Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e67242, doi:10.12957/epp.2024.67242
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Carreira e Identidade de Trabalho: Um Estudo com Trabalhadores da Tecnologia da Informação

 

Career and Work Identity: A Study with Information Technology Workers

 

Carrera y Identidad de Trabajo: Un Estudio con Trabajadores de la Tecnología de la Información

 

Bárbara Zaida Rampa Dias a, Iúri Novaes Luna a, Valéria De Bettio Mattos a

a Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O impacto das mudanças ocorridas no mundo do trabalho sobre a constituição identitária e as carreiras dos trabalhadores não é uniforme, apesar de sua abrangência e intensidade, conforme evidenciam estudos recentes sobre o tema. Assim, objetivou-se compreender especificamente o processo de construção das identidades de trabalho de trabalhadores da área da tecnologia da informação (TI) por se associarem aos novos modelos de carreira. Trata-se de um estudo de casos múltiplos, realizado por meio de entrevistas com oito trabalhadores de TI, sendo as informações submetidas à análise narrativa. Os resultados evidenciaram que a forma identitária narrativa e o discurso de carreira possibilidade destacam-se nos relatos dos participantes, sendo que, em alguns casos, suas narrativas se encontram ancoradas em discursos associados à empregabilidade, mobilidade, precarização do trabalho e incerteza em relação ao futuro. Conclui-se, assim, que a identidade de trabalho dos investigados é formada por aspectos da identidade organizacional, profissional e vocacional, sendo essa última a mais saliente, o que parece indicar uma tendência dos processos de carreira no contexto do trabalho contemporâneo.

Palavras-chave: identidade, trabalho, profissional de TI, carreira.


ABSTRACT

The impact of changes in the world of work on the identity constitution and careers of workers is not uniform, despite its scope and intensity, as evidenced by recent studies on the subject. Thus, the objective was to specifically understand the process of construction of work identities of workers in the information technology (IT) area, as they are associated with new career models. This is a multiple case study, carried out through interviews with eight IT workers, with the information submitted to narrative analysis. The results showed that the narrative identity form and the career possibility discourse stand out in the participants' reports, and, in some cases, their narratives are anchored in discourses associated with employability, mobility, precariousness of work and uncertainty in relation to the future. It is concluded, therefore, that the work identity of those investigated is formed by aspects of organizational, professional and vocational identity, the latter being the most salient, which seems to indicate a trend of career processes in the context of contemporary work.

Keywords: identity, job, IT professional, career.


RESUMEN

El impacto de los cambios en el mundo del trabajo sobre la constitución de la identidad y las carreras de los trabajadores no es uniforme, a pesar de su alcance e intensidad, como demuestran estudios recientes sobre el tema. Así, el objetivo fue comprender específicamente el proceso de construcción de las identidades de trabajo de los trabajadores del área de tecnologías de la información (TI), por estar asociada a nuevos modelos de carrera. Este es un estudio de casos múltiplos, realizado a través de entrevistas con ocho trabajadores de TI, con la información sometida al análisis narrativo. Los resultados mostraron que la forma narrativa de la identidad y el discurso de posibilidad de carrera se destacan en los relatos de los participantes y, en algunos casos, sus narrativas están ancladas en discursos asociados a la empleabilidad, la movilidad, la precariedad del trabajo y la incertidumbre con relación al futuro. Se concluye, por tanto, que la identidad laboral de los investigados está formada por aspectos de identidad organizacional, profesional y vocacional, siendo esta última la más destacada, lo que parece indicar una tendencia de los procesos de carrera en el contexto del trabajo contemporáneo.

Palabras clave: identidad, trabajo, profesional de TI, carrera.


 

 

A flexibilização, heterogeneização e complexificação associadas ao mundo do trabalho desde a década de 1970 têm impactado, de diferentes formas, os processos de construção identitária de trabalhadores em escala mundial, bem como provocado o surgimento de novos modelos e discursos de carreira (Da Silva Rosa, Zampier & Stefano, 2017). Atualmente, encontram-se desde carreiras mais tradicionais, vinculadas a uma organização e/ou profissão até carreiras pautadas em projetos e experiência pessoais que apresentam uma maior ou menor continuidade entre si. O surgimento desses novos modelos também está ligado a situações de trabalho precarizado que impedem ou dificultam o estabelecimento de um sentido de carreira.

Não obstante os diferentes sentidos presentes na literatura quanto à definição de carreira, a partir de uma perspectiva socioconstrucionista, é possível compreendê-la como associada às produções discursivas presentes em determinado contexto, constituindo-se, dessa forma, como um fenômeno psicossocial e uma construção narrativa (Ribeiro, 2014). Por sua vez, considerando as diferentes referências identitárias presentes no contexto sociolaboral contemporâneo (Stecher, 2020), a concepção mais abrangente de "identidade de trabalho", ao incluir a articulação entre as identidades vocacionais, profissionais, ocupacionais, organizacionais e de carreira, representa o processo de interpretação, integração e estruturação das experiências de trabalho. Diferentes autopercepções que se integram, possibilitando uma continuidade biográfica e consistência entre as diversas partes da vida (Grote & Raeder, 2009).

