Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e69123, doi:10.12957/epp.2024.69123
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Relato de Experiência: Visita Virtual como Ferramenta de Trabalho Durante a Pandemia de COVID-19

 

Experience Report: Virtual Visit as a Work Tool During The COVID-19 Pandemic

 

Reporte De Experiencia: La Visita Virtual Como Herramienta De Trabajo Durante La Pandemia Del COVID-19

 

Irene Moura Beteille a, Bruna Tadeusa Genaro Martins de Oliveira b, Ivanna Oliveira b

a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
b Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este relato de experiência, de natureza qualitativa, decorre de nossa atuação, enquanto psicólogas, em um hospital da rede pública de saúde, voltado para o atendimento de pessoas acometidas pelo SARS-CoV, entre os anos 2020 e 2021. Nossa metodologia contará com estudos bibliográficos e apresentação casos clínicos, extraídos dos atendimentos realizados aos pacientes internados no hospital a partir de uma orientação psicanalítica. Em nossa abordagem, buscando mitigar a solidão em que muitos pacientes se viam inseridos, fizemos uso de tecnologias de informação e comunicação (TICs), o que permitiu o contato com os familiares que se encontravam impedidos de fazer visitas em função do alto risco de contágio da doença. Nosso objetivo com esse estudo é demonstrar que a atuação do psicólogo no contexto hospitalar não se limita à abordagem à beira leito. Também é possível viabilizar propostas mais amplas de atenção (nesse caso o uso das TICs), que colaborem com a política nacional de humanização (PNH), a partir de uma abordagem que leva em conta o contexto em que o paciente se vê inserido.

Palavras-chave: psicologia, hospital, covid-19.


ABSTRACT

This experience report of qualitative nature arises from our work, as psychologists, in a hospital in the public health network, focused on caring for people affected by SARS-CoV, between the years 2020 and 2021. Our methodology will rely on bibliographical studies and presentation of clinical cases, extracted from the services provided to patients admitted to the hospital, from a psychoanalytic orientation. In our approach, seeking to mitigate the loneliness in which many patients found themselves living, we made use of information and communication technologies (ICTs), which allowed them to contact family members who were unable to make visits due to the high risk of contagion of the disease. Our objective with this study is to demonstrate that the psychologist's role in the hospital context is not limited to the bedside approach. It is also possible to enable broader care proposals (in this case the use of ICTs), which collaborate with the National Humanization Policy (PNH), based on an approach that takes into account the context in which the patient finds himself inserted.

Keywords: psychology, hospital, covid-19.


RESUMEN

Este informe de experiencia, de carácter cualitativo, surge de nuestro trabajo, como psicólogos, en un hospital de la red pública de salud, enfocado a la atención de personas afectadas por SARS-CoV, entre los años 2020 y 2021. Nuestra metodología se apoyará en estudios bibliográficos. y presentación de casos clínicos, extraídos de la atención brindada a pacientes ingresados en el hospital desde una orientación psicoanalítica. En nuestro abordaje, buscando mitigar la soledad en la que se encontraban viviendo muchos pacientes, hicimos uso de las tecnologías de la información y la comunicación (TIC), que les permitieron contactar a familiares que no podían realizar visitas debido al alto riesgo de contagio. de la enfermedad. Nuestro objetivo con este estudio es demostrar que el papel del psicólogo en el contexto hospitalario no se limita al abordaje junto a la cama. También es posible posibilitar propuestas de atención más amplias (en este caso el uso de las TIC), que colaboren con la política nacional de humanización (PNH), a partir de un enfoque que tenga en cuenta el contexto en el que se encuentra inserto el paciente.

Palabras clave: psicología, hospital, covid-19.


 

 

A ideia do presente estudo surgiu a partir de nossa atuação enquanto psicólogas em um hospital da rede do Sistema Único de Saúde (SUS), na cidade do Rio de Janeiro, destinado exclusivamente ao atendimento de pessoas acometidas pelo SARS-CoV-2, durante a fase mais crítica da pandemia de COVID-19. O objetivo que nos motivou a escrever este relato de experiência foi a possibilidade de compartilhar uma prática que demonstra o quanto a abordagem clínica individualizada não se encontra desarticulada do contexto em que o paciente se vê inserido. A mobilização da equipe de psicologia para a elaboração de um projeto incluindo o uso de tecnologias de informação e comunicação (TICs) se deu a partir da constatação de que não seria possível atender esses pacientes sem buscar modos de mitigar o desamparo em que se viam por, além de adoecidos, encontrarem-se distanciados de seus entes queridos, que não podiam visitá-los.

A metodologia que utilizaremos será de cunho qualitativo, viabilizada através de estudos de caso e pesquisa bibliográfica, tendo como base a psicanálise e o trabalho desenvolvido pelo médico sanitarista Emerson Elias Merhy a respeito do uso de tecnologias.

O hospital em que atuamos, encontra-se localizado na cidade do Rio de Janeiro e, durante o período da pandemia, contava com 74 leitos para adultos divididos em Centro de Terapia Intensiva (CTI), Terapia Semi-Intensiva e Enfermaria. Os atendimentos eram realizados por uma equipe assistencial, que contava com profissionais de enfermagem, fisioterapia, medicina, odontologia, farmácia, serviço social, fonoaudiologia, nutrição e psicologia. Este hospital funcionou como referência para o tratamento da COVID-19 de abril de 2020 até outubro de 2021, período durante o qual atuamos.

