embora essa definição de consciência de si pareça contar um processo simples e direto, para Hegel (1988) esse tipo de reconhecimento de si só é possível no encontro dos movimentos que cada Outro faz na direção de si e do Outro. Segundo o autor, esse não é o encontro com um objeto, como quer o desejo, é o encontro com Outro independente, "... portanto nada pode fazer para si, se o objeto não fizer em si o mesmo que ela nele faz. O movimento é assim, pura e simplesmente, o duplo movimento das duas consciências de si" (Hegel, 1988, p. 128). Agir de forma unilateral, para Hegel, é um agir inútil.

O duplo movimento a que Hegel (1988) se refere, implica justamente no processo de reconhecimento. Uma vez que só existe consciência de si a partir de uma consciência fora e suprassumida de si, e para além disso, num movimento recíproco, o reconhecimento só acontece a partir de um certo processo de mediação. "Eles se reconhecem como reconhecendo-se reciprocamente" (Hegel, 1988, p. 128).

Esse encontro, portanto, insere não apenas uma outra consciência de si, independente, mas a certeza de sua existência implica também na negação da própria consciência de si. Perceber o Outro, nesse caso, é perceber, também, a própria finitude enquanto vida. "Surgindo assim imediatamente, os indivíduos são um para o outro, à maneira de objetos comuns, figuras independentes, consciências imersas no ser da vida" (Hegel, 1988, p. 129). O encontro, simplesmente, não indica uma abstração absoluta da consciência de si. Para o autor, reside numa certa definição de agir duplicado o sentido da apresentação de uma consciência de si a outra.

... o agir do Outro e o agir por meio de si mesmo. Enquanto agir do Outro, cada um tende, pois, à morte do Outro. Mas aí está também presente o segundo agir, o agir por meio de si mesmo, pois aquele agir do Outro inclui o arriscar a própria vida. Portanto, a relação das duas consciências de si é determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida ou morte. (Hegel, 1988, p. 129)

Nesse sentido ocorre a dissolução de certa unidade da consciência. O meio termo do caminho se desmorona e ficam os extremos opostos. "Os dois momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência independente para a qual o ser para si é a essência; outra, a consciência dependente para qual a essência é a vida, ou o ser para o Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo" (Hegel, 1988, p. 130).

Embora Fanon (2008) dialogue com Hegel (1988), ele se afasta em alguns sentidos de sua tese sobre o reconhecimento. Para Hegel (1988) como dito, a consciência de si só é possível mediante outra consciência de si num processo de evidente reciprocidade. Já segundo Fanon (2008), em sua obra, "... o senhor difere essencialmente daquele descrito por Hegel. Em Hegel há a reciprocidade, aqui o senhor despreza a consciência do escravo" (Hegel, 2008, p. 183).

Faustino (2020) por exemplo, entende que reside aí a grande originalidade do argumento fanoniano, sobretudo nessa relação de seu pensamento com a dialética hegeliana. Para este autor, Fanon partilha do pressuposto hegeliano de que as identidades se fundam a partir de uma relação recíproca com sua alteridade, mas também entende que "A interdição colonial do reconhecimento é um decaimento da dominação política para o status de negação da humanidade" (Faustino, 2020, p. 459).

Por fim, Spivak (2013/2020) apresenta uma provocação importante ao final de seu texto. Segundo ela é preciso apresentar "... uma palavra sobre gênero". Para a autora, as guerras em torno da libertação nacional, de certo modo, colocam as mulheres em uma suposta posição de igualdade, no entanto, mesmo na chamada era pós-colonial, as mulheres seguem submetidas às estruturas em torno de certa ordem do gênero. Para ela "... o aval ao estupro persiste não apenas na guerra, mas também, independentemente se uma nação está em desenvolvimento ou é desenvolvida ..." (Spivak, 2013/2020, p. 211). E conclui: "O colonizador e o colonizado estão unidos na violência de gênero" (Spivak, 2013/2020, p. 211).

Se por um lado Spivak (2013/2020) expõe certo limite da obra fanoniana, precisamente seu limite em interpretar as questões relacionadas ao gênero, por outro percebe-se que isso demonstra, também, que estamos tratando de uma obra que empregou seus esforços na compreensão da violência como método e não suas objetificações propriamente ditas, muito embora a sua obra possua um recorte racial bastante explícito.

