Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e69698, doi:10.12957/epp.2024.69698
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

O Cuidado Psicológico à População LGBTI+ em Normativas Profissionais

 

Psychological Care for LGBTI+ Persons in Professional Regulations

 

La Atención Psicológica a la Población LGBTI+ en Normativas Profesionales

 

José Vicente Damaceno Netto a, Emerson Fernando Rasera a

a Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Nos últimos anos, organizações de Psicologia ao redor do mundo têm produzido documentos que propõem um olhar atento sobre particularidades da realidade LGBTI+ que podem interferir na saúde mental e no cuidado psicológico e sugerem princípios para ação para orientar o profissional na oferta adequada de atendimento à indivíduos LGBTI+. A existência desses documentos reafirma a necessidade de aproximação e sensibilização dos profissionais da área frente às questões tocantes a esse grupo. Este estudo teve o objetivo de compreender de que forma o cuidado psicológico com a população LGBTI+ é descrito e proposto por associações profissionais ao redor do mundo. Trata-se de um estudo documental no qual foi realizada uma análise descritiva e comparativa de documentos produzidos por organizações de diferentes países. Os resultados demonstram uma ênfase na conscientização do profissional sobre as contribuições históricas da Psicologia; a necessidade de autoavaliação do mesmo; a importância do desenvolvimento de uma postura profissional afirmativa e do envolvimento com a promoção de mudanças sociais e políticas.

Palavras-chave: atuação do psicólogo, identidade de gênero, orientação sexual.


ABSTRACT

In recent years, Psychology organizations around the world have produced documents that propose a careful look at the particularities of the LGBTI+ reality that can interfere with mental health and psychological care, suggesting principles for action to guide professionals on the adequate provision of care to LGBTI+ individuals. The existence of these documents reaffirms the need for approximation and awareness of professionals in the field facing issues concerning this group. This study aimed to understand how psychological care for the LGBTI+ population is described and proposed by professional associations around the world. This is a documentary study in which a descriptive and comparative analysis of documents produced by organizations from different countries was carried out. The results demonstrate an emphasis on the professional's awareness of the historical contributions of Psychology; the need for self-assessment; the importance of developing an affirmative professional attitude and involvement in promoting social and political change.

Keywords: psychologist's practice, gender identity, sexual orientation.


RESUMEN

En los últimos años, organizaciones de Psicología de todo el mundo han elaborado documentos que proponen una mirada atenta a las particularidades de la realidad LGBTI+ que pueden interferir en la salud mental y la atención psicológica y sugieren principios de actuación para orientar a los profesionales en la adecuada atención a las personas LGBTI+. La existencia de estos documentos reafirma la necesidad de acercamiento y sensibilización de los profesionales del área frente a las problemáticas que atañen a este grupo. Este estudio tuvo como objetivo comprender cómo las asociaciones profesionales de todo el mundo describen y proponen la atención psicológica a la población LGBTI+. Se trata de un estudio documental en el que se realizó un análisis descriptivo y comparativo de documentos producidos por organizaciones de diferentes países. Los resultados demuestran un énfasis en la conciencia del profesional sobre los aportes históricos de la Psicología; la necesidad de autoevaluación; la importancia de desarrollar una actitud profesional afirmativa y de participación en la promoción del cambio social y político.

Palabras clave: actuación del psicólogo, identidad de género, orientación sexual.


 

 

Vários estudos apontam que a população LGBTI+ 1 apresenta sofrimento psíquico decorrente dos efeitos do estigma social, como a exclusão e a marginalização, e demanda um atendimento psicológico qualificado (Dohrenwend, 2000; Meyer, 2003). Como questões apontadas como centrais na demanda apresentada por esses indivíduos, estão, de modo geral, a necessidade de estabelecer ou restabelecer suas relações consigo mesmos e com seus sistemas familiares e sociais (Palma & Stanley, 2002).

Mesmo com os avanços científicos que fundamentam a atuação com a população LGBTI+ no campo da Psicologia, perduram no mundo ocidental práticas e intervenções prejudiciais a essa população no que se refere à assistência psicoterapêutica. Podemos citar as "terapias de conversão" (Garcia & Mattos, 2020), o relativo desconhecimento da classe profissional acerca dos impactos psicológicos causados pela discriminação e, consequentemente, as experiências negativas e a eficácia terapêutica reduzida para aqueles que buscam serviços de saúde mental (Rodriguez, 2014; CFP, 2019). Assim, torna-se relevante a produção de orientações específicas para uma atuação profissional que promova o melhor atendimento a essa população.

No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), que regulamenta a profissão, dispõe do Código de Ética Profissional (CFP, 2005) com orientações gerais sobre a atuação do psicólogo. Neste documento, a única menção explícita a questões de orientação sexual é a proibição ao ato de "induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais" (Art 2º, p. 9).