Diferentemente de situações anteriores, a conjuntura dos atendimentos às pessoas usuárias do serviço, durante a pandemia, teve como imperativo o isolamento social. Em função do risco de contágio da doença, foram impostas restrições ao modo presencial de cuidado, o que exigiu adaptações das diferentes unidades de saúde. Considerando o potencial de infecção e transmissibilidade do novo coronavírus, quando uma pessoa por ele acometida era hospitalizada, de pronto se estabelecia o isolamento, de modo que o único contato presencial passava a ser com os profissionais do hospital. A distância em relação aos entes queridos, somada à condição de adoecimento, acabou gerando "relatos de tédio, solidão e raiva" por parte dos pacientes, bem como de seus familiares (Faro et al., 2020, p. 8). As implicações deste período crítico sobre a saúde mental foram fatores que demandaram atenção e compuseram uma via de ações ao enfrentamento da pandemia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) chamou a atenção acerca desta questão (World Health Organization, 2020) indicando ser imprescindível a busca por estratégias que atenuassem os efeitos danosos da situação e garantissem o cuidado e atendimento psicológico às pessoas em internação hospitalar, bem como o acolhimento a suas famílias.

Kuybida et al.(2021) chamaram a atenção para o fato de que, durante a pandemia, as modificações ocorridas na rotina dos hospitais conduziram os psicólogos a buscarem adaptar-se, identificando as principais demandas e priorizando o atendimento humanizado, conforme apregoa o HumanizaSus: Política Nacional de Humanização, implantada em 2003. Neste ínterim, notou-se a intensificação do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como dispositivo para o cuidado à saúde, uma vez que possibilitaram respeitar as medidas de redução da mobilidade e contato das pessoas, diminuindo a exposição ao vírus. As TICs têm papel complementar no fazer em saúde, configurando um tipo de tecnologia dura, no sentido atribuído por Merhy (1997), ou seja, são equipamentos do tipo máquina, dispositivos técnicos que auxiliam na comunicação e que podem agregar ao processo de produção de cuidado e ao emprego das tecnologias leves ou relacionais - aquelas tecnologias que dizem respeito ao gerenciamento das relações, à escuta atenta e interessada, ao acolhimento e ao estabelecimento do vínculo.

Em nossa experiência, o emprego destes dispositivos se justificou pela busca por tornar o processo de hospitalização menos doloroso, tanto aos usuários do serviço, quanto aos seus familiares. Como estratégia adicional de cuidado, o serviço de psicologia da referida unidade se organizou para a realização de visitas virtuais e outras formas de comunicação remota (troca de mensagens escritas e de áudio) como meio de aproximação, manutenção de vínculos e apoio, considerando que a comunicação com as pessoas de maior vínculo afetivo e social é um fator psicológico fundamental para suportar o inevitável sofrimento, em situação de adoecimento e hospitalização. No presente texto, trazemos relatos de algumas vivências que servirão de ilustração ao debate teórico que propomos, visando a discutir o uso das TICs como ferramenta auxiliar ao trabalho da psicologia hospitalar em período de pandemia de COVID-19.

Para quê visita virtual?

"Para quê visita virtual?". Não foram raras as vezes em que nos deparamos com tal questionamento. Muitos colegas da equipe assistencial alegavam que a emotividade decorrente do contato remoto com familiares e amigos poderia intensificar o estado de fragilidade, gerando possível aumento na dificuldade respiratória já causada pelo acometimento da COVID-19.

Pinheiro e Bonfim (2009) apontam que, no hospital, a busca por uma maior eficiência no tratamento físico costuma ser priorizada em detrimento da valorização das necessidades emocionais dos pacientes. Essa tendência pode ser compreendida com uma consequência do modelo biomédico, curativista e hospitalocêntrico.

A psicologia no contexto hospitalar se ocupa do processo de hospitalização e das emoções que emergem com o adoecimento, buscando oferecer um espaço de escuta das angústias e de fortalecimento das possibilidades pessoais de enfrentamento da situação (Goidanich & Guzzo, 2012). Por essa razão, sustentamos o uso das visitas virtuais, apesar das resistências, mesmo porque tínhamos o apoio dos familiares e pacientes, que solicitavam a utilização das TICs para estabelecer contato com os pacientes internados.

Assim, em resposta à indagação supracitada - "para quê visita virtual?", informávamos que realizá-la era um desejo que partia dos próprios usuários da unidade, e que não poderíamos realizar os atendimentos à beira leito ignorando o desespero que muitos apresentavam por não disporem de um canal de comunicação com seus familiares. Ademais, a valorização do mundo subjetivo auxilia na compreensão e enfrentamento da doença e da hospitalização (Goidanich & Guzzo, 2012), concepção esta que compôs argumento para a defesa do oferecimento de um canal de comunicação para pacientes internados por COVID-19, visando a atenuar as formas comuns de mal-estar que nestes se manifestavam por meio de sensações de impotência, tédio, solidão, irritabilidade, tristeza e medos diversos (Lima, 2020, p. 5).

