Estudos e Pesquisas em Psicologia
2022, Vol. 03. doi:10.12957/epp.2022.69819
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Loucos por Ler: Oficinas Expressivas em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil

 

Lourdes Aparecida D'Urso*; Andréa Perosa Saigh Jurdi**
Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, Baixada Santista, SP, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir os significados da leitura e escrita para adolescentes de um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil do município de São Paulo, por meio do acompanhamento de um trabalho com oficinas expressivas e seus desdobramentos. Trata-se de uma pesquisa-intervenção com uso de diário de campo. A leitura e a linguagem escrita foram entendidas como objetos culturais, promotores da interação social e capazes de auxiliar na superação de crises, conforme pesquisas da antropóloga Michèle Petit. Nos grupos, eram realizados jogos, leitura de textos de diferentes gêneros discursivos e atividades de escrita, além de visitas a equipamentos culturais. A análise dos dados inspirou-se na obra de Mikhail Bakhtin. O estudo permitiu compreender aspectos singulares do ato de ler para cada participante e possibilitou ainda produções escritas mais significativas e com função social. Um desdobramento do estudo foi a realização de um novo ciclo de oficinas, que expôs as produções dos usuários no espaço de convivência do serviço.

Palavras-chave: centro de atenção psicossocial infantojuvenil - capsij, oficinas expressivas, linguagem, leitura, escrita.


 

Crazy about Reading: Expressive Workshops in a Children and Youth Psychosocial Care Center

 

ABSTRACT

The aim of this article is to discuss the meanings of reading and writing for adolescents at a Psychosocial Care Center for Children and Adolescents in the city of São Paulo, accompanying expressive workshops and their developments. This is an intervention research, using a field diary. Reading and written language were understood as cultural objects that promote social interaction and allow overcoming crises, according to the studies of anthropologist Michèle Petit. In the groups, there were games, reading of texts of different discursive genres and writing activities, as well as visits to cultural institutions. Data analysis was inspired by the work of Mikhail Bakhtin. The study made it possible to understand singular aspects of the relationship with reading and enabled more significant written productions by the participants. An offshoot of the study was the making of a new cycle of workshops, which exposed their productions in the service's common area.

Keywords: children and youth psychosocial care center, expressive workshops, language, reading and writing.


 

Locos por la Lectura: Talleres Expresivos en un Centro de Atención Psicosocial Infantil y Juvenil

 

RESUMEN

El objetivo de este artículo es discutir los significados de la lectura y la escritura para los adolescentes en un Centro de Atención Psicosocial a la Infancia y la Juventud de la ciudad de São Paulo, por medio del acompañamiento de un trabajo con talleres expresivos y sus consecuencias. Es una investigación-intervención, utilizando un diario de campo. La lectura y el lenguaje escrito fueron entendidos como objetos culturales que promueven la interacción social y permiten superar crisis, según estudios de la antropóloga Michele Petit. En los grupos se realizaron juegos, lectura de textos de diferentes géneros discursivos y actividades de escritura, además de visitas a instituciones culturales.El análisis de los datos se inspiró en la obra de Mikhail Bakhtin. El estudio permitió comprender aspectos singulares del acto de leer para cada participante y también posibilitó producciones escritas más significativas y con función social. Un resultado del estudio fue la realización de un nuevo ciclo de talleres, que expuso las producciones de los usuarios en el espacio de convivencia del servicio.

Palabras clave: centro de atención psicosocial infantil y juvenil, talleres expresivos, idioma, lectura, lengua escrita.


 

 

Na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij) - direcionados a crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes - inauguraram a partir de 2002 uma política efetiva e sistemática de saúde mental para a infância e adolescência no sistema público do Brasil, abrindo possibilidades para ações terapêuticas inovadoras (Ministério da Saúde [MS] Portaria 336, 2002; MS,  2004; MS Portaria 3088, 2011). Nesse cenário de transformação de práticas, as oficinas terapêuticas definidas como atividades grupais de socialização, expressão e inserção social foram, e ainda são, dispositivos muito utilizados no cotidiano dos serviços de saúde mental (MS, 2004; Galvanese et al., 2013).

As oficinas que trabalham com objetos relacionados a arte e cultura são as mais frequentes, como constatou uma pesquisa em diversos Centros de Atenção Psicossocial na cidade de São Paulo (Galvanese et al., 2013). Por sua vez, oficinas em que a linguagem oral, a leitura e a literatura estão no centro da atenção foram, recentemente, objeto de análise em diversos estudos (Caliman et al., 2019; Costa et al.; 2013; Herrero & Paladino, 2021; Silva, 2016), cujos resultados apresentaremos a seguir.

Costa et al (2013) discutem uma oficina terapêutica de contos infantis, desenvolvida em um CAPSij, a partir da demanda de criação de espaço terapêutico coletivo e de socialização. Em um setting grupal, conjugou-se o trabalho de contar histórias com atividades de criação coletiva, sendo então efetivada uma prática terapêutica de circulação da palavra, considerada uma modalidade de tratamento para superação do modelo manicomial.

