Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e66509, doi:10.12957/epp.2024.66509
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
Violência Colonial e Efeitos Psicossociais: Diálogo entre Experiências Kaiowá e Guarani e Escritos de Martín-Baró
Colonial Violence and Psychosocial Effects: A Dialogue Between Kaiowá and Guarani Experiences and Martín-Baró Writings
Violencia Colonial y Efectos Psicosociales: Diálogo entre Experiencias Kaiowá y Guarani y Escritos de Martín-Baró
Lucas Luis de Faria a, Catia Paranhos Martins b
a Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
b Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Este texto é parte da relação dialógica que temos construído com os povos Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul a partir do ensino e pesquisa em Psicologia Social. Nesta pesquisa nos debruçamos sobre as narrativas de violência denunciadas por estes povos para tecer análises de seus efeitos psicossociais a partir das contribuições de Ignacio Martín-Baró. Os relatos das violências coloniais, por suas relações intrínsecas com a colonização, são oriundos de recortes de notas da Aty Guasu, organização Kaiowá e Guarani, e da escuta sensível de diferentes comunidades e pessoas violentadas. O acesso às notas deu-se através das publicações no blog da Aty Guasu entre os anos de 2011 e 2013. Utilizamos as estratégias metodológicas de revisão da literatura da Psicologia da Libertação, a análise de documentos e o registro em diário de campo quando da participação em atividades públicas protagonizadas pelos Kaiowá e Guarani. Por meio desses procedimentos interpelamos a multiplicidade da violência colonial, como os homicídios e suicídios, praticada por diferentes atores. Com este estudo, consideramos a substantivação da violência em seus termos e raízes coloniais como modo de compreender, intervir e enfrentar as relações violentas fundadas no colonialismo e perpetuadas por suas atualizações na contemporaneidade.
Palavras-chave: kaiowá e guarani, martín-baró, psicologia social, violência colonial, povos indígenas.
ABSTRACT
This text is part of the dialogical relationship that we have built with the Kaiowá and Guarani peoples of Mato Grosso do Sul through teaching and research in Social Psychology. In this research we focus on the narratives of violence reported by these people to analyze their psychosocial effects based on the contributions of Ignacio Martín-Baró. The reports of colonial violence, due to their intrinsic relationships with colonization, come from clippings of notes from the Aty Guasu, Kaiowá and Guarani organization, and from the sensitive listening of different communities and people who have been raped. Access to the notes was through publications on Aty Guasu's blog between 2011 and 2013. We used the methodological strategies of a literature review of Liberation Psychology, analyzing documents and field diary entries when participating in public activities led by the Kaiowá and Guarani. Through these procedures we question the multiplicity of colonial violence, such as homicides and suicides, carried out by different actors. With this study, we consider the substantiation of violence in its colonial terms and roots as a way of understanding, intervening and confronting violent relationships founded on colonialism and perpetuated by its updates in contemporary times.
Keywords: kaiowá and guarani, martín-baró, social psychology, colonial violence, indigenous people.
RESUMEN
Este texto es parte de la relación dialógica que hemos construido con los pueblos Kaiowá y Guarani de Mato Grosso do Sul por medio de la enseñanza y investigación en Psicología Social. En esta investigación abordamos las narrativas de violencia denunciadas por estos pueblos para tejer análisis de sus efectos psicosociales a partir de las contribuciones de Ignacio Martín-Baró. Los relatos de las violencias coloniales, por sus relaciones intrínsecas con la colonización, son oriundos de los recortes de las notas de la Aty Guasu, organización Kaiowá y Guarani, y de la escucha sensible de las narrativas de distintas comunidades y personas violentadas. El acceso a las notas se dio mediante las publicaciones en el blog de la Aty Guasu entre los años de 2011 y 2013. Utilizamos las estrategias metodológicas de la revisión bibliográfica de la Psicología de la Liberación, el análisis de documentos y el registro en diario de campo de momentos de la participación en actividades públicas protagonizadas por los Kaiowá y Guaraní. Por medio de estos procedimientos interpelamos la multiplicidad de la violencia colonial, como los asesinatos y suicidios, practicada por distintos actores. Con este estudio, consideramos la sustantivación de la violencia en sus términos y raíces coloniales como modo de comprender, intervenir y enfrentar las relaciones violentas fundadas en el colonialismo y perpetuadas por sus actualizaciones en la contemporaneidad.
Palabras clave: kaiowá y guarani, martín-baró, psicología social, violencia colonial, pueblos indígenas.
Nesta pesquisa nos propomos a uma relação dialógica com os povos Kaiowá e Guarani desde a Psicologia Social. Temos como objetivo analisar os efeitos psicossociais da violência sofrida pelos Kaiowá e Guarani da região sul de Mato Grosso do Sul (MS) a partir das contribuições de Ignacio Martín-Baró, precursor da Psicologia da Libertação, e seus estudos sobre a violência na América Latina.
Os relatos de violência são oriundos de recortes de notas da Aty Guasu, a grande Assembleia Kaiowá e Guarani e movimento étnico-social destes povos, e da escuta sensível durante nossa caminhada em solidariedade a diferentes comunidades e territórios violentados. Em alinhamento aos pressupostos de Martín-Baró, é fundamental substantivar a violência, ou seja, compreender suas raízes e concretude histórica (1987/2017e). Sendo assim, tratamos aqui das violências coloniais por sua relação intrínseca e originária com a colonização.
