Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e67284, doi:10.12957/epp.2024.67284
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
A Câmera Cisgênera: Enquadramentos e Rupturas do Olhar no Documentário Brasileiro
The Cisgender Camera: Framing and Ruptures of the Gaze in the Brazilian Documentary
La Cámara cisgénero: Encuadres y Rupturas de la Mirada en el Documental Brasileño
Aline Rebouças Azevedo Soares a
a Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O mandato do presidente Jair Bolsonaro - de extrema direita e reacionário - iniciava em 2019, quando o audiovisual brasileiro tinha alta circulação de documentários sobre diversidade de gênero e narrativas biográficas de pessoas trans. Diante dessa ambiguidade, interessa-me pensar o atravessamento da cisgeneridade nessas produções. Nesse trabalho, analiso três documentários brasileiros contemporâneos: Katia, o filme (2012), Lembro mais dos corvos (2018) e Bixa Travesty (2018), que foram produzidos após o ano de 2010. Trazem, cada um, uma mulher trans como protagonista e são dirigidos por pessoas cisgênero. Com referências da psicologia social crítica, objetivo apontar e pensar os atravessamentos da cisgeneridade no documentário brasileiro, considerando o CIStema capitalista neoliberal que enfrentamos e as possibilidades de emancipação através da cultura, como a política pública Fundo Setorial do Audiovisual. A metodologia é norteada pelo primado do objeto e articula análise fílmica, análise imanente do discurso e constelação. Os resultados preliminares confirmaram atravessamentos da cisgeneridade nos três filmes, atrelados a indicativos de subversão ao modo clássico de produzir imagens. A continuidade desta pesquisa deverá somar-se aos esforços acadêmicos e civis na desnaturalização da cisgeneridade e na problematização da cisheteronorma.
Palavras-chave: cinema, dispositivo, estudos de gênero, imagem, teoria crítica.
ABSTRACT
The tenure of president Jair Bolsonaro - right-wing and reactionary - began in 2019, when the Brazilian audiovisual sector had a high circulation of documentaries on gender diversity and biographical narratives of trans people. Given this ambiguity, I am interested in analyzing the crossing of cisgenderism in these productions. In this work, I analyze three contemporary Brazilian documentaries: Katia, o filme (2012), Lembro mais dos corvos (2018) and Bixa Travesty (2018), which were produced after 2010 and are run by cisgender people. With references from critical social psychology, I aim to point out and think about the crossings of cisgenderism in Brazilian documentary, considering the neoliberal CIScapitalist system that we face and the possibilities of emancipation through culture, such as the public policy Audiovisual Sectorial Fund. The methodology articulates film analysis, immanent discourse analysis and constellation. Preliminary results confirmed crossings of cisgenderism in the three films, linked to indicatives of subversion to the classic way of producing images. The continuity of this research should be added to academic and civil efforts in the denaturalization of cisgenderness and in the problematization of cisheteronorm.
Keywords: cinema, device, gender studies, image, critical theory.
RESUMEN
El mandato del presidente Jair Bolsonaro, ultraderechista y reaccionario, comenzó en 2019, cuando el sector audiovisual brasileño tenía una alta circulación de documentales sobre diversidad de género y narrativas biográficas de personas trans. Dada esta ambigüedad, me interesa analizar el cruce del cisgenerismo en estas producciones. En este trabajo, analizo tres documentales brasileños contemporáneos: Katia, o filme (2012), Puedo recordar más de los cuervos (2018) y Bixa Travesty (2018), que fueron producidos después de 2010 y son dirigidos por personas cisgénero. Con referencias de la psicología social crítica, pretendo señalar y pensar los cruces del cisgenerismo en el documental brasileño. Considerando el CIStema capitalista neoliberal que enfrentamos y las posibilidades de emancipación a través de la cultura, como la política pública Fondo Sectorial Audiovisual. La metodología articula análisis fílmico, análisis inmanente del discurso y constelación. Los resultados preliminares confirmaron cruces de cisgenerismo en las tres películas, vinculados a indicios de subversión a la forma clásica de producir imágenes. La continuidad de esta investigación debe sumarse a los esfuerzos académicos y civiles en la desnaturalización de la cisgeneridad y en la problematización de la cisheteronorma.
Palabras clave: cine, dispositivo, estudios de género, imagen, teoría crítica.
Este trabalho apresenta um recorte de pesquisa sobre o atravessamento da cisgeneridade na construção do olhar no documentário brasileiro, com base nas cinco obras constituintes do corpus de análise. Kátia, o filme, de Holanda (2012), Bixa Travesty, de Priscilla e Goifman (2018) e Lembro mais dos corvos, de Gustavo Vinagre (2018) são parte do corpus e serão abordados nesse texto. Cada uma das três obras traz narrativas biográficas de uma mulher trans. O critério de seleção da pesquisa considerou o ano de lançamento das obras (posterior a 2010), o tipo e grau de envolvimento de pessoas trans na produção e roteiro, além da direção assinada por pessoas cisgênero. Parto de uma reflexão do cenário sociopolítico contemporâneo do Brasil com autores da psicologia social crítica, na qual é possível observar a manifestação de posicionamentos de intolerância com a diversidade de gênero, bem como com muitos grupos sociais considerados minoritários, flertes com modos autoritários de gestão pública, especialmente após as eleições presidenciais de 2018, além da identificação de uma política de degradação paulatina e constante das estruturas de fomento e produção de cultura audiovisual, como a agência Nacional de Cinema (ANCINE) e a gestão dos recursos federais do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
No entanto, o mandato do governo federal empossado em 2019, de extrema direita e reacionário, iniciou-se durante um momento de alta circulação de documentários que abordam questões acerca da diversidade de gênero, transgeneridade e outras temáticas de interesse da comunidade LGBTQIA+. Diante da ambiguidade desse contexto, interessa-me analisar o potencial emancipatório dessas produções, as quais elaboram e contam narrativas biográficas de pessoas trans numa sociedade que entende e reproduz a cisgeneridade como norma. A partir de três documentários constituintes do corpus dessa pesquisa: Lembro mais dos corvos (Vinagre, 2018); Katia, o filme (Holanda, 2012), e Bixa Travesty (Priscilla & Goifman, 2018), penso, neste trabalho, as tensões entre atravessamentos da cisgeneridade e o caráter subversivo que o documentário pode assumir.