Silva (2016), em uma pesquisa qualitativa, discutiu os efeitos da utilização da leitura em um contexto grupal com adolescentes em um CAPSij da cidade de São Paulo. A experiência utilizou contos como objeto mediador terapêutico e funcionou como abertura de espaços potenciais que promoviam a criatividade e a saúde mental e, ao mesmo tempo, a mobilidade no acesso a experiências culturais. A autora evidenciou, com esse trabalho, a importância da oferta de um universo cultural mais amplo para os jovens e a função mediadora do grupo em crises (Silva, 2016).

Caliman et al. (2019) trazem com seu trabalho as experimentações de uma oficina de literatura para crianças em um CAPSij, por meio de uma pesquisa-ação participativa em que as autoras apostaram que a criação coletiva poderia ser vetor de transformações potentes no cotidiano das crianças e adolescentes atendidos. Colocando os jovens usuários no centro do cuidado, as autoras instauraram novas diretrizes no cuidado, produzindo autonomia e valorização do saber infantil. Nesse trabalho, a leitura e a literatura são concebidas como dispositivos potentes de transformação, por meio da construção coletiva de mudanças nos modos relacionais e atencionais.

Herrero e Paladino (2021) em um Centro de Convivência e Cooperativa, equipamento que faz parte da RAPS na cidade de São Paulo, propôs uma oficina de linguagem oral em que os sujeitos, adultos e idosos, pudessem circular no espaço discursivo, permitindo enlaçamento social entre eles, possibilitando exercer cidadania e protagonismo. Os resultados demonstraram a existência de movimentos de circulação na estrutura discursiva, com efeitos nos processos de subjetivação e nas experiências sociais, sendo assim um dispositivo potente para dar vez e voz ao sujeito no contexto de convivência social desses equipamentos.

Desta forma, os estudos e relatos apresentados, mesmo com particularidades próprias e concepções teóricas diversas, nos permitem vislumbrar a importância das oficinas expressivas que valorizam a linguagem na modalidade oral e escrita e sua contribuição na produção de saúde e de vida para os usuários dos serviços de saúde mental. Entretanto, mesmo se as oficinas trabalham nessa ótica da linguagem como objeto cultural, ao se pensar nessa proposta não deixa de ser essencial considerar alguns aspectos relativos à escolarização de usuários de saúde mental.

Os problemas relacionados a vida escolar são um dos mais frequentes motivos que levam a procura de atendimento em saúde mental para crianças e adolescentes (Fukuda et al., 2016; WHO, 2005), o que não ocorre apenas no Brasil (WHO, 2005). No âmbito nacional, observou-se que os adolescentes, que necessitam e não recebem esse atendimento, apresentam uma maior propensão a ter baixo desempenho acadêmico, além de ficarem mais vulneráveis ao desemprego, uso de drogas, condutas criminosas e automutilação (Ministério da Justiça, 2011).

Desta forma, observa-se que é frequente o insucesso escolar estar entrelaçado com as diversas psicopatologias causadoras de sofrimento psíquico para usuários adolescentes que buscam serviços como o CAPSij. Além disso, nos quadros mais graves, pode haver abandono escolar, podendo prejudicar o letramento - definido como o "estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita" (Soares, 2001, p. 47) - e, por conseguinte dificultar a inclusão social de forma mais ampla.

No entanto, há uma crítica no âmbito de estudos linguísticos de que a própria "escolarização na sociedade brasileira não tem levado à formação de leitores e produtores de textos proficientes e eficazes e, às vezes, chega mesmo a impedi-la" (Rojo, 2004, p. 1). Isso ocorre, segundo essa autora, pelo fato de as práticas didáticas de leitura no letramento escolar só desenvolverem uma pequena parcela das capacidades exigidas para o letramento na sociedade abrangente atual. Neste sentido, Rojo (2004) propõe então a diversificação das práticas de letramento como forma de preparar os jovens para o que ela denomina uma leitura cidadã. Entende-se, assim, que a escola seja uma das agências do letramento, mas diversos espaços do cotidiano são capazes de promover práticas letradas, o que pode incluir equipamentos públicos de saúde, como o CAPSij, local desse estudo.

Nesse âmbito dos serviços públicos de saúde mental, deve-se considerar o fato de que alguns usuários adolescentes de serviços de saúde mental tenham grande interesse pela leitura e pela expressão escrita e, por vezes consigam comunicar pela escrita sentimentos que não exprimem oralmente, recorrendo a esse campo cultural em períodos de crise, como justamente investigou a antropóloga Petit (2008, 2009). Crises, para a autora, seriam tanto as mais globais, conflitos armados e desequilíbrios sociais, por exemplo, como as mais particulares, decorrentes de perdas, lutos, decepções amorosas. Amparada em estudos da psicanálise, Petit considera que os seres humanos têm uma predisposição antropológica à crise, pois "nascendo prematuros, nós somos marcados por uma fragilidade cujos vestígios permanecem ao longo da vida" (Petit, 2009, p. 33).

As pesquisas de Petit (2008, 2009) se interessaram primordialmente pela experiência dos leitores, valorizando especialmente a construção de sentido, a constituição subjetiva e a possibilidade de resistir às adversidades do meio social. A leitura, de acordo com a autora, tem papel essencial principalmente na adolescência, permitindo a construção da identidade, o enriquecimento da linguagem e da imaginação e o desenvolvimento da alteridade (Petit, 2008).