Nossa opção pelas narrativas indígenas, que serão trazidas como recortes das notas da Aty Guasu, está alinhada à proposta ético-política da Psicologia Social Crítica de valorização das vozes de sujeitos oprimidos/subalternizados e aos propósitos de libertação popular a partir do deslocamento da visão de mundo dominante para as perspectivas das maiorias populares (Martín-Baró, 1985/2017b).
Relacionamos o cenário de guerra vivenciado pelos povos Kaiowá e Guarani, em diálogo com Morais (2017) e Johnson (2021), com o contexto de ditadura militar e confronto armado de El Salvador, experienciado e investigado por Martín-Baró, entre as décadas de 1970 e 1980. Essa aproximação permite-nos identificar na realidade Kaiowá e Guarani os termos psicossociais utilizados por Martín-Baró (1984/2017a) para qualificar a guerra: violência, polarização social e mentira.
Destacamos que, em concordância com o historiador Antonio Brand (2004) e o antropólogo Bruno Morais (2017), trataremos a morte, seja por homicídio ou suicídio, como desfecho do mesmo processo de "espoliação das terras indígenas e a concentração de grandes populações em pequenas áreas artificialmente reservadas" (Morais, 2017, p. 63). Essa concepção nos auxilia no discernimento das raízes coloniais da violência, tal como propõe Martín-Baró (1987/2017e).
A dizimação dos Guarani no início da colonização assume, de acordo com Brandão (1990), proporções de um sobrevivente para cada 500 mortos. Na contemporaneidade, entre os anos de 2003 e 2013, estas cifras permanecem preocupantes, tendo o MS liderado o ranking entre os estados mais violentos para os povos indígenas (Morais, 2017). O estudo de Santos, Amado e Pasca (2021) revela que, entre 2003 e 2019, os homicídios no estado habitado pelos/as Kaiowá e Guarani corresponderam a 39,4% (539 ocorrências) do total contra povos originários no Brasil, e a taxa de suicídio foi de 63,7% (894 ocorrências). São dados alarmantes que demonstram a dramática realidade vivenciada pelos Kaiowá e Guarani.
A esta cercania fúnebre, subjaz nossa hipótese de que a violência colonial, sedimentada e lapidada pela desumanização dos povos indígenas e negros, é regulada pelas inter-relações fundantes da modernidade/colonialidade e mantidas pela reprodução das estruturas históricas e heterogêneas do sistema-mundo (Quijano, 2005). Esse processo de violência e espoliação é atualizado pelo capitalismo global, uma vez que: "Os índices de suicídios e homicídios caminham em paralelo aos dados da produtividade do agronegócio no Mato Grosso do Sul: a receita do campo passou de 447,5 milhões de dólares, em 2003, para 3,81 bilhões de dólares em 2013" (Morais, 2017, p. 65).
Para discussão deste contexto, nos interessam as definições e análises da violência compreendidos pela perspectiva psicossocial de Martín-Baró nos textos publicados ao longo da década de 1980 (Martins & Lacerda Jr, 2014). Essa opção condiz com nossas preocupações epistemológicas e ético-políticas, e também pela própria complexidade das elaborações do autor (Martín-Baró, 1985/2017b, 1987/2017e, 1988/2017f). Ao longo do texto abordaremos, brevemente, os pressupostos da violência indicados por Martín-Baró (1985/2017b) e, então, nos debruçaremos nos efeitos psicossociais da violência colonial nas experiências Kaiowá e Guarani.
Método: habitar o campo
Este estudo é elaborado a partir do que temos entendido como habitar o campo, neste caso, habitar os territórios originários dos povos Kaiowá e Guarani (Faria & Martins, 2022). Essa experiência nos proporcionou uma imersão, de modo que estivemos em permanente relação com a pesquisa ao transitarmos pelas ruas da cidade e estradas das Terras Indígenas, ou pelas calçadas do campus universitário e oportunidades de estágio em equipamentos das políticas públicas.
Estivemos mergulhados nessa experiência entre os anos de 2014 e 2021, período em que residimos em MS. A realidade conflituosa desse estado, principalmente em relação às questões fundiárias, na polarização entre fazendeiros e povos indígenas, nos aproximou das tensões sociopolíticas e processos históricos da região, exigindo atenção e posicionamento desde nosso lugar de atuação e produção de conhecimento, a Psicologia Social e Psicologia da Libertação.
Buscamos analisar a violência histórica sofrida pelos Kaiowá e Guarani a partir das contribuições de Martín-Baró. A relevante produção do autor sobre os efeitos psicossociais da violência nos proporciona categorias conceituais críticas para avaliação do contexto experienciado pelos indígenas, de modo a identificarmos aproximações entre a realidade salvadorenha e sul-mato-grossense, compondo um recorte latino-americano das violações às populações em condições de vulnerabilidade e acometidas por conflitos violentos.
