Estudos e Pesquisas em Psicologia
2022, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2022.71645
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PSICOLOGIA, POLÍTICA E SEXUALIDADES: CRISES, ANTAGONISMOS E AGÊNCIAS

 

A Sexologia e Seus Especialistas na Mídia Durante a Pandemia da Covid-19

 

Sara Caumo Guerra*; Rafaela Vasconcelos Freitas**; Paula Sandrine Machado***
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

No escopo de uma pesquisa de abrangência nacional sobre práticas sexuais e gestão de risco, nos chamou atenção, na procura por materiais de mídia relacionando sexo e sexualidades com a pandemia de Covid-19, a presença majoritária de um grupo de "especialistas" ligados ao campo heterogêneo da Sexologia, tais como psicólogas, psiquiatras, urologistas, sexólogas, educadoras sexuais, associadas/os aos infectologistas. Por meio da pesquisa de palavras-chave, via buscador do Google, inventariamos um número de 44 matérias oriundas de sites de grupos jornalísticos grandes e alternativos, bem como de clínicas, associações profissionais e blogs particulares, publicadas entre março de 2020 a julho de 2021. Dessas, concentramos nossa análise em 30 matérias correspondentes àquelas veiculadas pelos grupos jornalísticos grandes e alternativos. A leitura realizada foi inspirada pela problemática da produção de objetos via práticas enunciativas e materiais, mediante as quais associações entre elementos diversos, perguntas e respostas explicitadas vão estabilizando não só os sentidos, mas os próprios objetos em disputa, no caso aqui observado, as práticas sexuais. Ao final de nosso estudo, percebeu-se que o sexo e a sexualidade produzidos pelos "especialistas" através dos canais de mídia tendem à generalização dos corpos e a descontextualização das práticas.

Palavras-chave: covid-19, práticas sexuais, sexologia, mídia.


 

Sexology and Its Media Experts During the Covid-19 Pandemic

 

ABSTRACT

In the scope of a nationwide survey on sexual practices and risk management, what caught our attention, in the search for media materials relating sex and sexualities to the Covid-19 pandemic, the majority presence of a group of "specialists" linked to the heterogeneous field of Sexology, such as psychologists, psychiatrists, urologists, sexologists, sex educators, associated with infectologists. Through keyword research, via google search, we inventoried a number of 44 articles from large and alternative journalistic groups websites, as well as clinics, professional associations and private blogs, published between March 2020 and July 2021. From these, we focused our analysis on 30 articles corresponding to those published by large and alternative journalistic groups. The reading performed was inspired by the problematic of the production of objects via enunciative and material practices, through which associations between different elements, questions and explicit answers, stabilize not only the senses, but the objects in dispute, in the case observed here, sexual practices. At the end of our study, it was noticed that the sex and sexuality produced by the "specialists" through the media channels tends to the generalization of bodies and the decontextualization of practices.

Keywords: covid-19, sexual practices, sexology, media.


 

Sexología y Sus Expertos en Medios Durante la Pandemia del Covid-19

 

RESUMEN

En el ámbito de una encuesta a nivel nacional sobre prácticas sexuales y gestión de riesgos, lo que llamó nuestra atención, en la búsqueda de materiales mediáticos que relacionan el sexo con la pandemia de la Covid-19, destaca la presencia mayoritaria de un grupo de especialistas vinculados al heterogéneo campo de la Sexología, como psicólogos, psiquiatras, urólogos, sexólogos, y otra. A través de una investigación de palabras clave, a través de una búsqueda en Google, inventariamos una serie de 44 artículos de sitios web de grupos periodísticos grandes y alternativos, así como clínicas, asociaciones profesionales y blogs privados, publicados entre marzo de 2020 y julio de 2021. Enfocamos nuestro análisis en 30 artículos publicados por grandes y alternativos grupos periodísticos. La lectura realizada se inspiró en el problema de la producción de objetos a través de prácticas enunciativas y materiales, a través de las cuales asociaciones entre diferentes elementos, preguntas y respuestas explícitas, estabilizan no sólo los sentidos, sino los objetos en disputa, en el caso, prácticas sexuales. Al final de nuestro estudio, se percibió que el sexo y la sexualidad producidos por los especialistas tienden a la generalización de los cuerpos ya la descontextualización de las prácticas.

Palabras clave: covid-19, prácticas sexuales, sexología, médios.


 

 

Em 28 de março de 2020, o site Tab.Uol publicou uma reportagem, assinada pela repórter Marie Declercq, na qual se discorre sobre a situação das pessoas em trabalho informal no contexto da recém proclamada pandemia de Covid-19 em âmbito nacional 1, entre as quais se encontravam as trabalhadoras sexuais. Data de 11 de março daquele ano a primeira declaração de suspensão de atividades públicas no Brasil, no Distrito Federal, quando passam a ser difundidas as medidas de distanciamento físico como principais estratégias de prevenção à infecção pelo vírus Sars-CoV-2 (Redação G1, 2020). Naquele cenário, com bares e pequenos hotéis fechados, além da restrição de permanecer nas ruas, muitas mulheres se viram sem condições de trabalhar, especialmente aquelas mais velhas, que desconheciam as tecnologias necessárias para mudarem seus métodos de trabalho. Sem qualquer plano de auxílio estatal até então, viveram a emergência sanitária não só denunciando o descaso com as trabalhadoras e os trabalhadores informais, mas também explicitando os questionamentos de como estabelecer práticas sexuais que supunham contato presencial próximo com clientes, respeitando os protocolos sanitários vigentes.

