Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e69615, doi:10.12957/epp.2025.69615
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
Entre a Morte e a Invisibilidade: Uma Análise Clínica da Atividade de Trabalho de Sepultadores
Between Death and Invisibility: A Clinical Analysis of the Work Activity of Gravediggers
Entre la Muerte y la Invisibilidad: Análisis Clínico de la Actividad de Trabajo de Sepultureros
Eduardo Breno Nascimento Bezerra a, Jorge Tarcísio da Rocha Falcão b
, Edil Ferreira da Silva c
, Joeder da Silva Messias d
a Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil
b Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil
c Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, PB, Brasil
d Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, BA, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Os sepultadores, historicamente conhecidos como coveiros, são os trabalhadores responsáveis pela condução dos momentos finais dos rituais fúnebres. Este artigo objetivou analisar a atividade de sepultadores tendo esses trabalhadores como sujeitos ativos no processo de análise de seu trabalho. Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa de cunho clínico-qualitativo pautada nas contribuições teórico-metodológicas da Clínica da Atividade. Participaram desse estudo nove sepultadores de um cemitério ajardinado privado localizado no interior do nordeste brasileiro. A construção de dados contou com o uso da observação dos contextos de trabalho, entrevistas individuais e entrevistas em grupo mediadas pelo uso da Instrução ao Sósia. Verificamos que, para além dos sepultamentos, são as exumações as atividades que demandam mais investimento físico e psíquico dos sepultadores. Esses trabalhadores destacam a necessidade de ter coragem para encarar um trabalho altamente rechaçado pela sociedade. Entretanto, é por meio das relações interpessoais marcadas pelo uso do humor, da cooperação entre eles e do acesso à memória coletiva e transpessoal deste ofício, que eles conseguem ressignificar os preconceitos vivenciados cotidianamente e dar conta do desenvolvimento de suas atribuições profissionais.
Palavras-chave: sepultador, coveiro, cemitério, clínica da atividade, instrução ao sósia.
ABSTRACT
Gravediggers are workers responsible for conducting the final moments of funeral rituals. This article aimed to analyze the activity of gravediggers considering these workers as active subjects in the process of analyzing their own activity. Therefore, we used the theoretical and methodological contributions of the Activity Clinic, developing clinical qualitative research. Nine gravediggers of a private cemetery located in the countryside of northeastern Brazil participated in this study. Data construction included the observation of working context, individual and group interviews mediated using Double Instruction Technique. We verified that besides the burials, exhumations are the activities that require the most physical and psychic investment from the gravediggers. These workers highlight the need of having courage to perform a job that is highly rejected by society. However, they manage to create new meanings for the prejudices suffered daily and carry out their professional attributions working together, developing interpersonal relationships marked by the use of humor, as well as building cooperation agreements and accessing the collective and transpersonal memory of these attributions.
Keywords: gravediggers, cemetery, activity clinic, instructions to a double.
RESUMEN
Los sepultureros son los trabajadores responsables por la conducción de los momentos finales de los rituales funerarios. Este artículo tuvo como objetivo analizar la actividad de sepultureros, teniendo a estos trabajadores como sujetos activos en el proceso de análisis de su trabajo. Por ello, se desarrolló una investigación clínica-cualitativa, basada en las contribuciones teórico-metodológicas de la Clínica de la Actividad. Participaron del estudio nueve sepultureros de un cementerio ajardinado privado ubicado en el interior del nordeste brasileño. Los datos fueron construidos por medio del uso de la observación de los contextos de trabajo, entrevistas individuales y entrevistas en grupo mediadas por el uso de la Instrucción al Doble. Verificamos que, más allá de las sepultaciones, son las exhumaciones las actividades que necesitan de más inversión física y psíquica de los sepultureros. Estos trabajadores evidencian la necesidad de tener el coraje para realizar un trabajo que es muy rechazado por la sociedad. Sin embargo, es a través de las relaciones interpersonales marcadas por el uso del humor, de la cooperación entre ellos y del acceso a la memoria colectiva y transpersonal de este oficio, que logran resignificar los prejuicios que viven y desarrollar sus actividades profesionales.
Palabras clave: sepulturero, cementerio, clínica de la actividad, instrucción al doble.
Inseridos no contexto de profissionais que lidam com a morte, os coveiros são os trabalhadores responsáveis pela condução dos momentos finais dos rituais fúnebres. Segundo a Classificação Brasileira de Ocupações - CBO (Ministério do Trabalho, 2002), código 5166-10, configuram-se como atribuições desse profissional o auxílio aos serviços funerários, a construção, preparação, limpeza, abertura e fechamento de sepulturas; a realização de sepultamento, exumação e cremação de cadáveres; e a conservação dos cemitérios, máquinas e ferramentas de trabalho. A CBO prevê ainda a atribuição de zelar pela segurança do cemitério (Ministério do Trabalho, 2002).
Apesar das poucas pesquisas encontradas na literatura acadêmico-científica brasileira, os estudos realizados com essa categoria profissional têm demonstrado que o trabalho do coveiro não consiste apenas em uma atividade operacional e braçal. Esses profissionais também se encontram imersos na necessidade de prestar apoio às famílias que se encontram em dor e sofrimento pela perda de seu ente (Iraha, Silva & Paula, 2017; Monteiro et. al, 2017; Batista & Codo, 2018), o que se aproxima também das vivências de outros trabalhadores desse segmento, como os agentes funerários (Kovács, Vaiciunas & Alves, 2014; Flores & Moura, 2018) e os técnicos em necropsia (Silva, 2014; Messias, 2017).