Nossa proposta se inspirou em outras experiências e orientações técnicas (Conselho Regional de Psicologia/SP, 2020; Fiocruz, 2020) e fora sistematizada em um Procedimento Operacional Padrão (POP), considerando as especificidades de atuação de psicólogos hospitalares e a ética profissional na assistência aos usuários do serviço hospitalar. As medidas de biossegurança também configuraram importante fator de observação, visando a reduzir ao máximo o risco de disseminação do novo coronavírus e a garantir proteção aos próprios profissionais. Assim, o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), a manutenção dos aparelhos (celular e computador móvel) utilizados em posse apenas dos psicólogos, bem como sua desinfecção com álcool isopropílico a 70%, ao final de cada atendimento, eram requisitos para a execução do trabalho.

Em nossa experiência, a visita virtual foi realizada por meio de chamada de vídeo aos internos na unidade, que manifestavam desejo de contatar familiares e amigos e que apresentavam condições clínicas para tal, conforme informações previamente estabelecidas pela equipe assistencial. Diariamente, era feito um diagnóstico situacional nos setores do hospital, a fim de identificar demandas, verificar as condições de trabalho e a relação risco-benefício na efetivação das visitas.

No que concerne aos familiares e amigos, era feito contato prévio com uma pessoa de referência para avaliação de sua compreensão da proposta e do conhecimento de dados gerais sobre o estado de saúde de seu ente hospitalizado, esclarecendo que informações clínicas específicas e dúvidas sobre a evolução do quadro seriam abordadas pela equipe médica, em outro momento, por meio de ligação telefônica.

Era orientado que não fossem feitos registros de imagens da visita virtual para evitar o compartilhamento em redes sociais, evitando assim a exposição da pessoa hospitalizada. A videochamada tinha duração aproximada de cinco a quinze minutos, sendo realizada por meio de aplicativo de comunicação instantânea por texto e vídeo, em aparelho celular ou computador móvel fornecido pela instituição. O psicólogo posicionava o dispositivo a uma distância adequada que permitisse a boa visão e audição, evitando o contato físico. Após a mediação desse contato, era realizado acolhimento à família e ao usuário do serviço.

Ao longo do artigo, abordaremos alguns casos a fim de exemplificarmos como se deu o uso desse recurso tecnológico como ferramenta aliada na abordagem clínica das pessoas acometidas por COVID-19 e internadas em instituição hospitalar.

O ambiente hospitalar no contexto da COVID-19

A palavra hospital advém, etimologicamente, de hospes - hóspedes - pois, antigamente, nesses espaços de assistência eram recebidos peregrinos, pobres e enfermos (Brasil, 1944). Apesar dessas pessoas serem recebidas no hospital, este não era um espaço de cuidado, mas um local onde as pessoas eram segregadas e depositadas por necessitarem de algum tipo de assistência; seu público-alvo eram os renegados da sociedade. Até o final do século XVIII, não competia ao saber médico organizar e dirigir esta instituição. Mas com o passar dos séculos, o ambiente hospitalar tornou-se um lugar eminentemente médico, onde o biológico hierarquiza as condutas e discussões com as outras áreas do cuidado em saúde (Foucault, 1979).

O discurso biomédico normatiza as relações sociais e o hospital ainda ocupa um lugar de destaque para os sujeitos contemporâneos. Do nascimento à morte haverá, ao menos, uma passagem por lá. É difícil dele prescindir. Contudo, o hospital não é um lugar onde, geralmente, se quer estar, principalmente na condição de paciente. Por tudo isso, buscam-se formas para que a permanência no ambiente hospitalar seja menos assustadora, mais possível e tolerável. A presença de visitas e de acompanhantes é, sem dúvida, uma ferramenta importante para esse fim. Há que se destacar que, tanto a visita quanto o acompanhante devem ser considerados "elementos integrantes do projeto terapêutico", pois possuem evidente eficácia clínica" (Ministério da Saúde, 2007, p.12).

A internação por SARS-CoV-2, porém, trouxe uma suspensão no direito de estar na companhia dos entes queridos, tornando-se, assim, solitária e silenciosa. Em razão dos protocolos sanitários, a pessoa hospitalizada não tem contato com quem ficou fora da instituição: amores e desamores, trabalho, história etc. Esse tempo de profunda solidão passou a acontecer na dureza do que pudesse vir a significar, para cada um, a palavra isolamento.

O ambiente hospitalar destinado ao cuidado intensivo das pessoas acometidas pelo SARS-CoV-2 apresentava um clima tenso, tomado de apreensão e incertezas, de sofrimento e de dor. A iminência da morte se presentificava nos "sacos pretos", vistos, com frequência, por aqueles que lá se encontravam: os usuários despertos (sem sedação) e os profissionais de saúde. Nesse contexto, as vozes costumavam ter um volume ainda mais baixo, em função da falta de ar causada pela doença, o que contrastava com as máquinas emitindo sons muito altos, quase ensurdecedores, gerando uma visão que Checa (2021, p. 2, tradução nossa) considerou digna "de um filme de ficção científica".