Por ser psicossocial, o processo de construção identitária encontra-se, inexoravelmente, vinculado à condição sociolaboral específica de cada trabalhador. Desse modo, indivíduos com trajetórias de trabalho distintas tendem a apresentar diferenças significativas quanto à identidade de trabalho. Aqueles que desenvolvem carreiras vinculadas a uma organização, por exemplo, inclinam-se a obedecer a lógica institucional e a se identificar com seus papéis profissionais, enquanto os que apresentam carreiras com funções menos padronizadas têm narrativas pautadas na flexibilidade, polivalência, resolução de problemas, empregabilidade (Calha, 2017). Sendo a área da tecnologia da informação (TI) uma relevante e corrente referência no que se refere aos novos e emergentes modelos de carreira, conforme atestam investigações contemporâneas sobre o tema (Souza, 2021), o presente estudo buscou compreender o processo de construção das identidades de trabalho de determinados trabalhadores brasileiros da área de TI, uma vez que pode retratar uma tendência em expansão nos processos de carreira.

A construção identitária é perpassada por valores e crenças atribuídas pela sociedade, organizações e grupos de trabalho, bem como pela autopercepção e autoconceituação da pessoa sobre si mesma construída na interação com o mundo (Stecher, 2020). A identidade apresenta, nessa direção, uma dualidade em sua definição - a identidade para si e a identidade para o outro -, que se constitui no processo de socialização das pessoas com as instituições. Assim, ela é objetiva e subjetiva, individual e coletiva, estável e instável.

Em suas relações sociais as pessoas identificam a si próprias e se deparam com as identificações dadas pelos outros (Dubar, 2005). Todavia, nem sempre esses dois processos são congruentes, podendo entrar em conflito. Nesse caso, torna-se necessário traçar estratégias para reduzir esse conflito, as quais podem dar continuidade ou romper com o que foi herdado e é conhecido. A articulação entre as duas transações faz parte do processo de socialização e é produtora de identidades sociais (Dubar, 1998). Assim sendo, a identidade pode ser compreendida como: a) produto, ou seja, enquanto narrativa que a pessoa constrói sobre si mesma, sobre os outros e sobre o mundo baseada em discursos sociais; b) processo, na qualidade de interações simbólicas de identificação, diferenciação, reconhecimento e categorização mediadas por práticas sociais; c) contextos de produção histórico-social que expressam relações de poder (Stecher, 2020).

A partir da transação entre a identidade para si e a identidade para o outro, Demazière & Dubar (2006) sistematizaram quatro formas de constituição identitária: estatutária, narrativa, reflexiva e cultural. A forma estatutária refere-se à identificação por outrem, que favorece a inserção em um sistema de emprego com qualificação reconhecida, e à identificação por si, que envolve a segurança de um estatuto e de uma pertença oficial, em alguns casos outorgada por certificados e diplomas. A transação entre as identificações por outrem e por si constitui uma identidade ligada às regras burocráticas, às relações com os colegas, ao ambiente de trabalho e aos objetivos de uma instituição. Associa-se, desse modo, ao reconhecimento e ao sentimento de pertença baseados no vínculo com a organização, bem como à dependência para com ela. A forma narrativa expõe que a identificação por outrem valoriza o reconhecimento de si e a identificação por si privilegia a incerteza de um projeto. Ou seja, é uma identidade vinculada a um coletivo, que não precisa ser institucionalizado, e a um projeto, que envolve a incerteza de uma aventura pessoal. Na forma narrativa, a ação da pessoa no mundo possui maior ênfase do que a introspecção; destaca-se o reconhecimento das habilidades, trajetórias e características profissionais e a valorização de um projeto pessoal de carreira e de vida.

A forma reflexiva caracteriza-se por ponderações subjetivas do indivíduo associadas à valorização de um ideal moral. Essa forma de constituição identitária constrói-se entre a identificação por outrem apoiada na autoridade e a identificação por si baseada no desejo de fazer parte de um grupo de referência. Assim, a identidade é ligada a um grupo particular, restrito e hierarquizado, que exige a demonstração de um valor e um aprendizado. Na forma cultural, a identificação por outrem constrói-se na autoridade tradicional de um grupo de pertencimento (com referência, por exemplo, à posição na linhagem das gerações e ao sexo) e a identidade para si favorece a fidelidade ao grupo e a proteção que este lhe oferece (Demazière & Dubar, 2006). Observa-se um forte predomínio dos aspectos culturais na constituição identitária (o indivíduo se define pelo e para o outro).

No que se refere especificamente ao universo laboral, os processos de construção identitária, caracterizados por meio da relação eu-outro, encontram-se associados a distintos discursos de carreira. Nesse sentido, por meio de uma revisão na literatura especializada, Ribeiro (2014) identificou quatro produções discursivas genéricas com diferentes bases psicossociais de apoio (organizações, profissões/ocupações, redes sociais e ausência de base), as quais foram denominadas de nostalgia, fechamento, possibilidade e instrumentalidade. O discurso de carreira nostalgia refere-se à construção de uma carreira vinculada a determinada organização, que fornece segurança em um sistema de trabalho estável e conhecido. Denota-se o comprometimento com a instituição e o objetivo de permanecer na mesma organização ao longo da carreira. O discurso de carreira fechamento é baseado na identificação das pessoas com comunidades delimitadas que as protegem perante a flexibilidade e a precarização atual, tais como conselhos e sindicatos profissionais. As carreiras são pautadas em caminhos predefinidos por diferentes profissões e buscam preservar o status de determinado trabalho. Ambos os discursos compartilham uma perspectiva tradicional de carreira.