Em sua defesa sobre entender a violência como vetor das práticas de dominação, mas também de liberdade, Fanon expõe os efeitos de uma violência, para ele, atmosférica, que redimensionam territórios inteiros, modificam a arquitetura das cidades e também disputam as consciências dos colonizados em torno de uma suposta hegemonia de pensamento europeu, buscando, inclusive, formar supostas identidades. Sob esta definição, a ideia de violência atmosférica parece contribuir para os estudos de gênero, indicando que a violência, na verdade, citando Butler (2021, p. 237) se movimenta.

Enquanto para Spivak (2013/2020) Fanon insiste na ideia de que a violência do colonizado existe em função da ausência total de alternativas para romper a dominação, é preciso aprofundar essa questão e questionar: nas mãos do colonizado, a violência continua sendo a mesma do colonizador?

Retornando à análise de Sartre (1968) a resposta seria sim, pois a violência do colonizado é, segundo ele, um reflexo que vem do fundo de um espelho ao encontro dos colonizadores. Para Butler (2021) a resposta seria justamente a contrária: essa é uma falsa simetria. Nesse sentido, acrescentamos que a violência do colonizado possui certa dimensão de agência, o que permite colocar em diálogo esse conceito de violência atmosférica de Fanon com o conceito de agência conforme defendido por Mahmood (2019). Para a autora, "... agência não é simplesmente um sinônimo de resistência a relações de dominação, mas também uma capacidade para a ação facultada por relações de subordinação específicas." (Mahmood, 2019, p. 135).

Sob esta definição, as discussões sobre agência conforme feitas por Mahmood (2019), parecem confluir ao que propôs Fanon sobre a violência. Nesse sentido, é necessário pensar a agência e, no caso deste texto, também a violência como "... uma capacidade para a ação criada e propiciada por relações concretas de subordinação historicamente configuradas." (Mahmood, 2019, p. 139).

Mahmood (2019) afirma que o processo de subjetivação do sujeito implica que "... os mesmos processos e condições que garantem a subordinação de um sujeito são também os meios através dos quais ele se transforma numa identidade e agência autoconsciente." (Mahmood, 2019, p. 149).

Tomando por base esta definição entendemos que Mahmood (2019) pode contribuir na compreensão do debate fanoniano sobre a violência. Segundo a autora, "As normas não são apenas consolidadas e/ou subvertidas, mas também performadas, habitadas e experienciadas de várias maneiras." (Mahmood, 2019, p. 152). Pensando por este ângulo, a violência, tal como a norma, não se objetifica de maneira homogênea, e o trânsito entre e com ela, pode ser refeito com base nos próprios termos que a fundam. A violência atmosférica em Fanon permite compreender essas matrizes de dominação para além da perspectiva de subordinação, mas também como agência e parte do processo de redescoberta do sujeito colonizado frente às opressões que o produzem.

Nesse sentido, o conceito de violência atmosférica torna-se fundamental para a compreensão da obra de Fanon, pois a partir dele é possível perceber um fio condutor em seus escritos. Significa dizer que Fanon emprega uma certa epistemologia contracolonial da violência, que foge da ideia binária entre dominação e liberdade, e que fornece pistas para compreender os efeitos da violência colonial na formação dos sujeitos e também a sua dimensão criativa.

Como mostrou Lugones (2014), a colonização incide, também, sobre os corpos e desejos dos sujeitos colonizados, imprime marcas na forma como lidamos com categorias de identidade e como elegemos a categoria de humanidade apenas para alguns grupos e excluímos desse campo inteligível outros.

Nesse sentido, defendemos que o conceito de violência atmosférica pode ser empregado a análises diversas, entre elas as questões relacionadas ao gênero. Sabemos, contudo, que outras formas de transportar as discussões de Fanon, para este campo, também são possíveis, como por via dos feminismos negros. Neste trabalho, porém, fazemos o exercício de trabalhar com o repertório fanoniano para esse diálogo.

 

Considerações Finais

Revisitar a obra de Fanon percorrendo seus sentidos acerca da violência, em especial a respeito de seu conceito de violência atmosférica, nos parece importante para mostrar, por um lado, a atualidade de seu pensamento e por outro a sua possibilidade de trânsito para outros campos não debatidos profundamente pelo autor, como o campo dos estudos de gênero.