Kátia, o filme (Holanda, 2012) expõe certas intervenções da protagonista Kátia Tapety, como quando ela explica às pessoas que cumprimenta na rua, a presença da câmera: "é a gravação do filme de Kátia"; ou quando diz, não num pedido, mas num comando: "filma eu descendo a escada". Bixa Travesty (Priscila, 2018) convida a espectadora à subversão de diversos dispositivos, como as opressões sociais do patriarcado, da cisheteronormatividade e da religião, que são historicamente estruturas reguladoras dos corpos e do desejo. Julia Katherine conta em Lembro mais dos corvos (2018)que roubava filmes quando trabalhou em uma locadora de fitas VHS, entre outras histórias que fluem numa fala que confunde o inventado com partes de sua trajetória de vida.
Trabalho com o termo cisgeneridade de acordo com o entendimento de Simakawa (2015), que, para além da identificação de si com o gênero designado ao nascimento, afirma tratar-se de um conceito formado por compreensões socioculturais ocidentalizadas de gênero que são disseminadas e perpetuadas como naturais e biológicas. Para a autora, a cisgeneridade precisa ser pensada como uma prática que atravessa e relaciona projetos coloniais de gênero e projetos racistas modernos. Ao fazer oposição à transgeneridade, a cisgeneridade mostra-se como categoria analítica social e culturalmente construída, desarticulando a ideia de que há uma norma - natural e biológica - para gênero, de um lado e, do outro, os desvios.
Elaborei este artigo com o uso do feminino universal. Trata-se de uma escolha política e condizente com meu lugar social de mulher branca, cisgênera e pesquisadora. Encontro amparo em Diniz (2012) para essa escolha, quando a autora lembra que o lugar dos homens já está bem assegurado no mundo acadêmico. Escrever no feminino universal, portanto, pareceu-me um desafio coerente de abraçar, especialmente junto a uma escrita em primeira pessoa.
Tenho consciência das vulnerabilidades que meu lugar social pode criar na produção acadêmica que estou desenvolvendo, assim como sei de sua potência de desenvolvimento quando instigado ao exercício do pensamento crítico. A cisgeneridade precisa existir para si mesma enquanto categoria analítica. Precisa ser incomodada. E precisa, urgentemente, incomodar-se com a invisibilidade de seus privilégios. Entendo o estudo da cisgeneridade como um compromisso acadêmico e social para o exercício de mudanças de perspectivas e atitudes por parte de nós, pessoas cisgêneras. Afinal, é de nós que historicamente vem a normatização e a patologização dos corpos, a binariedade do gênero e os sem número de regras de conduta e de estética a serem seguidas, sob pena de exclusão, invisibilidade, e negação de direitos fundamentais.
A metodologia da pesquisa articula análise fílmica (Vanoye & Goliot-Létè, 2006) e análise imanente do discurso, como também, se norteia pelo primado do objeto (Adorno, 2003). Posteriormente, incorporei o conceito metodológico de constelação, de Walter Benjamin (2018), que permite a construção de diálogos e de relações mais aproximadas entre os filmes estudados. As análises, discussões e resultados estão sendo expostas no formato conhecido como pranchas de Warburg (Warburg, 2003), que consiste na coleta e montagem das imagens a serem analisadas, de modo que elas possam ser observadas e relacionadas ao lado umas das outras.
As primeiras análises dos três documentários abordados neste trabalho apontam semelhanças na exposição de relações entre vida cotidiana e narrativas biográficas de mulheres trans, bem como no uso de escolhas e de elementos estéticos na produção de imagens. Um fio condutor escolhido para trabalhar essas semelhanças foram as produções de cenas de uma pessoa trans olhando-se no espelho. No meio cinematográfico mainstream, esse tipo de cena tornou-se comum, expressando o estereótipo da pessoa trans em conflito com o próprio corpo. Essa é uma ideia que limita a discussão do gênero ao indivíduo e não considera as tensões sociais que envolvem a pessoa trans, entre as quais violências, discriminações, exclusões e intolerâncias atravessam sua existência. Por isso, entendo e nomeio esse tipo de cena como "clichê da cena do espelho", em acordo com o Dicionário Houaiss (Houaiss, 2023) sobre o termo clichê: "3 estl frase freq. rebuscada que se banaliza por ser muito repetida, transformando-se em unidade linguística estereotipada, de fácil emprego pelo emissor e fácil compreensão pelo receptor; lugar-comum, chavão". O conflito da pessoa trans está muito além de uma suposta informidade individual com o próprio corpo porque refere-se a um corpo social que não a reconhece. Daí minha crítica à construção da cena do espelho, quando realizada com a finalidade de mostrar um conflito interno da personagem da narrativa fílmica, como se ela - e somente ela - fosse responsável por seu sofrimento. Os três documentários abordados neste trabalho apresentam cenas em que uma mulher trans olha-se no espelho. Contudo, identifiquei, em cada uma delas, modos singulares de subversão desse "clichê da cena do espelho", visto que as cenas não produzem conflitos com o próprio corpo, mas expressam marcas e histórias de vida dessas mulheres.