Contudo, o CFP concebeu duas resoluções que estabelecem normas específicas de atuação em relação à população LGBTI+. A resolução 01/99 (CFP, 1999) considerando o sofrimento psíquico causado por experiências de preconceito e discriminação em relação a orientação sexual, em geral, e a resolução 01/2018 (CFP, 2018), considerando o cuidado da população travesti e transexual. Ambas as resoluções representam um marco importante para a prática psicológica no país, mas são breves e possuem caráter geral e tímido. Mais recentemente, de forma complementar, foram publicadas as Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas, Psicólogos e Psicólogues em Políticas Públicas para População LGBTQIA+ (CFP, 2023), com diretrizes para a atuação profissional nesse âmbito 2.

Nos últimos anos, organizações de Psicologia ao redor do mundo têm produzido documentos que propõem um olhar atento sobre particularidades da realidade LGBTI+ que podem interferir na saúde mental e no cuidado psicológico. Os documentos sugerem princípios para ação que podem orientar o profissional na oferta de um atendimento efetivo. A existência desses documentos reafirma a necessidade de aproximação e sensibilização dos profissionais de Psicologia frente às questões tocantes a essa população. Sua análise pode possibilitar reflexões sobre as necessidades e os desafios no atendimento psicológico a essa população, bem como inspirar a atuação dos psicólogos de qualquer parte do mundo, mesmo aqueles que não estão submetidos ao poder legal desses documentos.

As produções científicas pós-modernas no campo do gênero e da sexualidade vêm, de modo geral, superando os paradigmas que se tinham até então ao questionar o determinismo biológico e desconstruir noções essencialistas, entendendo a sexualidade como social e historicamente construída (Paiva, 2008).

Considerando a produção desses documentos e entendendo cuidado psicológico enquanto as mais diversas práticas de fomento à saúde mental envolvendo profissionais da psicologia, o objetivo deste estudo é compreender de que forma o cuidado psicológico com a população LGBTI+ é proposto por associações profissionais da área. Especificamente, buscaremos: a) caracterizar os documentos em relação a sua origem, seu tipo, ano de publicação, motivação e população-alvo; e b) descrever os princípios para ação presentes.

 

Método

Trata-se de um estudo documental, procedimento metodológico de escolha e verificação de dados que utiliza fontes primárias, isto é, informações que não receberam tratamento científico ou analítico; e possibilita novos entendimentos sobre os fenômenos (Cellard, 2008). Foi realizada uma análise descritiva e comparativa de documentos produzidos por organizações de diferentes países.  A busca foi feita em sites da internet e se orientou pelos seguintes critérios de inclusão: 1) serem documentos produzidos por associações do campo psicológico; 2) tratarem de aspectos do cuidado psicológico à população LGBTI+; 3) estarem disponíveis online na íntegra e 4) serem escritos nos idiomas inglês, espanhol e português. Além disso, privilegiou-se a seleção de documentos mais densos, oriundos de associações de distintas regiões do mundo.

De acordo com o objetivo do estudo, a análise dos documentos envolveu as seguintes dimensões: (1) origem do documento; (2) tipo de documento; (3) ano de publicação; (4) motivação para a produção do documento; e (5) definição da população alvo. Os documentos a serem analisados, segundo cada uma dessas dimensões, estão descritos na Tabela 1. Além disso, a análise contemplou uma sexta dimensão, (6) princípios para a ação, a qual implicou a produção de categorias temáticas. As categorias foram geradas por meio da análise do conteúdo (Bardin, 2006), em que os diferentes princípios apresentados são recortados e agrupados por semelhança após a leitura extensiva dos documentos.

 

Título

Associação

Tipo

Ano

Justificativa

População alvo

Competências da ALGBTIC para o Aconselhamento de Indivíduos LGBQIQA American Counseling Association (ACA) Competência

2009

Não é explicitado Indivíduos LGBQIQA
Competências da ALGBTIC para o Aconselhamento de Clientes Transgêneros American Counseling Association (ACA) Competência

2012

Não é explicitado Transgêneros
Padrões para o Trabalho e Intervenção em Comunidades Lésbicas, Gays, Bissexuais e Identidades Trans (LGBT) Asociación de Psicología de Puerto Rico (APPR) Padrão

2014

Não é explicitado Comunidades Lésbicas, Gays, Bissexuais e Identidades Trans
Diretrizes para Prática Psicológica com Pessoas Transgêneros e Não-Conformes de Gênero American Psychological Association (APA) Diretriz

2015

Falta de conhecimento dos psicólogos Pessoas Transgêneros e em Não-Conformidade de Gênero
Diretrizes para a boa prática com clientes lésbicas, gays e bissexuais The Psychological Society of Ireland (PSI) Diretriz

2015

Não é explicitado Lésbicas, Gays e Bissexuais
Diretrizes práticas para profissionais de psicologia que trabalham com pessoas de gênero e sexualidade diversos Psychological Society of South Africa (PSSA) Diretriz

2017

Contribuição da Psicologia com a opressão; experiências negativas com terapeutas Pessoas de gênero e sexualidade diversos
Diretrizes para psicólogos trabalhando com diversidade de gênero, sexualidade e relacionamento The British Psychological Society (BPS) Diretriz

2019

Não é explicitado Diversidade de gênero, sexualidade e relacionamento
Diretrizes para Prática Psicológica com Pessoas de Minorias Sexuais American Psychological Association (APA) Diretriz

2021

Revisão diante dos avanços científicos; mudanças políticas e legais Pessoas de Minorias Sexuais

 

Resultados

Características gerais dos documentos

Em relação às associações proponentes, cinco documentos são provenientes do continente americano (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; APPR, 2014), enquanto dois são do continente europeu (BPS, 2019; PSI, 2015) e um do continente africano (PSSA, 2017). Para além dos critérios de inclusão estipulados, a dificuldade de encontrar documentos de outras localidades que estivessem disponíveis on-line na íntegra também influenciou sobre esse resultado.

