Estudos e Pesquisas em Psicologia
2022, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2022.71643
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PSICOLOGIA, POLÍTICA E SEXUALIDADES: CRISES, ANTAGONISMOS E AGÊNCIAS

 

Ofensivas Antigênero e a Depuração dos Direitos Humanos como Política de Estado no Brasil

 

João Gabriel Maracci*; Marco Aurelio Maximo Prado**
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O presente artigo analisa a inserção das ofensivas antigênero como políticas de Estado. Iniciando-se em propagação difusa por distintos atores, elas agora se coadunam com as ações prioritárias do Poder Executivo, sobretudo no que se refere ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Para avaliar tal modificação, iniciamos com um mapeamento das relações entre o Ministério e as políticas antigênero durante os quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro. Em seguida, analisamos um caso específico concernente às modificações realizadas na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão que hoje se destina também ao cerceamento de agentes públicos quanto aos temas de gênero e sexualidade, a partir da utilização de termos como "ideologia de gênero" e "violência institucional". Por fim, discutimos o argumento da estatização das ofensivas antigênero no Brasil, considerando que já vivemos sob um Estado antigênero, em cujas prioridades figuram a supressão, o rechaço e a assimilação das temáticas da diversidade sexual e de gênero.

Palavras-chave: ofensivas antigênero, direitos humanos, estado, política.


 

Anti-Gender Offensives and the Purification of Human Rights as a State Policy in Brazil

 

ABSTRACT

This article analyzes the insertion of anti-gender offensives as State policies. Starting with a diffuse propagation by different actors, they now consist as priority actions of the Executive Power, especially with regard to the "Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos". In order to evaluate this modification, we start with a mapping of the relations between this Ministry and anti-gender policies during the four years of Jair Bolsonaro's government. Then, we analyze a specific case, concerning the changes carried out in the "Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos", an institution that nowadays is also intended to restrict public agents relating to gender and sexuality issues, with the use of terms such as "gender ideology" and "institutional violence". Finally, we discuss the argument of the nationalization of anti-gender campaigns in Brazil, considering that we already live under an anti-gender State, in which suppression, rejection and assimilation are the main policies with respect to sexual and gender diversity.

Keywords: anti-gender campaigns, human rights, state, politics.


 

Ofensivas Antigénero y la Depuración de los Derechos Humanos como Política de Estado en Brasil

 

RESUMEN

Este artículo analiza la inserción de las ofensivas antigénero como políticas del Estado. Empezando en una propagación difusa a partir de diferentes actores, ellas ahora son consistentes como acciones prioritarias del Poder Ejecutivo, especialmente en referencia al "Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos". Para evaluar esta modificación, partimos de un mapeo de las relaciones entre este Ministerio y las políticas antigénero durante los cuatro años del mandato del Presidente Jair Bolsonaro. Luego, analizamos un caso específico relativo a los cambios llevados a cabo en la "Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos", una institución que hoy también pretende restringir los agentes públicos en materia de la diversidad sexual y de género, a partir del uso de términos como "ideología de género" y "violencia institucional". Por fin, discutimos el argumento de la estatización de las ofensivas antigénero en Brasil, considerando que ya vivimos bajo un Estado antigénero, en cuyas prioridades están la represión, el rechazo y la asimilación de los temas de la diversidad sexual y de género.

Palabras clave: ofensivas antigénero, derechos humanos, estado, política, género y sexualidade.


 

 

As ofensivas antigênero vêm sendo largamente abordadas por pesquisas em diversas áreas e autores (Corrêa, 2018; Junqueira, 2018; Biroli, 2018; Faúndes, 2019; Butler, 2019).  Inegavelmente, entre uma de suas características está a capacidade de se metamorfosear com certa rapidez, se adequando a contextos locais, ao mesmo tempo que atua transnacionalmente, buscando forças políticas nos conflitos regionais e se articulando a muitos outros temas específicos. Nesse sentido, as ofensivas antigênero são uma força política reacionária capaz de se articular a inúmeros temas, com significados próprios e heterogêneos, em diferentes contextos políticos e sociais.

Em síntese, chamamos de ofensivas antigênero os esforços de contenção de debates e ações relacionados à diversidade sexual e de gênero, bem como aos direitos reprodutivos, mobilizados inicialmente pelo Vaticano, na década de 1990, como resposta aos conteúdos desenvolvidos em consensos internacionais acerca de pautas feministas, como é o caso da Conferência do Cairo, em 1994, e da IV Conferência Mundial das Mulheres de Pequim, em 1995 (Corrêa, 2018). Desde então, tais esforços reativos passam a condensar-se em um sintagma comum, a suposta "ideologia de gênero", que denotaria o perigo de imposição de assuntos relacionados a gênero e sexualidade para crianças, bem como uma ameaça contrária a "família tradicional" heteronormativa (Junqueira, 2018). Nesta expansão da ofensiva, inúmeros atores se condensam ao ímpeto inicialmente católico, tornando-o mais difuso, complexo e abrangente, ganhando espaço em diferentes localidades do globo.