Devido à natureza do trabalho que desenvolvem, os coveiros sofrem diversas situações de estigmas sociais (Batista & Codo, 2018; Cativo, Ribeiro & Weil, 2014; Monteiro et al, 2017), o que faz essa ocupação ser compreendida dentro do rol de "trabalho sujo", ou seja, trabalhadores que desenvolvem atividades tidas socialmente como sujas, indesejadas, humilhantes e desprestigiadas (Hughes, 1962; Ashforth & Kreiner, 1999; Lhuilier, 2005). Conceito esse que vem passando por revisão crítica (Bendassolli & Da Rocha Falcão, 2013), de modo que se recomenda a substituição da categoria "trabalho sujo" pela categoria "trabalho precário" (Da Rocha Falcão, Messias & Andrade, 2020).
Pelo fato de lidarem com o corpo humano em estágio de decomposição, sobretudo ao realizarem as exumações, na literatura sobre essa categoria encontramos relatos de que, na convivência com esses profissionais, muitas pessoas se recusam a apertar a mão desses trabalhadores (Monteiro et al, 2017). Outras pesquisas têm apontado que estes trabalhadores são mal interpretados quando sugerem uma antecipação do sepultamento nos casos em que o corpo começa a vazar líquidos ainda no velório, ou em dias de previsão de chuvas fortes no horário do enterro. Nessas situações, os coveiros acabam sendo malvistos pelos familiares do morto que os julgam como preguiçosos, que desejam apenas se livrar logo de suas atividades e que não respeitam a dor dos familiares (Iraha, Silva & Paula, 2017).
Situações como essas refletem o modo como tais profissionais acabam sendo vistos na sociedade. No cumprimento de suas atividades laborais, os coveiros têm tido suas existências, importâncias e reconhecimentos invisibilizados, situações nas quais emergem o sentimento de desprezo social, preconceito e posturas discriminatórias (Batista & Codo, 2018; Costa, Lira & Vasconcelos, 2015; Monteiro et al, 2017; Santos & Almeida, 2017).
A invisibilidade social, o não reconhecimento de suas atividades laborais, as situações de sofrimento inerentes ao trabalho com a morte e com o corpo humano em decomposição, unem-se à baixa remuneração (Cativo, Ribeiro & Weil, 2014), aos riscos (físicos, químicos, biológicos, mecânicos e ergonômicos) associados à sua atividade e às condições de trabalho precárias (Costa, Lira & Vasconcelos, 2015; Batista & Codo, 2018). Isso faz com que esses profissionais estejam muito vulneráveis a situações de sofrimento, bem como ao adoecimento físico e mental (Pêgas, Santos, Guijarro & Poveda, 2009).
Diante do exposto, é notória a relevância de desenvolver estudos com o grupo de trabalhadores em questão, uma vez que essa categoria está inserida no rol de profissionais que lidam com a morte, e que são impactados pelos estigmas e preconceitos inerentes aos sentidos e significados que a morte possui em nossa sociedade (Ariés, 2012; Câmara, 2011). Além disso, as investigações encontradas na literatura científica brasileira sobre os coveiros foram, em sua grande maioria, desenvolvidas com trabalhadores de cemitérios públicos (Batista & Codo, 2018; Cativo, Ribeiro & Weil, 2014; Monteiro et al, 2017). As experiências e vivências de trabalho de coveiros pertencentes à iniciativa privada é um elemento ainda pouco estudado (Andrade, 2020). Considerando o avanço de grandes grupos funerários e o crescimento que os cemitérios do tipo jardins têm tido no Brasil e no mundo (Morais, 2009; Pimentel, 2015), é oportuno também analisarmos os modos de fazer desses profissionais inseridos na ótica privada e capitalizada dos serviços funerários.
Diante do quadro supracitado, a realização desta pesquisa visa ampliar o debate acerca do ofício em questão no campo científico, sobretudo no âmbito da psicologia do trabalho, uma vez que se soma aos estudos que buscam compreender as relações e implicações que a atuação em ofícios que lidam com a morte no cotidiano laboral pode trazer para seus trabalhadores. E, de um modo mais específico, contribui para dar luz e visibilidade à categoria dos coveiros e permite um desenvolvimento dos trabalhadores que participaram deste estudo, pois, como destaca Clot (2010), as pesquisas clínicas que têm os trabalhadores como sujeitos ativos no processo de análise possibilitam que estes saiam do automatismo do cotidiano e se questionem em alguma medida a respeito de sua prática.
Desse modo, este artigo tem como objetivo analisar a atividade de sepultadores, buscando evidenciar as demandas do trabalho, bem como quais os principais obstáculos e impedimentos à realização de suas atividades. Para tanto, consideramos as contribuições teórico-metodológicas da Clínica da Atividade (Clot, 2006; 2007; 2010; 2013), e tomamos os trabalhadores-participantes como sujeitos ativos no processo de análise do trabalho.
Real da Atividade, Gênero e Estilo Profissional: Contribuições da Clínica da Atividade
A Clínica da Atividade constitui-se como uma abordagem que tem como objeto a história do desenvolvimento da atividade de trabalho e a compreensão/transformação dos obstáculos para sua realização. Nesse sentido, tem o objetivo de contribuir com a ampliação das possibilidades de agir dos trabalhadores sobre as situações de trabalho.