Passados 16 meses do início da pandemia, em 20 de julho de 2021, a BBC News Brasil publicou uma matéria a respeito do fechamento de uma casa de swing, localizada num "casarão discreto" no bairro da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. O jornalista Ricardo Senra, autor da matéria, depois de informar sobre as 300 pessoas que estavam no local no momento da abordagem policial, trouxe a perspectiva de algumas pessoas frequentadoras acerca da exposição ao Sars-Cov-2 em locais fechados e cheios, as quais manifestaram críticas ao número excessivo de frequentadores, à falta de ventilação no ambiente e à não exigência de vacina. Problematizaram, no entanto, a interdição do espaço, tendo em vista que as "baladas" estariam acontecendo e, do mesmo modo, expunham as pessoas ao contato direto, face a face. No interior do "casarão discreto", pondera uma frequentadora: é "... o tempo todo abaixando máscara, tirando máscara, máscara cai, pega a máscara de volta… A vontade, o gostar, o desejo e o prazer - essas coisas falam mais alto para mim do que o distanciamento" (Senra, 2021).

Essas cenas, reportadas a nós pela mídia escrita, remetem a dois momentos distintos da pandemia de Covid-19 no Brasil. Entre a trabalhadora sexual, completamente desassistida por qualquer política pública no período inicial de isolamento, e a casa de swing lotada na cidade do Rio de Janeiro, muitas linhas foram escritas e publicadas para falar sobre as possibilidades de fazermos ou não sexo durante a pandemia. O presente artigo dedica-se, justamente, a seguir alguns dos atores envolvidos nesse percurso. Ao acompanhar essa rede, foi notável a participação de cientistas, pesquisadoras e pesquisadores, bem como de profissionais liberais no debate público sobre o sexo. Estudando 30 artigos jornalísticos voltados à temática e publicados nos sites das grandes redes de notícias e em sites alternativos, percebemos a constante presença de pessoas caracterizadas pelas e pelos jornalistas como "especialistas", a maioria delas vinculadas aos seguintes campos de saber: a sexologia, a infectologia e a virologia. Aqui, o termo "especialista" aparece entre aspas por ser considerado êmico, ou seja, próprio do universo da mídia, que raramente distingue o profissional liberal do pesquisador e pesquisadora.

Vale destacar que tal configuração se dá em um cenário de gestão governamental da pandemia bastante criticado nacional e internacionalmente, tendo sido instaurada, inclusive, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) pelo Congresso Nacional para investigar se o governo não teria cometido crime de responsabilidade na condução do país durante a pandemia do SARS-COV-2 (Chaib & Machado, 2021). Soma-se a isso um contexto político ultraconservador no que concerne aos debates em torno do gênero e da sexualidade, inscritos em um discurso oficial baseado na essencialização e utilitarização das identidades, corporalidades e desejos sexuais (Junqueira, & Prado, 2020).

O objetivo do presente artigo, portanto, é analisar materiais de mídia disponíveis na internet sobre práticas sexuais, no espaço de tempo de 18 meses, enfocando a coordenação de "especialistas" na produção ou certificação dos enunciados e prescrições relativas àquelas tidas como desejáveis e mais seguras, ou às embargadas (mesmo que não explicitamente) num contexto pandêmico de incertezas. Interessa-nos investigar as hegemonias constituídas, as alternâncias das fontes e os reordenamentos nas alianças entre políticas sexuais, especialidades científicas e biossegurança em eventos críticos.

Este estudo integra uma pesquisa nacional e multidisciplinar mais ampla, sobre sexualidades e gestão de risco no contexto da pandemia de COVID-19, iniciada em 2020, que tem se perguntado sobre as práticas sexuais das e dos brasileiros no atual contexto pandêmico. A pesquisa 2 SEXVID- Práticas Sexuais e Gestão de Riscos no Contexto da Pandemia de COVID-19 está organizada metodologicamente em três fases: 1) pré-campo; 2) aplicação de questionários fechados; 3) realização de entrevistas em profundidade. Entre as preocupações inscritas nas ações estabelecidas na fase do pré-campo, estava a busca por informações a respeito da relação entre práticas sexuais e Covid-19 produzidas por organizações estatais, entidades profissionais e pela mídia - esta última, objeto da presente análise. Afinal, que tipo de material circula na internet? Quais as características dos conteúdos encontrados? Que formas estão sendo mobilizadas para apresentar esses conteúdos? Quem são os seus e as suas produtoras?

 

Metodologia

Para a presente análise, foi realizada uma busca por matérias jornalísticas escritas em português e disponíveis na internet. Dentre as matérias listadas entre março de 2020 e julho de 2021, nos debruçamos sobre aquelas divulgadas pelos sites das grandes redes de notícias (UOL; G1; El País; VEJA; BBC News Brasil etc.) e por sites alternativos (Canaltech; Guia Gay BH; Blog Vindi; Vice; Tecmundo etc.). Matérias produzidas no âmbito das universidades e de instituições voltadas ao estudo das sexualidades não foram analisadas por entendermos que exigiria outro tipo de abordagem, capaz de relacionar a organização dessas instituições e programas específicos de pesquisa com as dinâmicas de divulgação. Também não nos debruçamos sobre o material divulgado em sites/blogs de clínicas privadas e profissionais liberais, além daquelas que envolvem o oferecimento de serviços pagos, por razões similares às apresentadas acima.

Utilizamos as palavras-chave "sexo e Covid" e "sexualidade e Covid" para realizar o levantamento através da barra de pesquisa do navegador Google. Alcançamos um total de 44 títulos, incluídos os materiais de universidades, sociedades profissionais, clínicas privadas e blogs individuais, dos quais selecionamos 30 artigos que estão listados, por ordem cronológica, nas Tabela 1 e Tabela 2, referentes exclusivamente aos materiais publicados pelos sites das grandes redes de notícias e pelos sites de jornalismo e informação considerados alternativos em relação a essas redes.