Acredito que o prosseguimento das análises dos atravessamentos da cisgeneridade na construção do olhar no documentário brasileiro a partir do corpus, constituído por filmes sobre pessoas trans, pode apontar a urgência na elaboração e discussão de uma teoria crítica brasileira da cisgeneiridade e, em consequência, das possibilidades outras de produção do olhar.
O CIStema Capitalista Brasileiro: Interregno do Ódio
Fraser (2020), em O velho está morrendo e o novo não pode nascer, parte do cenário político estadunidense para pensar a crise de hegemonia e a ascensão política de partidos de extrema direita nos Estados Unidos e na Europa, trazendo-nos elementos de reflexão que apontam para um fenômeno de proporções mundiais, visto que os espaços de debates e de poderes políticos desses territórios vêm sendo continuamente ocupados por partidos de direita ou de extrema direita populista, bem como ocorre com o Brasil em seu governo atual. A autora usa o conceito de hegemonia de Antonio Gramsci, referente a um conjunto de articulações da classe dominante de uma sociedade, capaz de naturalizar uma série de pressupostos que justificariam ao senso comum a permanência dessa classe no poder.
Na ausência de uma hegemonia segura, enfrentamos um interregno instável e a continuação da crise política. Nesse contexto, as palavras de Gramsci são verdadeiras: ‘a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece'. (Fraser, 2020, p. 57, grifo nosso)
Interregno era o nome dado à fase de transição entre o fim de um reinado ou império (com a morte do rei ou imperador) e o início de outro (com a coroação do príncipe herdeiro). Eram períodos, por vezes, incertos, suscetíveis a golpes de estado, revoltas, ou mesmo guerras civis. Nessa perspectiva, Sabrina Fernandes (2019) entende que estamos vivendo um interregno marcado por uma crise generalizada de credibilidade e de autoridade hegemônica do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), o que reverberou nos demais partidos de esquerda. Fernandes viu nas manifestações de junho de 2013 o transbordamento dessa crise.
Mas esse "novo que não pode nascer" não necessariamente será emancipador. Fernandes (2019) indaga, aliás, se a ascensão de Bolsonaro seria parte deste interregno contemporâneo ou se irá constituir-se como um "novo" a nascer, quando puder.
Como a minha perspectiva teórico-metodológica é norteada pelo primado do objeto, vi relevância em trazer um vislumbre do contexto do mandato presidencial brasileiro que se iniciou em 2019 porque trata-se do contexto sociopolítico no qual me situo como pesquisadora e situo os documentários do corpus da pesquisa. Afinal, a relação entre sujeito e objeto só acontece mediante determinadas condições históricas, sociais e políticas, que precisam ser levantadas e consideradas (Adorno, 2003) Ademais, mesmo que os anos de produção dos documentários estudados estejam situados entre 2010 e 2018, essas obras primeiramente circularam em festivais de cinema nacionais e internacionais para, só depois, circular entre o grande público, seja em salas de cinema ou plataformas digitais. É o caso de Bixa Travesty, por exemplo, que foi produzido em 2017, mas só estreou no Brasil no segundo semestre de 2019, quando Bolsonaro já estava na presidência. E também de Lembro mais dos corvos, cuja produção é de 2018, mas somente após 2020 passou a compor um catálogo de TV a cabo.
A proposta de cunho neoliberal reacionário do governo Bolsonaro manifestou-se com a nomeação dos ministros, na criação e eliminação de determinados ministérios e também nos remanejamentos de secretarias e fundações. Um dos setores mais afetados foi o da produção audiovisual, visto que o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) teve verba retida entre 2019 e 2021, somando um montante de mais de 700 milhões de reais que não foram repassados nesse período. A paralisação desse recurso aconteceu porque Jair Bolsonaro não realizou a nomeação do comitê gestor do FSA, o que causou entrave de dois anos no repasse de verbas a mais de 400 projetos já aprovados em edital (Reinholz, 2020).
Gerada principalmente pelo pagamento de imposto por emissoras de TV e telecomunicações, através da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (CONDECINE), a receita do FSA é destinada à produção de audiovisual brasileiro, entre obras para televisão e cinema, além de custos com distribuição e exibição. Trata-se de uma categoria específica do Fundo Nacional da Cultura, voltada ao fomento da indústria audiovisual brasileira, instituído pela Lei 11.437, de 2006 (FSA, 2020).
O governo Bolsonaro passa a exercer uma série de ações danosas à produção fílmica, conferindo morosidade à movimentação do FSA através da agência Nacional de Cinema (ANCINE), órgão de regulação e fomento da atividade do audiovisual no Brasil. Primeiramente, há um esforço em menosprezar e desqualificar os filmes contemplados por editais: são caracterizados em redes sociais como inadequados, impróprios ou mesmo imorais. Depois é instaurada uma atmosfera de desconfiança acerca da lisura na elaboração e execução de editais para justificar a implementação de critérios que irão restringir projetos de acordo com seu conteúdo, sem haver consideração de argumento, técnica ou mesmo qualquer forma de relevância artística, social ou comercial (Calabre & Tavares, 2021). Trata-se de
uma desidratação das políticas (ofensiva por meio de projeto de lei, com previsão de cortes de 43% dos investimentos do FSA em 2020 e a disputa em torno da revogação da Lei do Serviço de Acesso Condicionado - SeAC), das ações e das instituições (cancelamento de editais, a ocupação da presidência da Ancine por um interino), sem de fato acabar com elas, nem tampouco colocar algo no lugar. Tal postura mostra-se extremamente danosa ao setor audiovisual brasileiro. A produção audiovisual brasileira estava paralisada até mesmo antes da chegada da pandemia da COVID-19 (Calabre & Tavares, 2021, p. 216).