De forma diversa, o discurso de carreira possibilidade possui como referência a flexibilidade que caracteriza o mundo do trabalho contemporâneo e relaciona-se a carreiras baseadas em valores, crenças, projetos de vida e trabalho e em estratégias para lidar com as demandas externas e com mudanças constantes. Vínculos organizacionais, quando existem, apresentam-se como mediações para projetos pessoais que proporcionam sentidos para a carreira. O discurso de carreira instrumentalidade, por sua vez, faz menção às carreiras que não têm uma estrutura ou uma modalidade que forneça uma orientação consistente e, assim, por não possuírem uma base psicossocial de apoio, caracterizam-se por projetos dispersos e descontínuos (Ribeiro, 2014). O trabalhador, em contextos precarizados ou situações de vulnerabilidade social, tende a vivenciar relações difusas com o trabalho, que não favorecem a atribuição de sentidos consistentes ou de uma história para a carreira.

Investigações sobre trajetória de trabalhadores identificam narrativas individuais que não se limitam a apenas um dos discursos de carreira anteriormente mencionados (Kovalenko & Mortelmans, 2014), demonstrando a singularidade e a transitoriedade das carreiras. Ademais, observou-se a predominância dos discursos nostalgia e possibilidade, o que indica a coexistência, no momento atual, de valores e carreiras mais tradicionais juntamente com carreiras mais flexíveis e com maior fluidez (Ribeiro, 2012). Ressalta-se que os discursos de carreira estão diretamente ligados à forma como as pessoas constroem suas identidades de trabalho, pois ao viver em determinado contexto, o trabalhador precisa traçar estratégias que influenciam a construção, reconstrução e reconversão da sua forma identitária (Dubar, 2005).

Assim, investigações sobre identidades de trabalho ocupam lugar de destaque na agenda de pesquisa social; construções identitárias precisam ser analisadas a partir das instituições, modelos produtivos, trajetos biográficos e âncoras socioestruturais dos trabalhadores (Álvaro, Stecher & Valenzuela, 2017). Nos últimos anos evidenciam-se pesquisas sobre essa temática na área da educação (Valenzuela, Ahumada, Rubilar, López & Urbina, 2018) e da enfermagem (Ribeiro, Gaspar, Santos & Silva, 2021; Silva & Freitas, 2021).

A carreira e as construções identitárias de trabalhadores da área de TI, por sua vez, também são estudadas em razão de suas especificidades e de sua atualidade.  A valorização do empreendedorismo, da "gestão de si", e o "gosto pela mudança", alinhados às mudanças do mundo do trabalho, vinculam-se a discursos contemporâneos de carreira que orientam construções identitárias de muitos trabalhadores, especialmente da área de TI (Souza, 2016). Perante a instabilidade e as demandas pelo desenvolvimento de habilidades técnicas e gerenciais (Kappelman, Jones, Johnson, McLean & Boonme, 2016), o trabalhador de TI procura formas de fortalecer sua identidade; assim, gerir a própria empregabilidade e mobilidade apresenta-se como um caminho para a ascensão profissional (Mossi, 2013).

Nos últimos anos, pesquisas sobre a carreira de profissionais de TI têm abordado diferentes temas, tais como relações de trabalho e perspectivas de carreira (Assis, Cavazotte & Farias, 2009), diferenças entre expectativas anteriores ao ingresso em organizações e a realidade encontrada (Dhar, 2013), constituição da identidade em trabalhadores (Mossi, 2013; Brooks, Riemenschneider, Hardgrave & O'Leary-Kelly, 2011) e em estudantes da área (Tomer & Mishra, 2015). São, ainda, temas investigados a relação entre fatores contemporâneos de carreira, contexto de trabalho e saúde mental (Dos Santos, Amorim, Machado & Oliveira, 2020), perfil profissional e particularidades da área (Piurcosky, Frogeri, Portugal Junior & Oliveira, 2021), escolha, formação, trajetória e condições profissionais (Souza, 2021).

Com base no anteriormente exposto, pressupõe-se que o discurso de carreira possibilidade (Ribeiro, 2014) e a forma narrativa de constituição identitária (Demazière & Dubar, 2006) tendem a se destacar em trabalhadores da área de TI, uma vez que se encontram diretamente associados às transformações atuais do mundo do trabalho, operando e desenvolvendo novas tecnologias de informação e comunicação e construindo carreiras mais flexíveis e individualizadas. Diante disso, evidencia-se a relevância de estudar o processo de construção das identidades de trabalho de indivíduos que atuam na área de TI.

 

Método

Delineamento e instrumentos

O estudo caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa narrativa (Jovchelovitch & Bauer, 2017; Creswell, 2014) com corte transversal, uma vez que visa compreender como os trabalhadores de TI desenvolvem suas identidades de trabalho e os sentidos que dão para o seu percurso profissional por meio de suas próprias narrativas, coletadas em um momento específico de suas vidas. Uma forma de compreender a identidade é a narrativa, que fornece sentido à existência de cada pessoa em um dado contexto (Demazière & Dubar, 2006). Utilizou-se a pesquisa qualitativa em virtude desse método favorecer o estudo aprofundado dos sentidos presentes nas narrativas, bem como uma interpretação mais subjetiva do fenômeno investigado, com base em um pequeno número de participantes (Creswell, 2014). A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina (CEPSH/UFSC), sob o número de protocolo 29546720.0.00000.0121.