A proposta de leitura dos artigos teve como orientação os próprios objetivos da análise, quais sejam: acompanhar o conteúdo, a forma de apresentação do mesmo e as pessoas - autoras e/ou profissionais e pesquisadores - atuantes na produção dos modos de pensar, fazer e estabilizar as perguntas e as respostas referentes às práticas sexuais e aspectos das sexualidades no decurso dos primeiros 18 meses da pandemia de Covid-19. Em relação aos conteúdos, notamos a recorrência e/ou a diferença dos elementos materiais-semióticos mobilizados, ou seja, corpos, objetos, seres vivos, emoções, substâncias. Quanto à forma de organização dos textos, observamos a estrutura narrativa - introdução, desenvolvimento, fechamento. Sobre autoras, autores, profissionais, pesquisadores e pesquisadoras, analisamos a formação designada aos "especialistas" nas matérias e a relação desta com a informação trazida e o argumento desenvolvido no artigo. Os artigos selecionados, em sua grande maioria, contam com imagens 3 e links para outras matérias relacionadas e material audiovisual.

 

 

 

Em Cena, os "Especialistas": Algumas Notas sobre o Campo da Sexologia e os Vírus

John H. Gagnon, reconhecido pesquisador da área da sexualidade, foi descrito por Gayle Rubin (1984/2017, p. 89) como um dos sucessores do projeto de Alfred Kinsey nos Estados Unidos. Implicado, portanto, com a pesquisa empírica, considerada fundamental por Rubin para a produção de uma "teoria radical do sexo". Em 1992, Gagnon se debruçou sobre a relação entre pesquisadores e epidemias. No ensaio intitulado "Epidemias e pesquisadores: a Aids e a prática dos estudos sociais", o autor reconhece, logo de saída, o envolvimento da ciência com a "política de realidade", que ficou patente no contexto de enfrentamento das epidemias de HIV/Aids 4. "Identificada como o principal órgão fornecedor de soluções para as epidemias" (Gagnon, 1992/2006, p. 34), a ciência, materializada por pesquisadores e pesquisadoras das áreas biomédicas e humanas, acabou se organizando entre aqueles que responderiam sobre o vírus e os que responderiam com estratégias de comportamento para enfrentar o vírus, cujas "coalizões" foram mudando desde o início dos estudos sobre HIV/Aids até a segunda década de existência dessas epidemias.

A história das epidemias e pandemias é também aquela das práticas de pesquisa e intervenção que são mobilizadas durante a sua duração - seja ela curta, média ou longa. Fleck (2010) discute que, assim como um fato científico é produzido e não descoberto, o ambiente em que ocorre tal produção não é livre de disputas de poder (por posições, recursos, certezas), como também nos ensinou Foucault (1988). Mais ainda, pesquisas e pesquisadores se fazem mutuamente através de práticas que se realizam em circunstâncias específicas, mobilizando muito mais do que pessoas, mas também animais, instrumentos, substâncias, técnicas, maneiras já existentes de pensar. Epidemias, como sugere Gagnon (1992/2006), refletindo sobre o contexto do HIV/Aids, movimentam as práticas de pesquisa e intervenção entre as incertezas, entre a urgência de oferecer alguma resposta à sociedade e, especialmente, para as pessoas que sofrem e morrem por conta de um vírus. O autor afirma que a implementação de medidas, necessariamente baseadas, no início das epidemias, em "conhecimentos insuficientes", acabam tendo um efeito mais amplo nas relações sociais do que aquele relativo à própria epidemia (Gagnon, 1992/2006, p. 344-345).

Pandemias e especialistas, por conseguinte, não são estranhos uns aos outros, sobretudo em sociedades que atribuem um lugar importante para a ciência na produção de conhecimento e, mais ainda, quando tal produção opera através da especialização de seus quadros no enfrentamento de questões cada vez mais específicas. Ao mesmo tempo, fenômenos emergentes, ainda que invoquem expertises acumuladas, diante das incertezas de todo tipo advindas de um cenário diferente (de modo quase radical), não deixam de envolver entes habitualmente atuantes nas práticas científicas: humanos, não humanos, coisas, tecnologias, ambientes e políticas eficazes ou intencionalmente ineficazes. Frente a tais incertezas, os especialistas costumam ser os primeiros convocados a emitir algum parecer público, através dos meios de comunicação de massa, o que não significa facilidade, justamente por conta do que ainda se ignora. E, como sabemos, a pesquisa empírica não funciona no tempo da necessidade, mas se faz nesse tempo, dentro da necessidade ou com ela.

No entanto, precisamos ter em mente que, quando nos referimos a "especialistas" convidados a expor sua expertise através da mídia, estamos invocando um cenário bem particular: aquele em que uma ou um jornalista, com objetivo de conferir maior legitimidade à sua matéria e articular seus argumentos, contata pessoas com uma dada formação profissional tida como suficiente para o assunto que pretendem tematizar ou fazem uso de materiais publicados por governos ou órgãos internacionais. O que quer dizer que, da pesquisa à sua divulgação através de outro profissional, passa-se pela edição desse profissional, a qual inicia antes mesmo do texto começar a ser escrito, com a escolha das pessoas "especialistas". Isso é particularmente relevante, uma vez que nos permite perceber a força de determinadas formações científicas e profissionais no próprio debate público. No caso da intersecção sexo e pandemia, infectologistas e virologistas foram os primeiros convocados a falar, sendo seguidos por profissionais do campo heterogêneo da sexologia, dentre os quais estão sexólogas/os, educadoras/es sexuais, psicólogas/os, psiquiatras e urologistas, numa articulação de formas de descrever e interpretar o sexo com o vírus que nos faz propor, junto ao entendimento de Annemarie Mol sobre o efeito das práticas coordenadas em relação aos objetos, que o sexo no contexto pandêmico "é mais que um e menos que muitos" (Quintais, 2007-2018, p. 193).