Bravo (2021) faz uma reflexão sobre as fragilidades da ANCINE como gestora de políticas públicas do audiovisual, no que concerne ao que a autora entende como manutenção da invisibilização de sujeitos dissidentes, mesmo com o crescimento do setor entre 2011 e 2017, quando a Lei 12.485/11 proporcionou aumento relevante da produção audiovisual brasileira. A lei da TV Paga foi responsável pela criação de cotas de conteúdo brasileiro independente em canais de TV a cabo.
A implementação da Lei da TV Paga, aliada a uma reformulação do planejamento estratégico do quadriênio 2017-2020, representaria uma abertura de portas para novos públicos, visto que promovia a diversidade de gênero e de raça na produção do audiovisual brasileira com a instituição de cotas para pessoas negras, mulheres, pessoas trans e travestis em editais lançados pela ANCINE.Essas alterações foram incorporadas em retificações no edital Concurso Produção para Cinema 2018(Bravo, 2021). Trata-se do edital cujos repasses de verbas dos projetos aprovados foram retidos em 2019, em virtude do Presidente da República não ter nomeado o comitê do FSA. Vale ressaltar que, em pesquisa realizada pela ANCINE, foi apurado que 75,4% de filmes lançados pela agência em 2016 foram dirigidos por homens cis brancos, indicando o atravessamento da cisgeneridade na produção audiovisual brasileira, além da evidente disparidade racial entre os realizadores contemplados (ANCINE, 2018).
Paradoxalmente, em meio à formação de um contexto de intolerância generalizada que facilitou a chegada de Bolsonaro ao poder, ocorreu um aumento considerável na produção de documentários brasileiros sobre narrativas de pessoas trans - especialmente após 2014. Sobre a alta produção dessas obras levantamos, no entanto, algumas questões: sob que perspectiva estão sendo produzidas? Quem está contando essas histórias? Qual é o potencial emancipatório desses trabalhos?
A visibilidade de pessoas trans pode também constituir-se num meio de invisibilização e manutenção de estereótipos, como desenvolve Habib (2021), ao pensar o conceito de duplo vínculo como um tipo de relação invisibilizante, que marca o tratamento de pessoas ou grupos cis a pessoas ou grupos trans. Esse processo ocorre por meio da produção de uma hipervisibilização que ora objetifica, ora invisibiliza uma pessoa trans.
O caso da obra Gisberta pode ser considerado um exemplo de duplo vínculo, visto tratar-se de um homem cis que concorreu e ganhou edital público para produção e direção de uma peça teatral baseada na morte e vida de Gisberta Salce, mulher trans brasileira que foi torturada e assassinada em 2006, em Portugal, por um grupo de adolescentes. Habib (2020) aponta, nesse caso, a hipervisibilização da causa trans através do assassinato de Gisberta - exploração midiática da morte violenta -, ao mesmo tempo em que houve apropriação de sua história por um homem cis, que não só a reescreveu, como também interpretou Gisberta na peça. O duplo vínculo, portanto, é um processo que dialoga com as engrenagens do CIStema capitalista, pois coopta e reifica pessoas, causas sociais e demandas de direitos fundamentais usualmente negligenciados, esvaziando o sentido dessas lutas.
Diretores cisgêneros que realizam documentários sobre pessoas trans, verbas federais para produção audiovisual destinadas a uma maioria de mais de 70% de homens brancos, retenção dessa mesma verba a projetos aprovados no primeiro edital que destinou cotas para realizadoras mulheres negras, mulheres trans, entre outros gêneros divergentes: esses são alguns indícios que apontam o quanto o olhar de uma câmera pode ser cisgênero (além de masculino) e que é necessário explorar o atravessamento da cisgeneridade na produção do documentário brasileiro, bem como é preciso que a cisgeneridade pense, estranhe e problematize a si mesma.
Katia, Julia e Linn: Uma Constelação
As análises, que se encontram em andamento, vêm identificando traços da cisgeneridade, a começar pelos créditos de direção, que são compostos apenas por pessoas cis; e roteiro, os quais, mesmo indicando créditos a pessoas trans em dois deles, ocorrem em coparticipação: Lembro mais dos corvos tem roteiro de Julia Katharine, mulher trans e protagonista, mas em coparticipação com o diretor. Bixa Travesty consta com roteiro de Linn da Quebrada, mulher trans e protagonista, mas em coparticipação com a diretora e o diretor, pessoas cis. Já Kátia, o filme tem roteiro de uma mulher cis. Tal constatação levou a um estudo da forma fílmica desses documentários, na busca de modos de atravessamentos da cisgeneridade a partir da construção do olhar da câmera.
A pesquisa, que segue a diretriz do primado do objeto (Adorno, 2003), vem trabalhando com análise fílmica e análise imanente do discurso. Vejo nessas perspectivas uma necessária postura da pesquisadora em estabelecer uma espécie de escuta do objeto. Para manter o primado do objeto, a análise imanente do discurso busca compreender o que esse objeto diz de si e de seu contexto social, bem como as contradições inerentes que possuem. Uma relação com objetos de pesquisa a partir dessa perspectiva implica numa transformação que atinge tanto sujeita como objeto, que perdem a noção de atividade/passividade entre si, tornando-se instâncias que se escutam, que se relacionam. A análise fílmica, por sua vez, procura "ouvir" o que o filme tem a dizer, seja numa perspectiva sociohistórica, seja numa perspectiva simbólica (Vanoye & Goliot-Létè, 2006).