A análise do tipo de documento mostra que cinco deles são definidos como Diretrizes (Guidelines) (APA, 2015a, 2021; BPS, 2019; PSI, 2015; PSSA, 2017), outros dois como Competências (Competences) (ACA, 2012, 2009) e um como Padrões (Standards) (APPR, 2014). Segundo a política da Associação Americana de Psicologia (2015b), o termo Diretrizes (Guidelines) refere-se a sugestões ou recomendações específicas, enquanto Padrões (Standards) são obrigatórios e definitivos. Entretanto, todos os documentos, mesmo aqueles nomeados como Competências (ACA, 2009, 2012) e Padrões (APPR, 2014), apenas oferecem recomendações para a atuação do profissional com a população LGBTI+, sugerindo serem documentos de natureza inspiracional. Essa interpretação se dá pela ausência de qualquer informação que indique caráter impositivo das normativas sugeridas ao longo dos textos analisados. A análise do tipo de documento deve, contudo, considerar o escopo da autoridade exercida por estas associações, uma vez que cada país regulamenta a profissão de maneira diferente.

Quanto ao ano de publicação, todos os documentos foram produzidos entre 2009 e 2021. Embora alguns sejam atualizações de documentos anteriores (APA, 2019, 2021), as datas de publicação demonstram que foi, em grande parte, somente na última década que as organizações se debruçaram sobre a temática para oferecer orientação específica aos profissionais associados. É uma resposta lenta considerando que em 1973 a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade de seu Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais (DSM) e que, em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) excluiu-a do Código Internacional de Doenças (CID) (Junqueira, 2012).

No que se refere a motivação e necessidade de criação dos documentos, alguns a explicitam em seu texto (APA, 2015a, 2021; PSSA, 2017), enquanto outros não o fazem (ACA, 2009, 2012; APPR, 2014; BPS, 2019; PSI, 2015). Contudo, mesmo os que não explicitam a sua necessidade, destacam pontos que podem ser interpretados como justificativas para a sua criação. Segundo esses documentos, a falta de conhecimento por parte significativa dos profissionais em relação às dificuldades enfrentadas por estes grupos resulta em experiências negativas em serviços de saúde e intervenções terapêuticas menos efetivas (APA, 2015a; BPS, 2019; PSI, 2015; PSSA, 2017). Além disso, os avanços decorrentes do crescente número de pesquisas recentes relacionadas a este tema implicam na necessidade de revisão das diretrizes anteriormente estipuladas (APA, 2021; PSI, 2015). As justificativas apresentadas em comum pelas associações apontam para a necessidade de documentos específicos voltados para o atendimento da população referida, para além das orientações éticas gerais, devido às particularidades da vivência destes grupos, marcada, muitas vezes, por discriminação, desconhecimento e patologização.

Em relação à população-alvo a qual o documento se refere, cada texto apresenta uma classificação distinta. Alguns deles tratam somente sobre questões de identidade de gênero ou orientação sexual (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; PSI, 2015), enquanto outros discutem ambos os temas (APPR, 2014; BPS, 2019; PSSA, 2017). Por outro lado, outros documentos se referem à população-alvo de forma mais abrangente, incluindo, dinâmicas e práticas de relacionamento dissidentes, como relacionamentos adeptos do BDSM (práticas fetichistas de bondage, sadismo e masoquismo), não-monogâmicos, ou quando somente um dos parceiros é assexual ou bissexual (BPS, 2019). A forma como cada documento concebe essa definição pode implicar em uma abrangência maior ou menor dos princípios de ação descritos.

Os princípios para a ação

Os princípios para ação são recomendações práticas e competências requeridas que orientam a atuação profissional para o melhor exercício. Todos os documentos organizam seus princípios por temas, e enquanto alguns têm especificidade e abrangência maiores (ACA, 2009, 2012; APA, 2015, 2021; APPR, 2014, PSSA, 2017), outros são mais generalistas (BPS, 2019; PSI, 2015). Aqui, as normativas foram organizadas em 5 subcategorias: 1) Avaliação crítica dos profissionais sobre as contribuições da Psicologia; 2) Auto-avaliação profissional; 3) Reconhecimento das opressões vividas pela população LGBT; 4) Desenvolvimento de uma postura profissional afirmativa; 5) Promoção de mudança social/política.