Antes de passarmos para as próximas seções, sublinhamos que o campo da sexologia tem uma história de mais de um século, que não recuperaremos neste trabalho uma vez que já tem sido amplamente analisada (Russo, 2013, 2011; Rohden & Russo, 2011; Bèji, 1987). É suficiente mencionarmos a configuração atual do campo no Brasil, que foi tomando forma do final dos anos 1990 até os dias de hoje. As linhas gerais que organizam a sexologia no país, em termos de objetos de interesse e formas de atuação, não se distanciam da conformação do campo nos Estados Unidos, demonstrando a influência deste sobre o Brasil. Mais especificamente, a terceira fase da sexologia 5 (Russo et al., 2009), nas terras tropicais, diferenciou-se pela significativa influência psicanalítica e, em alguma medida alternativa, reichiana, num primeiro movimento mobilizado por grupos situados no Rio de Janeiro. Esses compuseram uma cooperação entre ginecologistas e psicólogos, representados pela ainda atuante Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana. Um segundo movimento, paralelo ao primeiro, encabeçado pelos urologistas, foi organizado em torno da Associação Brasileira para o Estudo das Inadequações Sexuais. Para Russo et al. (2009), ginecologistas e psicólogos estariam mais próximos à sexologia clínica voltada para as relações e comportamentos; enquanto os urologistas estariam, na sua maioria, constituindo a chamada medicina sexual, implicada majoritariamente com a funcionalidade dos órgãos sexuais. Os primeiros associam, grosso modo, mais grupos de interesse, congregando pessoas de diversas áreas, como a educação sexual, em seus congressos e formações. Ao contrário dos urologistas, que exigem o diploma médico como suficiente e, de certa forma, excludente, para a entrada na discussão sexológica proposta por eles. Nas participações das/dos profissionais nos artigos jornalísticos, como veremos, as separações entre uns e outros não é rígida, bem ao contrário, objetos e argumentos se cruzam e entrecruzam.

"Especialistas" e Práticas Sexuais em Tempos de Covid-19: Enredos e Temporalidades Pandêmicas na Mídia

Das 30 matérias analisadas, 21 faziam referência direta a algum/a "especialista" ou a estudo e instituição profissional, ou seja, somente nove do total não contavam com uma referência direta aos designados "especialistas", entre as quais se encontra, em março de 2020 (Tabela 1, item 4), a discussão de profissionais do sexo sobre a dificuldade de exercer seu trabalho no contexto pandêmico inicial, o que se desdobrou na exigência de inclusão da categoria na vacinação prioritária, em abril de 2021 (Tabela 2, item 5). Encontramos também muitas reportagens sobre o aumento da demanda por pornografia, com apresentação de dados e avaliação dos próprios diretores de plataformas de acesso, demanda que, sugerimos, acabou por impactar algumas preocupações expressas por "especialistas".

Urologistas, psicólogos, psiquiatras, infectologistas, sexólogas, terapeuta sexual, educadora sexual, médico sanitarista, médico virologista e enfermeira foram as categorias profissionais de "especialistas" encontradas nos artigos listados. Quando os mesmos não aparecem nominalmente, dando legitimidade para a organização discursiva proposta pela pessoa jornalista ou outra modalidade de pessoa produtora de conteúdo para a rede, estudos são invocados a fim de produzir o argumento. Em muitas matérias, observamos a articulação entre "especialistas" operada pela edição dos jornalistas, como é o caso da associação, nos textos, entre: infectologistas e virologistas, educadora sexual e infectologista, infectologista e sexóloga, cineasta pornógrafa e psiquiatra, sexóloga e psicóloga, médica, enfermeira e psicóloga, urologista e pesquisadora estrangeira, terapeuta sexual, pesquisador do Instituto Kinsey e psicóloga social estrangeira, entre outras combinações. Essas articulações quase sempre operam um jogo de certo e errado, o qual não produz necessariamente o contraditório, mas performa a diversidade de abordagens, resultando na estabilização de uma prescrição ou, em outras palavras, de um modo de encarar o sexo.

 Conjuntamente, ao atentarmos para as publicações sob o pano de fundo de uma pandemia, não podemos negligenciar a linha do tempo. Como é impossível separar as interações entre humanos e vírus, tanto no sentido físico, quando ambos se encontram organicamente, quanto no sentido das pesquisas com os vírus nos humanos, em fluidos humanos ou nas próprias células, torna-se difícil dimensionar como cada elemento interfere na existência de outro dentro de um contexto político e social específico. Mesmo assim, é possível afirmar que o tempo tem uma importância fundamental para o acúmulo de evidências sobre essas interações, e mais: permite que os efeitos do encontro entre vírus e humanos, dentro de ambientes dados, sejam registrados e estudados e novas versões sobre os fatos sejam produzidas ou acrescentadas, impactando as performances sexuais. Nos artigos, tal dinâmica pode ser exemplificada pela sequência do aparecimento dos profissionais e pesquisadores nos textos e pela mudança dos objetos de atenção colocados em destaque.

Os infectologistas 6 foram os primeiros especialistas convocados, uma vez que a preocupação com as maneiras de transmissão do Sars-Cov-2 se sobressaía como a grande e insistente pergunta quando a ordem geral, de meados de março de 2020 até meados de abril do mesmo ano, concentrava-se em evitar o crescimento exponencial das infecções - pulmonar e outras que ainda não estavam documentadas. Assim como a transmissão estava e permaneceu em pauta, influenciando inclusive o trabalho de outros "especialistas", o tema da imunidade bem cedo apareceu relacionado ao sexo, chegando-se a cogitá-lo como um imunizador natural (Tabela 1, itens: 3 - 21/03/2020; 5 - 31/03/2020; 8 - 02/05/20). Prontamente os infectologistas negaram uma relação de causa e efeito, afirmando que, no máximo, o sexo proporcionaria uma sensação de bem-estar, podendo melhorar o humor e o sono, porém não o suficiente para ser tomado como medida profilática.