As demandas de estudo do corpus suscitaram a incorporação da perspectiva metodológica das constelações, de Walter Benjamin (2018). As ideias, segundo o autor, relacionam-se entre si de maneira não linear e fragmentária, da mesma forma que uma constelação constitui uma imagem de estrelas. Assim, passo a compreender os documentários estudados nessa pesquisa como uma constelação fílmica, termo usado por Mariana Souto (2020).
(...) constelações fílmicas devem também quebrar encadeamentos causais tidos como dados, questionar relações já gastas que talvez tenham perdido seu poder explicativo, furar a fila da continuidade histórica, não mais traçar da esquerda para a direita, em uma reta linha do tempo, mas unir pontos transversalmente, sair do plano bidimensional e usar também a dimensão da profundidade (Souto, 2020, p. 160).
Trabalhar com a noção de constelação fílmica possibilita identificar e analisar semelhanças fragmentárias entre obras que, de outra maneira, poderiam ser ignoradas. Ela conduz a uma postura de estudo "a contra-pelo" (Benjamin, 1987). Acredito que essa perspectiva dialoga com a proposta da análise fílmica, visto que, para além da interpretação ou formação de conjecturas do espectador, ou mesmo da intencionalidade da direção acerca do que uma obra fílmica comunica, a análise fílmica irá "examinar em que medida a obra, em sua própria coerência e por ela, aprova, desaprova essas conjecturas, ou indica outras" (Vanoye & Goliot-Létè, 2006, p. 54). À semelhança do primado do objeto, na análise fílmica a pesquisadora deve compreender que um filme está inscrito em um determinado contexto sociohistórico; é um produto cultural que dele não pode ser dissociado, nem apartado do contexto político ou econômico do país em que foi produzido. Portanto, é preciso ouvir o que o filme tem a dizer sobre seu próprio tempo histórico.
Pensar documentários brasileiros sobre pessoas trans aliando constelações fílmicas e análise fílmica possibilita estudos de cada obra, identificando suas singularidades e as relações que elas podem estabelecer entre si, de maneira anacrônica e também fragmentária, porque pequenos detalhes, nuances e elementos quase imperceptíveis poderão ser identificados, pensados e relacionados com aspectos de outros filmes da constelação.
Iniciei a análise com as três obras supracitadas, concomitantemente, em um grupo que depois tornou-se constelação. O primeiro fio condutor identificado foi o uso de cenas com mulheres trans olhando-se no espelho. Filmes de ficção mainstream sobre pessoas trans costumam trazer pelo menos uma cena em que a personagem se olha no espelho como que em um estranhamento de si, reafirmando o discurso médico do "corpo errado", a sensação de que a pessoa - a "transexual verdadeira" - teria de que seu corpo não é verdadeiramente seu (Bento, 2006). Girl (Lukas Dhont, 2018), Meu nome é Ray (Gaby Dellal, 2015) Tomboy (Céline Sciamma, 2012) e A garota dinamarquesa (Tom Hooper, 2015) são alguns exemplos que apresentam este tipo de construção de cena. A simbologia do espelho como meio de revelação da verdade (Chevalier & Gheerbrant, 2015) é usada para apontar um conflito interno que a personagem estaria vivendo. Cenas com uma personagem mulher trans olhando-se num espelho foram encontradas em todas as cinco obras estudadas na pesquisa, sendo que neste trabalho trago os achados de Lembro mais dos corvos (Vinagre, 2018), Bixa Travesty (Priscilla & Goifman, 2018) e Kátia, o filme (Holanda, 2012). Nesses três filmes, as mulheres trans que se olham no espelho não aparentam nem comunicam ao espectador uma condição de estranhamento do próprio corpo.
O desenvolvimento e apresentação de resultados de uma análise fílmica pede um levantamento e organização de capturas de imagens a serem colocadas em evidência. Optei por organizar e apresentar as imagens que obtive em formato de pranchas, baseada nas pranchas de Warburg (2003), de seu Atlas Mnemosyne, em virtude das possibilidades que essa perspectiva teórico-metodológica permite de relacionar e pensar o anacronismo e a transversalidade entre imagens de uma mesma obra fílmica e entre as obras constituintes do corpus. Trata-se de um tipo de montagem em aberto, que aponta os entremeios das imagens, as fissuras, aquilo que pode passar despercebido, mas fica e se permite descobrir em algum momento, em algum lugar.
O Atlas Mnemosyne é um gigantesco e eternamente inacabado conjunto de 66 painéis de madeira (1,70 X 1,40 m) forrados de tecido preto sobre os quais Warburg afixava imagens retiradas de livros, revistas, fotografias, jornais e outras fontes, como material publicitário e panfletos. O inacabamento existe em duas dimensões: na proposta se ser um trabalho constantemente em aberto a diversas leituras e posteriores contribuições, e também no seu sentido mais literal, visto que Warburg faleceu antes de tê-lo concluído, deixando inacabada a sua última prancha, curiosamente indicada como número 79.
Apesar de sua aparente ordem aleatória, Mnemosyne "atende ao conceito de Nachleben, que diz respeito à sobrevivência das imagens. O que julgávamos desaparecido pode ser reativado em outro momento histórico, uma vez que é propriedade das imagens atravessar fronteiras" (Reinaldo & Reis Filho, 2019). O caráter político das imagens pode ser ressaltado através das fissuras criadas entre elas, nas tensões passiveis de existir por aproximação. A noção da prancha de Warburg nos traz a possibilidade de ressignificar uma imagem de acordo na sua disposição em relação a outras ou, como talvez diria Benjamin, a partir do seu lugar numa constelação.