Já no campo da filosofia da linguagem, o autor russo Mikhail Bakhtin e seu círculo de estudiosos (Bakhtin & Volochinov, 1992) consideram o livro como um ato de fala impresso, sendo "parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala que responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc." (p. 123). Esses estudiosos desenvolveram, a partir do século XIX, uma teoria da enunciação com ênfase no caráter dialógico da comunicação (Bakhtin & Volochinov, 1992).

Nessa perspectiva teórica, a interação social por meio do diálogo não é restrita à comunicação oral de indivíduos face a face, pois de forma ampla dialogamos com muitos outros discursos existentes em nossa cultura. Considerando que cada esfera social elabora tipos relativamente estáveis de enunciados, foi desenvolvido pelo autor russo e seus colaboradores o conceito de gêneros discursivos, que inclui as réplicas do diálogo do cotidiano, as diferentes formas de cartas, manifestações da publicidade, textos de leis, os gêneros literários e as diversas formas de comunicação científica, entre muitos outros tipos (Bakhtin, 2017). Aprender a escrever, portanto, significaria dominar a utilização dos diversos gêneros nos contextos de comunicação específicos e concretos, por exemplo, conseguir escrever uma carta para um amigo ou preencher um formulário para emprego.

Levando em conta essa complexidade teórica do campo que orbita em torno da temática das oficinas e das questões de linguagem, bem como a necessidade de qualificar cada vez mais o cuidado oferecido nos serviços da RAPS, foi realizada uma pesquisa com abordagem qualitativa no local de trabalho de uma das autoras. O presente artigo traz parte dos resultados e tem como objetivo central discutir os significados da leitura e escrita para adolescentes de um CAPSij do município de São Paulo, por meio do acompanhamento de um trabalho com oficinas expressivas e seus desdobramentos posteriores.

 

Método

A pesquisa seguiu os procedimentos éticos para pesquisas com seres humanos e os participantes e seus familiares receberam todos os esclarecimentos necessários antes de assinarem os Termos de Consentimento e de Assentimento, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma Instituição de Ensino Superior (CAEE 56615816.8.0000.5505). A abordagem foi qualitativa na modalidade de pesquisa-intervenção, uma vez que havia o interesse em aliar a produção de conhecimento à intervenção social no contexto de um serviço de saúde mental infantojuvenil, cenário do estudo. No entanto, a ideia de intervenção não se traduziu numa interferência verticalizada, mas a noção de um "vir entre", um "interpor-se" como esclarecem Mendes et al. (2016). As autoras destacam o conceito de implicação no campo de pesquisa, evidenciando "elementos de que o desejo de se articular, a potência de agir em favor do diálogo e interação podem produzir saúde e ativar novas formas de construir práticas promotoras de saúde" (Mendes et al., 2016, p. 1737).

O diário de campo foi instrumento fundamental da presente pesquisa. Como explicam Pezzato e L‘Abbate (2011), o diário é uma ferramenta de reflexão sobre o que foi experimentado no campo que pode produzir um movimento de reflexão da própria prática, sendo, portanto, compatível com a pesquisa-intervenção. Nessa perspectiva, no diário de campo foram registrados o funcionamento do grupo, os diálogos mais significativos, as reações individuais dos participantes e as impressões dos pesquisadores, além das produções escritas realizadas pelos membros do grupo.

Em relação às oficinas propostas, o foco central foi realizar a mediação de leitura, usando gêneros discursivos diversos (conto, poesia, cartas etc.) e, ao mesmo tempo, incentivar a escrita espontânea e individual dos adolescentes, além de momentos de trocas dialógicas e propostas de jogos com enunciados escritos. Buscava-se aproximar os usuários da linguagem escrita enquanto objeto cultural, incentivando práticas letradas na ambiência do serviço ou em outros espaços.

Após a apresentação dos participantes e da proposta da oficina, foi feito, no segundo encontro, um mapeamento dos territórios e equipamentos de circulação social dos integrantes. O planejamento das oficinas foi construído a cada passo pelos integrantes, não havendo uma sequência pré-determinada de atividades, já que pretendíamos a participação ativa dos sujeitos na construção do caminho a ser percorrido. No percurso das oficinas, foram temas recorrentes: as vivências cotidianas nos diferentes espaços do território (escola, família, equipamentos culturais etc.), os sentidos e significados sobre o ler e o escrever, além do próprio vínculo com a oficina proposta.

O ciclo de oficinas foi realizado no segundo semestre de 2016, tendo como local um CAPSij da cidade de São Paulo e como participantes usuários do serviço, após avaliação inicial e discussão na reunião de equipe. Os encontros eram semanais, totalizando treze sessões. As oficinas funcionaram como um grupo semiaberto, podendo ocorrer entradas e saídas de participantes durante o processo.

Um ponto fundamental na presente pesquisa foi o olhar construído com o sujeito pesquisado, sendo os dados provenientes, principalmente, das dinâmicas de interações entre o pesquisador e os adolescentes do grupo. Buscamos valorizar então, primordialmente, a produção enunciativa-discursiva dos jovens integrantes das oficinas, inspirando-se na análise dialógica da obra de Mikhail Bakhtin e seu círculo de estudos (Bakhtin, 2017).