Para esse intento, realizamos a leitura das denúncias de práticas de violência e violações de direitos divulgadas pela Aty Guasu, em caráter de notas públicas, escritas pelas lideranças do movimento e divulgadas na internet. Esse procedimento foi orientado pela análise de documentos, que consiste na busca por informações concretas em acervo documental delimitado como corpus da pesquisa com objetivo de aprofundamento de questões a serem investigadas (Oliveira Junior, Santos & Schnekenberg, 2021).
A Aty Guasu manteve um blog ativo entre os anos de 2011 e 2013. A escolha dos documentos produzidos e publicados pelo movimento corresponde ao interesse da pesquisa pelas narrativas indígenas em relação à realidade experienciada por estes, posição historicamente negada aos povos originários, retratados massivamente por representações coloniais.
Para o tratamento do corpus documental, selecionamos 38 textos caracterizados como notas pela Aty Guasu e assinadas pelas comunidades indígenas, sobretudo, por territórios em processo de luta pela terra. Dessas produções, selecionamos diferentes dimensões da violência colonial apresentadas como representativas do contexto vivenciado pelas coletividades Kaiowá e Guarani.
Somamos, como instrumento metodológico, o registro em diário de campo (Kroeff, Gavillon & Ramm, 2020), quando da participação de atividades públicas e momentos importantes organizados pela Aty Guasu e/ou por comunidades Kaiowá e Guarani. Essa estratégia é concebida a partir da implicação politicamente situada das/os pesquisadoras/es com o campo-tema na produção de conhecimentos, mobilizando afetos e memórias sensíveis na narrativa textual (Kroeff et al., 2020).
Os documentos oriundos das narrativas Kaiowá e Guarani, bem como as experiências e anotações registradas no diário, foram analisados em diálogo com as contribuições de Martín-Baró, em especial, de seu significativo estudo psicossocial da violência na América Latina (Martín-Baró, 1975, 1984/2017a, 1985/2017b, 1985/2017c, 1987/2017d, 1987/2017e, 1988/2017f).
Nesse sentido, temos como caminho metodológico a revisão da literatura da Psicologia da Libertação, a análise de documentos produzidos pelos/as Kaiowá e Guarani e os registros das experiências com estes povos em diário de campo. A seguir, apresentamos as discussões e análises provenientes desse processo.
Análise da violência sofrida pelos Kaiowá e Guarani: diálogo com Martín-Baró
Ignácio Martín-Baró foi um espanhol radicado em El Salvador. Formado inicialmente em Filosofia e Teologia, concluiu o curso de Psicologia no país de radicação. Foi no contexto salvadorenho de conflito entre a ditadura empresarial-militar de Alfredo Cristiani, apoiada pelas forças armadas e o imperialismo norte-americano, e a organização popular político-militar da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), que Martín-Baró produziu importantes contribuições para a Psicologia Social, especialmente por meio do que nomeou como Psicologia da Libertação (Lacerda Jr, 2017).
Esta vertente da Psicologia Social Latino-americana possui influências da Teologia da Libertação, que emergiu na América Latina através da relação entre intelectuais progressistas e comunidades rurais, a exemplo das experiências de Paulo Freire no Brasil. O relevante estudo de Martín-Baró sobre a violência conferiu materialidade trágica em seu assassinato no ano de 1989, vítima fatal das forças paramilitares da ditadura, quando foi executado, juntamente com seis jesuítas e duas trabalhadoras, pelo esquadrão de elite do exército, nas dependências da universidade em que era docente e vice-reitor (Lacerda Jr, 2017).
Em seu livro intitulado de Acción e ideología: psicología social desde centroamérica, Martín-Baró (1985/2017b) faz uma importante sistematização de seus estudos sobre a violência. Para o autor, "a violência apresenta múltiplas formas e entre elas podem se dar diferenças muito importantes" (1985/2017b, p. 370, tradução nossa).
A partir deste primeiro pressuposto, identificamos nas notas da Aty Guasu denúncias que situam a violência colonial em diversos âmbitos, tais como: expulsão dos territórios por meio de deslocamentos forçados, imposição de trabalho escravo, tortura, ataques extrajudiciais por meio de mercenários da segurança privada, ameaças e assassinatos de lideranças, incêndios criminosos, despejos judiciais, isolamentos ilegais em áreas em conflito, privação de acesso aos recursos naturais e limitação de práticas culturais.
No recorte da nota a seguir é possível localizar a multiplicidade de expressões da violência enfrentada pelas comunidades que lutam pela retomada de seus territórios originários:
violências praticadas contra vida das comunidades Guarani e Kaiowá que retornam ao seu território é a ameaça de morte coletivo/genocídio associado ao ataque a tiros dos pistoleiros, queima de casas e pertences, prática de tortura, espancamento, assassinatos e ocultação de cadáver das lideranças entre outros […] Uma das violências praticadas contra a vida dos Guarani e Kaiowá é não mais utilização dos recursos naturais existentes nos seus territórios tradicionais, isto é, há acesso proibido às fontes de recursos naturais, tais como: rios, córregos, matas, campo e cerrados entre outros. Os indígenas não podem mais pescar, nem caçar e nem fazer coleta de frutas e plantas medicinais etc. (Resumo…, 2012).