Avaliação crítica dos profissionais sobre as contribuições da Psicologia

É importante reconhecer que, historicamente, a psicologia agravou a discriminação contra indivíduos LGBTI+, sendo que os esforços históricos para patologizar identidades e orientações diversas exercem influência no tratamento psicológico dessa população até os dias atuais (Aragusuku & Lara, 2020; Palma & Stanley, 2002). Dessa maneira, o profissional deve estar ciente de que este histórico pode contribuir com uma desconfiança da pessoa em relação à profissão e até mesmo com o receio de buscar assistência psicológica devido a experiências negativas anteriores. (ACA, 2009, 2012). A recomendação é de que o profissional se afaste de modelos focados no déficit e use abordagens que endossem o bem-estar e a resiliência nos níveis individual e coletivo (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; PSSA, 2017; APPR, 2014). É fundamental reconhecer os danos emocionais, psicológicos e, muitas vezes, físicos que podem ser causados pelo envolvimento de clientes em abordagens que tentam alterar, "reparar" ou "converter" a orientação afetiva e/ou identidade/expressão de gênero. Estas práticas não são cientificamente embasadas e os psicólogos não devem engajar-se nelas (ACA, 2009, 2012; APA, 2015, 2021; BPS, 2019).

Algumas associações ressaltam, ainda, como certas teorias e instrumentos para avaliação de áreas como do desenvolvimento, dinâmicas grupais e de orientação profissional e de carreira podem não levar em conta as barreiras e desafios particulares que os indivíduos LGBTI+ enfrentam e, portanto, não oferecer suporte fidedigno ao tratamento. Assim, profissionais competentes devem avaliar criticamente os procedimentos e instrumentos de avaliação e entender como algumas medidas de avaliação, como o Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM) e outras ferramentas de diagnóstico podem endossar normas que impactam negativamente os indivíduos LGBTI+ (ACA, 2009, 2012; PSSA, 2017).

No que diz respeito à pesquisas sobre pessoas LGBTI+, o profissional deve identificar as limitações dos métodos no que se refere à amostragem, em relação a questões de confidencialidade, como por exemplo, jovens LGBTI+ não assumidos para seus pais e que, portanto, não podem buscar o consentimento deles para participar de estudos; e generalização entre identidades distintas dentro das experiências LGBTI+, como inferências sobre homens gays que podem não ser aplicáveis entre lésbicas ou homens bissexuais. Sendo assim, deve-se consumir pesquisas sobre pessoas e comunidades LGBTI+ de forma crítica (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021). No que se refere a programas de treinamento, graduação e especialização, recomenda-se reconhecer a importância de se ter estagiários, professores e supervisores LGBTI+, e a inclusão efetiva dessa temática nos planos de ensino, para além de meras citações (APA, 2015, 2021).

Auto-avaliação profissional

Uma auto-avaliação por parte do psicólogo é considerada necessária para a oferta de tratamento psicoterapêutico à pessoa LGBTI+. Essa ação visa garantir que os cuidados sejam não somente apropriados, mas eficazes, e pode ser realizada por meio de diversas ações como a análise dos preconceitos, limites da formação e o impacto da própria identidade/expressão de gênero no tratamento e a necessidade de treinamento e supervisão.

Assim, o profissional deve estar ciente de como seus próprios preconceitos e/ou privilégios podem influenciar o trabalho com a pessoa LGBTI+, seja induzindo um direcionamento equivocado ao tratamento ou ignorando demandas apresentadas pelo indivíduo. É necessário reconhecer os próprios valores relacionados a questões de gênero e sexualidade e refletir sobre suas suposições internalizadas. Reconhecer que vive, assim como o cliente, em uma sociedade cisheteronomativa e também está suscetível a crenças e atitudes negativas em relação a pessoas LGBTI+ (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; APPR, 2014; BPS, 2019). É importante reconhecer a possível influência de preconceitos no planejamento, implementação e aplicação de pesquisas envolvendo pessoas LGBTI+, considerando a gama de aspectos políticos e perspectivas científicas que podem interferir nas perguntas feitas, nas amostras e nas implicações apresentadas nos estudos (APA, 2015, 2021). O profissional deve saber que uma pesquisa nunca é isenta de posicionamento (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021).

É importante o profissional reconhecer sua própria experiência e treinamento com gênero e sexualidade para o cliente no encontro inicial, sendo franco sobre suas limitações, especialmente quando questões relacionadas são o motivo da procura por tratamento (ACA, 2009, 2012; PSSA, 2017). Da mesma forma, deve-se reconhecer quando não se possui competências suficientes para tal e realizar o encaminhamento para outros profissionais que sejam capazes de fornecer cuidados apropriados (APA, 2015a, 2021; PSI, 2015). Para lidar com dilemas éticos que podem impactar o vínculo terapêutico, sugere-se que o profissional deixe o cliente ciente dos acontecimentos, de maneira que ele participe de maneira ativa das decisões a serem tomadas, fortalecendo o relacionamento terapeuta/cliente (ACA, 2009, 2012).

O profissional deve reconhecer que sua própria identidade/expressão de gênero e orientação afetiva podem influenciar no processo terapêutico. Ainda que o profissional seja LGBTI+, ele não está isento de possíveis preconceitos (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; PSSA, 2017). Reconhecer o próprio poder e privilégios envolve a prática de "humildade cultural" (Griffith et al., 2017), que consiste em um processo contínuo de reflexão e crítica, mantendo-se ciente de como a cultura pode afetar comportamentos relacionados à saúde. Desenvolver a humildade cultural diz de um comprometimento constante em combater desigualdades de poder, engajando-se em ações para melhorar a vida de seus clientes, como combater a opressão, e contribuir com mudanças nos sistemas que alimentam disparidades de saúde relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero (APA, 2015a, 2021; PSSA, 2017).