Em Lembro mais dos corvos, Julia Katherine está deitada de lado, olhando-se no espelho, e, enquanto fala, a câmera olha para o reflexo de seu rosto. Ela conta de maneira usual sobre um namorado que a convenceu a tomar hormônios para "fazer corpo" e lamenta oportunidades que teria perdido porque os hormônios não surtiram o efeito desejado e ela teria engordado muito. É uma cena que suscita temas relevantes como gordofobia, relacionamento abusivo e sofrimento psíquico em virtude da frustração em não conquistar um padrão intangível de corpo. São questões que, em virtude da limitação do formato desse trabalho, limito-me a mencionar brevemente.
É possível, contudo, pensar esta cena como uma subversão da cena clichê do espelho, na medida em que seu discurso pode fomentar críticas a um sistema de produção cultural que regula, padroniza o corpo e exclui quem não se enquadra às suas demandas. É possível entender essa cena como gordofóbica, mas também como um ensejo à crítica desse sistema, uma maneira de provocar na espectadora o questionamento desse discurso reificador que é reproduzido no relato de Julia.
Vale ressaltar que o recurso de trazer à tona temas sensíveis como se fossem questões frívolas manifesta-se em outras cenas do filme, algumas que envolvem relatos de abusos e violências. Julia fala sobre tais acontecimentos de maneira naturalizada, por vezes com tom jocoso: o relacionamento abusivo e incestuoso com o tio, as situações de discriminação e pobreza a que foi submetida quando morou no Japão e as agressões físicas que sofreu na escola são exemplos que chamam atenção.
Em Bixa Travesty, o espelho é parte de um símbolo opressivo: um carro de polícia. Isso acontece quando Linn da Quebrada, ao andar pela rua ao lado de Jupi do Bairro, para diante do espelho retrovisor de uma viatura para passar batom. Aqui o espelho, ao invés de mediador de um suposto conflito, torna-se lugar de subversão e afirmação de si. A cena é um exemplo do que Linn da Quebrada diz durante o documentário sobre usar o corpo como arma e apropriar-se dos mecanismos de poder do patriarcado para voltá-los contra ele mesmo. Ainda que a polícia seja um aparelho poderoso e invasivo, o que é evidenciado na imagem pelo grande espaço que a viatura ocupa em relação ao corpo de Linn -, a sujeita que veio da quebrada aproxima-se e vê-se pelos olhos desse dispositivo opressor, simbolizados pelo espelho retrovisor.
Em Bixa Travesty cacos de espelho aparecem em uma fala de Linn da Quebrada referindo seu nome e a si mesma como parte de um espelho que se partiu em pedaços:
Linn da quebrada. É engraçado que a primeira vez que eu tinha... que eu pensei em me renomear, né? Curioso até, isso, porque eu acho que eu já tive que me renomear algumas vezes. Agora eu tô Linn da Quebrada, mas eu já fui Lino, eu gostava do Lino, o Lino era interessante. Bobinho, ingênuo…. (risos). Muito novinho, né? Mas com o Lino também surgiu a Lara, quando eu tinha 17 anos, a Lara que só aparecia nas noites, a Lara que ia pras festas. A Lara que fazia algumas coisas que o Lino não tinha coragem. Eu acho que Linn da Quebrada vem exatamente daí, de todas as partes, os cacos… Os cacos de um espelho. Um espelho onde antes se refletia o homem. O homem feito à imagem e semelhança de Deus. (Priscilla, 2018)
O espelho inteiro refletia a imagem do homem. Mas os cacos desse espelho indicam uma ruptura impossível de ser regenerada - uma vez quebrado, o espelho jamais será o mesmo. E indicam também as possibilidades de novas montagens desses cacos. Dessas partes de si que, fissuradas, podem dialogar entre elas. Linn da Quebrada é parte dessa possibilidade, que no documentário não se mostra cristalizada, mas em constante devir.
Já em Katia, o filme, o espelho está implícito na cena em que ela passa batom em close up. Sua presença é sugerida de maneira cotidiana: Katia está se arrumando para participar de um evento de sua cidade. Num plano close up, ela passa um batom vermelho, cujo tom combina com o esmalte que dá cor às suas unhas. Depois aplica base e pó no rosto, finalizando com um lápis preto no contorno das pálpebras. Arrumar-se, maquiar-se, encontrar pessoas: o espelho, nesse documentário, é parte do registro das muitas atividades rotineiras de Katia. O espelho aparece em outras cenas, pendurado na parede do quarto de Katia e como parte de duas portas de seu guarda-roupas, mas não chega a centralizar a atenção da espectadora, inclusive no que concerne a tempo de cena.
Ao sair do escritório de um juiz, Katia diz, olhando para a câmera: "filma eu descendo a escada". A câmera responde indo em sua direção e a acompanha na descida, numa cena semelhante à da "mulher descendo as escadas", expressão usada por Babineau (2003, p. 77) para referir-se a um tipo de cena comum em filmes clássicos hollywoodianos - os melodramas - ou contemporâneos de época. Podemos encontrar cenas assim em E o vento levou (Fleming, 1939), Rebecca (Hitchcock, 1940), Crepúsculo dos deuses (Wilder,1950), Titanic (Cameron, 1997) e Cinderela (Branagh, 2015), por exemplo. Geralmente, sua finalidade é destacar a personagem mulher (cis) do filme. Durante um evento importante e pomposo, quando já estão presentes no salão muitos dos convidados, a personagem aparece de cima e desce as escadas, elegantemente vestida, esbanjando graça e beleza. Todas as atenções voltam-se a ela. Costuma haver um rapaz (cis) pronto a recebê-la no fim da escada. Ele tomará sua mão e a levará para dançar ou para cumprimentar os presentes.
