Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e68078, doi:10.12957/epp.2024.68078
ISSN 1808-4281 (online version)
RESENHA
A Melancolia como Possibilidade: Fazer do Luto, Luta!
Melancholy as a Possibility: Making of Mourning, Fight!
La Melancolía como Posibilidad: ¡Hacer del Duelo, Lucha!
Maria Caroline Cardoso Gomes a
a Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, MG, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O livro "Pandemia e Neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal" de Roberto Calazans e Christiane Matozinho, publicado em 2021, surge como um respiro frente a pandemia do novo Coronavírus (COVID-19) e a perspectiva de um novo normal imposto. Isso porque de novo, este velho normal nada apresenta, pelo contrário, tenta rechaçar as formas de se pensar em um novo mundo onde é possível uma vida comum. No decorrer do livro os autores trabalham questões que partem do negacionismo pandêmico, especialmente no contexto brasileiro, e consideram isso como parte de um projeto de extermínio de uma determinada população no Brasil. Além disso, abordam a respeito da epidemia de depressão da qual padece o mundo e sua relação com o modelo econômico neoliberal vigente na atualidade, para então apresentarem a temática central a respeito do novo normal e discutir a melancolia como uma possibilidade de elaboração e eventual criação de novos mundos possíveis.
Palavras-chave: melancolia, pandemia, luto, luta, neoliberalismo.
ABSTRACT
The book "Pandemia e Neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal" by Roberto Calazans and Christiane Matozinho, published in 2021, comes as a relief in the face of the new coronavirus pandemic (COVID-19) and the prospect of a new imposed normal. That's because again, this old normal presents nothing, on the contrary, it tries to reject the ways of thinking about a new world where a common life is possible. Throughout the book, the authors work on issues that start from pandemic denialism, especially in the Brazilian context, and consider this as part of a project to exterminate a certain population in Brazil. In addition, they address the epidemic of depression that the world is suffering from and its relationship with the current neoliberal economic model,to finally present the central theme about the new normal and present melancholy as a possibility of elaboration and eventual creation of new possible worlds.
Keywords: melancholy, pandemic, mourning, fight, neoliberalism.
RESUMEN
El libro titulado "Pandemia e Neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal" escrito por Roberto Calazans y Christiane Matozinho y publicado en 2021, llega como un respiro ante la pandemia del nuevo coronavirus (COVID-19) y la perspectiva de una nueva normalidad impuesto. Eso es porque nuevamente, esta vieja normalidad no presenta nada, por el contrario, trata de rechazar las formas de pensar en un nuevo mundo donde la vida en común es posible. A lo largo del libro, los autores trabajan temas que parten del negacionismo pandémico, especialmente en el contexto brasileño, y lo consideran como parte de un proyecto de exterminio de cierta población en Brasil. Además, abordan la epidemia de depresión que sufre el mundo y su relación con el actual modelo económico neoliberal. Para finalmente presentar el tema central sobre la nueva normalidad y la melancolía presente como posibilidad de elaboración y eventual creación de nuevos mundos posibles.
Palabras clave: melancolía, pandemia, luto, lucha, neoliberalismo.
O livro "Pandemia e Neoliberalismo: A melancolia contra o novo normal", de Calazans e Matozinho, irrompe a partir de uma inquietação mortífera que assola o mundo frente ao contexto da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). É a partir desse contexto urgente em que se vislumbra o terror, o medo e a angústia, que os autores lançam este livro, apresentando diversos questionamentos a respeito daquilo que é posto como única alternativa, na tentativa de encontrar outras possibilidades. Há uma discussão central a partir da qual todos os capítulos presentes trabalham algum elemento: a sugestão - ou imposição - de um novo normal. Esse novo normal, muito semelhante ao velho normal, sugere uma normalização do fato de que as vidas precarizadas possam ser perdidas caso não se adequem à normalidade imposta pelo discurso do capitalista em sua face neoliberal.
No primeiro capítulo da obra, os autores apresentam uma leitura crítica a respeito do negacionismo da pandemia, em especial no contexto brasileiro, e a consequente banalidade da mortandade. Em nosso país, operou nos primeiros meses de pandemia uma verdadeira promoção da política de morte a partir da gestão da vida e da morte dos mais vulneráveis, em outras palavras, de um verdadeiro extermínio da população. Na data de escrita desta resenha, são contabilizadas mais de 650 mil mortes por COVID-19 somente no Brasil. O capítulo nos apresenta um dado importante para pensarmos as formas de operação dessa gestão de morte. Segundo os autores, concomitantemente ao início da pandemia, houve um aumento de mortes decorrentes de ações policiais em 58% com relação ao mesmo período do ano anterior.