O profissional deve buscar treinamento e supervisão com profissionais capacitados para garantir a oferta de uma assistência adequada a essa população, utilizando estes espaços como ferramentas para reconhecer possíveis preconceitos e evitar o abuso de privilégio e poder (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; PSSA, 2017). Estar constantemente buscando conscientização, conhecimento e habilidades para atender às questões LGBTI+ é fundamental devido ao rápido desenvolvimento de pesquisas e à crescente base de conhecimento relacionada à experiência, comunidade e vida LGBTI+. Isso pode se dar por meio de conversas com indivíduos e comunidades; lendo sobre pessoas, suas vidas e suas histórias; e participando de workshops, seminários, conferências e reuniões (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; APPR, 2014; PSSA, 2017).

Reconhecimento das opressões vividas pela população LGBTI+

Uma parte significativa das diretrizes contidas nos documentos se refere à necessidade de reconhecimento por parte do profissional acerca dos efeitos das opressões e desafios experimentados pela pessoa LGBTI+. Os autores (APA, 2015a, 2021; ACA, 2009, 2012; BPS, 2019; PSI, 2015; PSSA, 2017) apoiam-se no Modelo de Estresse de Minoria (Meyer, 2003) para desenvolver as recomendações, assumindo a existência de estressores adicionais à pessoa LGBTI+ devido à inquietação social em torno das questões de gênero e sexualidade. Destaca-se, ainda, a possibilidade de que estressores de minoria distintos possam ocorrer simultaneamente, interagindo e influenciando a saúde mental e comportamental, física e psicossocial entre pessoas LGBTI+ que possuem múltiplas identidades marginalizadas (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; BPS, 2019; PSI, 2015; PSSA, 2017).

Denota-se a importância de estar ciente das estruturas econômicas, ambientais, políticas e históricas que impactam a saúde mental de muitos indivíduos LGBTI+ e os obrigam a enfrentar barreiras adicionais (APA, 2015a, 2021; ACA, 2009, 2012; BPS, 2019; PSI, 2015; PSSA, 2017). Portanto, deve-se reconhecer a existência de estressores físicos, como dificuldade de acesso a cuidados de saúde; sociais, como conflitos relacionais, familiares e afetivo-sexuais; emocionais, como ansiedade, depressão, abuso de substâncias; culturais, como a reprovação de outras pessoas e a deslegitimação de sua identidade ou orientação; espirituais, como o possível conflito entre seus valores espirituais e os de sua família; e econômicos, como problemas financeiros resultantes de discriminação no emprego.

Estes fatores podem interferir na capacidade de indivíduos LGBTI+ atingirem seus objetivos, além de afetar as decisões e marcos de desenvolvimento em suas vidas, independentemente da capacidade de resiliência. Ou seja, as tarefas típicas de desenvolvimento da infância, adolescência, adultez e velhice LGBTI+ podem ser comprometidas por ansiedade e depressão, ideação e comportamento suicida, fracasso acadêmico, abuso de substâncias, abuso sexual e verbal, falta de moradia, prostituição e infecção por IST/HIV (ACA, 2012; APPR, 2014; PSSA, 2017; PSI, 2015).

Também é destacada a compreensão de que a internalização da construção social de gênero e sexualidade interfere na maneira como as pessoas LGBTI+ gerenciam os níveis de aceitação de seus próprios desejos afetivos, românticos e sexuais (APPR, 2014; PSI, 2015). Portanto, os psicólogos devem estar cientes da homotransfobia internalizada que o cliente/paciente pode apresentar, tendo em vista que essas pessoas nasceram e cresceram dentro de uma sociedade e cultura heteronormativas. Além disso, compreender que, às vezes, os indivíduos podem não reconhecer as opressões ou tensões que possam ter experimentado se tiverem altos níveis de opressão internalizada (ACA, 2012; APPR, 2014).

No âmbito profissional, salienta-se que os estressores adicionais podem afetar interesses e valores vocacionais, perspectivas de emprego e carreira, capacidade de tomar decisões profissionais, gerar dificuldade para equilibrar vida profissional e pessoal (APA, 2015a, 2021). O psicólogo deve ter conhecimento de como a opressão sistêmica e institucionalizada contra indivíduos LGBTI+ pode comprometer o desempenho de carreira e resultar em avaliações negativas de desempenho, limitando as opções de carreira, resultando em subemprego, menor acesso a recursos financeiros e a concentração dessa população em certas áreas, em detrimento de outras. Além disso, é importante estar sensível a como as experiências de opressão e/ou violência podem influenciar na diminuição da satisfação profissional, falta de segurança e conflitos interpessoais (ACA, 2009, 2012; APPR, 2014).