No caso brasileiro, é importante destacar que a ofensiva rapidamente galgou elevados patamares políticos a partir da sua recepção e construção em solo nacional. Estudos sobre sua genealogia no Brasil (Miguel, 2016; Junqueira, 2018) apontam que a capacidade mobilizatória em nosso país ganhou força a partir de sua extensão para além dos agentes políticos tradicionais, como a Igreja Católica. O abraço de parte da comunidade evangélica, bem como veículos de comunicação e políticos de diferentes partidos, garantiu uma disseminação do ódio às políticas relacionadas à diversidade de gênero nunca antes visto. Intimidações, processos judiciais, agressões físicas e psicológicas, perseguições e achincalhamentos passam a ser parte da vida pública nacional quando se trata de debater a diversidade de gênero e sexual e temas relativos aos direitos sexuais e reprodutivos.

Ao perseguir os caminhos da ofensiva no Brasil, podemos considerar que, no ano de 2019, há um marco importante para tal dinâmica, passando a ser gestada no próprio governo do Presidente Jair M. Bolsonaro. Eleito com a participação de forças políticas mobilizadas também pelas ofensivas antigênero, o atual presidente começou seu mandato já nomeando, no discurso de posse, o combate à "ideologia de gênero" como parte importante das ações de sua governança (Folha de São Paulo, 2019).

Assim sendo, podemos perseguir as mobilizações antigênero efetivadas pelo governo Bolsonaro desde seu princípio, estendendo-se pelos três anos seguintes. É neste contexto que consideramos haver uma passagem, a partir do ano de 2019, na forma de ação das ofensivas em solo brasileiro. Iniciando como uma política conservadora agitada por diversos atores, sobretudo parlamentares no campo da política institucional, as investidas antigênero passaram a centralizar-se no interior do Poder Executivo, insufladas e efetivadas pelo Presidente e seus representantes ministeriais. Avaliamos, deste modo, que o governo de Bolsonaro agiu na consolidação das ofensivas antigênero como políticas de Estado, tal qual discorreremos a seguir.

Para tanto, nosso argumento iniciará com um mapeamento da inserção e efetivação das ofensivas antigênero como prioridade política do Poder Executivo brasileiro. Esse mapeamento sintético evidencia o quanto as políticas antigênero são moldadas de acordo com o contexto político no qual pretendem instalar seu projeto. Nesse aspecto, tomam centralidade ações relacionadas ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), coordenado pela pastora Damares Alves até março de 2022.

Em seguida, analisaremos um caso específico, que consideramos paradigmático para o entendimento do novo momento das ofensivas antigênero em terreno nacional: as modificações efetivadas na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, que visam à denúncia e cerceamento de agentes públicos no que concerne a temas relativos à diversidade sexual e de gênero. Por fim, concluiremos argumentando, com base no mapeamento inicial explicitado no presente texto, que já vivemos sob um Estado antigênero, calcado no rechaço e na assimilação de pautas relativas à comunidade LGBT+, ao aborto e a qualquer tema do espectro da diversidade de gênero e sexualidade. No entanto, este rechaço não é amalgamado pela ofensiva apenas como uma repulsa ou uma negação. Pelo contrário, está em movimento no Brasil uma depuração do campo, uma ressignificação dos termos ou, como indicamos em outros trabalhos, uma purificação dos direitos humanos (De Vito et al., 2019; Prado et al. 2021), tal qual discutiremos também neste texto.

Mapeamento de Ações Antigênero nos Quatro Anos de Governo Bolsonaro

Um mapeamento inicial das principais ações programáticas desde o núcleo central do MMFDH, que prega o combate permanente à "ideologia de gênero", pode evidenciar a transformação de políticas antigênero em políticas estatais antigênero (Brazilian Interdisciplinary Aids Association, et al, 2021). Para avaliar essa complexa passagem, faz-se necessário compreender as formas de gestão governamental, considerando, na atualidade brasileira, as suas artimanhas na instalação de esgarçamentos institucionais, de produção de documentos e mecanismos institucionais que subvertem as regulações e estabilidades até então consensuadas em instituições do Estado. Essa sensação de "destruição de tudo que havia antes", está, em verdade, engajada em um modo de gestão que implica no esgarçamento institucional e na produção de novos modos de operação nas instituições, que as desviam de suas funcionalidades anteriores na direção de um projeto político reacionário de poder (Teitelbaum, 2020).

Desde que Damares Alves tornou-se Ministra do MMFDH (afirmando, em uma das primeiras aparições posteriores à posse, que estaríamos entrando em uma nova era, na qual "menino veste azul e menina veste rosa"), a pastora anunciou a reestruturação do Ministério e do próprio campo dos direitos humanos no Brasil. O Ministério, agora, passaria a ter seu nome oficializado como Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (durante o final da Presidência de Michel Temer, a nomenclatura utilizada era apenas "Ministério dos Direitos Humanos"). Em nossa análise, a inserção do significante "família" já anuncia um giro epistêmico na compreensão do próprio campo dos direitos humanos, como apontaremos a seguir.

Nesse contexto, o Ministério passa por duas grandes transformações internas: a criação da Secretaria Nacional da Família (SNF) e a transformação da Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos em Secretaria Nacional da Proteção Global. Essas mudanças, prerrogativas do cargo ministerial, embora parecessem relativamente inovadoras, atuaram na convocação de forças políticas ultraconservadoras e tradicionalistas para o interior do Ministério. Assim, faz-se importante notar que, não por outro motivo, a Ministra nomeou pessoas que, historicamente, vincularam-se às ofensivas antigênero para coordenar ações no MMFDH, como é o caso de Angela Gandra, atual secretária da família, e de Viviane Petinelli, atual secretária executiva adjunta - ambas conhecidas por seu engajamento contra a "ideologia de gênero" (Grigori, 2019).