Neste artigo serão discutidos os quatro últimos encontros do ciclo de oficinas, quando o eixo central do trabalho foi o planejamento e visita a um espaço cultural público. Isso foi feito sem ignorar a cadeia enunciativa que abrange os treze encontros, essencial para a compreensão de todo o processo discursivo. Nestes quatro encontros, participaram apenas cinco sujeitos integrantes da pesquisa, com idade entre 13 e 16 anos, os quais serão apresentados a seguir.

Os participantes serão apresentados com nomes fictícios, visando preservar o sigilo. No início do ciclo de oficinas, Silas, James e Vanessa tinham 13 anos. Os dois mais velhos do grupo eram Lucas de 14 e Daniel com 16 anos. As hipóteses diagnósticas que constavam no prontuário do serviço eram diversas, como deficiência intelectual, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e transtorno de ansiedade, entre outras.

Silas e Vanessa tinham queixa de descontrole e nervosismo. Mas somente Silas tinha baixo rendimento escolar. Ambos tinham histórias de abandono pela figura materna e atualmente moravam com outros familiares. Os dois eram atendidos pelo psiquiatra com prescrição de medicamentos para o controle dos sintomas.

James e Daniel tinham queixas de ansiedade, impaciência, falta de concentração. O primeiro tinha baixo rendimento escolar e suspeita de ouvir vozes e quem o trazia ao serviço era a mãe.  Enquanto o segundo, vinha em geral desacompanhado para os atendimentos. Sua mãe tinha diagnóstico de esquizofrenia, sendo atendida pela rede de atenção psicossocial da região. Devido a doença da mãe, ele assumira muitas responsabilidades, como ajudar a mãe a cuidar da casa e do irmão. Procurou o serviço por ter tido súbita mudança de comportamento na escola, ficando mais desatento e, segundo suas próprias palavras, "sua cabeça não era mais a mesma". Os dois usuários eram acompanhados pelo psiquiatra com tratamento medicamentoso.

Por fim, Lucas era o único que não estava em atendimento psiquiátrico. A queixa formulada pela mãe era que ele não aceitava regras ou limites, além de haver uma a suspeita de fazer uso de substâncias psicoativas. O pai teria sido usuário de drogas, e a mãe fazia tratamento para depressão.

 

Resultados e Discussão

No início do ciclo de oficinas, foi observado que os participantes, em geral, tinham um repertório limitado de vivências em equipamentos culturais como museus, teatros, cinemas e bibliotecas. Propôs-se, então, para o grupo a visita a uma biblioteca com o objetivo de ampliação do repertório cultural, na tentativa de pensar na oficina como um movimento para fora da instituição, fomentando a abertura para a esfera social, como aponta Galetti (2006).

Sobre as bibliotecas, houve certa vez a menção dos jovens sobre o esvaziamento e a falta de público, o que as convertia em verdadeiros equipamentos fantasmas. Como contraponto a essa ideia, optou-se pela visita à um equipamento público com projeto denominado Biblioteca Viva, centro irradiador das melhores práticas para as bibliotecas existentes no Estado de São Paulo, cuja ideia é tornar a leitura parte da vida das pessoas, com um espaço amplo, moderno, integrado a sua comunidade. A biblioteca oferece, além de livros, um ambiente onde as pessoas possam escutar música, assistir a filmes, navegar na internet e participar de apresentações teatrais, afastando-se da imagem convencional de uma biblioteca trazida pelos adolescentes (Governo de São Paulo, 2012).

Para os adolescentes, o que primeiro sobressaiu-se na experiência de visita foi a atitude de acolhimento por parte da monitora ao apresentar os vários espaços da biblioteca. O fato de estarmos juntos em um lugar diverso daquele em que comumente nos encontrávamos abriu a possibilidade de experimentarmos novos modos de estar no mundo. Galetti (2006) sublinha a necessidade da clínica de ser atravessada por outros planos, no caso desta pesquisa, pelo campo da cultura e da leitura e também produzir situações de encontros sociais para além do espaço clínico pode criar um campo de solidariedade com outros sujeitos, o que de fato constatamos na relação dos jovens com a monitora da biblioteca.

No texto produzido coletivamente após essa experiência, ficou evidente essa abertura de possibilidades sobre o livro e a leitura. Os jovens autores destacaram a importância da recepção acolhedora aos vários públicos (pessoas com deficiência, moradores de rua ou idosos), do conforto do espaço e da diversidade de formatos dos portadores de texto (livros em diversos formatos e até jogos e brinquedos) e da inclusão de material audiovisual.