Em relação ao delineamento, utilizou-se o estudo de casos múltiplos, que se caracteriza por apurar de forma esmiuçada uma situação, uma pessoa ou um ambiente específico (Yin, 2015). Assim, foram identificadas e examinadas semelhanças e diferenças nas narrativas a respeito de processos de vida e trabalho de pessoas que atuam na área de TI, sendo cada investigado caracterizado como um caso.

Para a coleta de informações foram utilizados a entrevista narrativa (Jovchelovitch & Bauer, 2017) e um questionário sociodemográfico e ocupacional. A pergunta norteadora da entrevista, com base na literatura sobre carreira e identidade, foi a seguinte: conte-me sobre sua história de vida no trabalho até aqui e seus projetos de futuro. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi enviado a cada participante, para leitura e assinatura. As entrevistas foram realizadas de modo online por videochamadas no programa criptografado Google Meet, bem como gravadas para posterior análise. O questionário, respondido de forma remota, abordou os seguintes tópicos: idade, sexo, escolaridade, formação, estado civil, naturalidade, presença e número de filhos, profissão dos pais e irmãos, cargo ou função que exerce, tempo de atuação na área de TI, trajetória de trabalho e possíveis interrupções, descrição das atividades realizadas, descrição de competências e habilidades desenvolvidas.

Participantes

Como critérios de inclusão, os participantes deveriam ter, ao menos, o ensino médio completo, e já atuado há, no mínimo, cinco anos de forma ininterrupta na área de TI. Em relação a trabalhadores que atuavam há mais de 10 anos na referida área, as possíveis interrupções não poderiam exceder três anos. Desse modo, foram selecionados para participar da investigação oito trabalhadores que atuavam na área da tecnologia da informação na região da Grande Florianópolis, nas condições de empregados em organizações, terceirizados ou autônomos, com formações diversificadas nas áreas de engenharia, tecnologia e design. A amostra é não probabilística e foi constituída por meio do procedimento bola de neve (Creswell, 2014). Os participantes apresentam-se caracterizados na Tabela 1.

 

Tabela 1

Caracterização dos participantes

Participante

Idade
(anos)

Sexo

Escolaridade

Cargo Atual

Estado Civil

Tempo de atuação em TI

J.

31

M.

Superior incompleto

Gerente de TI e Autônomo

Casado

10 anos ininterruptos

I.

33

M.

Curso técnico incompleto

Sem cargo definido (desempregado / freelancer)

Solteiro

16 anos com 7 meses de interrupção

B.

35

M.

Superior incompleto

Desenvolvedor III

União estável

11 anos sem interrupções

K.

41

M.

Pós-graduação

Gerente de produto

Divorciado

21 anos sem interrupções

M.

36

F.

Pós-graduação

Analista de BI

União estável

14 anos com 3 meses de interrupção

M.D.

35

M.

Pós-graduação

Gerente de desenvolvimento

Casado

14 anos com 2 anos de interrupção

A.

30

F.

Pós-graduação

Analista de negócios em TI

Solteira

10 anos com interrupção de 8 meses

L.

31

M.

Doutorado em andamento

Design de serviço

Solteiro

7 anos sem interrupção

Fonte: Os autores (2021).

 

Análise dos dados

As informações obtidas nas entrevistas foram submetidas à análise narrativa conforme proposta por Schutze (Jovchelovitch & Bauer, 2017), sendo desenvolvida em seis fases: a) transcrição do material; b) divisão do material em indexado e não indexado, sendo que o primeiro refere-se à trajetória - quem fez o quê, quando, onde e por quê -, e o segundo expressa os valores, juízos, percepções e aprendizados de vida; c) análise e organização do material indexado em forma de trajetória; d) análise do material não indexado; e) agrupamento e comparação entre as trajetórias individuais; f) comparação das semelhanças e diferenças das trajetórias, bem como a identificação de trajetórias coletivas.

As informações provenientes dos questionários foram analisadas e utilizadas na composição de cada estudo de caso, como forma de proporcionar maior especificidade mediante a consideração dos aspectos sociodemográficos e ocupacionais que caracterizam cada participante. As análises efetivadas buscaram possibilitar a compreensão das narrativas dos participantes com base nos discursos contemporâneos de carreira, nas diferentes construções identitárias (vocacional, organizacional, profissional) vinculadas ao contexto sociolaboral (Ribeiro, 2014), bem como nas formas identitárias discutidas por Demazière & Dubar (2006).

 

Resultados e Discussão

Ao longo das trajetórias de vida e trabalho dos participantes observou-se inicialmente, mediante suas narrativas, a influência de familiares, professores, colegas de trabalho, líderes, amigos, não sendo possível observar uma tendência predominante. Todavia, nas narrativas dos homens entrevistados foi percebida, de forma evidente, uma significativa influência da família nuclear em suas escolhas pela área de TI, o que não foi identificado nas narrativas das mulheres. Verificou-se, ainda, que com a presença de um companheiro (a) e de filhos (as), os participantes passaram a refletir mais sobre como suas escolhas interferem na situação financeira, no contato e no estilo de vida da família. Assim, outros papéis sociais foram se tornando mais salientes.