Ainda em 2019, com o início das reformulações no Ministério, se manteve na Diretoria LGBT a mesma coordenadora do governo anterior, a ativista trans Marina Reidel. Essa diretoria será mantida com a sigla LGBT até 2022, quando ocorre uma reformulação no órgão, que passa agora a atender por Departamento de Proteção de Direitos de Minorias Sociais e População em Situação de Risco - denotando uma invisibilidade dos temas LGBT+ no próprio MMFDH.

Além disso, é a partir deste ano que o MMDFH passa a dar reconhecimento público e legitimidade política a movimentos de "ex gays", recebendo tais grupos na sede ministerial e reconhecendo a importância de sua agenda em nome da liberdade de expressão. Uma pauta importante defendida pelo grupo é a possibilidade de reversão da homossexualidade a partir de psicoterapias (Putti, 2019) - o que contradiz a normativa adotada pelo Conselho Federal de Psicologia desde o ano de 1999 (Conselho Federal de Psicologia, 1999). Inclusive, estava presente em uma visita ao Ministério a ex-psicóloga Rozangela Justino, que teve seu registro profissional cassado em 2022 face à sua defesa de práticas de "cura gay".

No início de 2020, ressaltamos dois elementos importantes que, embora situem-se para além do MMFDH, estão fortemente articulados a ele. Primeiramente, a criação de diversos Projetos de Lei, postulados por deputados federais e estaduais, intencionando criminalizar o trabalho com "ideologia de gênero" em escolas públicas - ações impulsionadas pelo movimento Escola sem Partido (Miguel, 2016), que teve seu encerramento no ano de 2019 -, bem como a iniciativa de proibir a participação de pessoas trans em competições esportivas. Em segundo lugar, a posição internacional do Brasil, através do então Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ao bradar que o país, no contexto dos organismos internacionais, seria sempre contrário ao aborto e à "ideologia de gênero" (Valadares, 2019). Tal postura impulsionou ações contrárias aos direitos LGBT+ do Brasil em reuniões multilaterais, como foi o caso da Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos do Mercosul (RAADH), ocorrida na Argentina em 2020. Nesse evento, a então Diretoria LGBT do MMFDH negou-se a assinar um documento que incluía "identidade de gênero", "expressão de gênero" e "crimes de ódio" entre os itens a serem considerados no escopo dos direitos humanos dos países signatários (Vasconcelos, 2020; Associação Nacional de Travestis e Transexuais [ANTRA], 2020).

O ano de 2020 indica ter sido um momento de importante articulação das ações antigênero em todos os temas ao redor do MMFDH. No entanto, dois núcleos fortes serão disseminados em torno de uma política para o Estado Brasileiro: a concepção de "família tradicional" como o núcleo de organização de todas as políticas do MMFDH, de modo a ressignificar as pautas LGBT+ e dos direitos humanos em torno das questões familistas, e a construção de uma relação com a produção acadêmica na tentativa de legitimar a política familista agora com base supostamente científica.

Além disso, na passagem de 2019 para 2020, a diretriz já seria desarticular e esvaziar os conselhos participativos vinculados ao MMFDH - o que foi bastante plausível, já que, logo em seguida, entraríamos em um contexto de pandemia, no qual muitas ações participativas foram canceladas. Como ilustração de tal processo, o Conselho Nacional contra Discriminação LGBT foi rapidamente desarticulado e esvaziado por parte da sociedade civil, sendo reconfigurado com a participação majoritária de agentes do Estado.

Neste contexto, o MMFDH passa a ter ações articuladas com vários órgãos governamentais, agências estatais e sociedades profissionais - tanto para implementar políticas familistas em nome do "fortalecimento de vínculos familiares", bem como para disseminar suas ações antigênero enquanto políticas espraiadas em várias dimensões e setores. Dentre esses, destacamos a agência Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal Docente) e os Conselhos Tutelares de Municípios em vias de sustentar políticas familistas e silenciar temáticas LGBT+. Importante salientar que o MMFDH também passou a incluir diversas organizações não-governamentais religiosas como extensões de suas ações através de termos de convênios para repasse de verba para a execução de ações ministeriais.

A relação com o universo acadêmico será organizada a partir do Observatório Nacional da Família (ONF), com repasse de verbas para apoiar pesquisas com temáticas especificadas pela Secretaria Nacional da Família e seu Observatório. Através de um Termo de Execução Descentralizada (TED) entre o MMFDH e a Capes, três ações vêm sendo implementadas: duas com financiamento de projetos de pesquisa e bolsas de mestrado e pós-doutorado e outra com a seleção competitiva de artigos sobre os temas familiares.

Neste ano de 2020, uma das ações antiaborto armada pelo MMFDH tornou-se caso de polícia quando a própria Ministra atuou para impedir que fosse respeitado um direito constitucional de uma jovem de 13 anos, que estava grávida por uma relação de violência sexual por parte de um parente. A jovem foi quase impedida de interromper a gravidez, direito previsto na legislação brasileira dado o caso específico de abuso, por parte de ações do MMFDH. Tais ações seguem ainda em investigação no Superior Tribunal Federal.