Para Clot (2010), principal representante e desenvolvedor dessa teoria, a ação observável no trabalho diz respeito a uma parcela muito pequena de uma totalidade muito mais extensa de ações possíveis que um trabalhador pode ter. Inspirado nas contribuições de Vygotsky, Clot (2006) entende que o ser humano é constituído não somente pelo que faz, mas, sobretudo, nas imensas possibilidades não realizadas. Desse modo, o referido autor formula o conceito de real da atividade e destaca que a atividade realizada corresponde apenas a uma forma de agir que, por diversos motivos, foi escolhida e executada pelo trabalhador. O real da atividade é muito mais amplo e compreende também aquilo que não foi realizado, que não se pode fazer, que se tentou fazer, mas não se conseguiu, incluindo as atividades impedidas (não realizadas), bem como as atividades contrariadas (que se realizou a contragosto), o possível e o impossível (Clot, 2007; 2010).
Clot (2007; 2010) ainda destaca que, na atividade de trabalho, os sujeitos se deparam com conflitos, sendo necessário buscar os caminhos desejados entre o que é possível ser realizado e, quando necessário, criar novos caminhos, novas possibilidades. Essas novas criações só são possíveis através dos diálogos entre o sujeito, o objeto de trabalho e os colegas de trabalho (Clot, 2007; 2010). Porém, se cada vez que na ação da atividade fosse necessário que o trabalhador criasse, o trabalho seria impossível. Assim, inspirado nas ideias de Baktin, Clot (2010) introduz a noção de gênero profissional para se referir às normas compartilhadas entre os trabalhadores para conseguir dar conta de suas atribuições.
O gênero profissional compreende, portanto, aquilo que os trabalhadores de um determinado meio (re)conhecem, esperam, admiram ou até mesmo temem, aquilo que lhes é comum, uma memória transpessoal e coletiva que reúne esses trabalhadores e fornece modos de ser à atividade pessoal. É por meio do gênero que os trabalhadores se avaliam e se julgam mutuamente, e sob ele se alicerça o princípio da economia da ação (Clot & Faïta, 2016).
Entretanto, a estabilidade do gênero profissional não é estanque, mas sempre transitória. Os gêneros profissionais permanecem vivos graças às (re)elaborações e contribuições individuais que o trabalhador realiza na atividade. O indivíduo, munido de seus próprios scripts enraizados no curso de sua vida e sua história, (re)cria sua atividade, processo conhecido na Clínica da Atividade como estilo profissional (Clot, 2007; 2010).
Há uma inter-relação entre gênero e estilo, uma vez que os gêneros permanecem ativos e são aperfeiçoados graças às recriações permitidas pelos estilos. Por outro lado, o desconhecimento do gênero profissional impede a elaboração dos estilos. Assim, ao estilizar, o trabalhador contribui para a reinvenção do gênero, imprimindo nele sua marca, seu modo singular de agir, se reconhecendo naquilo que realiza (Clot & Faïta, 2016; Clot, 2010).
Nesse sentido, as intervenções pautadas na Clínica da Atividade buscam trazer para o diálogo as proposições, as concordâncias e, sobretudo, os pontos de controvérsias na realização da atividade, para que a partir desse embate possam surgir novas possibilidades. O método proposto pela Clínica da Atividade também dá ênfase à necessidade de protagonismo do trabalhador. Inspirado nas ideias de Odonne, Clot (2010) entende que os psicólogos do trabalho não devem assumir uma posição de experts, daqueles que indicam o que deve ou não ser realizado, mas assessorar os próprios trabalhadores, para que eles, com seus conhecimentos e experiências "no chão de fábrica", possam superar algumas das dificuldades e obstáculos que enfrentam no ambiente real de trabalho, bem como sobre eles mesmos.
Os dispositivos de intervenção da Clínica da Atividade acabam por revelar os conflitos e as marcas do trabalho, e, nesse sentido, o psicólogo do trabalho/analista deve provocar nos trabalhadores/protagonistas a análise da ação sobre eles próprios (Souto, Lima & Osorio, 2015). É sob a luz dessas contribuições teórico-metodológicas da Clínica da Atividade que nós, pesquisadores e trabalhadores, desenvolvemos esta pesquisa clínica.
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa nove sepultadores de um cemitério privado localizado em uma cidade de médio porte no interior do nordeste brasileiro. Todos eram homens, com uma média de idade de 33 anos (mínimo 27 e máximo 57). Desses, sete eram casados e possuíam ao menos um filho, quatro possuíam ensino médio completo e os demais, ensino médio ou fundamental incompletos, e renda salarial média de R$1.300,00.
Instrumentos e Procedimentos de Construção de Dados
Para a construção de dados dessa pesquisa foram utilizadas a observação, a entrevista individual semiestruturada e entrevistas em grupos mediadas pelo uso da técnica de Instrução ao Sósia (IaS). As observações dos contextos de trabalho ocorreram entre os meses de janeiro e março de 2021. Nessa etapa foram realizadas várias visitas ao cemitério, em dias e horários diferentes, nas quais foi possível acompanhar vários processos de trabalho realizados por esses trabalhadores, bem como estar com eles nos períodos de pausas para refeições.
Essa primeira etapa foi de grande importância não apenas para criar um vínculo com esses trabalhadores e para compreensão do que eles fazem, mas também, como destaca Clot (2010), para favorecer, por meio de um diálogo interior, um deslocamento dos próprios trabalhadores para a posição de observadores de si e dos seus fazeres. Todas as percepções por parte do pesquisador sobre esses momentos foram registradas em um diário de campo.
Após as observações, foram realizadas entrevistas individuais com esses sepultadores, das quais apenas um não participou, pois se encontrava de férias. Esse momento teve como foco a compreensão da trajetória profissional desses trabalhadores, aspectos da atividade de trabalho e do período pandêmico que vivenciávamos na época. As entrevistas tiveram tempo médio de 40 minutos e todas foram gravadas e posteriormente transcritas para a análise.