Moretto (2019) afirma que, no ambiente hospitalar, a subjetividade é tomada como um risco, mas a psicanálise vem trabalhar com a hipótese de que o arriscado é a exclusão da subjetividade. Para a autora, a intervenção do psicanalista no ambiente hospitalar busca o resgate da subjetividade, cuja função será organizar a cena, operando de forma constitutiva, produtiva e pacificadora.

Para alguns profissionais responsáveis pelo tratamento e cuidado, a fala do usuário precisava ser evitada. Uma das justificativas trazidas para esse posicionamento era a de que o ato de falar faria "o paciente se emocionar", o que poderia "baixar a saturação". Algumas dessas orientações são de fato pertinentes. Isso porque, nos casos em que a saturação do usuário se encontra muito abaixo do nível aceitável, o ato de falar pode gerar um gasto extra das reservas de oxigênio. Entretanto, observamos que, muitas vezes, a fala gera incômodo nos profissionais em razão de trazer consigo a emergência de um sujeito, com os laços e histórias de uma vida.

Enquanto psicólogas, buscávamos promover mudanças nessa perspectiva a partir dos recursos disponíveis. O uso das visitas virtuais viabilizava uma diminuição da angústia pelo isolamento, e permitia que desenvolvêssemos um trabalho clínico com os pacientes. Ao dar voz a estes, lhes concedíamos um saber a respeito de sua própria condição, através de uma clínica que "se afastava de uma postura benevolente da consolação" (Roudinesco, 2009, p. 219).

No entanto, nos víamos tolhidas no que se referia à nossa principal ferramenta de trabalho, que é a escuta do sujeito e de seu sofrimento psíquico. Isso porque, além de muitos pacientes apresentarem dificuldades para se comunicar em razão da falta de oxigênio, havia também, como dito, a resistência de alguns profissionais em relação a esse trabalho de escuta.

Daí podemos perceber que estratégias inovadoras de cuidado podem encontrar resistência dentre os próprios profissionais da assistência. Certa vez, um dos médicos disse para evitarmos fazer as videochamadas pois, "os familiares ficam vendo os pacientes e acabam fazendo mais perguntas ainda". O fato é que esse médico, como tantos outros, percebiam que seus esforços no tratamento dos doentes não estavam sendo suficientes para curá-los. Além de haver poucos recursos em termos de medicamentos efetivos para este fim, os pacientes já chegavam com um comprometimento pulmonar muito grave. Diante desse cenário, os médicos se viam impotentes, conforme atestou outro médico que, por acompanhar o óbito de muitos de seus pacientes diariamente, nos confessou que se sentia "um bosta" (sic).

Quando o setor de psicologia ofertava uma via de contato entre os familiares e os pacientes, os médicos viam-se mais expostos a questionamentos e à própria frustração por serem o veículo de tantas más notícias aos familiares.

Lacan destacou que "o desenvolvimento científico inaugura e põe cada vez mais em primeiro plano este novo direito do homem à saúde", isso porque o "poder da ciência dá a todos a possibilidade de virem pedir ao médico seu ticket de benefício com um objetivo preciso imediato" (1966/2001, p. 10). Por mais que a demanda do paciente não corresponda, e, muitas vezes, seja até oposta àquilo que se deseja, o fato é que os médicos, durante a pandemia, se viram substancialmente confrontados com os limites do que Clavreul chamou de "saber médico" (1983, p. 22).

A atribuição de saber, sustentada pelo modelo biomédico, ainda vigente, é direcionada eminentemente à figura do médico, daí as resistências que rondavam o simples ato de permitir que os pacientes pudessem falar sobre seu próprio sofrimento. Sobretudo no contexto da pandemia de que tratamos, esse ato foi de extrema importância, pois o sofrimento a que os usuários se viram submetidos ganharam dimensões ainda maiores. Freud (1992/1930, p. 85) afirmou que há três fontes de sofrimento para o homem: "a hiperpotência da natureza, a fragilidade do nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos recíprocos entre os homens na família, no Estado e na sociedade".

No caso específico da COVID, poderíamos dizer que essas três fontes de sofrimento se encontram presentes. O vírus em si, enquanto manifestação da potência destrutiva da natureza, passou a invadir os corpos, deixando em evidência a fragilidade destes. Mas o sofrimento gerado nos indivíduos também alcançou a dimensão das relações humanas, tendo em vista que o convívio com os entes queridos passou a ser vedado, havendo apenas o contato com desconhecidos profissionais de saúde, aos quais mal era possível identificar por conta da paramentação pesada exigida nos atendimentos.

Os atendimentos psicológicos buscaram por meio de uma escuta clínica atenta, e lançando mão dos recursos tecnológicos, permitir aos usuários algum apaziguamento da dor, em sua mais deliberada manifestação, dentro de um horizonte que incluía incertezas e, em muitos casos, a confrontação com a iminência da própria finitude.

Recortes clínicos

Uma das características mais marcantes da COVID-19 é sua rápida evolução. Diferentemente de outras doenças respiratórias, a COVID-19 lentamente priva o organismo de oxigênio, sem causar muita falta de ar a princípio, condição que é chamada de hipóxia silenciosa, já que a insuficiência na concentração de oxigênio muitas vezes só é percebida quando o indivíduo já está em um quadro mais grave da doença, sendo necessária a internação hospitalar para reposição de oxigênio (Cerqueira et al., 2022).