Em 2021 e 2022 há no MMFDH uma proliferação das ações em nome da família. A SNF se transformou em uma protagonista do próprio MMFDH, com uma boa parte das ações antigênero discretamente imbuídas em materiais, cursos à distância, projetos com prefeituras e associações não governamentais. Além disso, nova edição de um edital de pesquisa com bolsas para pós-graduação é renovado com um expressivo incentivo a dois cruciais nódulos da política antigênero: a) implementação da ideia de família (sempre no singular) a partir da noção de fortalecer os vínculos heteronormativos e b) incentivo a ideia de que para a comunidade LGBT+ caberiam ações de proteção, mas jamais de promoção de direitos de minorias. Não por outro motivo, em várias manifestações públicas da ministra, fica nítido esse tipo de abordagem do MMFDH, caracterizando, portanto, ações de proteção que não visam promover nenhum direito, contrariando inclusive todas as concepções de combate à violência construídas nacional e internacionalmente.

Em 2022 é quando vem à tona o caso mais instigante de uso de recursos de instituições e mecanismos do Estado Brasileiro para alimentar e disseminar a guerra antigênero. O Disque 100, bem como outros canais de denúncias da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, tornam-se mais um instrumento para a implementação de políticas de estado nas ofensivas antigênero do Brasil, tal qual desenvolveremos a seguir.

"Ideologia de Gênero" e "Violência Institucional" na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos

Como visto, existem diversos caminhos a serem perseguidos no acompanhamento dos processos de depuração dos direitos humanos efetivados pelo MMFDH, bem como da inserção das ofensivas antigênero no aparato estatal através do Poder Executivo. A partir daqui, focaremos nossa análise na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão responsável por "receber, examinar, encaminhar, acompanhar e prestar informações aos cidadãos acerca de denúncias e reclamações sobre violações de direitos humanos e da família" (MMFDH, 2021a). Tais denúncias são efetivadas a partir de canais como o Disque 100 (para violações de direitos humanos em geral) e Ligue 180 (para violência contra a mulher), bem como pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e por um canal específico para pessoas com deficiência auditiva.

As informações coletadas por tais veículos estão publicizadas no Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (MMFDH, 2021b), uma ferramenta online através da qual se pode acessar a sistematização das denúncias através das categorias especificadas pelo Manual de Taxonomia de Direitos Humanos (MMFDH, 2021c). Este, por sua vez, foi lançado em abril de 2021, com o objetivo de fornecer uma classificação para as violações de direitos humanos recebidas pelos canais oficiais de denúncia. O documento fornece a tipificação das denúncias a partir de cinco níveis: "classes", "subclasses", "espécies", "subespécies" e "termos circunstanciais" (onde estão dispostos os "elementos de motivação" e de "gravidade" das violações).

Tomamos como objeto de investigação três categorias que aparecem, respectivamente, como indicadores de gravidade e de motivação no manual de taxonomia. Tratam-se dos itens 1.21 "Por violência institucional", classificado como "Quando um agente público realiza algum tipo de ação discriminatória, humilhante ou preconceituosa no exercício de suas funções"; 2.6 "Em razão da orientação sexual", descrita como "Quando a violação é motivada pela orientação sexual da vítima"; e 2.11 "Em razão de orientação sexual / ideologia de gênero", cuja descrição é "Quando a agressão é praticada em razão da direção ou inclinação do desejo afetivo e/ou erótico de cada pessoa ou por ideologia de gênero".

Abordaremos, inicialmente, as duas categorias que mencionam temáticas relativas à "orientação sexual" no manual. Como visto, há dois itens disponíveis que abordam a "orientação sexual" como descritor de motivação para uma violação - o primeiro deles diz respeito à "orientação sexual", sem maiores especificações, enquanto o segundo mescla os termos "inclinação do desejo" com "ideologia de gênero". Tratando-se de um documento institucional, que fornece uma gramática dos direitos humanos utilizada pela Ouvidoria, é de extrema preocupação o uso da expressão "ideologia de gênero" como descritor de possíveis denúncias de violações contra os direitos humanos.

De fato, tal classificação já apresenta resultados no cerceamento de conteúdos abordados por professores em sala de aula, como no caso paradigmático de uma escola pública da cidade de Resende (RJ), que, em janeiro de 2021, foi intimada pela Polícia Civil após uma denúncia realizada pelo Disque 100, onde constavam os termos "exposição a conceitos comunistas" e "ideologia de gênero". Após uma polêmica que tomou palco em veículos jornalísticos, redes sociais e organização do corpo docente, a apuração foi suspensa e arquivada (Leal, 2021). No entanto, em um sentido mais amplo, podemos considerar que o efeito da intimação se dá para além da escola específica, demarcando as impossibilidades temáticas a serem abordadas em escolas face ao ímpeto de censura e cerceamento ministerial.

No manual de taxonomia, não há qualquer descrição do que seria, efetivamente, a "ideologia de gênero" a qual se refere. No entanto, se acompanharmos outras manifestações do MMFDH, vemos que o termo se relaciona, em síntese, a um suposto ímpeto de destituição da autonomia familiar sobre a criação dos filhos, motivada por "teorias de gênero", que recusariam a diferenciação natural e complementar entre homens e mulheres. Tais considerações podem ser acompanhadas em manifestações públicas do Ministério, como o Fórum Nacional sobre Violência Institucional contra Crianças e Adolescentes (MMFDH, 2021d) - evento no qual buscou-se associar a categoria da "violência institucional", também presente no manual de taxonomia, aos efeitos "nefastos" da ideologia de gênero sobre crianças, assunto que abordaremos a seguir.