A terceira etapa de construção de dados consistiu em encontros em grupos, nos quais foi utilizada a técnica de Instrução ao Sósia (IaS). A IaS consiste em uma técnica criada por Ivar Oddone e apropriada pela Clínica da Atividade, na qual o sósia-pesquisador lança o questionamento aos trabalhadores: "Suponha que eu seja seu sósia e que amanhã eu venha a lhe substituir no seu dia de trabalho; que instruções você me daria com intuito de que ninguém percebesse a sua substituição?" (Clot, 2007; 2010). As questões mobilizadas com essa técnica convocam, sobretudo, a linguagem interior do sujeito sobre os modos de fazer o trabalho, o que está implícito, mas também as falsas evidências (Kostulski, 2013).
Como os sepultadores trabalham em dias alternados, com jornada de 12h de trabalho por 36h de repouso, tal organização possibilitou que constituíssemos dois grupos de participantes para a primeira etapa de IaS. Formamos, portanto, um grupo para cada equipe de trabalho. O primeiro grupo contou com a participação de quatro sepultadores e o segundo, com dois; os demais, por motivos pessoais, não puderam participar dessa terceira etapa.
No segundo momento de utilização da IaS, aquele no qual os trabalhadores analisam o que foi dito por eles mesmos durante a instrução, foram reunidos todos os sepultadores dos dois grupos, os quais puderam analisar e discutir entre si elementos da atividade que desempenham. Esse processo de análise do trabalho se configura como um importante mecanismo de desenvolvimento da consciência dos trabalhadores, pois nesse momento é oferecido ao sujeito "a possibilidade de alterar o estatuto do vivido: de objeto de análise, o vivido pode tornar-se meio para viver outras vidas" (Clot, 2010, p. 223).
Todas essas etapas ocorreram no próprio cemitério. As observações em seus mais variados espaços de trabalho, as entrevistas individuais e a IaS em salas disponibilizadas pela organização, nas quais se faziam presente apenas os trabalhadores e o pesquisador.
Procedimento de Análise
Em Clínica da Atividade, as possibilidades metodológicas de análise dos diálogos são numerosas, de modo que não há uma linearidade no processo de análise da atividade de trabalho (Batista & Rabelo, 2013). Nesse sentido, para a análise do material produzido, assumiu-se uma postura clínica, por meio de interpretações de natureza qualitativa, embasada em alguns constructos dessa teoria, a saber: o prescrito (impessoal), o gênero profissional (transpessoal) e estilo profissional (pessoal), a atividade dirigida ao outro (interpessoal), os impedimentos, as variabilidades, os conflitos e as controvérsias que favorecem o campo do real da atividade e proporcionam desenvolvimento da atividade. Assim, os dados foram divididos em categorias organizadas com o objetivo de lançar luz aos principais aspectos do desenvolvimento da atividade dos sepultadores.
Aspectos Éticos
Durante a realização dessa pesquisa seguimos todas as recomendações estabelecidas nas Resoluções Nº 466/12 e Nº 510/16, emitidas pelo Conselho Nacional de Saúde. Desse modo, esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, CAAE: 30795620.3.0000.5537, sendo aprovada com o número de parecer: 4.065.132. Destacamos ainda que respeitamos todas as normas sanitárias recomendadas pelo Ministério da Saúde em virtude da pandemia da COVID-19, período em que essa investigação foi desenvolvida.
Resultados e Discussão
Durante o período de construção de dados, os trabalhadores afirmaram que preferiam ser chamados de sepultadores e não de coveiros. As falas desses profissionais revelam uma tentativa de diminuírem os preconceitos e estigmas que o nome coveiro carrega historicamente: o de realizar um trabalho "sujo", de menor valor e prestígio social. A linguagem advinda dessa mudança (de "coveiro" para "sepultador") exerce também uma função e um lugar na estrutura das atividades, sejam elas sociais ou psicológicas (Kostulski, 2013).
Assim, mesmo o termo "sepultador" não sendo tão conhecido e utilizado na sociedade, resolvemos utilizar essa nomenclatura para nos referirmos a esses profissionais, considerando que esse foi um pedido deles, e nada mais oportuno numa investigação que, entre outros desdobramentos, buscar dar visibilidade a esses trabalhadores e que as suas falas e desejos sejam considerados. Desse modo, os mesmos serão identificados com a letra S, de sepultador, seguidos dos números de 1 a 9 (S1, S2, S3,…, S9), como forma de respeitar seu desejo e ao mesmo tempo manter o seu anonimato.
Da carniça à coragem: o real da atividade da exumação
Apesar de o sepultamento ser a atividade mais conhecida pela sociedade quando se pensa no trabalho desenvolvido pelos sepultadores, foi a exumação um dos principais pontos que centrou as discussões e análise da atividade durante a realização dessa pesquisa. A exumação diz respeito à prática de retirar os restos mortais humanos da sepultura com a finalidade de transferi-los para outro espaço ou, em casos que envolvam questões judiciais, para averiguação da causa exata de morte (Batista & Codo, 2018).