Em nosso trabalho, em um hospital voltado para o atendimento desses casos mais graves, verificamos que algumas pessoas mostravam-se surpresas por estarem internadas, não dimensionando a severidade de sua situação clínica. Muitas vezes, já com uma queda acentuada na saturação, e fazendo uso de máscara reservatória com alto fluxo, os pacientes pediam para retornar para casa. Insistiam que não estavam com COVID-19 e que não havia necessidade de internação; que precisavam resolver questões de trabalho e concluir atividades domésticas, aparentemente sem se dar conta da grave situação em que se encontravam. Apresentaremos a seguir alguns casos clínicos, utilizando nomes fictícios, que irão retratar essa e outras situações a serem descritas.

André, com quarenta anos e obeso, chegou ao hospital com um comprometimento pulmonar que alcançava os 75% e quadro compatível com COVID-19. Sua esposa relatou que ele se recusara, por muito tempo, a admitir que precisava de ajuda médica. Quando finalmente resolveu buscar atendimento em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), sua condição clínica já era praticamente irreversível. Ao ser transferido para o hospital em que trabalhamos, André tentou convencer a equipe de que não precisava estar ali internado, pois estaria bem. O conteúdo de sua fala, no entanto, parecia desmentir os parâmetros respiratórios observáveis no monitor, bem como sua visível falta de ar. Víamos, ali, uma divisão: de um lado, André admitiu dirigir-se à UPA, reconhecendo que não estava mais suportando a falta de ar; por outro, ao ser encaminhado ao hospital, dizia não estar com COVID-19, recusando-se a admitir a gravidade da situação, e pedindo insistentemente para que sua mulher pudesse convencer os médicos a retirá-lo da instituição.

É muito difícil para uma pessoa ver-se subitamente privada de sua vida cotidiana em razão de uma doença tão violenta e sobre a qual ainda tão pouco se sabia. Há que se destacar ainda a existência de muitas informações falsas - as chamadas fake news - a seu respeito. Em situações como a de uma pandemia, em que o medo e a incerteza imperam, as pessoas buscam crer nas informações que as confortam, mesmo não havendo embasamento científico para comprová-las (Barcelos et al., 2021). Na época em que realizávamos esse atendimento, por exemplo, foi veiculado um vídeo nas redes sociais em que um médico alegava que exames RT-PCR geravam 97% de diagnósticos falsos positivos para a COVID, e que estudos na Itália e Estados Unidos indicavam que o total de mortes estaria superestimado (Faustino, 2021). Muitos indivíduos apegavam-se a tais informações, recusando-se a acreditar que estivessem contaminados. Nesses casos, as fake news tornavam-se aliadas na tentativa de refutar o tão cruel dado da realidade objetiva, que era a existência da doença.

Nas situações em que as pessoas se mostravam divididas diante da presença da doença, pouco adiantava insistir para que considerassem a gravidade de seu quadro clínico. No caso de André, após perceber que não conseguia se movimentar devido à falta de ar, passou a nos implorar para que deixássemos sua esposa entrar para vê-lo. Embora ela estivesse a poucos metros do marido, separados apenas por uma porta, não foi possível liberar a sua entrada. Nesse momento, conseguimos viabilizar o contato entre ambos através da visita virtual, mediante o uso do aparelho celular de que então dispúnhamos. Ao vê-la na videochamada, André insistiu para que o tirasse do hospital. Ela pôde explicar ao marido que sua internação era necessária naquele momento, e que estaria por perto, realizando as videochamadas sempre que possível. Esta fala o tranquilizou imediatamente. Logo após o contato com a esposa, André foi intubado, vindo a óbito no mesmo dia. Apesar da tristeza da esposa diante da notícia, esta não deixou de nos agradecer por termos proporcionado aquele último contato com seu marido. Reservamos a ela um espaço onde pôde lamentar-se pela morte de André, mas também por sua "teimosia" (sic), ao demorar tanto tempo para buscar atendimento médico.

Durante os atendimentos no setor COVID, as situações costumavam ser muito dramáticas e emergenciais, sendo necessário que agíssemos de forma muito rápida. Em outro momento, o setor de psicologia foi chamado, pois um paciente, a quem chamaremos de Márcio (que ainda testava positivo para a COVID-19), dizia que iria evadir-se da unidade pois, "não estava mais doente, e não tinha necessidade de estar ali".

Márcio, que já havia brigado com boa parte da equipe técnica, estava nu e muito nervoso no momento da abordagem. Ao perguntar o que estava acontecendo, nos explicou: "eles vêm aqui e me acordam, me furam, não me explicam nada… me deixam aqui com essa camisola, com minha bunda toda de fora! Eu quero ir embora daqui, quero minha mulher, meus filhos… olha como estou!". Pedimos a ele que se cobrisse, o que teve certo efeito a quem, até então, era tratado apenas como um corpo adoecido. Após acolhê-lo, nos dispusemos a entrar em contato com sua esposa através do aparelho telefônico do setor de psicologia. Márcio se emocionou muito ao falar com a esposa e com os filhos, dizendo não estar mais suportando a sua ausência. Ao final da chamada, Márcio estava visivelmente mais calmo, agradecendo muito ao serviço de psicologia por nossa "humanidade".