De acordo com Martín-Baró (1985/2017b, p. 371, tradução nossa), "um segundo pressuposto é que a violência tem um caráter histórico e, por conseguinte, é impossível entendê-la fora do contexto social em que se produz". Sendo assim, ao dialogar com as experiências dos Kaiowá e Guarani, tomamos a situação colonial como condição histórica de fundação e perpetuação dos interesses e valores colonialistas constitutivos das muitas expressões da violência. Atualmente, tais princípios são representados pelas ideologizações do agronegócio, que converte seus interesses econômicos em normas sociais e intersubjetivas.
Segundo Martins e Lacerda Jr (2014, p. 576), "a violência passa a ser definida enquanto um processo histórico, pois o ato violento é efetivado pelo ser humano, cuja natureza é histórica e, portanto, aberta a diversas e contraditórias possibilidades". Nesse sentido, as autoras afirmam que a violência é também a expressão das forças e interesses sociais estruturados na sociedade (Martins & Lacerda Jr, 2014).
Como apontado na introdução, em diálogo com Morais (2017), a violência contra os povos Kaiowá e Guarani atualmente caminha em paralelo aos interesses político-econômicos do agronegócio sobre os territórios indígenas, configurando o que Maristella Svampa (2019) nomeia como territorialidades criminosas. Este é o marco histórico-estrutural sob o qual os Kaiowá e Guarani, assim como outros povos do Brasil, estão submetidos enquanto atualização das políticas colonialistas.
O terceiro e último pressuposto de Martín-Baró (1985/2017b, p. 371, tradução nossa) é identificado como "espiral da violência", que consiste na dinamização e multiplicação da violência social. Percebemos esta tendência através das violências materiais e simbólicas sedimentadas nas discriminações contra os/as Kaiowá e Guarani naturalizadas na sociabilidade com os/as não indígenas. Nesse contexto, os interesses coloniais-capitalistas do agronegócio são pulverizados e espalhados nos tecidos sociais, conformando intersubjetividades violentas para os povos indígenas.
A violência colonial, desde a compreensão aqui empregada, está inserida por entre os caminhos históricos das intersubjetividades desumanizantes instituídas e justificadas pelo colonialismo e perpetuada por mecanismos da modernidade / colonialidade (Quijano, 2005). Os objetivos e tendências do processo colonial vêm sendo atualizados pelos avanços do capitalismo global (Svampa, 2019), o que nas experiências Kaiowá e Guarani corresponde à incidência violenta do agronegócio em suas terras sagradas, os tekoha.
Enquanto para os latifundiários a violência colonial é instrumentalizada para acumulação de capital, para os povos indígenas esta é responsável pela deterioração dos territórios, modos de vida, relações sociais e intersubjetivas, dentre outras, configurando o que Aty Guasu aponta como "vida mísera" dos Kaiowá e Guarani expulsos de seus tekoha:
um dos fatores determinantes de nossa miséria, sofrimento e morte física e cultural contínuo, sobretudo o nosso extermínio como povo indígena, é o resultado da ordem da expulsão forçada ou despejo de nosso território tradicional praticado historicamente pelos fazendeiros (A vida…, 2012).
Para Martins e Lacerda Jr (2014, p. 580), em diálogo com os estudos de Martín-Baró, "a violência é um fenômeno social e individual. Assim, ainda que diversos indivíduos vivenciem a mesma situação violenta, as respostas e consequências psíquicas não são idênticas, pois dependem de processos subjetivos e objetivos". Essa perspectiva aponta para uma heterogeneidade não reducionista dos efeitos da violência, e apresenta a possibilidade de analisar essa multiplicidade de acordo com os agentes envolvidos (Martins & Lacerda Jr, 2014).
Martins e Lacerda Jr (2014), ao recuperar as proposições de Martín-Baró (1975), apontam três posições no enredo da violência: o executor, a/o violentada/o e o/a espectador/a. A condição de executor das violências denunciadas pelas notas da Aty Guasu (2012) é circunscrita aos fazendeiros/pistoleiros e às forças estatais. Estes são amparados pelas ideologizações de base colonial para legitimação das ações de violência, tais como as caracterizações dos indígenas como "inimigos", "invasores", "não humanos".
Esses mecanismos ideológicos permitem ao perpetrador da violência naturalizar e justificar a prática violenta, de tal modo que o prolongamento dessas atividades as convertem em hábito para o executor (Martins & Lacerda Jr, 2014). No caso das milícias de segurança privada e agentes repressivos do Estado, pistoleiros e policiais, as ações passam a compor a rotina profissional, e, por isso, normalizada pelo cotidiano laboral.
Ainda de acordo com Martins e Lacerda Jr (2014, p. 581), "na pessoa que é objeto do ato violento, a vítima, pode-se criar passividade ou incitação à violência". É possível notar na multiplicidade das experiências Kaiowá e Guarani o trânsito entre essas duas posições. Em algumas circunstâncias, quando da interpelação por instituições estatais ou de acontecimentos violentos, presenciamos pessoas imbuídas no silêncio, que nas inter-relações coloniais adquirem diversos sentidos, inclusive, opostos, como de resignação e/ou protesto. Já a proliferação da violência intracomunitária, principalmente nas Reservas Indígenas, aponta para a introdução e estímulo de práticas violentas produzidas pelas condições de desintegração social advindas do processo colonial (Johnson, 2021).