A maioria dos sepultadores destacou que, dentre as atividades que desenvolvem, a exumação é a mais complicada, que mais exige deles atenção, cuidados e esforços, como destacou um deles: "ela é mais trabalhosa que o sepultamento, ela é mais dificultosa, o trabalho mais difícil de exercer" (S1). Entre os motivos que fazem essa atribuição ser considerada como uma das mais difíceis, se destaca a questão da energia envolvida para sua realização, da imprevisibilidade do que podem encontrar ao abrir um jazigo, bem como os riscos envolvidos na realização dessa atividade, conforme se verifica na fala a seguir:
Porque quando a gente tá dentro do jazigo, além da gente tá ali pegando aquelas placas pesadas, tá com uma roupa de plástico que aquece muito, o jazigo já é quente, aí tu tá lá embaixo, pra jogar uma placa que pesa uns 80kgs pra cima. Ali tu corre o risco de machucar a coluna, de ter uma hérnia, de levar um corte, que ali tem muita bactéria ali no corpo, se ali te contaminar tu pode pegar uma série de doenças, tu tá entendendo? Por isso que ela é mais trabalhosa e todo cuidado nela é pouco. (S8)
Por se tratar de um modelo de cemitério ajardinado, todos os jazigos se encontram embaixo da terra, cada um deles divididos em três compartimentos por placas de concreto. Exumar envolve abrir os jazigos, retirar as placas e adentrar metros abaixo do solo para remover os restos mortais. Os sepultadores reconhecem os riscos associados a essa atividade e todas as implicações que sua execução pode trazer para sua saúde e segurança.
Conforme destaca Clot (2013), os trabalhadores passam uma parte considerável de seu tempo se ocupando dos riscos que correm para se livrar de outras situações que são perigosas e que lhes são impostas, como é o caso do sistema de drenagem presente nos jazigos. Quando entupido, a água e as secreções do processo de decomposição do corpo humano não escoam pelos ductos e vão se acumulando dentro de um ou mais jazigos. Essas situações são as que mais mobilizam esses trabalhadores, conforme é possível perceber no trecho da IaS a seguir:
S4 - Pode ser que esteja entupido lá, às vezes até o caixão tá boiando e os ossos tá dentro d'água, e aí é pra catar os ossos dentro d'água.
Sósia - Como é que eu faço isso?
S4 - Você tem que ter coragem, tem que esquecer o que tá vendo, tem que enfrentar, aí tem um defunto em cima, aí abriu o debaixo e tá entupido, a água tá dando no meio da sua bota, que tá descendo coisa do outro defunto, você tem que descer e…
S7 - Teve uma vez que nós fomos fazer uma limpeza e quando abriu o negócio tava feio. Tinha um menino que trabalhava como técnico de segurança, até ele disse "Meu Deus!". E eu tive que tomar uma atitude, eu entrei na profissão, vou ter que ser carniceiro mesmo, pular e tomar uma atitude de fazer. Outra pessoa no meu lugar ele não ia fazer, ele ia botar os bofes pra fora, e a gente não, a gente sabe que tem que deixar pronto, principalmente pro sepultamento.
S4 - O problema tá ali, né? Você tem que chegar com a solução, se tiver entupido, se tiver cheio de gordura e secreção.
S7 - Tem que tirar no balde.
S4 - É, tem muita gente com preconceito que compara o coveiro até com o carniceiro.
S7 - É, muita gente.
S4 - E de certa forma até tem que ser.
S7 - Se não for carniceiro pode pedir pra sair, que é difícil, não aguenta não, é difícil. Tem coisa que você fica "caraca, eu fiz isso aqui?", você nem acredita.
Abrir uma sepultura é uma atividade que se reveste sempre do inédito, os sepultadores nunca sabem em que estado os restos mortais estarão, e nesse cenário é preciso estar preparado para muitas situações. "Esquecer o que tá vendo", "enfrentar", "tomar uma atitude" são ações que os sepultadores precisam desenvolver para conseguir dar conta de seu trabalho, tendo o trabalhador que criar coragem e enfrentar o que está impedindo a atividade.
Os ensinamentos aprendidos a partir do gênero profissional são essenciais para esses trabalhadores, sozinhos talvez eles não conseguissem dar conta dessa atividade. Ao apresentarem que tem que usar um balde para remover as gorduras e líquidos que não foram drenados, o diálogo entre os sepultadores demonstra um caminho construído por eles para realizarem a limpeza dos jazigos. Em teoria, eles não precisariam realizar isso, pois o serviço de drenagem deveria funcionar normalmente; contudo, utilizar um balde para fazer a limpeza se coloca como uma possibilidade para enfrentar aquilo que parecia impossível de ser realizado.
Entretanto, nesse momento, a necessidade de agir não está voltada unicamente para os ensinamentos do gênero, mas exige uma estilização da atividade, um acesso voltado também para os próprios "estoques de prontos-para-agir" desses trabalhadores (Clot & Faïta, 2016, p.51). A organização coloca que os sepultadores devem realizar a exumação, mas no dia a dia, o real coloca situações não pensadas que demandam desses trabalhadores uma ação imediata, uma reinvenção dos modos de realizar aquela atividade, "porque você abriu o jazigo e se deparou com aquela situação, você naquele momento tem que criar uma solução. E você tem horário pra cumprir aquilo ali, tem que dar a solução" (S8). São nessas situações, nos enfrentamentos dos impedimentos da atividade, que o trabalhador produz uma estilização, num período de tempo determinado pela organização, ele cria e recria modos de atuar sobre o inédito, o que permite "manter um estado de marcha" desse gênero profissional, transformando-o e desenvolvendo-o (Clot & Faïta, 2016).