Sobre esse breve relato é possível extrair que, nos casos em que um usuário do serviço se recusa a acatar a existência de um quadro mais grave, não cabe ao psicólogo tentar convencê-lo do contrário, embora tenha sido essa a demanda ao nosso setor. Tampouco dispomos de meios de livrar o sujeito de sua enfermidade. Pudemos, no entanto, oferecer mecanismos para que tal usuário se reaproximasse, mesmo que virtualmente, da vida que ficara do lado de fora do hospital. A realidade, para esses sujeitos, tornou-se um pouco mais tolerável, não sendo necessário um esforço psíquico tão grande para negá-la, como percebemos em muitos casos em que os pacientes recusavam o diagnóstico. No caso de Márcio, o acolhimento clínico atrelado à viabilização da comunicação com a família, lhe permitiu suportar o processo de internação com menos sofrimento, cessando a recusa em relação à enfermidade. Nos dias seguintes, repetimos as ligações à esposa, que também foi acolhida através da ligação, e assim o fizemos até o dia de sua alta.

Também abordamos casos de pacientes que, por estarem muito fragilizados pela internação, recusavam as demandas dos familiares para estabelecer contato. Nesses casos, o sujeito demonstrava estar ciente de seu quadro clínico, pouco querendo saber a respeito do que se passava para além dos muros do hospital.

Esse foi o caso de Fábio, com cerca de trinta anos, que foi encaminhado ao CTI. Segundo seu próprio relato, antes mesmo de ser contaminado pelo vírus, já se encontrava deprimido, em função do adoecimento de sua mãe, acometida por um câncer. A internação foi-lhe tirando o pouco de vitalidade que ainda restava: a cada dia se mostrava mais alentecido, mais fraco e inapetente. Encontrava-se apático e perplexo diante de tudo o que estava acontecendo. Marcamos nossa presença junto a ele, possibilitando que pudesse nos endereçar sua fala, e transmitimos mensagens de voz e vídeos de familiares e amigos. Dado o seu quadro psíquico, porém, por vezes ele recusava a comunicação, tanto conosco como com seus familiares e amigos.

O quadro de saúde de Fábio era um enigma. Além da COVID-19, suspeitava-se de outras comorbidades, como HIV+ e tuberculose. Em um ambiente hospitalar, diante de um não saber sobre o diagnóstico, é comum que se criem, dentre os profissionais, hipóteses sobre a vida dos usuários, fabulações das mais variadas. Escutamos algumas falas sobre o usuário do serviço como: "Ele é meio maluco", "acho que é homossexual", "deve ser usuário de drogas" (sic).

Pudemos observar que muito se falava sobre Fábio, mas nenhum profissional tivera, até então, a iniciativa de dar voz àquele sujeito, a fim de que ele próprio falasse sobre sua história e processo de internação. A partir do momento em que nos dispusemos a ouvi-lo, muitos aspectos que até então eram objeto de fabulações ganharam uma outra perspectiva. A título de exemplo, Fábio tinha o hábito de usar algodões nos ouvidos, o que era visto por alguns enfermeiros como "coisa de maluco" (sic). Durante os atendimentos, porém, ele pôde dizer que estava muito incomodado com os sons dos aparelhos no CTI e que, por ser músico, os barulhos se tornavam ainda mais insuportáveis, dada a sua audição sensível - daí o uso dos algodões para proteger seus ouvidos.

A partir dessa abordagem e da transferência estabelecida conosco, Fábio passou a direcionar algumas demandas. A princípio solicitou a leitura de um livro religioso que estava próximo ao seu leito. Tal leitura, no entanto, tornou-se insuportável, pois o livro em questão trazia uma história trágica que o remeteu à sua própria situação.

Ao contrário dos casos anteriormente citados, em que as pessoas buscavam questionar o diagnóstico de COVID-19, Fábio tinha dificuldade de descolar-se de sua posição de doente, também ocupado pela mãe, com quem se identificava. Diversamente de outros pacientes, pouco se interessava pela utilização do aparelho telefônico para contactar-se com o mundo externo. Esse caso demonstra o quanto é importante que a disponibilização dessas TICs seja viabilizada preferencialmente por um psicólogo, a fim de que não sejam um objetivo em si mesmo, mas uma ferramenta a serviço da clínica.

Ao longo dos atendimentos, Fábio passou a falar sobre seu interesse por música, fazendo parte, inclusive, de grupos de pagode. Pediu para ouvir a música "Orai por nós", do Almir Guineto, cuja letra traz a narrativa de fugitivos "dos grilhões, do horror, das questões" e aflitos que, diante do abismo, sem luz, onde o destino é a escuridão, "clamam para serem olhados". Fábio ouvia e cantava a canção em meio a lágrimas e tomado de emoção. Pela primeira, e única vez, vimos um lampejo de vida ecoar. Na sequência, preocupado em "não tomar nosso tempo", quis mostrar seus vídeos nos grupos de pagode dos quais fez parte. O CTI, por um curto tempo, foi invadido por uma atmosfera musical. Fábio contagiou a enfermeira que tocava instrumentos e pôde acompanhá-lo no ritmo das canções. Apesar do lampejo de vida proporcionado pelo atendimento, o quadro de saúde de Fábio seguia muito grave, e ele veio a falecer naquela mesma noite por parada cardiorrespiratória.