Quanto aos/às espectadores/as, há possibilidades de reações distintas, segundo Martins e Lacerda Jr (2014), que vão desde a frustração, pela alteridade violentada, repercutindo no aumento da agressividade ou intimidação causada pela repressão, até a não identificação que naturaliza a violência. Esta última condição nos parece mais contextual às experiências dos não indígenas habitantes do atual MS.
Os esforços políticos e ideológicos dos grupos dominantes ligados ao agronegócio vão na direção de estimular a polarização social, na qual os latifundiários são representados a partir da propaganda de que "o agro é pop, o agro é tech e o agro é tudo" (Agronegócio…, 2016), tal como veiculado pela grande emissora de televisão, e os/as indígenas como atrasados/as e invasores/as, gerando a não identificação e rivalidade da população regional com a realidade dos/as Kaiowá e Guarani.
Nesse enredo, visualizamos a indiferença, descartabilidade e desumanização engendrada na ideologia da violência colonial contra os povos indígenas. De acordo com Martín-Baró (1985/2017b, 1987/2017e), a desvalorização dos sujeitos violados compõe o arsenal de mecanismos psicológicos necessários à execução e naturalização dos atos violentos.
Nesses termos, é possível analisar como os processos psicossociais atuam a depender da localização nas dinâmicas dos interesses sociais e políticos, e, como a produção ideológica possui importante papel nos conflitos que, em âmbito fundante, colaboram para deterioração e alienação das relações sociais (Martín-Baró, 1984/2017a). A seguir, apresentaremos os desdobramentos da violência colonial na vida e saúde dos povos Kaiowá e Guarani, incluindo a discussão sobre sofrimento/trauma psicossocial e suicídio.
Saúde, sofrimento e trauma psicossocial
O sofrimento psicossocial e suicídio entre os povos indígenas faz parte dos principais eixos de demanda e investigação de profissionais e pesquisadoras/es em Psicologia (Conselho Federal de Psicologia, 2022). Nas experiências dos Kaiowá e Guarani, esses fenômenos estão em grande medida relacionados com a deterioração da saúde em função da expropriação dos territórios originários e a luta pela retomada dessas terras.
Para a Psicologia da Libertação, a saúde mental é tida como dimensão das relações sociais, que se concretiza de modos distintos nos indivíduos. Nesse sentido, as questões em saúde são consideradas como a "materialização em uma pessoa ou grupo do caráter humanizador ou alienante de uma trama de relações históricas" (Martín-Baró, 1984/2017a, p. 259). Assim, as condições de saúde são concebidas a partir da "perspectiva que vai do todo para as partes, da exterioridade coletiva para a interioridade individual, [e] o transtorno pode se situar em diversos níveis e afetar distintas entidades" (1984/2017a, p. 259).
Esse entendimento nos auxilia na compreensão de que em determinadas situações será o indivíduo afetado, mas também pode ser uma família, organização ou um grupo inteiro que venha a ser atingido pela violência. A experiência de transtorno à coletividade pode ser observada na ocasião do recebimento da ordem de despejo pela comunidade de Passo Piraju, localizado no município de Dourados, conforme expõe a nota abaixo:
no dia 08 de outubro de 2012, de manhã, recebemos uma triste notícia de extermínio/genocídio, violência e constrangedora, gerando profunda tristeza, perplexa, medo nas vidas de todos nós. Diante dessa notícia de extermínio, todos nós começamos entrar em estado de desespero profundo e sem esperança de vida melhor. Os jovens e adolescentes começam pensar em morte e suicídio, não sabemos mais como garantir e anunciar o futuro melhor para nossas crianças (Carta…, 2012).
O sofrimento comunitário pode ser percebido nas dimensões da tristeza, constrangimento, perplexidade, medo, desespero, desesperança, fome, miséria, morte e suicídio. Esta nota de Passo Piraju aponta a relação entre o despejo e o distanciamento das práticas cosmológicas como precedentes para o suicídio Kaiowá e Guarani.
Identificamos nas notas a dimensão geracional como fator de risco e incidência do suicídio, sendo os jovens os mais acometidos. A este aspecto, entendemos como condição de fragilidade a tensão entre a narrativa histórica dos mais velhos, sobre o modo de ser originário, e a impossibilidade dessa experiência aos jovens devido ao processo colonial, o que pode ser condição para a produção de conflitos e de constrangimento, como informado pela Aty Guasu.
O suicídio Kaiowá e Guarani tem sido tema recorrentemente abordado no debate público. Essa ocorrência atingiu números alarmantes de 894 casos entre os anos de 2003 e 2019 (Santos et al., 2021). No contexto colonial, perpassado pelas múltiplas formas de violências, o suicídio apresenta-se como expressão da deterioração das relações interétnicas, intergrupais e interpessoais.
Nos cenários de vulnerabilidade cosmológica e psicossocial, rezadores e rezadoras são convocados/as para harmonizar a coletividade frente ao medo e desespero, como afirma a nota: "Alguns rezadores ñanderu ou líderes espirituais já foram acionados para diminuir os desesperos e medo das crianças e adolescentes; ao mesmo tempo, os rezadores buscam indicar alguma decisão possível dos adultos guarani-kaiowá diante da ordem de expulsão" (Relatório…, 2012).