Outro debate particularmente relevante envolvendo os infectologistas se deu em torno da possibilidade ou não de transmissão do coronavírus através do sêmen, fluidos vaginais e fezes. A associação propriamente dita entre as relações sexuais e a transmissão, ainda envolta por indefinições, foi inaugurada laboratorialmente pela constatação da presença do vírus no sêmen, observada em pesquisa realizada na China, em janeiro e fevereiro de 2020, através da coleta e análise de amostras seminais de 38 homens hospitalizados, via RT-PCR. De acordo com Carvalho e Lucchesi (2021), os pesquisadores concluíram que:

Apesar da pequena amostragem, era provável que a contaminação ocorresse também por meio do sêmen. Indicaram a necessidade de maiores estudos com esse material, abrangendo também a temporalidade do contágio mesmo após a recuperação sintomática. De antemão, orientaram o uso da camisinha e a abstinência. Essas orientações foram replicadas em outras pesquisas, por guias estatais e de organizações da sociedade civil, por médicos e profissionais da saúde, pela imprensa, e produzem verdades sobre as práticas sexuais e relacionais de acordo com cálculos de risco atualizados. (Carvalho & Lucchesi, 2021, p. 92)

Como apontado pelas autoras, o estudo chinês foi de fato mencionado em matérias estudadas por nós (Tabela 1, itens: 10 - 01/06/2020; 11 - 03/06/2020). Contudo, em nenhuma delas estavam citados os infectologistas. Esses lidaram com a problemática da possibilidade de transmissão via sêmen a partir da dúvida e da necessidade de realização de mais pesquisas. A indicação de que a proteína ACE2, presente no sêmen, e não nos fluidos vaginais, seria necessária à infecção das células pelo Sars-Cov-2 foi um bom indício para não encerrarem a questão. Já em relação aos fluidos vaginais, mesmo tendo evidências de que não apresentam as proteínas adequadas ao vírus, não foram excluídos do campo das dúvidas (Tabela 1, ítem 6 - 14/04/20). A transmissão por meio das fezes foi trabalhada como certeza, orientando o uso de preservativos para o sexo anal (Tabela 1, item 8 - 02/05/2020), também como forma de prevenção contra HIV/AIDS e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis. O que se repetiu para o caso do sexo oral, observado tanto pela transmissão do coronavírus se dar através das gotículas e da saliva, quanto pela referência à transmissão da sífilis e do HIV por essa prática. A analogia entre preservativos e máscaras apareceu em matéria do site português Ímpar, publicada em 14 de janeiro de 2021, quando de um segundo "lockdown" em Portugal, e no escopo da discussão sobre prevenção e dificuldades de acesso a diagnósticos e tratamentos durante a pandemia, entre os quais estavam os relacionados às práticas sexuais.

Seguindo a linha do tempo, e tendo sempre a transmissão do Sars-Cov-2 como horizonte a ser evitado, as matérias jornalísticas começaram a perseguir o que se deveria ou não fazer em relação ao sexo uma vez que notícias sobre o aumento da procura por camgirls (Tabela 1, item 2 - 20/03/2020) e o aumento do acesso aos sites pornográficos (Tabela 1, item 1 - 21/03/2020) já davam indícios do que estava acontecendo durante o isolamento ou do que estava sendo motivado por ele. Tomando o distanciamento como quase indiscutível e praticamente incontornável, grande parte das matérias acionaram sexólogas, psicólogas, terapeutas sexuais e psiquiatras para oferecerem aos leitores orientações "seguras". Essas orientações tomaram como base o casal, vivendo na mesma casa e em quarentena, que emerge como o grande protagonista das matérias; depois das primeiras publicações focadas na pornografia, afirmação da masturbação, nos brinquedos sexuais e nas modalidades de sexo pela internet.

Em março de 2020 (Tabela 1, item 6 - 14/04/2020), educadoras e terapeutas sexuais, assim como sexólogas, aparecem nos artigos selecionados orientando o isolamento e o uso das tecnologias digitais para as práticas sexuais. Rapidamente, no entanto, (Tabela 1, item 8 - 02/05/2020) as sexólogas introduzem a discussão sobre a empolgação inicial dos casais em quarentena, seguida pelo tédio da convivência frente a extensão do isolamento. Os "solitários" são mencionados como aqueles que mais sofrem diante da pandemia e são aconselhados a usarem as redes a fim de se prepararem para os encontros que virão depois das restrições aos contatos cara a cara.

Em junho de 2020, o sexo virtual torna-se tema de atenção quando, ao mesmo tempo, se introduz a discussão sobre os riscos de manter relações sexuais presenciais durante a quarentena e as estratégias de redução dos mesmos. Uma das sexólogas citadas no artigo publicado pelo El País, em 19 de junho de 2020 (Tabela 1, item 13), argumenta que a pandemia criou uma "brecha social" entre os casais que moram juntos, os casais que não moram juntos e as pessoas solteiras, sendo que os primeiros poderiam gozar com maior liberdade da sua sexualidade, enquanto que os outros deveriam adotar "medidas diferentes" de "segurança", tais como: uso das máscaras durante a penetração e jogos de "maior proximidade" corporal; lavar as mãos; tomar banho antes das relações; não beijar sob hipótese nenhuma. Nesse artigo, em particular, se reforça a ideia das "barreiras de contenção", numa terminologia que nos faz lembrar ações contra catástrofes. Contudo, diante desse quadro, a jornalista sinaliza que onde "nós" vemos as limitações em relação ao sexo como problemas, as sexólogas anteveem "novas oportunidades", entre as quais estariam: a possibilidade de realizar ao vivo, no futuro, o que se experienciou virtualmente; o uso de massageadores, penas, chicotes, brinquedos com controle remoto; masturbar-se diante da parceira e/ou parceiro; adotar posições de costas, como o cachorrinho, prática inscrita no chamado "coronasutra". No entanto, ainda de acordo com a "especialista", em caso de dúvidas quanto à saúde da/do parceira/o, sua condição de grupo de risco e caso a pessoa com quem se pretende transar não pertença "ao seu ambiente habitual", o mais correto seria não manter relação sexual.