A visita ao equipamento cultural possibilitou compreender também a relação singular de cada participante tinha com a leitura e a escrita. Ficou evidente que estar em um ambiente como o de uma biblioteca evidenciava elementos da constituição deles como leitores e da trajetória de vida individual. Vanessa que na primeira oficina afirmara que a capacidade de ler e escrever fora o mais importante aprendizado de sua vida, pôde confirmar essa relevância da leitura, conforme está registrado no diário de campo referente ao décimo encontro:

Durante a visita (à biblioteca), quem mais se empolgou foi Vanessa, pois reconheceu vários livros e filmes que faziam parte do seu universo cultural, como "O menino do pijama listrado", os livros da saga Harry Potter e outros que se ligavam a essa temática de histórias fantásticas. (Trecho extraído do Diário de Campo da pesquisadora do dia 11 de outubro de 2016).

Essa postura de receptividade à leitura certamente a favoreceu, tanto na abertura para aspectos subjetivos e de resiliência ao sofrimento, como na ampliação de conhecimento de mundo e aprendizado escolar. Durante o passeio essa jovem comentou que não estava encontrando livros ou textos que fossem de seu interesse. Então, atentas às suas preferências, sugerimos e emprestamos, no encontro seguinte, um livro que nos pareceu relacionado ao seu universo de interesses. A adolescente ficou encantada com essa indicação, dizendo que era exatamente o que desejava ler.

Cabe lembrar de que essa adolescente estava passando por um período de indefinição e angústia por não saber se continuaria morando com a tia ou se voltaria a morar com a mãe. A leitura para ela pode ter sido um salto para fora da realidade cotidiana, uma "verdadeira abertura para um outro lugar, onde o devaneio e, portanto, o pensamento, a lembrança, a imaginação de um futuro torna-se possíveis", conforme a visão da antropóloga francesa (Petit, 2009, p. 76).

Silas, por sua vez, trazia constantemente uma visão negativa sobre o ato de ler, dizendo preferir "assistir", referindo-se a seu interesse pelo universo audiovisual. Contudo, no decorrer do processo grupal, observamos que histórias em quadrinhos e revistas de piadas compunham suas preferências, ainda que raramente ele levasse esse material para casa. O jovem esclareceu que não considerava que sua casa seria um espaço para leituras, pois ajudava seu pai na feira livre em que trabalhava e em casa tinha inúmeras tarefas domésticas para realizar.

Daniel, por sua vez, que se encontrava às voltas com procura de emprego, na ocasião em que devolvera um livro emprestado afirmara: "eu gostei do início da história, mas não tenho paciência para continuar". Em outros momentos, Daniel comentou sobre a crença em um leitor ideal, colocando-se como alguém que não teria essas características. "Não tenho o dom da leitura", foram suas palavras.

Masini et al. (1994) contribuem com uma discussão sobre o mito do leitor ideal, a partir da experiência de atendimento clínico fonoaudiológico de indivíduos com dificuldades de aprendizagem e leitura. As autoras observam que há uma crença de que um bom leitor seria aquele que lê qualquer texto ou livro indistintamente, não selecionando os materiais de seu maior interesse. Entretanto, para as autoras, um bom leitor é justamente aquele que seleciona com muito cuidado as leituras que irá fazer, buscando aquelas que estejam de acordo com seu mundo interno (Masini et al., 1994).

Diante disso, buscamos, com o grupo, desmistificar essa noção idealizada de leitura, deixando claro que não seria necessário ler na íntegra uma publicação, por exemplo. Nossa ideia era evitar repetir a vivência escolar de leitura obrigatória. Foi possível, então, por meio do diálogo, valorizar e validar outras leituras que Daniel vinha fazendo de forma prazerosa. Apoiando-se nos estudos conduzidos por Petit (2008, 2009), a ideia foi buscar que os textos lidos fossem de fato apropriados subjetivamente e de maneira livre.

Para Daniel, ler parecia ter um sentido mais prático, como quando reproduzia as notícias de revistas sobre fatos científicos ou mesmo textos técnicos sobre aeronaves, pois ele desejava seguir carreira na área de aviação. Mesmo assim, também foi proporcionado para ele e outros no decorrer dos encontros grupais leituras coletivas de outros gêneros, como poesias e contos em que não havia esse sentido utilitário, mas certa fruição estética. Já outro jovem não tinha um repertório de interesses, manifestando até certa rejeição às possibilidades que a leitura oferecia, como vemos no trecho abaixo:

Lucas afirmava constantemente que não gostava de ler, mas mantinha-se atento a tudo. Silas também permaneceu concentrado à exposição da monitora e, como sempre, demonstrou curiosidade. Na seção infantil, afirmou que "Os contos de Grimm" marcaram sua vida, ao que Lucas, de forma irônica, comentou que isso parecia uma atitude "bem sentimental". (Trecho do diário de campo de 11 de outubro de 2016).

O comentário feito remete a padrões culturais de gênero. Brincadeiras em relação à orientação sexual foram comuns entre esses dois participantes em outros momentos. Parecia haver, de forma velada, uma ideia preconcebida que gostar de contos de fadas ou gêneros literários correlatos seria mais apropriado para meninas do que para meninos, o que nos traz Petit (2008) ao comentar que nos meios populares existe "a ideia de que ler efeminiza o leitor", principalmente em se tratando de leituras que tem muito a ver com a interioridade segundo o que nos traz Petit (2008).