Um desafio comumente experienciado pela pessoa LGBTI+ diz respeito aos seus relacionamentos. Além de reconhecer o estigma associado a estruturas familiares e dinâmicas de relacionamento que podem não ser legalmente reconhecidas ou socialmente legitimadas, como relacionamentos homoafetivos, não-monogâmicos e a homoparentalidade (APA, 2015a, 2021), o profissional deve saber que a estrutura da família de origem de um indivíduo LGBTI+ pode mudar ao longo do tempo, especialmente como efeito da aceitação ou rejeição pela família, e reconhecer o impacto que ser rejeitado pode gerar. É necessário reconhecer também que as pessoas LGBTI+ podem optar por continuar a ter relacionamentos próximos com membros da família de origem, ainda que estes não sejam receptivos ou não demonstrem apoio (APA, 2015a, 2021).

Se existirem problemas na "família de origem", o indivíduo pode criar uma "família de escolha", entre amigos e parentes que o apoiam (ACA, 2009, 2012; APPR, 2014). É importante saber que as pessoas LGBTI+ podem se referir à sua rede de amigos, parceiros e/ou ex-parceiros como família ou parentes, bem como, ou em vez de, sua família de origem (ACA, 2012; BPS, 2019; PSI, 2019). E, mais do que isso, é entender como as famílias de escolha podem servir para minimizar experiências de discriminação e marginalização e amenizar o sofrimento psicológico, especialmente com indivíduos rejeitados pela família de origem (APA, 2015a, 2021).

Desenvolvimento de uma postura profissional afirmativa

Para uma boa prática, os documentos salientam a importância do desenvolvimento de uma perspectiva afirmativa. Esta pode ser definida como uma construção dada pela união de diversos elementos e se configura, de modo geral, como uma postura assumida pelo profissional, que leva em consideração a ética profissional e as necessidades específicas dos clientes LGBTI+, de modo a questionar e confrontar a normatividade (Davies & Neal, 2000). É considerada fundamental a ciência de que as orientações e identidades diversas não são patológicas, nem causadas por traumas ou desenvolvimento psicossocial interrompido e fazem parte da diversidade sexual do ser humano (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; APPR, 2014; BPS, 2019; PSSA, 2017; PSI, 2015).

A postura afirmativa pode ser traduzida na utilização de intervenções que promovam empoderamento e resiliência. Nesse sentido, sugere-se que o profissional evidencie junto ao cliente LGBTI+ o potencial de integrar sua orientação sexual e identidade de gênero em uma vida e relacionamentos funcionais e saudáveis, apesar das experiências de opressão (ACA, 2009, 2012; APPR, 2014; PSSA, 2017; BPS, 2019). É importante encontrar aspectos que fazem a pessoa LGBTI+ orgulhar-se; contribuir com o desenvolvimento do senso de agência, capacitando para reconhecer e resistir ao preconceito, identificando possíveis cursos de ação, estratégias de defesa e recursos para enfrentamento (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; PSSA, 2017; APPR, 2014); além de incentivar a conexão com comunidades que legitimem sua identidade e experiências de resiliência, com as quais possam identificar-se e criar vínculos (ACA, 2009, 2021; APA, 2015a, 2021; BPS, 2019; PSSA, 2017).

O profissional pode se deparar com pacientes que experimentam conflitos intensos em relação à sua orientação sexual ou identidade de gênero, pois estes lidam com questões de desenvolvimento de uma identidade não normativa. Em uma postura afirmativa, o profissional explora esses conflitos de maneira empática, indagando sobre a angústia do cliente para identificar os efeitos do preconceito e discriminação vivenciados por ele (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; PSSA, 2017). Em alguns casos, o cliente pode solicitar "terapia de reparação" e o profissional deve fornecer informações precisas e atualizadas sobre diversidade sexual e de gênero e evidências científicas sobre os danos da terapia reparadora (ACA, 2009, 2012).

Em relação a "sair do armário", o profissional deve ter em mente que não se trata de um evento isolado, pois refere-se ao desenvolvimento de uma identidade sexual e/ou de gênero autêntica e no tratamento do estigma internalizado (PSSA, 2017). É um processo que pode estender-se ao longo da vida e que os próprios indivíduos devem controlar e dirigir. A pessoa deve estar preparada para reações positivas e negativas. O profissional não deve tentar pressionar alguém a se assumir acreditando que isso será melhor (PSSA, 2017) e deve reconhecer que o processo de "assumir-se" pode levar o indivíduo a estágios anteriores de desenvolvimento, que podem ou não condizer com a idade cronológica (ACA, 2009, 2012).

No trabalho com os familiares do cliente, recomenda-se ajudar a pessoa LGBTI+ a se comunicar dentro da dinâmica familiar. Isso pode significar trabalho individual, bem como terapia familiar, com o intuito de mediar os relacionamentos, papéis e regras dentro destes sistemas. Às vezes, isso também pode envolver lidar com o sentimento de perda de um filho por parte do cuidador à medida que a pessoa LGBTI+ passa por transições (PSSA, 2017). É importante prover informação científica e sensível aos familiares, fomentar espaços de diálogo e facilitar a interação entre a família de origem e membros da rede de apoio da pessoa LGBTI+, como os amigos (APPR, 2014).