Com as duas designações presentes no manual que mencionam a "orientação sexual" como possível motivo de denúncia, notamos, inicialmente, o apagamento da série histórica de combate à homofobia e transfobia no país. De fato, não há qualquer menção a termos como "homofobia" e "transfobia" ou "lesbofobia" no Manual de Taxonomia dos Direitos Humanos, de modo que seja impossível qualificar e especificar as violações reportadas - todas aglutinadas pelo termo amplo e demasiado abrangente da "orientação sexual".

É importante ressaltar que os dados coletados pelos canais de denúncia alimentam a rede de enfrentamento da violência dos municípios, de forma que são imprescindíveis as especificações de violações cometidas contra a população LGBT+. Relatórios nacionais sobre a violência LGBTfóbica, por exemplo, são efetuados a partir de informações coletadas pelo Disque 100 (MMFDH, 2018). Assim, a ausência de termos como "homofobia" e "transfobia" na nova taxonomia impede a coleta de dados fundamentais para a elaboração de políticas públicas voltadas à redução da violência cometida contra pessoas homossexuais, transexuais ou outras identidades em situação de marginalização.

Em segundo lugar, destacamos a presença de duas categorias que, em tese, se referem ao mesmo tema (orientação sexual), com a adição do significante "ideologia de gênero" na segunda. A cisão entre as duas categorias surte na impossibilidade de compreensão para a motivação da denúncia. Se, em um mesmo descritor, estão condensadas violações contrárias aos direitos humanos mobilizadas por "orientação sexual" e também por "ideologia de gênero", de que forma poderíamos entender a qual dos dois temas a denúncia se refere? Em síntese, torna-se impossível saber se as denúncias dizem respeito a violações contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou se a "ideologia de gênero" é o motivador da violação.

Tal situação torna-se ainda mais grave quando nos dirigimos à plataforma do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. Acerca dos painéis referentes a "julho a dezembro de 2020" e "1º semestre de 2021", podemos ter acesso aos seguintes números relacionados à categoria "em relação à orientação sexual / ideologia de gênero": 3.138 protocolos abertos, 3.366 denúncias e 3.194 violações; 982 protocolos abertos, 1165 denúncias e 2968 violações, respectivamente.

Com a plataforma de dados fornecida pelo MMFDH, torna-se impossível saber se o alto número de denúncias diz respeito a violações contrárias aos direitos humanos, como em situações de homofobia e transfobia, ou se elas se referem ao combate à suposta "ideologia de gênero", incentivada institucionalmente pelo próprio ministério. Além disso, destacamos que, embora no Manual de Taxonomia dos Direitos Humanos haja duas categorias que evocam a "orientação sexual" como indicador de motivação para violações, ele não se encontra no painel de dados - ainda que que as duas plataformas tenham sido celebradas por suas supostas precisas equivalências. Pelo contrário, no painel de dados dos dois recortes temporais aqui mencionados, a categoria 2.6 "Em razão da orientação sexual" simplesmente não existe. Não há dados quantificados acerca de violações contrárias à "orientação sexual" que não estejam conectadas com o sintagma "ideologia de gênero", de modo que a única forma de acessar tais informações é pela categoria 2.11 "Em razão de orientação sexual / ideologia de gênero".

De todo modo, é importante mencionar que tal situação foi levemente alterada após a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 942. Essa investida jurídica pedia a retirada do termo "ideologia de gênero" do Manual de Taxonomia dos Direitos Humanos, bem como o fim do uso das plataformas de denúncia na atuação contrária à vacinação de crianças e adolescentes contra a Covid-19, incentivada pela então ministra Damares Alves - assunto que não abordaremos aqui em função de espaço. Como resposta do MMFDH à ADPF 942, no que tange às temáticas de gênero e sexualidade, o terceiro painel de dados disponível na página virtual da Ouvidoria, referente ao ano de 2022, substituiu a categoria 2.6 pela 2.11 no campo dos "elementos circunstanciais de motivação". Ou seja, em vez de termos acesso às violações cometidas contra "orientação sexual / ideologia de gênero", encontramos agora apenas denúncias relacionadas à "orientação sexual", sem maiores especificações. Desta forma, não há menções à "ideologia de gênero" na última versão do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.

Alguns meses após a modificação no painel de dados, motivada pela pressão jurídica, algo similar foi realizado no Manual de Taxonomia dos Direitos Humanos. Na categoria de motivação 2.11, onde constava o sintagma "ideologia de gênero", agora vemos o termo destacado em cor amarela e "riscado" com uma linha vermelha. Deste modo, "ideologia de gênero" apresenta-se de modo ambíguo no manual: está textualmente presente, mas rasurada, de forma que, ao mesmo tempo, figura e não figura como elemento circunstancial de motivação para violações contra os direitos humanos. No entanto, a "correção" no manual e no painel de dados não altera as investidas ministeriais de combate à suposta "ideologia de gênero", manifesta, sobretudo, no cerceamento dos conteúdos abordados em salas de aula por professores, operando principalmente através da categoria 1.21 dos "indicadores de gravidade", referente à "violência institucional", tal qual abordaremos a seguir.