Sobre os sentidos da leitura para os jovens, uma outra ideia de Petit é a da leitura como possibilidade de ampliar os círculos de pertencimento dos leitores, permitindo romper o isolamento ao trazer a "experiência de homens e mulheres, daqui e de outros lugares, de nossa época ou de épocas passadas" (Petit, 2008, p. 94), principalmente para os jovens que habitam bairros urbanos marginalizados e apartados do centro das cidades por fronteiras visíveis ou invisíveis.

Observamos isso acontecer com James que desde o início dos encontros trazia pouco de suas vivências e preferências e tinha uma expressão verbal espontânea restrita, claramente mostrando a possibilidade de ampliação de universos e culturas, descrita por Petit. No penúltimo encontro, apresentamos ao grupo fotografias e textos do livro "Where children sleep" do fotógrafo Mollison (2010) com imagens de crianças do mundo todo e seus quartos, mostrando a heterogeneidade de modos e condições de vida. Utilizando as reproduções de fotos dos livros embaralhadas e as legendas que as acompanhavam, solicitamos que os participantes tentassem parear texto e foto.

James ficou bastante absorto e, em seguida, fez várias perguntas sobre a realidade de outras nações e pôde confessar um sonho: a possibilidade dele próprio morar nos Estados Unidos no futuro. James conseguira, enfim, trazer algo de sua singularidade, sempre tão camuflada em respostas genéricas a tudo que lhe era direcionado(Trecho do diário de campo de outubro /2016).

Nessa atividade, James, pela primeira vez, demonstrou real interesse pelo material de leitura sugerido. Isso permitiu que ele falasse sobre o sonho que acalentava de morar nos Estados Unidos. Mais tarde, ao redefinir seu projeto terapêutico, a mãe confirmou esse desejo e trouxe a dúvida de como dar contorno a um sonho tão longínquo. Sugerimos que talvez fosse interessante transformar tal sonho em algo viável de imediato: a inscrição em cursos de idiomas para aprender inglês.

Era frequente o comentário de que a escrita era algo que não dava prazer quando se incitava o grupo a produzir textos escritos. Em outros momentos, principalmente nas escritas mais coletivas, em que vários participantes compunham um texto com alguém sendo o escriba, ou então na produção de textos por meio de computador, havia maior interesse, como pudemos observar em trechos do diário de campo, como o reproduzido a seguir:

Aproveitando este momento de maior envolvimento, embora não planejado previamente, solicitamos uma elaboração coletiva de um texto provável caso eles fossem personagens de fotografias similares às do livro. Desta vez — diferente do que ocorrera em outras propostas — não houve manifestação de desagrado e associação com tarefas mecânicas do ambiente escolar (uso escolar da escrita). Não houve solicitação de auxílio e cada um pode escrever seu curto texto de forma autônoma. Para nós essa mudança de atitude em relação à proposta mostrou o avanço no grupo no que se refere ao uso efetivo da escrita! (trecho extraído do diário de campo do dia 8 de novembro de 2016).

Em outra sessão da oficina, a proposta foi escrever uma mensagem utilizando de comunicação por meio digital, um e-mail para o setor de agendamento da biblioteca pública que pretendíamos visitar. Pudemos perceber que a proposta enfatizou o caráter social e dialógico, por haver um interlocutor real e uma intenção específica de agendar a visita.

Um ponto a ser considerado são as diferenças de experiências sociais com a escrita dos interlocutores desse diálogo.Vanessa tinha uma autoimagem positiva de si em relação aos conhecimentos formais e escolares e utilizava bastante da escrita com finalidade social em seu cotidiano, o que não ocorria com Silas que apresentava dificuldades escolares, afastando-se da leitura e escrita como entretenimento.

Nessa sequência dialógica, ficou evidente certa rivalidade entre os dois interlocutores, que disputaram entre si a utilização do computador para escrever, além da atenção da terapeuta. À parte dessa postura competitiva da dupla, o clima descontraído predominou na interação, propiciando brincadeiras com a materialidade fonológica das palavras, especialmente as de origem estrangeiras, como ao pronunciarem de formas diversas o vocábulo e-mail ou quando substituiu de forma jocosa Facebook por "faça o book". Mais uma vez, Silas valeu-se bastante desses chistes e jogos de palavras como expressão, mostrando recursos linguísticos singulares e criativos. Ao sugerir a expressão um "grupo de loucos para ler", brinca novamente com a ambiguidade de sentidos do termo loucura, enfatizando a polissemia linguística.

Todavia, posteriormente, outra possibilidade de compreender o uso da expressão "loucos por ler escrever" foi levantada. No grito de guerra da famosa torcida de um time de futebol paulistano, entoa-se: "aqui tem um bando de louco; louco por ti Corinthians". Talvez este jovem, torcedor fanático desse clube, tivesse proposto a definição do grupo inspirado por esse enunciado, trazendo ecos dialógicos para além do contexto imediato. Silas além de nomear o grupo e o presente trabalho de forma criativa demonstrou habilidade na produção textual no gênero relato, mesmo que de forma oral.

Por sua vez, Vanessa, que era a mais preocupada com a correção formal do texto, frisava constantemente que não gostava de escrever, evidenciando em geral grande resistência às propostas de escrita individuais. Talvez a preocupação formal e uma submissão excessiva às normas e convenções linguísticas impedissem a adolescente de exercitar uma escrita criativa, produzindo um afastamento dessa atividade.