A condição socioeconômica e a formação profissional na área da tecnologia da informação também são fatores que interferiram de forma considerável na trajetória profissional e na construção identitária dos participantes. Destaca-se que apenas um deles estava desempregado e atuando como freelancer no momento da entrevista. Nessa direção, é importante observar que, para cinco entrevistados, o trabalho na área de TI proporcionou, inclusive, uma condição socioeconômica superior à que possuíam em suas famílias de origem. A maioria dos pais dos entrevistados tinha apenas o ensino fundamental ou médio, contudo, incentivaram os filhos a estudarem como forma de ascenderem socialmente. Isso retrata o que muitas vezes representa, no imaginário social, ter um filho com formação escolar mais avançada e, especificamente, que trabalhe com tecnologia, o que se destacou nas narrativas de B. e de M.D. Outros entrevistados não evidenciaram esse incentivo da família em relação aos estudos, embora também tenham indicado o anseio de familiares sobre o alcance de melhores condições financeiras, como A. e M. Associado a isso, quatro entrevistados tornaram-se autodidatas, ou seja, desenvolveram competências de estudar de forma mais autônoma em razão de se encontrar em um contexto com menos recursos disponíveis.

Ressalta-se que nas entrevistas foram percebidos valores compartilhados pelos participantes, tais como: autonomia, flexibilidade, equilíbrio entre vida pessoal/profissional, desafios na rotina de trabalho, reconhecimento por parte da gestão com os funcionários, aplicação do conhecimento técnico no trabalho, ambiente tranquilo, possibilidade de crescimento. Foram, ainda, percebidas características pessoais comuns a eles, como: facilidade em aprender/ensinar e otimizar processos, firmeza nas atitudes, resolução de problemas e proatividade, objetividade.

Assim, em seus processos de vida, a identidade de trabalho é construída mediante a história que cada um conta a respeito de sua trajetória, inserida em um mundo de trabalho específico. Nesse curso, consolidam-se interpretações sobre si mesmos como trabalhadores, bem como a respeito das organizações, do trabalho em si e das demais pessoas dessa conjuntura. Esse processo abarca diferentes dinâmicas de categorização, identificação e diferenciação em relação aos outros à sua volta e tem como fundo a biografia, a trajetória de carreira e as demais categorias socioeconômicas (gênero, geração e etnia dentro da estrutura social) (Stecher, 2020).

Identidade para si e identidade para o outro

Através das narrativas analisadas foi percebida uma convergência entre a identidade para si e a identidade para o outro, na percepção dos participantes. Eles construíram essa percepção sobre como os outros os reconhecem por meio de feedbacks, da relação com os colegas e das suas experiências de trabalho. Contudo, em alguns momentos houve o tensionamento na transação da identidade para si e da identidade para o outro. Isso pôde ser visto quando alguns participantes mudaram de organizações, foram despedidos, fizeram transições para outras áreas de trabalho ou de formação ou mudaram os contratos de trabalho (como prestador de serviços - Pessoa Física ou Pessoa Jurídica -, ou empregado).

Cinco participantes saíram das organizações nas quais trabalhavam por conta própria, por não serem reconhecidos / identificados como gostariam e por não acreditarem nos valores e nas práticas organizacionais. Quando há esse tensionamento, os trabalhadores podem utilizar diferentes estratégias de ação para diminuir a lacuna entre o autoreconhecimento e o heterorreconhecimento, tais como: mudar e ressignificar aspectos da identidade para si, transformar a forma como ela é vista pelos outros ou, ainda, buscar novos grupos de referência, como ocorreu com alguns participantes da pesquisa. Isso dependerá do contexto, da distribuição do capital financeiro e do poder das diversas pessoas envolvidas (Stecher, 2020).

O desemprego na área da tecnologia da informação foi vivenciado pelos participantes M. e J. no início da carreira e por B. e I.  na metade da carreira. Quando o resultado da transação é o desemprego, ocorre a exclusão do mercado de trabalho, o que impacta na maneira como a pessoa percebe a si própria, na sensação de reconhecimento e valorização pelos outros e até mesmo nas expectativas quanto a futuras contratações. Ou seja, afeta a sua identidade de trabalho (Dubar, 2005). Isso é visto na narrativa do participante I. que prefere trabalhar como CLT pela estabilidade e segurança, mas, como no momento está desempregado, talvez opte atuar por outro tipo de contrato:

As vagas até agora que eu vi são com salários muitos baixos, são vagas de entrada para profissionais ali, que não tem a mesma experiência que eu tenho. Então, talvez eu acabe tendo que migrar para trabalhar com freelancer mesmo né?! (Participante I.)

Seis dos trabalhadores de TI investigados tendem a se colocar como prioridade em suas decisões de carreira. Assim, propendem a ter uma identidade pautada no próprio "eu". Essa é uma estratégia para ter uma identidade mais estável e fortalecida perante um contexto de trabalho mais instável, com maior risco de desemprego (Mossi, 2013), como é percebido nessa fala:

Tanto que eu vim para trabalhar como analista de sistemas ali na empresa que eu tô agora, mas não foi exatamente isso que eu acabei fazendo né? E aí como eu percebi que para esse cargo específico isso não ia mudar, eu comecei a buscar outras coisas (Participante M.).