Poderíamos julgar infrutífero o momento acima relatado vivido pelo sujeito, tendo em vista que tal vivência não o poupou de tão trágico desfecho? Essa questão nos reporta ao texto A transitoriedade, em que Freud (1992/1916) traz uma discussão que travara com um jovem poeta, a respeito da transitoriedade do belo. Sob o ponto de vista pessimista de seu amigo, o fato de a beleza ser efêmera implicaria em uma perda de seu valor. Para Freud, trata-se justamente do contrário: "o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição" (Freud, 1992/1916, p. 309). Tal como o desfrute da beleza, a emergência do sujeito, no caso narrado, foi efêmera, e só foi possível através da presença de um analista, que permitiu a Fábio descolar-se da posição a ele relegada, de "paciente maluco", para a de sujeito, convertendo seus outrora julgadores em parceiros musicais. Se o paciente, antes de tudo, é um sujeito, "é porque tem uma história que envolve os traços que foram marcando sua vida, desde a mais tenra infância, e que lhe são absolutamente singulares" (Alberti, 2008, p. 158).

Se a história de Fábio se encontrava encoberta pelo silêncio, a partir do momento em que lhe foi permitido falar, sua singularidade emergiu tão fortemente que ecoou por toda enfermaria, a ponto de converter seus outrora julgadores em parceiros musicais. Freud apontara que "se há uma flor que se abre uma única noite, não por essa razão seu florescer será menos resplandecente" (Freud, 1992/1916, p.310). Mesmo que Fábio tenha falecido horas depois dessa manifestação na enfermaria, tampouco a expressão de sua subjetividade viria a se tornar menos vívida.

Experiências com pessoas intubadas

Uma grande dificuldade que encontramos ao implantar o projeto de videochamadas no hospital foi a de incluir as pessoas em ventilação mecânica nas visitas virtuais. Isso porque, para muitos profissionais de outras equipes, a imagem do usuário sedado, intubado e em ventilação mecânica causaria profundo mal-estar a seus familiares.  Além disso, estando essa pessoa inconsciente e impossibilitada de se comunicar, como participaria de uma chamada de vídeo? Foi preciso pontuar, diante dessa indagação, que, apesar de inconsciente, o usuário "intubado", em coma induzido, continua vivo, não deixando de ter uma história e de fazer parte de uma rede familiar. Além disso, como disse certa vez um familiar, "mesmo dormindo a pessoa consegue ouvir no inconsciente" (sic). De fato, há relatos de pessoas que voltaram do coma afirmando que eram capazes de ouvir sons e vozes familiares naquele estado, demonstrando que a audição é o último sentido a ser perdido (Puggina et al., 2007).

Assim como buscamos humanizar o atendimento às pessoas em ventilação mecânica, também precisamos incluir os familiares nesse processo de humanização, já que estes, em sua maior parte, mostravam-se apreensivos pelo distanciamento imposto aos usuários em função do período de contágio. Em uma situação não pandêmica, na maior parte dos casos, aos familiares são autorizadas as visitas presenciais, momento durante o qual podem falar e tocar seus entes, mesmo quando se encontram em ventilação mecânica. Por que, então, nesses casos, as visitas virtuais causaram tanto estranhamento?

Grande parte dos usuários submetidos à intubação acabavam por falecer e, mesmo em casos extremamente críticos, sustentamos a realização de videochamadas e a transmissão de áudios a essas pessoas. Foi o caso de Carlos, que já se encontrava intubado e com pouquíssimas chances de sobrevivência, quando passamos a realizar videochamadas com seu filho. Mesmo sabendo a respeito do quadro clínico do pai, o rapaz solicitava as chamadas a fim de que pudesse vê-lo. Antes de falar com o pai, o atendíamos através de ligação telefônica, durante a qual discorria sobre as expectativas de ainda vê-lo recuperado. Na última chamada realizada, já a par da irreversibilidade de sua situação clínica, o filho fez questão de se despedir durante a visita virtual. Em momento posterior, quando noticiado oficialmente sobre o óbito (por profissional médico acompanhado de um assistente social e uma psicóloga), o rapaz manifestou a importância dos momentos em que pôde ver o pai virtualmente e do acolhimento proporcionado pela equipe de psicologia.

Situação semelhante ocorreu com Maurício, que também teve que ser intubado, apresentando poucas chances de sobreviver. A família acompanhou o processo de internação através das videochamadas, desde a entrada ao hospital, quando ainda se encontrava consciente, até o seu último dia de vida. Neste dia, a família realizou uma chamada coletiva, em que estiveram presentes, na sala virtual, vários familiares. Religiosos, estes realizaram orações, entoando cânticos e falaram sobre o amor que sentiam por Maurício. Após a comunicação de seu óbito, realizada no hospital, os familiares agradeceram à equipe de psicologia pela possibilidade de despedida. Ao serem acolhidos, uma de suas filhas lembrou-se desta última visita virtual: "a gente sentiu ali que não voltaria a ver o pai, mas ao menos conseguimos dizer a ele tudo o que sentimos, e isso deu um alívio para a gente!".