É importante ressaltar, ainda, que o painel de dados (em suas três versões disponibilizadas) fornece especificações quanto às populações vítimas das violações relatadas, onde se encontra uma especificação para vítimas "LGBT", na qual constam, até agora, 461 denúncias. O acrônimo "LGBT", todavia, é segmentado a partir dos seguintes descritores: "homossexual", "bissexual", "assexual", "pansexual" e "outros" - classificações que não correspondem sequer à sigla da qual, supostamente, fariam parte (LGBT, usualmente, se refere a Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Travestis). Nota-se, dessa forma, a impossibilidade de mapear violações específicas contra pessoas trans, dado que as classificações disponíveis dizem respeito apenas ao campo das orientações sexuais. Tal apagamento se configura em uma revitimização das pessoas trans, visto que o Brasil lidera o ranking de assassinato dessa população (Benevides, 2021), e, ainda assim, o canal oficial de denúncias contra os direitos humanos não possibilita a coleta de dados para violações contra ela cometidas.

Cabe ressaltar, ainda, que a categorização de "vítimas" não supre a lacuna referente às motivações homofóbicas ou transfóbicas das violações reportadas. A partir da categorização da vítima da denúncia, não é possível saber a motivação da violação, apenas a orientação sexual da pessoa ou grupo a quem a denúncia se refere. Dessa forma, o painel informa apenas que pessoas LGBT+, delimitadas por classificações que não abarcam as especificidades da população trans, podem ser vítimas de violações contra os direitos humanos, mas não indica como a diversidade sexual e de gênero pode estar implicada na motivação das violações.

O entendimento das pessoas LGBT+ enquanto vítimas de crimes sem motivação específica, bem como as modificações relativas ao sintagma "ideologia de gênero" no manual de taxonomia e no painel de dados, não altera o ímpeto antigênero mobilizado pelo MMFDH e seus representantes. Tal assunção pode ser comprovada a partir de categorias disponíveis em ambos os documentos, que não mencionam explicitamente a "ideologia de gênero", mas que são utilizadas também no seu combate e criminalização. É o caso da categoria 2.21 dos "elementos circunstanciais de violação - indicadores de gravidade" do Manual de Taxonomia dos Direitos Humanos, referida, como visto, ao termo "violência institucional". De fato, textualmente, não há qualquer menção à "ideologia de gênero" na categoria e em sua descrição, e tampouco pode ser observado um ímpeto de cerceamento e intimidação contra temáticas de gênero e sexualidade no documento. No entanto, as manifestações públicas em torno de tal descritor nos comprovam o contrário.

A designação "violência institucional" foi tema do já citado evento realizado pelo MMFDH, o Fórum Nacional sobre Violência Institucional contra Crianças e Adolescentes, onde diversos palestrantes manifestaram seu entendimento acerca de tal significante. Durante o encontro, foram inúmeras as associações entre "violência institucional" e o combate à suposta "ideologia de gênero" nas arguições. Produziu-se, assim, uma associação das temáticas de gênero e sexualidade, sobretudo quando relacionadas ao campo da juventude, à violação de direitos humanos, balizada pela categoria "violência institucional" e o ímpeto antigênero propagado pelo Ministério.

Cabe ressaltar aqui que o termo "violência institucional", utilizado pelo MMFDH como um "indicador de gravidade" para violações de direitos humanos, faz parte de uma conjugação arbitrária de normativas legais. A primeira delas refere-se à lei 13.431, promulgada em abril de 2017, que normatiza os critérios de escuta especializada e depoimento especial para crianças e adolescentes vítimas de violência. No texto da lei, "violência institucional" é "entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização". A tipificação jurídica é estendida, nos termos do Ministério, à doutrina da proteção integral referente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na qual "crianças e adolescentes são vistos como sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento e com prioridade absoluta" (Lei n. 8.069, 1990).

A articulação para tal entendimento pode ser acessada no próprio site do MMFDH, que explica, em uma publicação de julho de 2020, a elaboração de um sentido específico para o termo "violência institucional" a partir dos documentos mencionados. Sintetizando a apreensão do conceito, o Ministério informa que:

Trata-se de uma inovação, onde as crianças e os adolescentes vítimas ou testemunhas de violências, se firmam como sujeitos de direitos, merecedores de atendimento especializado e não revitimizador por parte dos órgãos públicos (ou conveniados), cuja missão fundamental é a de proteger e velar pelos direitos e proteção do público infanto-juvenil (MMFDH, 2020).

A "inovação" terminológica tem prosseguimento na divulgação do Manual de Taxonomia de Direitos Humanos, constando como indicador especial de gravidade de uma violação. Dado o investimento ministerial em tal categoria, expresso tanto na via de sua conceituação quanto na sua tipificação enquanto elemento oficial de denúncia, é importante atentar a quais situações concretas ela visa a corresponder. Por essa razão, nos é caro o conteúdo do Fórum Nacional sobre Violência Institucional contra Crianças e Adolescentes, onde a violência institucional está diretamente relacionada à "ideologia de gênero".