Em julho de 2020, uma psiquiatra e sexóloga brasileira endossa a proibição dos beijos, a necessidade do uso de máscaras e preservativos, a orientação de evitar o sexo "cara a cara" e o sexo anal, assinalando, na sua intervenção, que o sexo na pandemia ficou "bastante complicado" (Tabela 1, item 15 - 27/07/2020). Nesse mesmo mês, o El País (Tabela 1, item 16) publica mais uma reportagem sobre sexo enfocando a questão do flerte e do "pular de galho em galho", citando uma sexóloga clínica espanhola para quem os rituais do primeiro encontro deveriam ser transformados. Ao invés do sexo, olhares e gestos. Medidas de higiene são recomendadas, bem como a masturbação à distância no mesmo ambiente e o voyeurismo. Aparece a primeira referência à vacina como crucial para o sexo "seguro".

Depois de 10 meses, é publicada uma matéria pelo G1 Globo, em 12 de maio de 2021 (Tabela 2, item 8), discutindo o "sexo híbrido". A psiquiatra e sexóloga, citada no artigo, argumenta que se, no início da pandemia, houve proximidade entre os casais, naquele momento isso já havia mudado, uma vez que para ela era notável uma "piora do sexo para a maioria". Acrescenta que o maior uso da tecnologia teve impacto negativo especialmente entre os jovens em idade de iniciação sexual, pois estaria produzindo uma fenda entre as expectativas virtuais (em relação ao corpo do outro) e a realidade. A marca da mudança nas relações sexuais é também afirmada por uma terapeuta sexual que relaciona o tempo convivendo na mesma casa com o estresse e a deserotização (Tabela 2, item 9 - 21/05/2021).

A abordagem psicológica apareceu massivamente associada à relação entre isolamento, depressão e perda da libido, sendo esta última tomada como constitutiva do desejo sexual. Na formulação do sexo como necessidade básica, a importância dada à libido reverbera a influência da "Declaração dos Direitos Sexuais", mais de uma vez acionada no sentido de uma espécie de defesa do sexo ou, mais propriamente, de se falar sobre ele. Para dar conta do isolamento, muitas/os psicólogas/os sugeriram o uso da "criatividade", a fim de testar coisas novas, estando essas prioritariamente relacionadas ao sexo virtual ou experimentação de outras modalidades sexuais, tais quais o uso de brinquedos sexuais, do sexting ou mesmo a introdução a práticas do universo do BDSM (acrônimo, em inglês, para a expressão Bondage e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadomasoquismo).

Alguns psiquiatras "especialistas" apareceram nas matérias remetendo à preocupação com os impactos do isolamento na saúde mental e seus desdobramentos tanto em relação à libido quanto ao desenvolvimento de transtornos sexuais, com foco especialmente nos jovens. Para uma psiquiatra, também nomeada em algumas reportagens como sexóloga, ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e vinculada ao núcleo de pesquisa ProSex da Universidade de São Paulo/USP, o "vício" em pornografia, potencialmente provocado pelo aumento de acessos a esse tipo de produto, aparece como objeto de interesse de pesquisa, antecipando a existência de tratamento que, nesse caso, poderia ser buscado no próprio ProSex/USP, numa indicação de que o uso de fármacos seria recomendável para aqueles com "transtorno de hipersexualidade". Tal profissional aparece em três das matérias por nós analisadas e ainda em matérias diretamente veiculadas por sites de universidade e associações profissionais. O tom de sua argumentação, diferente da grande maioria das e dos profissionais que buscavam maneiras de viabilizar o sexo mesmo insistindo na restrição do corpo a corpo, vinha no sentido de interpor "perigos" a práticas estimuladas pela interação com a pornografia e/ou brinquedos no contexto da masturbação. Ela se (nos) pergunta, em matéria de 13 de maio de 2020 (Tabela 1, item 9) - que conta com algumas considerações de uma cineasta sueca de filmes eróticos, sobre as variações nos desejos sexuais e a sobrevivência de práticas tais quais camming ou sexting: o que será das pessoas depois da comodidade do sexo virtual, solo, sem ter que se dar ao desejo do outro?

Já a primeira referência aos urologistas apareceu em matéria de 1º de junho de 2020 (Tabela 1, item 10), em que esses "especialistas" reproduzem as observações dos infectologistas em relação à transmissão do vírus via gotículas respiratórias, acrescentando ao argumento a afirmação sobre a insuficiência de dados comprobatórios a respeito da possibilidade de transmissão da Covid-19 através do sêmen, mesmo tomando o estudo chinês, já citado aqui, como material de análise. Nesse sentido, não seguem a proposição da abstinência, indicando a masturbação, o uso de brinquedos sexuais, o sexo virtual e o sexo entre casais morando no mesmo domicilio e sem contato com o exterior, como alternativas aos beijos e à proximidade, vistos como "riscos". Lembram, também, da necessidade do uso de preservativos contra "doenças já conhecidas" e a gravidez indesejada. Em matéria de 09 de dezembro de 2020 (Tabela 1, item 19), voltam-se para os efeitos de "longa duração" causados pela contaminação pelo coronavírus, entre os quais estariam os problemas vasculares, capazes de afetar a atividade erétil ou provocar anorgasmia (dificuldade ou dor para chegar ao orgasmo). Ainda nesse artigo, o urologista consultado, vinculado ao Hospital Beneficiência Portuguesa de São Paulo, explora a relação entre "possibilidades teóricas" e a necessidade de mais pesquisas, evitando conclusões categóricas.

Ainda no que se refere aos urologistas, em 06 de maio de 2021 (Tabela 2, item 6), a discussão sobre os efeitos de longa duração na performance sexual da infecção pelo coronavírus apareceu por meio da exposição de resultados de pesquisas que relacionaram as variáveis ansiedade e frequência sexual na Inglaterra, infecção pelo coronavírus com manifestação de disfunção erétil na Itália, e compararam homens solteiros e casados quanto à melhora ou piora da atividade sexual. Quatro dias depois, em 10 de maio de 2021 (Tabela 2, ítem 7), em artigo publicado no site Folha.Uol, um urologista e andrologista menciona mais estudos sobre a disfunção sexual masculina, estabelecendo uma relação entre aspectos psíquicos e "saúde sexual", chamando a atenção para o uso de antidepressivos como inibidores da função orgástica e ejaculatória, o que poderia ocasionar o aumento das frustrações e levar ao isolamento social. O mesmo profissional, que referencia a já citada Declaração dos Direitos Sexuais, comenta sobre a pornografia entre os jovens e manifesta preocupação com o que chamou de "desumanização dos atos" nas relações sexuais e afetivas.