Os psicólogos devem considerar que as muitas formas possíveis de relacionamentos, incluindo relacionamentos monogâmicos e não monogâmicos, sexuais ou assexuais, podem ser opções de relacionamento saudáveis (APA, 2021; BPS, 2019; PSI, 2015; PSSA, 2017); e que as estruturas familiares dos indivíduos LGBTI+ podem variar (ACA, 2009, 2012). Em relação a questões de parentalidade, é necessário reconhecer a multiplicidade de maneiras pelas quais pessoas LGBTI+ se tornam pais, inclusive por meio do sexo com um parceiro do sexo oposto; e que nem todas as pessoas LGBTI+ desejam exercer a paternidade. De forma geral, é importante reconhecer os desafios que os pais em arranjos familiares diversos podem enfrentar, especialmente em relação ao gerenciamento da divulgação da configuração familiar (APA, 2015a, 2021).

O profissional deve se atentar para a utilização de rótulos e termos preferenciais do cliente (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; APPR, 2014; PSSA, 2017; PSI, 2015). É fundamental, ainda, identificar o motivo da procura por assistência, como explorar questões de gênero, questões de carreira ou relacionamento, e garantir que encaminhamentos sejam feitos para serviços devidamente qualificados. A identidade ou orientação do indivíduo LGBTI+ pode ou não estar relacionada às suas preocupações atuais (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; APPR, 2014; BPS, 2019; PSSA, 2017; PSI, 2015). Quando apropriado, o psicólogo pode considerar discutir sua abordagem de tratamento, base teórica, resultados esperados e opções alternativas de tratamento com seus clientes LGBTI+. Uma avaliação abrangente deve ser realizada, considerando não somente a sintomatologia da saúde mental e o sofrimento psicológico, mas também a saúde e sofrimento físicos. Ele deve familiarizar-se com as opções de tratamento médico, como medicamentos supressores da puberdade e terapia hormonal e trabalhar em colaboração com outros profissionais de saúde para fornecer cuidados adequados (APA, 2015a, 2021; APPR, 2014; BPS, 2019; PSI, 2015). Obter informações sobre o processo legal de retificação de gênero/sexo pode ajudar bastante o cliente no processo de transição (APA, 2015a, 2021; BPS, 2019; PSI, 2015).

Promoção de mudança social/política

Esta categoria discute recomendações relacionadas a um contexto de atuação mais amplo, no qual o profissional pode advogar pelo cliente, quando necessário. Este pode usar seus conhecimentos para informar leis e políticas que protegem ou perpetuam discriminação; defender políticas inclusivas nos ambientes de trabalho; indicar maneiras pelas quais as pessoas LGBTI+ podem se engajar politicamente para confrontar os sistemas de opressão; tornar-se um defensor do cliente para além do escopo da prática individual, o que pode incluir a sensibilização do ambiente institucional, ou negociações com instituições e outros contextos em nome do cliente (ACA, 2009, 2012; APA, 2015a, 2021; APPR, 2014; PSSA, 2017).

Isso também inclui a defesa e criação de espaços nos quais pessoas marginalizadas, inclusive pela própria comunidade LGBTI+, sejam capazes de prosperar (ACA, 2009, 2012; APA, 2015, 2021; APPR, 2014; PSSA, 2017). Nesse sentido, recomenda-se o envolvimento do profissional em um contexto mais amplo para combate das opressões, como por exemplo trabalhar com os desenvolvedores de políticas públicas para a criação de projetos que reduzam o estigma e a discriminação, garantindo sensibilidade e inclusão; o envolvimento com organizações que buscam revisar leis e políticas para resguardar os direitos e a dignidade das pessoas LGBTI+ e apoiar a acessibilidade das pessoas LGBTI+ aos serviços de saúde (APA, 2021; BPS, 2019).

 

Discussão

Os documentos convidam a uma perspectiva de atuação crítica e assumem o papel exercido pela Psicologia à medida que consideram o histórico de contribuição da profissão com a opressão da população LGBTI+. Por conta da patologização e sua difusão em diferentes teorias e práticas, somada a cultura ocidental homofóbica, fez-se importante produzir documentos oficiais e específicos para produzir entendimentos que se contrapusessem a essas visões naturalizadas e hegemônicas na sociedade.

A necessidade do exercício de autocrítica pelo profissional é destacada pelos documentos como essencial para a aplicação de uma atuação potente, à medida que funciona como ferramenta para um constante aprimoramento profissional (Brito, 2015). Possibilita também um questionamento dos saberes modernos que, ainda hoje, tendem a moldar os cuidados psicológicos a grupos marginalizados (Paiva, 2008). Nesse sentido, o destaque para o processo de autorreflexão do profissional em relação a sua própria identidade e posição de privilégio e poder reafirma o entendimento de que este, ainda que na posição de terapeuta, permanece situado social e historicamente e, portanto, também as suas compreensões. Sendo assim, a busca por supervisão competente parece ter o intuito de certificar que o processo de autoavaliação aconteça, que os cuidados prestados sejam apropriados e que o caráter relacional do processo terapêutico seja utilizado de forma sensível e produtiva.