Assim, Calazans e Matozinho deixam claro que o extermínio e a banalidade da mortandade se executam tanto pela mão do Estado via "promoção" de segurança pública, quanto por sua omissão no que tange a ofertar condições de saúde à população. Aqui, o ponto de articulação que julgamos interessante é justamente o reconhecimento do empuxo à morte presente na liderança governamental durante a gestão da pandemia, que, ao colocar a economia à frente dos cuidados com a vida, legitima e perpetua violências típicas do modelo econômico neoliberal. Essas, por sua vez, são consequência, segundo os autores, do caráter ilimitado desse modelo, que transforma tudo em mercadoria - descartável -, inclusive as pessoas.
Essa é justamente a problemática apresentada no segundo capítulo, pois, quando a morte se torna um projeto de extermínio, ela deixa de ser uma experiência de socialização - especialmente no contexto de pandemia, no qual o sepultamento muitas vezes é negado - e se torna exclusivamente parte de um projeto de destruição. Assim, a ritualística do luto é retirada como possibilidade de socialização. A morte, que continua presente, é banida da dimensão de experiência, é enviada para a esfera privada e passa a ser tomada como tabu. Com isso, retiram-se dos sujeitos as referências da experiência da morte que denuncia a precariedade de um determinado modelo de laço social, o qual apresenta como verdade a violência de uma ruptura e marca, de certa forma, a impossibilidade em ressignificar o luto.
É nesse sentido que o relatório da ONU sobre a depressão, tema do terceiro capítulo, entra em cena. A experiência de luto, negada como forma de sociabilização, é sequestrada pela medicalização e pela epidemia da já considerada doença mais impactante para o trabalho - a depressão. Isso porque a melancolia é lenta, enquanto a depressão maníaca é acelerada. Assim, a pandemia viral torna evidente o vínculo já estabelecido entre o neoliberalismo e o aumento da depressão, na medida em que amplia a precarização do laço social neoliberal. E, mais do que diagnosticar os sintomas, o neoliberalismo proporciona uma identificação aos sintomas, transformando, de acordo com os autores, qualquer experiência subjetiva em um transtorno. Dessa maneira, a rapidez atrelada ao discurso capitalista é associada a essa "tentativa de oferecer rapidamente um significado patológico atrelado ao normal, seja ele velho ou novo" (Calazans & Matozinho, 2021, p. 61).
Para os autores, ao lado do fato de que a pandemia pode provocar um aumento nos casos de sintomas de depressão, estaria o fato de que o neoliberalismo faz da lógica diagnóstica da depressão uma epidemia. Dessa forma, o neoliberalismo produz sujeitos sofredores, tema abordado no quarto capítulo do livro. Isso porque, além de implicar a lógica de uma servidão voluntária, o modelo neoliberal, segundo os estudiosos, individualiza uma questão que é coletiva, levando a gestão da morte a um nível no qual os corpos tidos pelo sistema como não produtivos passam a ser considerados matáveis. Nesse sentido, a depressão aparece como resposta à aceleração neoliberal, uma tentativa de interromper o ciclo de atividades incessante; aparece como testemunho do sujeito, isto é, um sintoma frente àquilo que faz ruir o laço social e que é nomeado como uma patologia, justamente para desqualificar o que nesse sintoma aparece como crítica e verdade de um determinado modelo social.
Assim, o trabalho de luto, aquele proposto por Freud (1917/1996) e pelo qual é possível tratar pela palavra, possibilita aos sujeitos simbolizar e consequentemente desejar outras realidades possíveis. O desejo, o luto e outro laço social precisam ser possíveis para além de um "novo normal". Nesse sentido, consideramos que seja preciso conceber o trabalho de luto também como trabalho de luta e insistir na possibilidade de uma futuridade comum.
O quinto capítulo, por sua vez, elucida mais detidamente a respeito da proposta de um "novo normal", que é de certa forma imposto, já que não oferece o tempo necessário para que os sujeitos verifiquem se o novo normal é ou não desejável. E com o processo de empobrecimento da ritualística da morte, vive-se espremido entre duas assombrações: de um lado, o luto não realizado pelos sujeitos e, do outro, a permanência do discurso mortífero promovido pelo neoliberalismo, que abandona os sujeitos à própria sorte. Produz-se, assim, fantasmas que "retornam sempre pela via da violência, seja ela simbólica ou real" (Calazans & Matozinho, 2021, p. 90). Esses fantasmas incorporam a lógica do extermínio chegando à cultura, na medida em que recusam a alteridade como seio da própria identidade e pregam um discurso segundo o qual o vírus é o estrangeiro que deveria ser exterminado. A partir de tais asserções, Calazans e Matozinho propõem o trabalho de luto como uma possibilidade, como alternativa a este novo normal que nos assombra.