Essas expressões do sofrimento Kaiowá e Guarani nos direcionam para análise dos efeitos psicossociais da violência a partir das coordenadas da classe social [pertencimento étnico], envolvimento no conflito e temporalidade, apontadas por Martín-Baró (1984/2017a).
As raízes coloniais da violência e da intersubjetividade latino-americana, calcada na desumanização dos povos indígenas e negros, pressupõem relações racialmente hierarquizadas e deterioradas desde o princípio (Quijano, 2005; Martín-Baró, 1985/2017b). Por isso, optamos pela referência à classificação étnica e hierarquização racial, imbricada com a mundialização do capital, para repensar os termos da classe social enquanto primeira coordenada indicada por Martín-Baró (1984/2017a). Este deslocamento expõe o atravessamento racial como elemento fundante da violência colonial e sua repercussão na fragilização das relações sociais e interétnicas, das quais provêm as condições de adoecimento e sofrimento dos povos originários.
Como mencionado anteriormente, a ideologização da realidade polarizada entre indígenas e fazendeiros no MS produz uma cisão hierárquica na sociabilidade dos Kaiowá e Guarani e a população local. Os reflexos desse processo podem ser notados pela intensa discriminação histórica e culturalmente naturalizada frente às comunidades indígenas, as violências judiciais e extrajudiciais, e as condições precárias de sobrevivência indígena. A expectativa de vida estimada em 45 anos para os indígenas e 75 anos aos não indígenas sul-mato-grossenses evidencia a desigualdade relacionada ao pertencimento étnico, revelando um espaço abismal de três décadas (Martins, 2021).
Em nossa experiência de trabalho psicossocial com crianças e jovens no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), percebemos a crueldade da ideologia racista na infância e juventude Kaiowá e Guarani em função do pertencimento étnico. Através de brincadeiras coletivas de contato com a terra, constatamos os atravessamentos do racismo e da discriminação. Em conversa dialógica com o grupo, entendemos que o desconforto com um jogo teatral que propunha contato com a terra era uma expressão da tentativa de negação étnica. Nessa ocasião, jovens verbalizaram que não queriam brincar no chão porque quando circulavam no perímetro urbano eram discriminadas pelos/as não indígenas por serem, na concepção colonialista, "sujas/os".
Neste relato, percebemos uma forma de interiorização da ideologia colonial já na infância e juventude. A discriminação étnica e racial, enquanto parte constituinte da violência colonial, contribui com o processo de alienação de si e da coletividade. A terra presente nos corpos e territórios originários, identificada como "sujeira" aos olhos colonialistas, possui centralidade na constituição do ser Kaiowá e Guarani (Benites, 2014). As próprias crianças e jovens, ao serem indagadas sobre os sentidos cosmológicos da terra, responderam ser "pertencimento e luta" e "quando me sujo de terra é quando mais me vejo".
A segunda coordenada de Martín-Baró refere-se ao envolvimento dos grupos e sujeitos no conflito (Martín-Baró, 1984/2017a). Nesse aspecto, ao tratarmos o processo de colonização como o princípio da guerra colonial ainda em curso, temos a inferiorização e a violência sedimentadas pela intersubjetividade colonizadora como constituinte das inter-relações entre indígenas e não indígenas.
A realidade social, em sua totalidade, é perpassada pela ideologização colonial, de modo que há poucas escapatórias quanto ao envolvimento no conflito, pois a condição de pertencimento étnico determina a localização no contexto polarizado da guerra. Contudo, a multiplicidade das experiências Kaiowá e Guarani demonstram níveis e configurações diferentes das consequências psicossociais, a depender do processo de territorialização indígena (Pereira, 2007; Benites, 2014).
Ao longo da resistência histórica dos/as Kaiowá e Guarani foram forjados distintos modos de assentamento após o sarambi, esparramo, tal como nomeiam os indígenas o movimento de desorganização das famílias extensas efetivado pela ação estatal para limpeza étnica e abertura de suas áreas para colonização (Pereira, 2007). Destacamos, em diálogo com Pereira (2007), as Reservas Indígenas e as retomadas de terras autodeterminadas pelas comunidades para refletir sobre a intensidade do envolvimento nos conflitos e suas consequências psicossociais.
A violência nos espaços de reservamento é inserida numa dinâmica de confinamento (Brand, 2004) e limitação das práticas tradicionais, como denuncia a Aty Guasu. O resultado dessa desorganização causada por políticas de colonização territorial e populacional são altas taxas de violência, suicídio e desnutrição, como descreve a nota abaixo:
Nestas reservas/aldeias não há mais espaço, recursos naturais, mina d'água, são superlotadas e, por conta desta superlotação, há nelas muita violência. De fato, em decorrência desses vários despejos violentos já resultaram centenas de suicídios, mortes por desnutrição em todas as reservas/aldeias superlotadas (Carta…, 2012).
Por consequência da alta densidade demográfica nas Reservas Indígenas, descritas nas notas como superlotação, e os problemas oriundos dessa condição, os/as Kaiowá e Guarani promovem, a partir da década de 1970, movimentos autônomos de reocupação de seus territórios (Benites, 2014). Esse processo, nomeado como retomada, ocorre através de mobilizações intracomunitárias e articulações intercomunitárias, diante da ineficiência e desinteresse do Estado em garantir, por vias institucionais, o direito originário à terra aos Kaiowá e Guarani.