A construção da identidade de trabalho pode, ainda, ser afetada pela transição de áreas de trabalho e de formação, pois, nessas situações, observam-se com frequência mudanças no cotidiano de trabalho, no conhecimento específico requerido, na relação com os colegas e com o ambiente de trabalho, nas ferramentas e nos atributos laborais. Grande parte dos casos estudados relata a vivência dessa situação. Por exemplo, B. começou diferentes cursos tanto dentro da área de TI, como fora dela, por iniciativa própria; M., M.D, K. e I. já trabalharam em especialidades diferentes da TI em razão de oportunidades oferecidas pelas organizações.

A troca de área pelo trabalhador (turn-away) pode ocorrer dentro da mesma organização (Ramos & Joia, 2014), uma vez que políticas organizacionais podem estimular o desenvolvimento de trabalhadores de TI de técnicos para líderes. Todavia, tais transições também podem representar uma quebra de expectativas por parte do trabalhador em relação à organização. Essa quebra envolve diferentes aspectos, tais como: diferença salarial, acesso a benefícios, cultura organizacional, planejamento de carreira, diferença entre o perfil da função e o trabalho em si (Dhar, 2013).

Construção identitária

Como pode ser observado na Tabela 2, constatou-se, mediante a análise das narrativas dos participantes, que o discurso de carreira possibilidade (Ribeiro, 2014) foi o mais presente ao longo das entrevistas. Esse discurso pode ser percebido nessa narrativa.: "Eu tô num lugar que eu tô infeliz, que os valores, os meus valores e os valores da empresa não batem, eu parei de crescer aqui dentro. Vou procurar alguma outra coisa" (Participante L.).

 

Tabela 2

Identidade de trabalho e discurso de carreira

Participante

Discurso de carreira

Identidade de trabalho - conforme a ordem de maior saliência

Forma identitária

J.

Possibilidade

Vocacional

Narrativa

I.

Nostalgia

Organizacional e vocacional

Estatutária e narrativa

B.

Possibilidade

Vocacional

Narrativa

K.

Possibilidade e nostalgia

Vocacional e organizacional

Narrativa e estatutária

M.

Possibilidade e fechamento

Vocacional e profissional

Narrativa e cultural/reflexiva

M.D.

Possibilidade e nostalgia

Vocacional e organizacional

Narrativa e estatutária

A.

Fechamento

Profissional

Cultural e reflexiva

L.

Possibilidade

Vocacional

Narrativa

Fonte: Os autores (2022).

 

Isso indica uma tendência de seis participantes (75%) por uma carreira pautada nos próprios valores, objetivos e experiências, requerendo o reconhecimento das competências que o mercado de trabalho solicita no presente e um esforço pessoal para as desenvolver, bem como a identificação e construção de oportunidades de trabalho alinhadas com os interesses pessoais. São carreiras em que os trabalhadores objetivam uma trajetória entre um vínculo contínuo com a organização e uma adaptação frequente às mudanças (Ribeiro, 2014). Esse discurso de carreira (possibilidade) pode ser relacionado à forma identitária narrativa (Demazière & Dubar, 2006), que ocorre através da transação entre a identidade atribuída que valoriza o reconhecimento de si e a identidade biográfica que favorece a incerteza de um projeto.

Com frequência, a área de TI se apresenta associada a discursos contemporâneos de carreira vinculados à busca pelo conhecimento constante, à valorização da mudança, à importância de desafios e liberdade, ao empreendedorismo, à competitividade, a novas práticas de gestão, à aplicação prática do conhecimento, à disponibilidade constante para o trabalho e a um mundo com fronteiras menos definidas. A aquisição de competências é compreendida como a construção de um capital pessoal, podendo ser utilizado em diversos contextos (Calha, 2017). Associado a isso, as tecnologias tornam-se, rapidamente, obsoletas, exigindo agilidade e mudanças de quem as produz e atua por meio delas. Entretanto, entre os participantes essa disponibilidade constante para o trabalho não foi enfatizada, uma vez que também valorizam outras dimensões da vida e da identidade, como: a família, o lazer e o desenvolvimento pessoal.

Ressalta-se que somente um entrevistado apresentou uma narrativa que se aproxima do discurso de carreira nostalgia e outra participante, do discurso fechamento, diferenciando-se dos outros trabalhadores de TI investigados. Pessoas que apresentam uma narrativa baseada no discurso de carreira nostalgia procuram segurança, permanência e mobilidade dentro das organizações e, geralmente, são mais comprometidas com essas últimas (Ribeiro, 2014). Logo, apresentam uma forma identitária estatutária, que se refere à transação entre a identidade atribuída, que favorece a inserção em um sistema de emprego com qualidade reconhecida, e a identidade biográfica, que abrange a segurança de um estatuto e de uma pertença oficial (Demazière & Dubar, 2006). Esses aspectos são observados na narrativa do participante I.:

É, eu sou um profissional de TI que é um pouco na contramão da maioria dos outros profissionais. Eu gosto muito de estabilidade, eu gosto muito de encontrar um ambiente de trabalho legal. Eu dou mais valor a isso do que dou valor à parte financeira (Trabalhador I.).