A necessidade de ser carniceiro foi um ponto muito discutido entre os sepultadores durante a etapa de autoconfrontação. O termo "carniceiro" foi por eles debatido, analisado e interpretado, e por mais que os trabalhadores reconheçam que lidam com os restos mortais, com secreções do processo de decomposição dos cadáveres, com o mau cheiro e todos os demais elementos muito associados ao que é podre e à carniça, eles destacaram que o termo "carniceiro" não é o mais adequado para ser atribuído a eles: "‘carniceiro' é um nome meio feio, né, e se falar assim, a gente já vai se sentir ofendido, é pesado. O nome é ‘corajoso'!" (S9).
A substituição do nome "carniceiro" por "corajoso" se configura como um objeto linguageiro que, segundo Kostulski (2013), navega nas atividades, possibilitando uma mudança de estatuto e impulsionando transformações importantes na dinâmica das atividades em curso. Ao se denominarem por corajosos, essa nomenclatura revela uma condição importante para ser um sepultador, a de que é preciso ter coragem para encarar uma atividade que é julgada pela sociedade como algo sujo e nojento, e que por isso poucas pessoas se dispõem a realizar (Iraha, Silva & Paula, 2017; Batista & Codo, 2018, Andrade, 2020).
A exumação pode ser vista como uma atividade desenvolvida apenas por aqueles que têm coragem de lidar com o que é podre e correr os riscos implicados na realização dessa atividade, o que faz dos sepultadores profissionais corajosos. Por meio dessa substituição do termo "carniceiro" por "corajoso", os sepultadores reelaboram o vivido, tornando o seu trabalho mais palatável para si próprios. Reconhecer-se como uma pessoa corajosa é uma estratégia desenvolvida por esses trabalhadores para conseguir realizar bem o seu trabalho.
Por mais que sejam trabalhadores corajosos, essa coragem não implica em negligência, e os sepultadores destacaram a necessidade do uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para a realização de suas atividades. No caso específico da exumação, durante a realização dessa pesquisa, os sepultadores utilizavam, entre outros EPIs, um avental de plástico. Avental que, se por um lado protege-os de alguns riscos de contaminação, por outro contribui para o aquecimento e sudorese, bem como dificulta a movimentação dos membros inferiores. Por meio da observação do trabalho desses profissionais, verificamos que eles realizam puxões no avental plástico para deixá-lo mais maleável e não atrapalhar tanto a mobilidade durante a exumação. Nesse sentido, eles próprios encontraram uma forma de realizar o "ajuste" desse recurso.
Ao discutirem em grupo sobre o uso dos EPIs, os sepultadores destacaram a necessidade de mudança desse avental por um macacão, outrora já utilizado por eles em outros momentos, "antes a gente fazia com uns macacão, era muito melhor do que esse avental" (S8). Essa mudança de EPI traria ganhos consideráveis para o desenvolvimento de suas atividades e foi um dos pontos aludidos por eles ao longo das discussões entre si, visando uma transformação do trabalho.
Durante essas discussões e análise da atividade, os sepultadores compartilhavam entre si muitas vivências no trabalho, momento de grande importância para esses trabalhadores que, ao trocarem experiências, contribuíam para o desenvolvimento de novas formas de fazer a atividade, o que evidencia os desdobramentos clínicos promovidos por essa pesquisa. Conforme destaca Clot (2010) o desenvolvimento de novos possíveis no trabalho ocorre pelo coletivo e inclui processos aos quais não se tem acesso direto.
Ainda sobre a exumação, por ser uma atividade que demanda grande esforço corporal e mental, os sepultadores realizam um rodízio para a sua execução. Cada equipe de trabalho é composta por quatro sepultadores, de modo que "tem duas exumação hoje, por exemplo, aí dois faz aquela e os outros dois faz a próxima, a gente divide assim" (S3). O que demonstra uma forma de organização pensada pelo próprio coletivo dos trabalhadores para conseguirem equilibrar as demandas de trabalho, "que é mode (sic) não se cansar muito, trabalhar em conjunto" (S2). O trabalho coletivo desses profissionais, as formas de comunicação e os acordos de colaboração para o desenvolvimento da atividade foram elementos muito discutidos no trabalho dos sepultadores, pontos que serão destacados a seguir.
Trabalho Coletivo e Fortalecimento do Gênero Profissional
Conforme já aludido, os sepultadores encontram-se divididos em dois grupos de trabalho, sendo quatro em cada equipe de plantão na escala de 12h por 36h. Além dessas duas equipes, há um sepultador folguista que trabalha de segunda a sábado, em horário comercial. Os quatro sepultadores de cada plantão desenvolvem as principais atividades (sepultamento e exumação) sempre em conjunto. Eles próprios se organizam quanto à ordem ou atribuição de cada um durante um sepultamento ou no rodízio de quem realizará as exumações (dois entram no jazigo para exumar e dois ficam prestando auxílios da parte de cima).
Durante a execução dessas atividades, um elemento marcante é a forma de comunicação que esses profissionais estabelecem. Por se tratar de um momento delicado e sensível para os clientes que estão sepultando seu familiar, os sepultadores buscam falar o mínimo possível, seja com os clientes, seja entre si. Esses dados foram percebidos no decorrer de cada sepultamento e exumação que acompanhamos durante as observações, mas também foram discutidos durante a IaS, conforme trecho destacado a seguir:
Sósia - E durante o sepultamento eu falo com a família?
Todos - Não.
S8 - Fique só na sua ali. Não fale demais, não.
S2 - Ali é um momento de tristeza e ninguém fala com ninguém não, é só choro.
Sósia - E eu nem falo com o outro sepultador?
S8 - Não.
S1 - É que cada um já vai pra sua posição, cada um já sabe mais ou menos onde fica. Geralmente eu já fico na cabeça aqui, aí fica cada um dos dois lados e fechou e pronto. Se tiver que comunicar se comunica com olhar, assim, muitas das vezes.