As retomadas visam a busca pela sobrevivência física e cosmológica desses povos a partir da recuperação e manutenção do modo de ser Kaiowá e Guarani, além de afastar do contexto de violência imposto pela condição de confinamento nas Reservas, como afirma a nota a seguir:
Nestas reservas não há como praticar e preservar mais nosso modo de ser e viver Guarani-Kaiowá, diante disso que muitas famílias Guarani-Kaiowá decidiram e tentaram retornar e reocupar a parte pequena do território antigo, com o objetivo de sobreviver culturalmente e para praticar o ritual religioso e se afastar do mundo de violências adversas das reservas/aldeias superlotadas (A vida…, 2012).
Os territórios retomados através da auto-organização comunitária geram o fortalecimento das relações e práticas originárias, por configurarem o tekoha, onde o modo de ser toma seus sentidos tradicionais e sagrados (Benites, 2014). Contudo, como observamos nos comunicados da Aty Guasu, as terras retomadas também sofrem maior incidência das ações criminosas dos pistoleiros contratados por fazendeiros e dos despejos judiciais efetivados pelo Estado (Pereira, 2007; Morais, 2017).
A nota a seguir, referente ao anúncio das pessoas que estavam na retomada de Passo Piraju, ilustra a relação de ambiguidade entre os povos indígenas e o Estado brasileiro, bem como questionamentos produzidos pela comunidade ao vivenciar essa experiência:
Aqui no Passo Piraju nós estamos bem felizes, já faz dez anos que superamos a miséria e fome em que vivíamos na beira da estrada despejada. 'No passado recente, vivemos vários anos na beira da estrada com muito sofrimento e fome, onde nossas crianças passavam fome e doentes, muitas crianças morreram lá', por isso nós não queremos mais retornar a viver na beira da estrada, preferimos a morte que voltar na beira da estrada. Entendemos que o Governo Federal construiu para nós escola, caixa da água, posto de saúde, assim está ajudando nós para sobreviver, enquanto a justiça federal vai mandar nos jogar na beira da estrada. 'Parece que a Justiça do Brasil só que ver o sofrimento e morte dos índios na beira da estrada.' 'Será que essa é justiça de verdade?' (Relatório…, 2012).
São intensidades e níveis diferentes que marcam os distintos modos de assentamento Kaiowá e Guarani e, consequentemente, o envolvimento nos conflitos gerados pelas políticas coloniais. Esta apreensão faz referência à totalidade da opressão colonial nas vidas dos povos indígenas. Onde quer que estejam, estão sob os atravessamentos da violência colonialista. Entretanto, destacamos que a estratégia de retomada do tekoha representa um modo de enfrentamento direto aos mecanismos coloniais. E, ainda, os processos de retomada do território originário possibilitam experiências de superação das consequências traumatizantes da violência, como afirma a nota da Aty Guasu: "Uma vez que na tekoha Passo Piraju, visivelmente, a comunidade sofrida e violentada, em parte está superando essa vida traumatizada e miserável" (Relatório…, 2012).
Os despejos judiciais e extrajudiciais vão na direção do que Martín-Baró (1984/2017a, p. 263) aponta como o desalojamento, no qual "eles tiveram que abandonar seus lares, muitas vezes destruídos, tomando uma decisão sempre difícil de se distanciar de suas raízes, de seus mortos". Essa descrição nos rememora o relato de Damiana, liderança Kaiowá e Guarani que lutou até a sua morte, ocorrida no final do ano de 2023, pela recuperação do tekoha Apyka'i em contexto de violência extrema. Em uma de nossas visitas ao território, Damiana nos contou sobre suas noturnas e clandestinas idas ao cemitério de seus familiares para rezar.
Damiana não aceitou o afastamento de seus mortos-memórias e faleceu aos 84 anos na beira da rodovia BR-463, área ao lado do território reivindicado, ocupado após despejo realizado pela Polícia Federal em 2016. A liderança histórica presenciou a morte de ao menos 11 pessoas de sua família, vitimadas em sua maioria por atropelamentos criminosos (Luz et al., 2023).
A última coordenada apresentada por Martín-Baró (1984/2017a) é a temporalidade. Para o autor, em análise do contexto de El Salvador, "o prolongamento da guerra, e - atualmente, não há perspectiva de término - os efeitos imediatos se tornarão mais profundos" (1984/2017a, p. 264). Essa afirmação adquire contornos inimagináveis ao refletirmos sobre a dinâmica colonial de longa duração implicada no processo histórico de mais de 500 anos da instituição, estruturação e repercussão do colonialismo.
Para Martins e Lacerda Jr (2014, p. 581), "uma situação desumanizadora de violência deteriora diretamente a saúde mental, deixando marcas negativas na saúde psíquica dos indivíduos e nas relações sociais destes". A partir desse entendimento arrematamos a discussão com o conceito de trauma psicossocial de Martín-Baró (1988/2017f, p. 312), que segundo a definição do autor consiste na "cristalização traumática nas pessoas e nos grupos de relações sociais desumanizadas".