O foco das palestras dirigiu-se às áreas da Saúde e da Educação, tomando como exemplos de violência institucional a abordagem de temáticas LGBQIA+ em salas de aula, considerada "doutrinação ideológica", e os protocolos de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) voltados a crianças e adolescentes transgênero. É visível, nas falas e nos textos elaborados a partir da conferência, uma motivação ministerial para que adultos reportem às centrais de denúncia contra os direitos humanos - sobretudo através do canal Disque 100 - violências institucionais referidas a essas duas áreas, bem como o incentivo de denúncias realizadas por crianças e adolescentes em aplicativos ainda em fase de elaboração.

Nota-se que a violência institucional, tal qual descrita e sistematizada pelo MMFDH, apresenta um agente específico - o servidor público - e está direcionada a um sujeito especial de direitos - a criança e o adolescente, bem como preconiza o ECA. No entanto, o conteúdo referido a tal violação, em canais oficiais do Ministério, está diretamente relacionado a abordagens afirmativas acerca da diversidade sexual e de gênero no campo das juventudes, de modo a criar um aparato extrajurídico de cerceamento e possível criminalização de tais ações, mesmo aquelas que já contam com respaldo institucional.

É o caso, por exemplo, da Resolução 2.265 do Conselho Federal de Medicina, que "dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero" (Conselho Federal de Medicina, 2019). Esse documento delimita os tipos de tratamento disponíveis no Sistema Único de Saúde para a população transgênero, contando com itens específicos sobre adolescentes e crianças. Por essa via, a "inovação" terminológica apresentada pelo MMFDH promove uma contradição em termos jurídicos, à medida que procedimentos já regulamentados por lei passam a ser passíveis de denúncia enquanto supostas violações dos direitos humanos, através da categoria de "violência institucional".

No caso da Educação, a violência institucional torna-se um dispositivo de limitação dos conteúdos abordados em escolas públicas, à medida que a sua conceituação e proposta de uso por meio do Ministério parte diretamente do reconhecimento de temáticas indesejáveis nos currículos, sobretudo quando relacionadas à gênero e sexualidade. Nesse sentido, estipulando uma gramática própria no campo dos direitos humanos, a partir da qual se institucionaliza o combate à suposta "ideologia de gênero", tais modificações executadas pelo MMFDH formalizam a possibilidade de denúncias contra o livre exercício docente, instaurando um ambiente de policiamento contra professores e funcionários da Educação.

De acordo com os dados aqui demonstrados, concernentes à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, já é possível traçar um entendimento da inserção das ofensivas antigênero no aparato estatal. Embora haja ocorrido modificações, motivadas por pressões jurídicas contrárias ao termo "ideologia de gênero" enquanto violação dos direitos humanos, é notável que o ímpeto antigênero mobilizado pelo MMFDH e seus representantes não finda com a exclusão ou rasuras de palavras em documentos oficiais. A violência contra a população LGBT+ segue sendo promovida pelo Governo Federal em diferentes escalas. No estudo aqui apresentado, ela pode ser percebida tanto na indeterminação dos dados (como na ausência de termos como "homofobia" e "transfobia", bem como no apagamento de violações específicas contra a população trans), e também na arbitrária conceituação do termo "violência institucional" (utilizado, na prática, para coibir e cercear temáticas LGBT+ em escolas, bem como criminalizar procedimentos já reconhecidos por lei para a atenção de jovens trans no campo da Saúde).

A Ofensiva Antigênero: De Polícia do Gênero à Política de Estado

Ofensivas antigênero não são uma novidade no terreno brasileiro. Recordemos, por exemplo, das tantas investidas antidireitos sexuais reprodutivos, antidescriminalização do aborto e outros temas desde meados do século XX, que se organizam em torno da ideia de "defesa da vida" a partir de grupos reacionários de cunho naturalista conservador (Ruibal, 2014). No entanto, suas estratégias contemporâneas são inovadoras e perspicazes. Sem dúvida, uma dessas inovações, que vêm sendo materializadas no atual contexto brasileiro, é a posição de que suas forças políticas não seriam antidireitos LGBT+ ou antidireitos à diversidade de gênero e sexualidade. Pelo contrário, a ofensiva tem trabalhado minuciosamente na construção de programas e ações para depuração e ressignificação dos direitos desde sua ascensão ao poder governamental (De Vito et al., 2019; Prado et al. 2021).

Assim, podemos reconhecer que o discurso anti LGBT+, típico da ofensiva antigênero antes da eleição do atual Presidente, foi se transformando, a partir de um modo de gestão governamental próprio, em um conjunto de ações depurativas da própria ideia de direitos. A nova linguagem política se materializa em programas de políticas governamentais, como é o caso que buscamos evidenciar no âmbito do MMFDH. Ou seja, não se reconhece mais uma agenda totalmente anti LGBT+, mas sim uma agenda de moralização depurativa de tais pautas. Essa moralização depurativa tem sido expressa publicamente como uma política de "proteção" às pessoas em risco, mas jamais como "promoção" dos direitos de minorias sociais. Nesta máxima do "proteger sim, promover não" - ato de fala reiterado diversas vezes por Damares Alves - o MMFDH tem sido um importante núcleo de disseminação antigênero com uma estratégia ressignificada, agora enquanto ação governamental.