Informação, Pedagogias e Políticas Sexuais - o Vírus Indecente e os Humanos mais ou menos Desejáveis

O objetivo principal de praticamente todos os artigos jornalísticos pesquisados foi divulgar informações sobre a possibilidade ou não de transmissão do coronavírus através das relações sexuais, dissolver dúvidas sobre o assunto e prescrever formas mais ou menos seguras de estabelecer práticas sexuais sem ou com o mínimo possível de riscos de transmissão/infecção pelo Sars-Cov-2, o que implicou em promover  maneiras de fazer sexo mantendo a distância de "2 metros" recomendada pela OMS para todas as situações envolvendo contato social. Essa linha foi uma constante de março de 2020 a julho de 2021, embora tenhamos notado, como era de se esperar, movimentos próprios de emergência de assuntos relacionados aos diferentes entendimentos sobre a ação do vírus no decorrer do tempo pandêmico, considerando não somente um trabalho de reconhecimento do mesmo, como de sua própria variação e de seus efeitos na interação com os organismos dos humanos.

As e os jornalistas raramente citavam somente um "especialista" durante a produção narrativa. Se, como analisamos na seção anterior, há particularidades entre as áreas de atuação profissional e de pesquisa próprias aos seus meios de produção de conhecimento e socialidade, também notamos que houve objetos de preocupação que perpassaram os diversos "especialistas" em suas modalidades de enunciação. Observamos um núcleo duro que se repetiu: 1) a preferência pelo distanciamento entre os corpos; 2) a definição de um campo de relação sexual seguro - com destaque àquele do casal fixo, vivendo no mesmo espaço e em quarentena conjunta; 3) a abertura para práticas não usualmente afirmadas (especialmente a masturbação) como necessárias à saúde e ao bem-estar da pessoa humana; 4) a preocupação diante da performance sexual (envolvendo frequência, satisfação, disfunções); 5) paradoxal individualização da responsabilização sobre a contaminação, tendo em vista a ênfase na relação entre casais estáveis. A relação sexual segura se converteu, nesses artigos jornalísticos, em um campo de relações entre humanos moralmente desejáveis e aceitáveis, tentando se proteger do vírus, e de outros humanos, não tão aceitáveis e desejáveis, que potencialmente o carregassem.

O discurso da biossegurança começa a "ganhar forma nos anos 1970" (Segata & Mastrangelo, 2020, p. 8), apontando para a relação das pessoas entre si e com os vírus. Discussões que começaram tendo como cenário problemas de laboratório, agora dão forma às maneiras através das quais os governos e as corporações criam ou não fronteiras entre pessoas, bichos e vírus. Mais do que isso, inspiram argumentos para a vigilância entre indivíduos. Uma ordem material-semiótica, no sentido de Haraway (2009), vai sendo montada entre reportagens, gráficos de contaminação, contagens epidemiológicas, marcações de posição em ambientes fechados, informes oficiais, pesquisas laboratoriais, comunicadores de redes sociais, formulação de protocolos, indicação de práticas de higienização. Um universo de operações, sentidos e coisas vai sendo associado para impedir que o vírus se aproxime e se estabeleça. Sendo assim, a primeira medida foi afastar os corpos e fechá-los. Nesse mesmo sentido, o apelo à confiança, já presente no contexto do HIV/Aids, se colocou de forma preponderante nas falas dos especialistas em relação a atitudes que, associadas ao SARS-COV-2, deveriam anteceder a própria possibilidade dos encontros sexuais.

No que se refere ao material analisado, observa-se, ainda, que as ponderações e orientações, mobilizadas pelas e pelos profissionais e pesquisadoras/es, explicitaram a sua vinculação com "objetos" reconhecidos pela medicina sexual, por um lado, e pela sexologia clínica, por outro. Nunca é demais afirmar que os artigos jornalísticos, sejam eles reportagens, entrevistas, matérias informativas, fazem mais do que "transferir" ou "divulgar" um conhecimento; uma vez que, ao coordenarem diferentes versões sobre um mesmo objeto, inevitavelmente o conformam e produzem modos de relação, as quais performam sexualidades desejáveis ou indesejáveis.

No terreno bastante instável e imprevisível que se instaura com a emergência sanitária, desenham-se modos de governo da vida. Nesse horizonte das possibilidades e incertezas, a mídia e os especialistas convocados cooperam na produção de imaginações e no investimento em determinadas pedagogias no presente para esse futuro imaginado. Como analisa Segata (2020), em artigo sobre os debates antropológicos no campo da biossegurança, a partir de uma reflexão sobre a pandemia de COVID-19:

O conhecimento elaborado para sua mitigação é baseado nas performances imaginativas que, para usar uma expressão de Gerda Reith (2004), "colonizam o futuro". Esse amanhã colonizado pelo risco imaginado e pela incerteza é o que sustenta o presente da indústria de medição de vulnerabilidade e de comércio deste híbrido saúde-segurança. (Segata, 2020, p. 291)