A visão que se tem nos documentos da pessoa LGBTI+ é ampla e perpassa diferentes estilos de vida, reconhecendo os múltiplos e singulares cursos possíveis de desenvolvimento das orientações e identidades. Também são consideradas como população-alvo comunidades e familiares, demonstrando uma compreensão ampliada. Essa visão é importante porque confronta um ideal normativo e conservador de suposto bem-estar, validando as diversas outras formas menos convencionais e tão saudáveis quanto de existir e se relacionar. Além disso, dá visibilidade a essas outras formas à medida que educa sobre elas e pode contribuir para que o terapeuta não faça suposições que atribuam qualquer tipo de característica cisheterossexual sobre o cliente.

Há, ainda, a consideração de práticas dissidentes, algumas heterossexuais, associadas a estressores adicionais semelhantes aos que atingem a população LGBTI+, uma vez que também se contrapõem ao pressuposto cisheteronormativo (BPS, 2019; Mota & Oliveira, 2014). Além disso, a maior parte dos documentos procura conscientizar a respeito da interseccionalidade na análise dessas vivências. Contudo, ambos os assuntos são discutidos brevemente, de modo que não se aprofundam sobre suas particularidades e, assim, a inclusão não parece ser bem-sucedida no intuito de fornecer orientações práticas para a atuação em relação aos temas.

As várias recomendações parecem apontar para a adoção de uma postura dialógica e colaborativa, em que a realidade terapêutica é construída em conjunto, em uma relação horizontal (Anderson, 2017), à medida que posicionam o cliente enquanto agente que participa ativamente do processo psicoterápico. A criação de um espaço dialógico convida o cliente a desenvolver repertório diferente do habitual, pautando-se por um diálogo aberto e sem julgamentos e possibilitando a criação de narrativas positivas (Anderson, 2017). Sendo assim, condiz com as recomendações de que sejam utilizadas abordagens voltadas para o bem-estar, e afastando-se de rótulos deficitários.

Contudo, de forma geral, a ação propositiva nos documentos parece conservadora, estando ainda muito centrada na prática individual de saúde mental. A dimensão política, por exemplo, é pouco significativa e vai de encontro com a literatura relacionada, que aponta para um desenvolvimento emergente, escasso e recente de possibilidades de ação do profissional nesse âmbito (Aragusuku & Lara, 2020; Dworkin & Yi, 2003). Um comprometimento político é considerado pelas teorias pós-modernas intrínseco ao papel do psicólogo e fundamental para a ampliação dos cuidados e a contribuição com uma qualidade de vida melhor a grupos marginalizados (Paiva, 2008).

 

Considerações Finais

A análise realizada mostrou que os documentos selecionados são predominantemente do continente americano, caracterizados como diretrizes, publicados na última década, cuja redação foi motivada pelo atendimento insatisfatório da população LGBTI+ e pelo crescimento das pesquisas na área, sendo dirigidos tanto a diferentes identidades de gênero e orientação sexual, bem como, formas de relacionamento dissidentes. As recomendações propostas envolveram: a avaliação crítica dos profissionais sobre as contribuições históricas da Psicologia; a necessidade de auto-avaliação profissional contínua; o reconhecimento das opressões vividas pela população LGBT; o desenvolvimento de uma postura profissional afirmativa; e a importância do envolvimento dos profissionais na promoção de mudança social e política nesse campo.

O estudo teve como limitação a dificuldade de acesso a documentos oriundos de outras localidades e que estivessem disponíveis online na íntegra, produzindo um olhar marcado, predominantemente, pela cultura do continente americano. Mesmo assim, considerando as diferenças dos países de origem dos documentos, as especificidades culturais que potencialmente influenciam as questões tratadas no artigo não foram analisadas. Além disso, grande parte dos documentos analisados tentam dar conta de todas as letras pertencentes a sigla em um mesmo documento, dificultando um aprofundamento sobre o caráter múltiplo dessas experiências.

Espera-se que estudos futuros discutam a importância do papel político do psicólogo e amplie o olhar sobre possibilidades de ação nesse âmbito. Recomenda-se que as organizações de Psicologia no Brasil estejam atentas a esse movimento internacional de reconhecimento da necessidade de aproximação da categoria profissional à realidade LGBTI+. Ainda, espera-se que esse trabalho fomente uma atuação crítica de profissionais da Psicologia e da saúde, de modo geral, auxiliando na compreensão das pessoas e comunidades LGBTI+, e sirva como ferramenta para o aprimoramento da oferta de uma assistência psicológica de qualidade.

 

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Endereço para correspondência
José Vicente Damaceno Netto - josevicented@outlook.com

Recebido em: 16/08/2022
Aceito em: 20/10/2023

 

 

Notas

1 Utilizamos a sigla LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas interssexo) como forma de identificar essa população dada a tendência atual de sua utilização nesse campo de estudos (Facchini & França, 2020). Contudo, reconhecemos seu caráter provisório e em constante transformação, bem como, as limitações decorrentes de uma suposta homogeneidade de um grupo que é diverso e cujas experiências são distintas.
2 O CFP publicou tais referências, mas o fez após a finalização da análise desse estudo, e por isso tal documento não foi incorporado.

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado do primeiro autor (FAPEMIG, No. Processo 11433)

 

Agradecimentos: CNPQ/FAPEMIG

 

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