Freud (1917/1996) afirma, em seu texto sobre Luto e Melancolia, a ideia de que o "eu" não se constitui sem a alteridade e sem o laço social. Assim, faz-se importante pensarmos o destino dado às perdas, considerando, inclusive, a permanência daquilo que é perdido na constituição do próprio sujeito. Principalmente quando consideramos que, no neoliberalismo, o tratamento do ódio converge, no limite, para a produção destrutiva da diferença e da vida comum. Nesse sentido, o Estado perpetra não somente violências objetivas, mas promove leis que aumentam a desigualdade. Desigualdade essa que, ao final, cai na conta dos sujeitos, submetidos a um discurso de violência contra si mesmos.
Tal violência é proveniente de estratégias de silenciamento próprias do neoliberalismo, intensificadas por uma governança que flerta com o autoritarismo - defende torturas e desaparecimentos - de modo a impedir que o luto aconteça durante a pandemia. Para tal, força-se um diagnóstico depressivo que, por sua vez, constitui um obstáculo ao processo de luto. A esse respeito, os autores escrevem: "O diagnóstico de depressão aponta mais para uma fantasia social de doença que considera que essa historicização se dá sempre de maneira automática e com um objetivo: retornar às linhas de produtividade proporcionadas pelo neoliberalismo" (Calazans & Matozinho, 2021, p. 117). Compreende-se, portanto, que a mercantilização da saúde e o comércio de terapias passam pela negação da possibilidade de simbolizar a morte e de como ela marca nossa finitude. Diante de tais acepções, os autores propõem que o diálogo entre lutos seria uma possibilidade de também fazer o luto do laço social que marca vidas como exploráveis e matáveis.
A melancolia, diferentemente da depressão maníaca, resulta de um trabalho, que por sua vez resulta no julgamento superegóico sobre o sujeito e que o impele à morte, ao imobilismo. Segundo os autores, no neoliberalismo, a melancolia aparece como uma espécie de denúncia da própria indignidade a que o sujeito está submetido nesse modelo de laço social. Assim, ela se apresenta como outra possibilidade, na medida em que responde à aceleração do discurso neoliberal, pois trata-se de "uma paralisação do tempo, em que o sujeito se entrega a um trabalho incessante de tentar lidar com uma perda que não é somente dos objetos, mas também da perda de um futuro diante de uma dissolução das relações com o Outro" (Calazans & Matozinho, 2021, p. 135). E, ainda, na medida em que necessita comunicar, o melancólico é aquele que abre caminho para a ação, pois é quando comunicamos sobre o que nos impede de agir que podemos abrir possibilidade de criar condições para a ação.
Por fim, o livro retoma a questão da melancolia ao especificar a situação do Brasil, país marcado pela violência auto engendrada e violência social. Os autores afirmam que, através da internalização da perda de si como capaz de ser amável e humanizado no desejo do Outro, o sujeito se rende ao ideal do Outro. Assim, a melancolia aparece como um modo de manifestação possível frente a essa forma de violência, melancolia essa que apareceria, representada pela passividade, como marca inquestionável de uma rendição social. É preciso considerar, especialmente agora, como a questão foi apresentada de forma esclarecedora pelos autores, que apontam para o reconhecimento de um mundo além pós-pandemia e não um mundo pós-pandemia ou do novo normal. De forma bem elaborada, Calazans e Matozinho trazem a melancolia como chave mediadora para pensar nesse mundo ainda não nomeado, mas desejável.
Acreditamos que "Pandemia e Neoliberalismo" tenha sido publicado em um momento crucial, lançando luz sobre outras possibilidades, diferentes daquelas funestas oferecidas durante o início da pandemia, marcando que, para além de um futuro sombrio, é possível trabalhar em direção a um mundo que pode - e deve - ser sonhado. Em consonância com os autores, pensamos que a chave para isso estaria justamente em considerar o luto e a melancolia em ação, isto é, considerar as críticas presentes nesses processos como recursos para emancipação dos sujeitos. Reconhecer que repetir uma afirmação à exaustão traz em si a capacidade de ser ato performativo que cria realidades. Trata-se, então, de trazer de volta as memórias das lutas do passado para que possamos demonstrar que há outro mundo possível. Trata-se de reconhecer o ato que levou muitos à luta, de acreditarmos que "a vida só existe se permitir que outro mundo seja sonhado e que o impossível aconteça." (Calazans & Matozinho, 2021, p. 161).
Referências
Calazans, R., & Matozinho, C. (2021). Pandemia e Neoliberalismo: a Melancolia contra o novo normal. Mórula.
Freud, S. (1996). Luto e melancolia. In S. Freud. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916) (pp. 249-263). Imago. (Obra original publicada em 1917).
Endereço para correspondência
Maria Caroline Cardoso Gomes - mcarollinec@gmail.com
Recebido em: 09/06/2022
Aceito em: 07/02/2024
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