Uma dessas "performance imaginativa", que se depreende da forma como as práticas sexuais foram trabalhadas nos artigos estudados, foi a replicação da noção de sexo como uma "necessidade humana", a qual conduz o debate em torno das práticas sexuais e sexualidades ao sistema da necessidade, facilmente convertendo as complexidades do campo à fisicalidade e ao inevitável. Isso ilustra uma forma argumentativa utilizada quando se pretende dar legitimidade aos "especialistas" do sexo, antecipando qualquer crítica ligada à acusação do debate como supérfluo frente às restrições sociais agudas e às muitas mortes geradas pela pandemia, ou como obsceno, quando partindo de campos de argumentação ideológica mais conservadores. Invocar a necessidade implica, na prática, a possibilidade de introduzir assuntos antes tímidos no debate público, como a masturbação e o consumo de pornografia, por exemplo, dois aspectos que apareceram muito nas matérias analisadas. Mas também significa a adequação do debate a certas normas que expressam uma hierarquia de valores sexuais, nos termos de Gayle Rubin, onde "desde que não viole outras regras, a heterossexualidade é reconhecida por expressar o amplo espectro da experiência humana" (Rubin, 2017, p. 87). Ao negligenciar as complexidades relacionais, maneiras generalistas de abordar as práticas sexuais e as manifestações das sexualidades, reduzem a "variação" ao universal, aquele que endossa a possibilidade de falar dos corpos e de tratá-los, sem se preocupar com suas materialidades e com todas as associações que as constituem, inclusive com os vírus.

Assim, uma política sexual pública que reduz, em momentos de incerteza, as respostas ao que é "geral", pode ecoar formas contemporâneas da política governamental, nacional e internacional, as quais têm sido abundantes na articulação de discursos e práticas contra-científicas, em conformidade com dinâmicas neoliberais de controle das diferenças. Disso resulta certa re-articulação dos campos de saber no debate público de modo a tornar mais visíveis e audíveis aqueles que corroboram normatizações e estereotipias, renomeadas inclusive como cuidado. Produzindo futuros, no mínimo, marcados pelo medo que reportam.

 

Referências

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Recebido em: 18/05/2022
Reformulado em: 04/08/2022
Aceito em: 08/08/2022

 

 

Notas

* Mestra e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
** Psicóloga. Mestre e doutora em psicologia social pela UFMG. Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
*** Psicóloga. Mestre e doutora em Antropologia Social pela UFRGS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
1 Segundo Rothan e Byrareddy (2020) a Covid-19 foi declarada como pandemia, pela Organização Mundial da Saúde, em março de 2020.
2 A pesquisa SEXVID - Práticas Sexuais e Gestão de Riscos no Contexto da Pandemia de COVID-19 é coordenada por docentes de três universidades públicas brasileiras: UFRGS, UFMG e Uerj. O projeto vem sendo apoiado pelo CNPq, através da Chamada CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021 - Universal. Mais informações estão disponíveis em https://www.pesquisasexvid.com/
3 Entendemos que as imagens e a produção audiovisual exigiriam uma análise cuidadosa sobre sua criação e impacto, que não pôde ser contemplada no presente estudo. Destaca-se, no entanto, que períodos de isolamento trouxeram imagens diversas daquelas mobilizadas nos períodos de distanciamento menos restrito, variando de cenas de pessoas solitárias olhando pela janela ou camas vazias a imagens de casais - na sua grande maioria heterossexuais e brancos - sobre a cama ou de casais frente a frente usando máscaras, em meados de 2020, quando se chegou a falar em "volta gradual à normalidade" (Tabela 1, ítem 3); culminando com as fotografias presentes no último artigo selecionado (Tabela 2, ítem 11), no qual já podemos ver a imagem de uma mulher e de um homem jovens e brancos, prestes a se beijarem, seguida de uma cena no interior de uma boate, onde um policial civil figura, de costas, no primeiro plano e, finalmente, mais duas fotografias (ambas de bancos de imagens) representativas de situações eróticas de contato.
4 Em uma nota de rodapé, Gagnon assinala que "o uso da forma plural, epidemias, é deliberado. As epidemias não têm um ‘curso natural', exatamente na medida em que a doença do HIV/Aids entre os pobres dos bairros desfavorecidos é uma epidemia diferente da que se manifesta em vários grupos de homens que fazem sexo com homens, e a epidemia não é a mesma na União Soviética, no Zaire ou na Tailândia. A ecologia social e cultural das epidemias de Aids criou as respostas sociais, culturais e políticas à doença. Essas respostas nacionais e internacionais, em geral desatentas às ecologias locais, moldaram por sua vez o curso das epidemias nas várias sociedades ou setores de uma sociedade. Similarmente, a ausência ou presença de culturas específicas da doença e da saúde e a disponibilidade de tecnologia e infraestruturas de assistência médica constituirão o arcabouço da história sociomédica do HIV/Aids" (Gagnon, 1992, p.343).
5 De acordo com os autores Russo et al. (2009), a primeira fase da sexologia, a chamada "protossexologia", surgiu na passagem do século XIX ao XX na Europa, sobretudo na Alemanha, e, através de um discurso médico, buscava estabelecer compreensões biológico/científicas sobre as sexualidades dissidentes, indo contra a sua criminalização. A segunda fase data dos anos 1960/70 e se apresentou no contexto norte americano. Não tão focada nas "perversões", essa sexologia passa a se concentrar na sexualidade dita "normal", qual seja, a de casais heterossexuais. A terceira fase, que emerge internacionalmente nos anos 1990, é marcada pela forte presença da farmacologia nas terapêuticas sexuais e pelo enfraquecimento de sua psicologização.
6 Sublinhamos que, neste texto, não avançamos nossa análise para as matérias publicadas durante o processo de imunização, portanto ainda não temos como comparar os dados que recolhemos de março de 2020 a julho de 2021 com o que se sucede em relação a esse marco temporal e aos efeitos da vacinação nas relações e práticas sexuais. Lembramos que o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 - PNO, foi proposto somente em 05 de agosto de 2021, através da Portaria GM/MS nº 1841.

 

Financiamento: A pesquisa mais ampla à qual está vinculado o manuscrito foi contemplada no Edital Universal - CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021.

 

Agradecimentos: As autoras agradecem à Equipe da Pesquisa SEXVID pelo apoio na coleta de dados e pelos debates iniciais.

 

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