Em aplicações melodramáticas, a escada frequentemente atua como um palco sobre o qual os dramas cruéis da vida são representados, uma entrada estreitamente confinada que restringe nossa atenção e, simultaneamente, aprisiona os personagens enquanto tentam realizar seus desejos. […]. Frequentemente, esses personagens são mulheres, e as longas associações de escadas com hierarquias patriarcais tornam-se significativas (Babineau, 2003, p. 77).
Além de tratar-se de um momento de exposição da personagem, a cena da mulher descendo as escadas é também afirmação de autoridade e atividade do homem, visto que ele é a figura ativa da cena, cabendo à mulher que desce as escadas apenas acompanhá-lo. Nas palavras de Mary Doane (1987, p. 135), "(…) um ícone de insistência crucial e repetitiva nas representações clássicas do cinema, a escada é tradicionalmente o lócus de espetacularização da mulher". Esse tipo de cena é construído não só a partir de um olhar masculino e objetificante (Mulvey, 2008), mas de um olhar que também é cisheteronormativo.
No caso dos melodramas, Babineau (2003) também aponta relações entre a escada ou escadaria com a casa, que geralmente são grandes propriedades privadas como Manderley, em Rebecca (1940). No documentário sobre Katia, no entanto, a escada é de uma instituição pública. Ela não está sendo apresentada em uma grande festa, mas está saindo do escritório do juiz da cidade. Não há um "mocinho" esperando para conduzi-la. Pergunto-me se descer as escadas sozinha fala também sobre a sua solidão.
Protagonista de si, Kátia Tapety desceu as escadas sozinha. Foi filmada porque quis e porque expressou sua vontade. Penso que a ausência do homem cis esperando não necessariamente indique solidão, visto que o documentário registra momentos de flerte. A cena de Kátia descendo as escadas remete a uma forma clássica, sobrevivente e cishétero da mulher no cinema e, ao mesmo tempo, enuncia algo de emancipatório e de subversivo: a personagem tomou a iniciativa de conduzir a produção de uma cena na qual ela se movimenta com os próprios passos.
O gênero fílmico documentário possui especificidades que podem conferir-lhe um status subversivo de dispositivo. De acordo com Pedro Sbragia (2020, p. 18), "(…) o fazer documental no cinema implica em uma negação das formas tradicionais de narrativa e também da estrutura oferecida pela indústria cultural". É o caso do protagonismo de Julia Katherine em Lembro mais dos Corvos, que tece o inventado com partes de sua história de vida, em meio a indagações ao diretor sobre a relevância de certas perguntas que recebe. Ela expressa certo poder não só sobre o que diz e o que opta por não dizer, mas também sobre outros aspectos da filmagem, como quando responsabiliza a produção pelo chá, que, segundo ela, ficou ruim.
É Julia que sinaliza o momento de parar a gravação. Ela pega a câmera do diretor e convida-o a ver o nascer do sol pela janela da sala: "Agora eu sou a diretora. Eu vou dirigir sol!".Ela dirige o impossível: ajusta a lente da câmera na direção dos raios de sol que começam a surgir entre os prédios visíveis de sua janela, num tímido amanhecer. Dirigindo o impossível, mostra um sorriso no reflexo da janela de vidro. Esse gesto é relevante quando pensamos na câmera como um dispositivo, um instrumento de poder. Ao mesmo tempo, diante do sol, a câmera não possui poder algum. Julia não pode efetivamente "dirigir o sol", mas pode acompanhá-lo, a partir de seu próprio olhar. E fazer dele um registro. Da janela de Julia vemos os primeiros indícios de um amanhecer atravessado por colunas de concreto e pela rede de proteção da janela, próxima à lente da câmera. Vejo uma manifestação simbólica da cisgeneridade nesta cena, pois ela parece trabalhar como os prédios e a rede diante da câmera nas mãos de Julia: impõe-se ao olhar, naturalizada, como se sempre estivesse ali. Mas prédios precisam de janelas, e por elas novos olhares são possíveis.
Usar dispositivos para subverter dispositivos é uma proposta da artista Linn da Quebrada em Bixa Travesty. Esse documentário é um amálgama vivo de registros de suas apresentações, intercalados com momentos cotidianos na companhia da mãe, amigos, amores. Há, ainda, no curso do filme, o recurso de exibição de fotos e vídeos caseiros que mostram diversos momentos da vida da artista.
Em um ambiente típico de estúdio de rádio, ao lado da amiga e cantora Jupi do Bairro, ela se apresenta: Eu quebrei a costela de Adão. Muito prazer, sou a nova Eva, filha das travas, obra das trevas. Não comi do fruto do que é bom e do que é mal, mas dichavei suas folhas e fumei sua erva.
Linn da Quebrada fala em usar o corpo como arma, mas usa também a palavra. E ambas atacam a espectadora, coordenadas pela música e pelos movimentos agressivos, limpos e certos. Trata-se de um ataque à cisheteronormatividade, naturalizada no corpo social por gerações sucessivas. É uma desconstrução da ordem, da palavra no fluxo normativo do texto, apontando outras possibilidades, como se nos convidasse a uma anamorfose linguística.
A música é, para Linn da Quebrada, como uma arma, usada para defender-se do próprio pau apontado para sua cabeça. Uma pessoa ameaçada pela própria genitália, que se torna evidência de um gênero que não a comporta, mas que a "denuncia". Linn da Quebrada fala de si e de "muitas, tantas outras como nós, que temos os paus apontados para as próprias cabeças". Ela também diz que vem atirando e vem acertando porque sua música ainda é um alvo, porque nela, a cantora desconstrói o próprio desejo. A música é arma. E alvo. Ela atira. E acerta.