Logo após o passeio à biblioteca, Silas trouxe para a cena grupal a percepção de não aprendizagem escolar em tom de sofrimento: "eu estudo para tirar notas [na escola], mas eu não consigo aprender nada!". Numa visão bakhtiniana, esse enunciado concreto estaria conectado a muitos outros enunciados do seu entorno, podendo refletir, por exemplo, a visão da escola sobre suas dificuldades de aprendizado. No relatório escolar, esse adolescente é descrito como um aluno com baixo rendimento, comportamento inadequado, hiperativo e com falta de interesse pelos conteúdos escolares.

O sofrimento que o adolescente pela primeira vez manifestou é muito comum entre os meninos de sua faixa etária. Fukuda et al. (2016), confirmando outras pesquisas, observaram que, no início da adolescência — entre 10 e 13 anos — há uma alta prevalência de problemas relacionados à escola que impactam a busca por atendimento específico em saúde mental, especialmente no gênero masculino.

O enunciado do jovem remete ao fato de o objeto apresentado — leitura e escrita — ser convencionalmente relacionado ao universo escolar. Pode ter sido ainda uma resposta aos questionamentos sobre o propósito do atendimento, feito em sessões anteriores pela pesquisadora. Além disso, a enunciação aconteceu justamente após a ida à biblioteca, local em que o conhecimento e leitura são postos em primeiro plano.

Em outra sessão, foi feita a proposta de produzir um texto coletivo sobre a vivência da vista à biblioteca. Silas nesse momento conseguiu, sem hesitação, ditar o texto a seguir para uma das terapeutas como escriba:

Um belo dia no dia 11 de outubro, andamos de metrô para chegar ao nosso destino: Biblioteca de São Paulo no parque da Juventude. Lá fomos bem acolhidos por uma moça educada que nos apresentou a biblioteca. Ela nos mostrou equipamentos para ajudar pessoas com deficiência a lerem livros, por exemplo, para deficiência visual havia uma máquina que lia o livro. Na parte de baixo, havia livros infantis e juvenis divididos por idade até 14 anos. Havia tendas aonde se podia relaxar e ler um livro sentado (trecho extraído do diário de campo de 18 de outubro de 2016).

Essa capacidade de aprender a partir de uma experiência e de narrar o experimentado foi apontada para Silas no contexto grupal e valorizada, estabelecendo um contraponto a sua percepção de não aprendizado escolar. Importante considerar que, ao produzir o texto oralmente, o jovem pode valer-se do conhecimento de modos de expressão no gênero relato escrito, havendo marcas de letramento. Por exemplo, quando utiliza "chegar ao nosso destino" distancia-se do discurso mais coloquial calcado na oralidade.  Nesse texto, há todo um detalhamento e um colorido nas descrições, que formam um contraponto ao relato anterior em que emergiu a vivência de um cotidiano desvitalizado.

No encontro seguinte para que os participantes desenvolvessem um olhar crítico sobre a produção escrita, nos dedicamos a reler cuidadosamente o texto já escrito na semana anterior. Dessa vez utilizamos o computador da sala de convivência. Ao esclarecer que o texto seria direcionado a outros jovens usuários do serviço, enfatizou-se o uso social da escrita.

Nesse momento, observamos grande habilidade de uma participante, Vanessa, em sugerir alterações que tornavam o texto mais claro, coeso e interessante - seja evitando repetições de vocábulos, seja reorganizando os parágrafos ou utilizando sinais de pontuação. Já Silas, por sua vez, fez sugestões pertinentes e acrescentou ideias a partir da experiência, além de elaborar o título: "uma aventura na biblioteca". Notamos que usar o meio eletrônico para escrever pode desvincular a tarefa de escrita das vivências escolares e trouxe maior agilidade no processo de reescrita.

O texto ficou rico em detalhes e com sugestões e informações para outros usuários, o que destacava a função social do escrever. Infelizmente, porém, a possibilidade de compartilhamento desta experiência teve vida curta na instituição, conforme trecho do diário da pesquisa após à produção do texto:

Havia um recém-inaugurado mural para usuários na sala de espera do serviço, onde resolvemos afixar o produto elaborado pelo grupo. Para nossa surpresa, após um hiato de tempo das férias da pesquisadora de cerca de duas semanas, o texto havia sido retirado, apesar de ainda haver espaços vazios no mural. Entretanto, algo novo aparecera: uma lista de medicações disponíveis no serviço(Trecho do diário de campo de 7 de novembro de 2016).

A ação da instituição de retirar o produto escrito do mural, impedindo, na visão dialógica bakhtiniana, a réplica discursiva dos outros usuários, teve como efeito o silenciamento dos interlocutores e nos impediu de viver a experiência discursiva até o fim, acompanhando concretamente a possível ressonância dialógica que poderia gerar entre os demais usuários do serviço.

De forma similar, Galvanese et al. (2013) também observaram falta de visibilidade das práticas relacionadas à arte e a cultura no contexto dos serviços de saúde mental, colocando em questão se há de fato um reconhecimento genuíno do trabalho realizado nas oficinas por parte das equipes multiprofissional e dos gestores.