Nessa direção, investigações contemporâneas sobre a carreira de trabalhadores que atuam na área de TI permitem identificar que, de fato, a forma identitária estatutária não parece ser frequente entre tais trabalhadores, tendo em vista que suas identidades de trabalho se encontram mais fundamentada no "eu" do que nas organizações, com as quais, muitas vezes, possuem vínculos transitórios (Mossi, 2013; Souza, 2016). Apesar disso, dificilmente trabalhadores de TI enfrentam o desemprego, mesmo estando em uma área muito afetada pelas mudanças do mundo do trabalho, pois encontram oportunidades (demandas por serviços de TI, empregos, salários elevados) que lhes permitem priorizar seus interesses de carreira.

Por sua vez, a participante A, no decorrer da entrevista, apresentou uma narrativa associada ao discurso de carreira fechamento. Como pode ser visto na narrativa de A., a importância de manter sua trajetória dentro do escopo de sua formação e área de atuação:

Eu gosto muito de TI, eu senti que eu comecei a deixar de lado e sair um pouco da TI, sabe? E acaba ficando muito negócio e perder a essência da TI. Então, eu não queria chegar, eu não queria perder isso. Eu queria manter a parte técnica de TI (Participante A.).

Pessoas que têm uma carreira pautada nesse discurso propendem a se identificar com sindicatos, conselhos e associações que as protegem da precarização atual do trabalho (Ribeiro, 2014). Dessa forma, procuram construir suas identidades com base em elementos tradicionais que estejam dentro do escopo profissional, sendo as formas identitárias reflexiva e cultural predominantes, uma vez que se baseiam na interiorização de papéis sociais estáveis, organizados e estabelecidos normativamente, ou seja, na autoridade e proteção conferidas por determinado grupo de pertencimento (Demazière & Dubar, 2006).

As formas identitárias e os discursos de carreira articulam-se às diferentes facetas que compõem as identidades de trabalho, de acordo com as relações que cada pessoa estabelece no contexto sociolaboral. Por isso, denota-se a importância de identificar os sentidos de pertença e as identificações coletivas do mundo do trabalho nas narrativas dos trabalhadores (Stecher, 2020). De modo coerente com o discurso de carreira possibilidade e a forma identitária narrativa, a maior parte dos entrevistados (87,5%) apresentou características acentuadas da identidade vocacional, que simboliza a expressão da identidade pessoal de trabalho.

A identidade vocacional é construída tendo como referência o interesse pessoal por determinado tipo de trabalho, ou seja, baseia-se em aspectos subjetivos, no sentido de uma tendência a algo que "chama" (Ribeiro, 2014). Aproxima-se da ideia de um projeto pessoal e das incertezas encontradas na forma identitária narrativa (Demazière & Dubar, 2006) e de um discurso de carreira perpassado pelas características atuais do mundo do trabalho.  Assim, os trabalhadores de TI investigados demonstraram que desenvolvem suas carreiras com base em um interesse genuíno pela área e isso, também, os mantém trabalhando com tecnologia da informação, como ilustra a narrativa de I.: "Então sempre foi, por prazer eu fui adquirindo conhecimento, né? Não foi uma coisa que foi me imposta ou que eu pensei na remuneração, eu sempre pensava no quanto isso, o quanto eu gosto de fazer isso" (Entrevistado I.).

Nas narrativas de I., M.D. e K., também foram percebidas características da identidade organizacional, que destaca os vínculos dos indivíduos com as organizações. Por sua vez, a identidade profissional, que se remete a atividades especializadas (profissões) que requerem formações e competências específicas e o pertencimento a determinados grupos profissionais, evidenciou-se nos estudos de caso de A. e M. A partir desses resultados é possível observar que a identidade de trabalho é constituída por diferentes aspectos e não por apenas um deles, tendo como referência o mundo do trabalho contemporâneo, no qual as relações, os contratos e as opções de trabalho estão se flexibilizando e, em muitos casos, precarizando.

O fato de a identidade profissional não ter sido predominante nos estudos de caso pode estar relacionada à questão da área de TI não se configurar como uma profissão em sentido estrito. Esta não se encontra regulamentada no Brasil e existem diferentes classificações para atividades associadas à tecnologia da informação, dificultando o processo de reconhecimento como uma profissão e a união dos trabalhadores da área como uma classe ou um grupo.

Os participantes narraram aspectos positivos e negativos da falta de uma regulamentação profissional. Em relação aos primeiros, indicaram a inclusão de muitos profissionais sem uma formação específica, todavia que têm conhecimentos e experiência na área; a possibilidade de negociação salarial; a desburocratização; a facilidade de contratação. Quanto aos aspectos negativos, salientaram a falta de um piso salarial; a fragilização dos direitos trabalhistas; a existência de diferentes nomes para o mesmo cargo; a falta de compreensão da sociedade sobre a atuação do trabalhador de TI; a falta de apoio entre os colegas; a ausência de uma instituição responsável por representar os interesses de tais trabalhadores.

A necessidade de se sentir pertencente a um grupo profissional apareceu apenas nas narrativas dos entrevistados I. e L. Entende-se que essa autonomia apreciada por grande parte dos investigados sustenta-se em um discurso social que valoriza uma certa independência dos trabalhadores de TI. Contudo, assim como outros discursos sociais hegemônicos, ele pode ser   questionado e não necessariamente reproduzido por todos os trabalhadores dessa área.  Assim, Assis, Cavazotte & Farias (2009) advertem que a falta de apoio de instituições governamentais e da regulamentação da profissão pode favorecer o processo de precarização da área.