Essa conceituação nos ajuda nas percepções e sensibilidades quanto às relações desumanas pelas quais os/as Kaiowá e Guarani estão inseridos no contexto sul-mato--grossense, contaminadas pela sociabilidade ideologizada dos interesses colonialistas do agronegócio. A cristalização desse processo faz referência aos efeitos mencionados anteriormente sobre a discriminação racista, a negação da etnicidade pelas crianças e jovens, a legitimação da violência, a ocorrência e impunidade de assassinatos criminosos, e os despejos judiciais.
Segundo Martín-Baró (1988/2017f), o trauma psicossocial refere-se ao caráter dialético entre as feridas causadas pelas experiências difíceis de sofrimento e acontecimentos dolorosos em relação a processos históricos com incidência coletiva. Sob estes contornos, a emergência do trauma psicossocial nas experiências Kaiowá e Guarani está diretamente relacionada com a violência colonial e os procedimentos/objetivos de genocídio/etnocídio dos povos originários.
Entendemos que a colonização e a reconstituição contínua do sistema-mundo-moderno/colonial-capitalista mostram-se como articuladoras das raízes ideológicas de inferiorização e manutenção da desumanização dos povos originários. Essa compreensão dialoga com a definição de Martín-Baró (1988/2017f) sobre a cristalização traumática das relações (coloniais) sociais desumanizantes. A partir desse entendimento, podemos situar as discriminações racistas, a negação étnica, a violência colonial e os processos de desumanização como constituintes do trauma psicossocial para povos Kaiowá e Guarani. E, ainda, as ideologizações coloniais, neste caso, as ideologias do agronegócio, como mediadoras e reprodutoras dessa lógica violenta.
Esse enredo de sofrimento e trauma psicossocial, com suas expressões fatais através dos altos índices de suicídios e homicídios entre os Kaiowá e Guarani, demanda urgentemente políticas de enfrentamento à violência colonial e mitigação de seus efeitos. A identificação de seus elementos e processos estruturantes podem auxiliar no movimento de nomeação e reparação enquanto horizonte de cuidado em saúde junto aos povos indígenas.
Considerações finais
As contribuições do estudo da violência de Ignácio Martín-Baró nos trazem importantes elementos para interpelação e crítica da realidade vivida pelos Kaiowá e Guarani em MS. Em nosso contexto formativo nos foram ofertadas poucas ferramentas teórico-metodológicas para o diálogo com os povos originários, embora expressiva presença indígena no território de formação. Essa situação não é uma exclusividade da nossa instituição de ensino, e sim uma questão compartilhada com outras/os psicólogas/os e pesquisadoras/es que atuam com essas populações em outras regiões do país.
As produções de Martín-Baró possuem diferenças espaciais, temporais e populacionais em relação à nossa experiência com os Kaiowá e Guarani, tendo em vista que foram elaboradas na década de 1980, quando El Salvador passava por um conflito armado movido pela ditadura empresarial-militar. Ainda assim, as análises e conceituações do autor nos proporcionam caminhos para interpretação das violências vividas pelos povos indígenas.
A substantivação da violência em seus termos e raízes coloniais é um exemplo dessa potencialidade por oferecer pistas para compreensão histórica das relações sociais e dinâmicas de desintegração comunitária. Essa compreensão colabora para a identificação dos fundamentos colonialistas da violência e o entendimento da necessidade de substituição das relações desumanizadoras por outras, onde a alteridade seja pautada pela convivência e não pelo domínio e extermínio.
Nesse sentido, passamos a entender a construção de relações desideologizadas, ou seja, despidas dos interesses das políticas coloniais, a exemplo das intersubjetividades promovidas pelo agronegócio, como tarefa de enfrentamento aos atos violentos, promoção de saúde e condição necessária para superação da situação colonial ainda vigente.
No contexto dos Kaiowá e Guarani esse horizonte é dinamizado pelas experiências de retomar a terra sagrada, por representar em termos cosmológicos a retomada de si e das relações originárias (Johnson, 2021). Este é um movimento de recomposição sociopolítica da memória histórica em dialética com a experiência vivida, dimensão que foi cindida pela situação colonial, sendo responsável por gerar precedentes para a negação étnica, violência intracomunitária e as práticas de suicídio.
Em nossas caminhadas pelos territórios indígenas, sejam Reservas ou retomadas, nos deparamos com situações de violências graves vivenciadas por pessoas e comunidades, a exemplo de assassinatos e negação/violação de direitos. Nestas experiências foi fundamental a escuta sensível alinhada às perspectivas dos povos, ora colaborando com orientações, outrora com a divulgação de denúncias, mas fundamentalmente com a disposição da presença e abertura às necessidades locais orientadas pelo compromisso ético-político.
Estes são humildes compartilhamentos desde a sensibilidade psicossocial e engajamento com as reexistências Kaiowá e Guarani. Esse texto pode ser lido como convocação das e dos profissionais da Psicologia para o compromisso com a libertação dos corpos-territórios indígenas e não indígenas ante aos propósitos do colonialismo e suas nefastas consequências para a vida coletiva.
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Endereço para correspondência
Lucas Luis de Faria - lucasluisf@outlook.com
Recebido em: 12/04/2022
Aceito em: 08/04/2024
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CAPES, Demanda Social).
Agradecimentos: Aos/às Kaiowá e Guarani pela gentileza, luta e resistência.
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