S2 - Um olhar vale mais do que mil palavras [risos].
Sósia - Então a comunicação nesse momento é só com olhares?
S8 - Sim.
S2 - E faz igual a lagartixa, só balança a cabeça [risos].
O silêncio impera como modo de respeito à dor dos amigos e familiares, de modo que, durante o sepultamento, os sepultadores evitam falar com os clientes e também entre si. A comunicação entre eles se estabelece por meio de olhares e de gestos no geral. Se por um lado lidam com o corpo sem vida, por outro precisam estar atentos aos corpos vivos dos colegas de trabalho. Quando S3 fala que "um olhar vale mais que mil palavras", ele apresenta um elemento importante do gênero profissional dessa categoria, o de que é preciso ter atenção a cada detalhe e a cada passo dado pelo seu colega de trabalho para que o trabalho se efetive.
Conforme destacou outro sepultador, "quando tá os quatro, sempre tem que ficar prestando atenção um no outro, faltou uma massa, aí ele já olha pra mim… Nem precisa ele falar, você tem que tá ali sempre prestando atenção" (S4), desse modo, a comunicação não verbal tem grande importância na atividade dos sepultadores, e a falta de atenção no fazer do colega pode comprometer o desenvolvimento do trabalho. O gênero profissional não requer necessariamente formulações verbais (Clot & Faïta, 2016), e esse ponto fica evidente ao observarmos o trabalho desses trabalhadores.
Por outro lado, quando não estão desenvolvendo as atividades de sepultamento e exumação, mas realizando outras atividades sem a presença de clientes, os modos de comunicação entre os sepultadores são completamente diferentes. Nesses momentos, as conversas e as brincadeiras entre eles são constantes. O uso do humor, as brincadeiras sobre atributos pessoais e sobre situações cotidianas da vida pessoal ou do trabalho, e as conversas informais do dia a dia foram elementos recorrentes e fortemente verificados em todas as observações do trabalho que realizamos com esses profissionais.
Essas relações de coleguismo e o bom relacionamento entre eles, manifestados por meio das brincadeiras e utilização do bom humor entre si, permitem que esses profissionais ressignifiquem suas atividades e tornem suportáveis as dificuldades advindas do cotidiano de trabalho. Trata-se de uma estratégia de enfrentamento desenvolvida pelos sepultadores para conseguir lidar com um ambiente tão hostil e desafiador. A utilização do humor foi algo percebido também em outros estudos que destacaram o uso das brincadeiras como forma de lidar com as relações hostis com as famílias enlutadas e com o trabalho árduo que desenvolvem (Iraha, Silva & Paula, 2017; Batista & Codo, 2018).
A cooperação e o bom relacionamento entre os sepultadores também facilitam a transmissão dos modos de agir, de se portar e conduzir as atividades, o que contribui para o fortalecimento do gênero profissional dos sepultadores, bem como para a construção de um espaço onde as variações de se realizar uma atividade podem ser discutidas. Essas atitudes de apoio mútuo dos sepultadores também se apresentaram como importante elemento de suporte para o enfrentamento da pandemia do COVID-19. Convém relembrar que essa pesquisa foi desenvolvida durante o período pandêmico, momento em que esses profissionais tiveram seu trabalho totalmente afetado pela pandemia, não parando de trabalhar - pelo contrário, vivenciaram uma intensificação do número de sepultamentos realizados.
Nesse sentido, estar inserido num grupo de trabalho no qual as relações interpessoais são construídas de modo amigável foi importante para compartilhar as vivências e os receios de cada um deles durante esse período, como o medo da contaminação pelo coronavírus, bem como o de se tornar agente de transmissão do vírus em suas famílias.
Outro ponto em que a unidade do coletivo tem um papel importante é na superação dos estigmas e preconceitos vivenciados por essa categoria profissional. Durante vários momentos dessa pesquisa, falas como "eles acham que a gente é sujo" (S8), "parece que a gente somos porcos pra eles" (S4), "o povo até se assusta quando a gente diz que é sepultador" (S2), estiveram muito presentes, as quais revelam as formas de preconceito sentidas e percebidas por esses trabalhadores. A pandemia desvelou ainda mais esses preconceitos por eles vivenciados, conforme se percebe nos trechos destacados a seguir:
Quando alguém vê, quando sabe que você trabalha no cemitério, aí as pessoas já olham meio atravessados, já saem de perto. Não precisa tá fardado não, se alguém sabe que você trabalha no cemitério, chega na fila do mercado e a pessoa se afasta assim, sai de perto. Principalmente agora com essa pressão da pandemia. (S7)
Na pandemia eu fiz um sepultamento, aí tem uns colegas de lá perto de onde eu moro que trabalha na obra, e eu cheguei perto deles, parece que era o diabo fugindo da cruz. Se encolhia todinho pra não chegar perto de mim, parece que você tava podre. (S4)
Para lidar com essas formas de preconceito, acentuadas pela pandemia, e pelas consequências que a própria pandemia produziu no trabalho e na vida desses profissionais (medo, intensificação do trabalho, mudanças nos modos de agir, exigências da nova paramentação), foi pela via da união do coletivo que foi possível superar todas essas dificuldades: "Eu tava ficando com medo, vendo os meninos ficando com medo também. Então eu comecei a ajudar os meus colegas de trabalho" (S1).