"Proteger e não promover", portanto, se torna uma linguagem política inovadora para a defesa de um Estado antigênero e para o próprio campo dos direitos humanos. Não estaria em jogo, ao contrário de diversas acusações, uma prática homofóbica, transfóbica ou sexista, afinal o governo estaria explicitamente engajado na "proteção" da comunidade LGBT+. Trata-se, apenas, da não promoção de direitos contrários a uma visão tradicionalista (Teitelbaum, 2020) de sociedade, através da qual se articulam um entendimento rebiologizante do corpo, do gênero e da sexualidade com valores fundamentais do nacionalismo conservador e familista.

Conforme explicitamos acima, um exemplo que ilustra tal processo é a própria criação do manual de taxonomia na Ouvidoria Nacional, que conjuga o combate à "ideologia de gênero" (em categorias como "ideologia de gênero" e "violência institucional") com a ideia de proteção (a partir da categoria de denúncia sobre violações contra orientação sexual). O que significa que a ação do Estado em um tradicional serviço institucional de denúncia agora atua tanto na repressão ("não promoção") como na "proteção". Esse seria mais um passo instituído para a depuração dos direitos humanos: ao mesmo tempo que "protege" (há uma categoria de proteção no manual de taxonomia), também pune e criminaliza a promoção. De fato, percebemos que, na contramão da construção dos elementos de autonomia e promoção dos direitos humanos, a atualidade do Estado Brasileiro deflagra, a partir da ofensiva instalada em seus expansivos sistemas de regulação, uma inovadora prática política de regredir os direitos de minorias, uma vez que não promover implica na ausência de proteger.

As mobilizações antigênero no Brasil, aqui reconhecidas como ofensivas políticas reacionárias, têm expressado novas dinâmicas a partir da eleição do Presidente Jair M. Bolsonaro em 2018, como vimos. De mobilizações que emergiram de sujeitos políticos religiosos, particularmente católicos, se espraiam em um movimento sociocultural de grupos e instituições sociais que hoje ocupam espaço no atual Governo Federal, instalando uma perspectiva antigênero nas diretrizes de reorganização das instituições do Estado Brasileiro.

A entrada das forças antigênero como uma nova política de governo apresenta, sem dúvidas, novas dinâmicas às ofensivas. Instaladas agora como um conjunto de ações de governo, terão de lidar com a ocupação de cargos de gestão, formulação e implementação de políticas públicas, bem como com regulações de controle social, processos jurídicos e legitimações sociais. O cenário das disputas se altera, uma vez que o enquadramento das ações do Estado está marcado por outros atores institucionais. Isso traz uma nova dinâmica para tais mobilizações, que merece um enorme investimento de estudos e pesquisas, já que as formas de governar - ao menos teoricamente e em uma situação de consolidação de um Estado de Direito democrático - deveriam seguir sistemas de regulação fundados em consensos temporários do próprio Estado, como limites às formas de governos não democráticos (Bobbio, 2007). Essa passagem crítica de instalar políticas de Estado em formas de governo pode ser entendida a partir de alguns elementos que se expressam na atualidade da política contemporânea.

Um dos elementos de tal passagem é a articulação entre políticas de governo e de Estado, amalgamadas por uma nova forma de governança. No caso do Brasil, essa questão é particularmente importante, considerando que temos um Estado democrático frágil, com uma Constituição implementada a partir dos anos finais de 1980. Ou seja, nesta governança atual, já colonizada pelas forças políticas antigênero, há uma rearticulação entre políticas de governo e Estado, que torna híbrida a fronteira entre um e outro. Em tal hibridismo, políticas estatais passam a ser depuradas por uma governança reacionária, toda vez que os marcos institucionais do Estado figuram como limites para a expansão das investidas antigênero.

Precisamente, vemos gestores e representantes do Governo Federal atual tentando alterar marcos jurídicos (resoluções, portarias, termos aditivos e declarações oficiais) que implicam depurar políticas de Estado em nome de forças antigênero. Neste sentido, há uma forma de governança que intenciona instalar uma hegemonia junto às diretrizes do Estado, de forma a reorganizar o próprio modelo de funcionamento estatal. Portanto, este elemento revela uma nova forma de governança por efeito das ofensivas que rompe completamente a divisão moderna e tênue entre Estado e Governo.

Por essa razão, buscamos neste texto apresentar algumas evidências dessa complexa passagem de uma mobilização política instalada pela retórica interpretativa sobre os direitos no campo de gênero e sexualidade a uma prática de formulação e implementação de políticas sistemáticas no âmbito governamental, destinadas a constranger ações, programas e intervenções na garantia, ampliação e promoção de direitos LGBT+ no país. Em síntese, estamos frente a elementos inovadores no que diz respeito às ofensivas antigênero e sua passagem, não sem turbulência, para formas de governo e, por efeito, para políticas de Estado. Inexoravelmente, isso implicará em inúmeros desafios para lutas democráticas que se proponham a enfrentar o caráter antidemocrático de tais forças. Mesmo considerando sua natureza transnacional, as ofensivas antigênero aportam localmente ações que remontam um passado obscuro em um presente de muitas contingências.

 

Referências

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João Gabriel Maracci
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Recebido em: 16/05/2022
Aceito em: 05/08/2022

 

 

Notas

* Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG e membro do NUH - Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+.
** Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG e Coordenação do NUH - Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+.

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado do primeiro autor concedida pela CAPES no ano de 2020.

 

Agradecimentos: agradecemos especialmente ao constante diálogo no campo de pesquisa de Sonia Correa e Rogério Diniz Junqueira

 

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