 

Considerações Finais

Os acometimentos causados pela COVID-19 envolvem dois aspectos importantes: o comprometimento pulmonar e a alta transmissibilidade. Esses fatores colaboraram para que tanto a fala dos usuários quanto o seu contato com a família passassem a ser evitados. A emergência da situação, porém, não levou a uma reflexão sobre o quanto a condição de desamparo daquelas pessoas poderia interferir nos agravos causados pela doença.

Em uma situação tão dramática como a da pandemia que atravessamos, e levando em conta que muitos familiares jamais tornaram a ver seus parentes vivos, a possibilidade de estabelecer contato, mesmo que remotamente, pareceu ter sido muito importante para que algumas famílias pudessem lidar com o afastamento de seus doentes, ou mesmo para que pudessem vivenciar um processo de luto menos doloroso.

As situações aqui narradas ocorreram durante um período em que a população ainda não contava com a proteção em massa proporcionada pela vacina e tampouco se dispunha de protocolos muito estabelecidos sobre a condução do tratamento dos doentes. Nesse contexto, a ciência, apesar de seus inegáveis avanços, mostrou-se limitada diante da adaptabilidade e da rapidez na dispersão do vírus (Grisotti, 2020).

Sabemos que os casos exigiam urgência, mas, muitas vezes, a preocupação com uma possível agitação e desestabilização do paciente encobria uma dificuldade em lidar com sua subjetividade. Nesse contexto, nossa equipe sentiu-se convocada a proporcionar, com os poucos recursos de que dispunha, alguma mudança nesta situação. Seguimos, naquele ambiente contaminado pelo vírus, sem ceder de nossa posição de dar lugar à palavra. Mesmo estando a morte tão próxima em alguns casos, viabilizamos encontros, como a de dois irmãos que não se falavam quando um deles adoeceu. A irmã, do lado de fora do hospital, disse ao irmão por telefone, antes que viesse a ser intubado, que o amava muito. Mesmo já cansado, ele agradeceu, ficando ambos aliviados por terem se reconciliado.

Apresentamos, ao longo deste estudo, alguns exemplos de nossa prática, cujos desdobramentos aqui não se findam. Nosso objetivo foi o de demonstrar que nossa abordagem não deve se limitar ao atendimento à beira leito, sendo importante que não estejamos alheios ao cenário em que os pacientes se veem inseridos. Este relato se deteve ao contexto da pandemia, mas outras situações também exigem do profissional de psicologia a criação de protocolos específicos, tal como ocorre no caso de pacientes em cuidados paliativos, por exemplo.

O uso das tecnologias de informação e comunicação como aliadas dos atendimentos clínicos talvez nunca tenha sido tão marcante quanto no tempo das primeiras ondas de COVID-19, mas é possível verificar - em nossa atuação em hospitais - que a utilização do recurso das visitas virtuais ainda se mostra presente. Isso se dá, por exemplo, com pacientes que se encontram nos Centros de Terapia Intensiva (CTIs), onde não é possível portar aparelhos telefônicos, e as visitações têm horário limitado. Também verificamos situações em que as visitas de familiares não ocorrem com frequência, por razões que incluem limitações para se ausentar do trabalho, ou mesmo resistência a confrontar-se com a fragilidade de um ente querido gravemente adoecido. Nestes casos, permanecemos utilizando as abordagens clínicas associadas a visitas virtuais, prática que, mesmo nestas situações, não costumava ocorrer durante o período pré-pandêmico. Este fator talvez aponte para uma maior sensibilização dos psicólogos em relação às consequências nocivas do isolamento durante a internação.

Vale ainda destacar que o desenvolvimento do projeto incluindo o uso das TICs foi uma iniciativa de nossa equipe, em um hospital pertencente à rede SUS, o que demonstra a importância da atuação de psicólogos nos dispositivos de saúde. Partimos de uma abordagem clínica, que não se limitou à visita aos pacientes à beira leito, mas incluiu a análise do contexto em que estes encontravam-se inseridos. Dessa forma, também visamos a atender o princípio da integralidade do SUS, segundo o qual os indivíduos devem ser compreendidos a partir de um olhar que não leve em conta apenas aspectos biológicos (Castro, 2021).

Foram tempos difíceis, que nos colocaram diante do trágico, e desse lugar tentamos responder com humanidade. Tivemos muitas resistências a nosso trabalho, mas também potentes aliados. Além de muitos colegas de outras equipes, e dos próprios usuários, contamos com o apoio de um dos diretores do hospital - que nos encorajou a elaborar o projeto - e de um técnico de informática, que viabilizou toda a instalação de fios, cabos e roteadores, que permitiram a conexão de pessoas através de aparelhos, demonstrando que até as tecnologias duras podem ser potencializadoras de uma clínica humanizada!

 

Referências

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Endereço para correspondência
Irene Moura Beteille - irenebeteille@hotmail.com

Recebido em: 12/07/2022
Aceito em: 08/04/2024

 

 

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