Como um desdobramento dessas reflexões sobre as limitações das oficinas culturais nos serviços de saúde mental, após o término de trabalho de campo, ou seja, em dezembro de 2018, foi planejado e realizado um ciclo de oficinas culturais em parceria com um Museu Público do território do entorno do CAPSij. Este equipamento cultural coordenava no território uma rede de serviços, da qual o CAPSij do estudo era parte integrante. A partir disso, planejaram-se cinco encontros, em grupos abertos a todos os usuários do serviço, com o objetivo de ocupar o espaço institucional com essa produção criativa e fortalecer o trabalho em rede através de uma atividade lúdica, expressiva e artística com a linguagem escrita em destaque.

 

Considerações Finais

Os significados da leitura (e da escrita) para os participantes não eram homogêneos, indo desde uma leitura mais utilitária até um ato de ler que permitia um salto para fora da realidade, estimulando a imaginação e até possibilitando a superação de crises, evocando o trabalho de Michèle Petit. Mesmo para os que declaravam não gostar de ler, a participação nas atividades de mediação de leitura, a escrita coletiva e a visita à biblioteca tiveram a função essencial de ampliar o universo cultural, possibilitando também a expressão de si e de desejos.

Percebeu-se, desta forma, a importância de se criar um campo comum, de interação dialógica (seja oralmente ou por meio da escrita) entre os adolescentes para que eles ao mesmo tempo expressassem suas vivências no cotidiano, suas preferências e particularidades, podendo refletir sobre elas e até reformulá-las, como aconteceu diversas vezes durante os encontros. Como sintetiza Jobim e Souza (1996), inspirada no pensamento de Bahkhtin: "a expressão exerce um efeito reversivo sobre a atividade mental; ela põe-se então a estruturar a vida interior, a dar-lhe uma expressão ainda mais definida e estável" (Jobim & Souza, 1996, p. 113).

O trabalho com a escrita de textos com função social e comunicativa foi um diferencial do presente trabalho, distinguindo-se dos trabalhos citados na Introdução, que enfatizaram a literatura, contos ou trocas dialógicas. No decorrer dos três meses da oficina, houve percepção de mudanças na atitude dos participantes em relação a possibilidade de se expressar por meio de textos de sua autoria, em gêneros como correio eletrônico e relato de experiência, aumentando ainda o prazer pela expressão linguística. Além disso, jogos com palavras de duplo sentido e chistes foram trazidos para o cenário da atividade grupal, culminando até na forma criativa com que um participante denominou o grupo (intitulando também o artigo): "loucos por ler".

Embora as oficinas expressivas no contexto dos CAPSij tragam a linguagem como um objeto cultural não relacionado diretamente a sua função no processo de escolarização, houve possibilidade de pensar sobre o sofrimento relacionado as dificuldades de aprendizagem dos adolescentes e, paralelamente, contrapor experiências mais exitosas de aprendizado não formal. Novos trabalhos poderiam discutir de forma mais aprofundada esse sofrimento relacionado ao aprendizado escolar e suas dificuldades, além de como as oficinas expressivas podem promover o interesse pela leitura e por atividades de produção escrita, estimulando o letramento, aspecto tão fundamental para a inclusão social e exercício da cidadania.

No âmbito do serviço, é necessário observar que se as oficinas são muito disseminadas como estratégia de atenção psicossocial, contudo nem sempre os produtos gerados por essa modalidade de trabalho em grupo são publicizados, mesmo que no espaço do serviço. O estudo apontou que a parceria com o setor cultural possibilitaria ultrapassar essa barreira e, nesse sentido, poderia fortalecer o trabalho das oficinas. Seria necessário, contudo, que os adolescentes alcançassem autonomia e de fato incorporassem os equipamentos culturais em seu cotidiano.

O estudo traz contribuições significativas para a compreensão e o aperfeiçoamento das oficinas no contexto de serviços como o CAPSij, mas o caráter qualitativo não permite uma simples generalização de resultados de forma ampla, pois aborda uma experiência específica com um grupo de usuários, além de ter tido uma duração relativamente curta. De qualquer forma, trazer a público as idiossincrasias de um trabalho dessa natureza é, em si, revelador de sua potência e possibilidades de aperfeiçoamento. Espera-se, desta forma, contribuir para a realização de novas pesquisas sobre oficinas expressivas com ênfase na linguagem no âmbito da saúde mental de adolescentes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Lourdes Aparecida D'Urso
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Recebido em: 26/07/2021
Reformulado em: 13/05/2022
Aceito em: 10/06/2022

 

 

Notas

* Mestra profissional em Ensino de Ciências em Saúde pela Universidade Federal de São Paulo. Atualmente é membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Formação e Trabalho em Saúde (LEPETS) da Universidade Federal de São Paulo.
** Terapeuta Ocupacional, graduada pela Universidade de São Paulo, doutorado pelo Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo, Pós doutora em estudos da Criança pela Universidade do Minho/PT. Professora da Universidade Federal de São Paulo/ Instituto Saúde e Sociedade/ campus Baixada Santista.

 

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