Os resultados apresentados vão ao encontro dos estudos de Kovalenko & Mortelmans (2014) e Ribeiro (2012), quando ressaltam que é possível reconhecer diferentes formas identitárias e carreiras contemporaneamente, que inclusive podem coexistir ao longo da trajetória de vida e trabalho de determinado indivíduo. Nesse contexto, uma mesma pessoa pode desenvolver uma carreira híbrida, que se configura como um quinto discurso de carreira emergente na literatura, e uma forma identitária pautada em diferentes aspectos.

Em um contexto de flexibilização e reorganização neogerencial, as formas identitárias estão cada vez mais individualizadas (Stecher, 2020), refletindo nos diferentes modos como se dão as carreiras. Especificamente em relação às carreiras na área de TI, estas se diferenciam por não ser como outras já prescritas, nas quais o trabalhador tem uma visualização mais nítida sobre as trajetórias possíveis, conforme a sua especialidade. Isso pode gerar, por um lado, um sentimento maior de insegurança e, por outro, uma percepção mais ampla e pessoal de desenvolvimento de carreira.

Assim sendo, as características das carreiras de trabalhadores de TI, como as identificadas no presente estudo, parecem sugerir uma das tendências do mundo do trabalho contemporâneo, principalmente no que se refere a algumas áreas e profissões. Entretanto, a maneira como cada um dos trabalhadores investigados desenvolve sua carreira e constrói sua identidade de trabalho é única, já que o contexto atual se entrelaça com a história de vida, com os projetos de futuro e com o autoconceito de cada um deles.

 

Considerações Finais

As narrativas dos participantes destacaram uma das tendências presentes em determinados discursos contemporâneos do mundo do trabalho, que valorizam a busca constante pelo conhecimento, por experiências e crescimento, por desafios e resolução de problemas, por competências enfatizadas pelo mercado de trabalho, pelo equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, por autonomia e independência. Práticas organizacionais que favoreçam a qualidade de vida no trabalho e o respeito às diversidades também foram mencionadas, bem como o interesse em se tornar prestador de serviços.

Verificou-se, aliado a isso, a predominância da forma identitária narrativa e da identidade vocacional nas construções identitárias de trabalho. Denota-se que as narrativas da maioria dos trabalhadores de TI investigados aproxima-se do discurso de carreira possibilidade; ou seja, suas identidades de trabalho, ao se afastarem dos discursos nostalgia e fechamento, parecem representar uma das tendências de construção de carreira na contemporaneidade.

Ressalta-se, todavia, que foram encontradas também narrativas baseadas em outros discursos de carreira, como nostalgia e fechamento (Ribeiro, 2014). Associado a isso, foi identificado que um mesmo participante apresenta diferentes referenciais de identidade de trabalho simultaneamente, como, por exemplo, aspectos das formas identitárias narrativa e estatutária (Demazière & Dubar, 2006), ou mesmo das identidades organizacional e vocacional.

Compreende-se, assim, que a complexidade do mundo do trabalho pressupõe contradições e a coexistência de situações distintas, o que impõe desafios consideráveis para a compreensão mais ampla da carreira de determinadas categorias de trabalhadores, sobretudo considerando o constante processo de construção e reconstrução das identidades de trabalho.  Oportunidades distintas de formação profissional e desenvolvimento de carreira, associadas a condições de trabalho desiguais, precisam necessariamente ser observadas ao se estudar os diferentes discursos de carreira indicados pela literatura.

Como limitações da presente investigação, observa-se que todos os trabalhadores da tecnologia da informação investigados atuavam em uma mesma região (Grande Florianópolis) e possuíam diferentes níveis de escolaridade e situações de trabalho. Para futuras investigações, sugerem-se pesquisas qualitativas em outras regiões do país e com grupos específicos de trabalhadores de TI, para verificar se as tendências observadas quanto aos discursos de carreira e às formas identitárias predominantes se confirmam. Pesquisas quantitativas que estudem correlações entre variáveis de carreira e sociodemográficas, tais como sexo e idade, também podem ampliar a compreensão da carreira e da identidade de trabalho de trabalhadores de TI.

Por fim, ressalta-se que os resultados obtidos no presente estudo contribuem para a agenda contemporânea de pesquisa sobre a carreira de trabalhadores de TI e, também, apresentam-se como subsídios aos profissionais que atuam com intervenções na área da orientação profissional e de carreira (OPC) com esse público. Podem auxiliar, ainda, na construção de políticas e ações em gestão de pessoas que favoreçam o desenvolvimento de carreira de trabalhadores de TI em organizações de diferentes naturezas, visto que as novas tecnologias e os trabalhadores que as desenvolvem, ordenam e restauram, estão cada vez mais presentes no atual mundo do trabalho.

 

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Endereço para correspondência
Bárbara Zaida Rampa Dias - dias.brbara@gmail.com

Recebido em: 15/05/2022
Aceito em: 10/04/2024

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CAPES, No. Processo 88887.498857/2020-00).

 

Agradecimentos: Os autores agradecem a Capes pelo fomento.

 

 

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