Podemos afirmar que a chave da violência atmosférica no pensamento de Fanon é não apenas um dos fios condutores de sua escrita, como pode ser utilizado na compreensão de outros processos em que certa violência se apresenta. Assim, defendemos seu uso para o campo, também, das violências de gênero.

Nesse artigo optamos por apresentar o conceito de violência atmosférica conforme debatido por Fanon, mas colocando essa categoria em evidência também a partir da reação ao seu pensamento. É precisamente a partir da ideia de violência que várias análises foram tecidas em resposta aos textos do martinicano, indicando que se trata de uma temática importante em sua obra que merece destaque. Indicamos a seguir alguns pontos sobre violência atmosférica.

A violência, para Fanon, é atmosférica na medida em que opera não somente do colonizador para o colonizado, como também no caminho contrário. Ela é atmosférica, também, pois seus efeitos extrapolam as disputas em torno dos territórios no interior de uma luta pela libertação nacional. A violência, para Fanon, disputa também consciências e mais do que isso, as fundam.

A violência é atmosférica na medida em que reestrutura cidades, arquiteturas, circunscreve espaços possíveis para determinados grupos circularem e outros não. Ou seja, pela violência toda uma realidade é criada e não apenas uma realidade concreta, como no caso da compartimentalização dos espaços, mas também uma realidade psíquica, tal como defendida pelo autor.

Sendo a violência, atmosférica, ela é também uma prática possível pelos sujeitos colonizados. No fim das contas a violência é uma performance, como toda norma é, para citar Mahmood (2019). Sendo assim, se movimenta e se objetifica de maneiras muito distintas a depender do contexto.

Como performance, para uns é opressiva, para outros criativa, resistente. O que nos oferece Fanon, portanto, é uma certa espistemologia contracolonial de violência que não incide somente no uso da violência, puramente, na resistência armada ao colonizador, mas violência como categoria fundamental, em suas palavras, "na retomada de consciência", do povo colonizado.

Como episteme, a categoria de violência atmosférica serve aos estudos de gênero para compreender, por exemplo, as cenas emblemáticas de violência sob as quais as populações trans estão submetidas no Brasil e de como ressignificar a ideia de violência, a partir das propostas de Fanon, é um convite a pensar, também, sobre as práticas de resistência a ela.

Embora o conceito possa ser transportado para pensar outras temáticas, ele também apresenta certos limites, na medida em que o termo atmosférico possa ser usado para acionar certa homogeneidade, algo presente em todos os lugares. O que defendemos aqui é submetermos o próprio uso do conceito com vistas a entender que, mesmo num processo atmosférico, a violência também é uma prática com muitos sentidos.

 

Referências

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Butler, J. (2021). Os sentidos do sujeito (C. Rodrigues, Trad.). Autêntica.

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Fanon, F. (1980). Em defesa da revolução africana. Livraria Sá da Costa.

Fanon, F. (2008). Pele negras, máscaras brancas. Universidade Federal da Bahia.

Faustino, D. M. (2015). Por que Fanon, Por que agora? Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil [Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. Repositório institucional UFSCar. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/7123

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Faustino, D. M. (2020). A disputa em torno de Frantz Fanon: A teoria e a política dos fanonismos contemporâneos. Intermeios.

Hegel, G. W. F. (1988). A fenomenologia do Espírito. Vozes.

Lugones, M. (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, 22(3), 935-952. https://doi.org/10.1590/%25x

Mahmood, S. (2019). Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: Algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, 23(1), 135-175. https://doi.org/10.4000/etnografica.6431

Mbembe, A. N. (2016). Necropolítica. Arte e Ensaios, (32), 122-151. https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169

Sartre, J. P. (1968). Prefácio. In F. Fanon, Os condenados da terra (pp. 1-22). Civilização Brasileira.

Spivak, G. (2020). "Preface to Concerning Violence" (C. J. Domingues Trad.). Revista África e Africanidades, 13(35), 1-12. https://docplayer.com.br/195375534-Fanon-violencia-genero-traducao-de-preface-to-concerning-violence-spivak.html. (Obra original publicada em 2013)

 

 

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Recebido em: 15/05/2022
Reformulado em: 11/08/2022
Aceito em: 29/08/2022

 

 

Notas

* Psicólogo (a), graduado (a) pela Universidade Federal de Rondônia, doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina.
** Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professora Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
*** Professor Associado convidado no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.

 

Financiamento: O primeiro autor está contemplado com bolsa de Demanda Social da CAPES.

 

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