As relações positivas estabelecidas entre os sepultadores se mostraram como um fator importante de apoio e suporte para enfrentarem os obstáculos colocados pelo cenário pandêmico, que trouxe consequências diretas para o trabalho dos sepultadores. Para além da pandemia, o modo de se relacionarem marcado pelo humor e pelo companheirismo permite que esses trabalhadores suportem as dificuldades e imprevisibilidades no cenário da morte, compartilhem os modos de agir, acessando a memória coletiva e transpessoal desse ofício, bem como consigam (re)significar os preconceitos vivenciados cotidianamente.
Essa pesquisa também oportunizou criar entre esses profissionais momentos de discussão sobre essas e outras temáticas do trabalho ao permitir reuni-los e colocá-los numa posição de protagonistas na análise daquilo que realizam. Eles, que muitas vezes são deixados de lado e marcados pela invisibilidade social, puderam, durante essa investigação, (re)pensar em formas de agir, nos âmbitos coletivo-trabalhador e trabalhador-coletivo. As falas a seguir refletem um pouco disso: "Foi gratificante! Foi bom, foi muito bom, essa temporada contigo aí falando sobre nosso trabalho foi muito bom, eu gostei." (S2)
No geral era pra ter mais assim, essa experiência, essa pesquisa assim que você veio fazer, eu achei muito interessante. Você me deixou até pensativo, agora eu fiquei pensando né, a gente que faz todo dia a mesma coisa, mas sempre tem uma coisa ali, que a gente tá aprendendo, se depara com situações que a gente nunca passou antes, e no momento ali a gente vai ter que arrumar solução. Mas vai ter dias que a gente vai se deparar com coisas que a gente nunca se deparou e no automático ali. (S7)
Ao relatarem o desejo de ter outros encontros semelhantes ao que essa pesquisa proporcionou, sobre as possibilidades de refletir, ficar pensativo e discutir sobre o que se faz e sobre as novas possibilidades de agir, podemos perceber que a dimensão clínica proposta pela utilização das técnicas da Clínica da Atividade foi alcançada durante o desenvolvimento dessa intervenção. Conhecer e sentir os modos de agir é essencial para criar novos caminhos e possibilidades (Souto, Lima & Osorio, 2015), o que parece ter sido possível junto a esses profissionais que vivem entre a morte e a invisibilidade.
Considerações Finais
A realização dessa investigação junto aos sepultadores demostrou que a atividade profissional desses trabalhadores é permeada por inúmeros tabus, estigmas e preconceitos que circunscrevem a morte. Dentre os desafios que um sepultador vivencia, lidar com a repulsa, o nojo e a invisibilidade social são elementos que se fazem presentes na vida e no trabalho desses profissionais, os quais exigem uma constante (re)criação e ressignificação de suas atividades para conseguir dar conta de um ofício que é rechaçado pela sociedade contemporânea.
Dentre as atividades por eles desempenhadas, a exumação se configura como uma das atribuições que mais exige esforços físicos e psíquicos desses trabalhadores. É necessário se munir de normas e modos de agir, compartilhadas por um gênero profissional, mas por se tratar de uma atividade permeada pela imprevisibilidade, esses profissionais precisam estilizar a cada nova situação com que se deparam na realização dessa atividade.
Ser sepultador é uma ocupação que demanda coragem, a qual se manifesta pelo assumir de riscos à saúde e pela nobreza de desenvolver uma atividade que é estigmatizada na sociedade e que poucos se colocam à disposição para realizar. Os sepultadores se reconhecem como trabalhadores corajosos, e é por meio desse sentimento que conseguem dar conta das demandas do ofício.
Outro elemento importante para conseguir desenvolver essas atividades é integrar um coletivo de trabalhadores com o qual podem interagir, compartilhar vivências e se comunicarem de forma efetiva, tanto nos momentos críticos da atividade, quanto nos momentos mais informais de trabalho. Os momentos de troca entre esse coletivo, sobretudo aqueles referentes ao trabalho, se apresentaram como fundamentais para o desenvolvimento das atividades desses trabalhadores. Momentos que foram potencializados durante a realização dessa pesquisa, por meio dos encontros em grupo e da técnica utilizada (IaS).
A observação do dia a dia de trabalho dos sepultadores e o vínculo pesquisador-trabalhadores construído durante esse processo também foram elementos importantíssimos para realização dessa intervenção. Os trabalhadores ficaram mais à vontade após algumas barreiras serem quebradas no início dessa pesquisa, e se colocaram à disposição de modo voluntário e entusiástico de participar dos momentos co-construídos.
Destacamos que os dados aqui apresentados não encerram as discussões acerca dessa categoria profissional. É importante que elementos como o trabalho de cremação de cadáveres e as vivências desses trabalhadores durante a pandemia do COVID-19 sejam levados em consideração em outras investigações. Pontuamos também a necessidade de estudos que foquem na discussão dos aspectos de saúde e segurança desses trabalhadores, fatores muito evidentes no trabalho desses profissionais, mas que aqui não foram explorados. Por fim, apontamos ainda a necessidade de que pesquisas de cunho clínico-qualitativo sejam igualmente desenvolvidas com sepultadores dos serviços públicos.
Acreditamos que essa pesquisa contribuiu para a construção de novos sentidos para a prática profissional dos sepultadores-participantes, repercutindo em termos de transformação e desenvolvimento do poder de agir desses trabalhadores, e pretendemos que a divulgação dela permita dar visibilidade a essa categoria profissional tão essencial e, historicamente, tão estigmatizada em nossa sociedade.
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Endereço para correspondência
Eduardo Breno Nascimento Bezerra - eduardobreno@hotmail.com
Recebido em: 11/08/2022
Aceito em: 17/11/2024
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