Katia, o filme, Lembro mais dos corvos e Bixa Travesty estão vinculados em constelação por mulheres trans que contam de si, que ousam olhar-se no espelho de formas diferentes: ao invés do estranhamento, elas encontram força, confiança, dúvidas e anseios. O espelho revela outras possibilidades, ainda que atravessadas pelo olhar cisgênero da câmera. Que as histórias dessas mulheres, contadas por esses documentários possam ser o vislumbre da emersão de outros olhares, novos, diversos. E que possam sinalizar a vinda de novas formas de construir e experienciar o olhar.
Considerações Finais
Este trabalho relatou os primeiros achados de uma análise de atravessamentos da cisgeneridade em documentários brasileiros sobre pessoas trans. Acredito que a metodologia aplicada de articulações entre análise fílmica, análise imanente de discurso e constelação irá viabilizar mais resultados e reflexões significativas para estudos da cisgeneridade e para a construção de pensamento crítico acerca da produção de imagem na contemporaneidade.
As análises iniciais indicaram potencial emancipatório nessas três obras e algumas escolhas estéticas que podem ser consideradas subversivas aos modos clássicos de filmagem. Por outro lado, é necessário ressaltar que a participação majoritária de pessoas cis nessas produções - especialmente na direção -, aponta para o atravessamento da cisgeneridade na construção do olhar, que vem sendo evidenciado também na própria forma fílmica de cada um desses documentários. São tensões que precisam ser identificadas e expostas, para serem pensadas e superadas no futuro, em outras produções audiovisuais.
O que estou denominando de atravessamentos da cisgeneridade neste trabalho, manifesta-se na forma fílmica dos três documentários, como se cada um deles contivesse o seu amálgama de tensões estéticas entre cooptação e subversão: Julia Katherine deprecia o próprio corpo na frente de um espelho, mas possibilita o debate acerca da gordofobia; Katia Tapety simula uma cena hollywoodiana de cunho patriarcal, mas o faz de modo subversivo; Linn da Quebrada canta a solidão de quem precisa usar o corpo como arma para sobreviver, mas canta também a sua coragem.
Identifico, nesses três documentários, vislumbres, lampejos que podem multiplicar-se à medida que outras formas de produzir sentido ganhem espaço, assim como outros modos de ver e ouvir o mundo. Em tempos onde a imagem nunca foi tão explorada na produção e disseminação de informação e, ao mesmo tempo, nunca foi tão constantemente esvaziada de sentido, é importante lembrar sua dimensão política e sua participação na disputa por espaços de representatividade. Políticas públicas que fomentam a produção do audiovisual brasileiro, como o FSA, precisam ser acessíveis à toda a diversidade de gênero e de raça da população brasileira. Essa é uma das maneiras de se pensar outras formas de construção do olhar para além do campo da cisgeneridade.
Pensar a cisgeneridade como objeto de estudo da psicologia social crítica e, em aspectos estéticos, de teorias da imagem, condiz com a relevância em manter o exercício da criticidade daquilo que se está produzindo na academia, bem como ter sempre em vista a importância social e política daquilo que realizamos neste espaço. A minha perspectiva de mulher cisgênera alia-se ao primado do objeto de Adorno e se mantém receptiva a contribuições, reconsiderações e diálogos, visto que o objeto em Adorno é dinâmico, se move em seu tempo histórico e vive na sua relação com as sujeitas que o abordam, onde temos, portanto, sujeita e objeto como uma relação, não como dois componentes possíveis de serem separados.
Se o termo cisgeneridade desloca a centralidade e universalidade de conformações de corpos, é tempo de acompanharmos esse deslocamento, compreendendo e admitindo privilégios, reconhecendo outros modos de existir, despatologizando aquilo que não compreendemos como semelhante. Tal movimento envolve também o recebimento de críticas, apontamentos de fragilidades teóricas ou metodológicas, ou mesmo uma "contaminação de perspectivas" - ainda que eu não trabalhe com a noção de uma "perspectiva pura".
Denominei esta seção de Considerações Iniciais porque entendo este estudo como um ponto de partida com potencial de muitos desdobramentos na proposta de elaboração de uma teoria crítica e brasileira da cisgeneridade que seja capaz de compreender essa categoria analítica como constructo e engrenagem do nosso sistema capitalista neoliberal. Assim, este é o início de um percurso metodológico que está sendo construído para estudos de cisgeneridade em produções audiovisuais, que possibilita apreensões e análises da linguagem cinematográfica, consideradas elementos narrativos (enquadramentos, movimentos de câmera, cortes, montagem, etc.).
Acredito que esta pode ser uma perspectiva bastante frutífera de se pensar a cisgeneridade, visto ela tratar-se de uma categoria analítica de concepção relativamente nova, com capacidades estruturais e estruturantes, portanto, passível de der identificada em diferentes campos do conhecimento, diversos espaços e distintas relações socioculturais. Portanto, há ainda muito o que que se observar e elaborar entre conceitos, processos, traços e críticas acerca dessa categoria, tanto no campo da psicologia social crítica como nos saberes que dialogam com ela.
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Endereço para correspondência
Aline Rebouças Azevedo Soares - reboucas24@gmail.com
Recebido em: 16/05/2022
Aceito em: 08/09/2023
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado da autora (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), No. Edital 05/2018, No. do processo BMD-0008-00349.01.11/19)
Agradecimentos: A autora agradece à FUNCAP, pela bolsa concedida a essa pesquisa; à orientadora Prof. Deborah Antunes, aos colegas e parceiros do Nexos - Teoria Crítica e Pesquisa Interdisciplinar; e do Paralaxe - Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica da UFC, pelas trocas e aprendizados, por tudo de verdadeiro e bonito que foi possível compartilhar nesses tempos incertos.
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