Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2021.64092
ISSN 1808-4281 (online version)

 

EDITORIAL

 

DOSSIÊ LINGUAGEM, LEITURA E ESCRITA E AS BASES CIENTÍFICAS DA ALFABETIZAÇÃO

 

Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota*, I; Marcela Fulanete Corrêa**, II
I Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
II Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF, Petrolina, PE, Brasil
Endereço para correspondência

 

 

Saber ler e escrever é, certamente, a habilidade mais importante aprendida na escola, com consequências para o desempenho acadêmico, profissional, social e cívico dos indivíduos. De fato, a aprendizagem bem sucedida da leitura e da escrita garante o acesso a outros conhecimentos e habilidades, favorece o desenvolvimento do raciocínio crítico e analítico, oferece melhores condições de trabalho, permite que o indivíduo gerencie adequadamente seus cuidados próprios com a saúde e se engaje em questões de interesse público (Moats, 2020; Cardoso-Martins, 2019; Seidenberg, 2017; Morais, 2013).

Apesar dos avanços obtidos na mitigação do analfabetismo no Brasil, a aprendizagem da leitura e da escrita constitui-se um desafio para os estudantes brasileiros. O artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Redação dada pela Lei nº 11.274, de 2006) estabelece que uma das metas do Ensino Fundamental consiste em garantir o pleno domínio da leitura e da escrita. A Base Nacional Curricular Comum (BNCC), aprovada em 2017, assegura ainda que as ações pedagógicas nos anos iniciais do Ensino Fundamental tenham como foco a alfabetização. Segundo a BNCC, espera-se que os alunos estejam alfabetizados no 1º e 2º anos do Ensino Fundamental. Os dados da Avaliação Nacional da Alfabetização (Brasil, 2020a), no entanto, demonstraram que apenas 14,8% dos estudantes no final do 2º ano do Ensino Fundamental obtém proficiência suficiente em leitura e escrita. Os resultados do Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (PISA) apontaram ainda que 50,1% dos estudantes brasileiros próximos do final da escolaridade básica obrigatória sequer alcançaram o nível mínimo de proficiência em leitura (Brasil, 2020b). Esses números são alarmantes e indicam que o Brasil não tem conseguido alfabetizar suas crianças.

De acordo com o Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências – RENABE (Brasil, 2020c), o desempenho insuficiente demonstrado pelos estudantes em diversas avaliações deriva, em parte, do fato das políticas e práticas de alfabetização no Brasil não estarem fundamentadas em evidências científicas. Nos últimos 40 anos, inúmeros estudos elucidaram como as crianças aprendem a ler a escrever e o que deve ser feito para alfabetizá-las. Essas evidências, no entanto, não têm sido utilizadas para o desenvolvimento de pedagogias e métodos de alfabetização eficazes.

O presente dossiê "Linguagem, leitura e escrita: contribuições da pesquisa para a alfabetização", proposto pela Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, reúne um conjunto diversificado e inovador de estudos que aborda a aquisição da leitura e escrita com base em evidências científicas recentes. Ao mesmo tempo, esses estudos apresentam uma série de recomendações que visam contribuir para a alfabetização bem-sucedida dos estudantes brasileiros.

O primeiro estudo aborda um importante preditor do sucesso na alfabetização, a saber, o conhecimento do nome das letras. Nesse trabalho, Sylvia Domingos Barrera e Larissa Pedreira Durães contrastaram o uso do alfabeto mnemônico e do alfabeto convencional no ensino do nome das letras para crianças no último ano da Educação Infantil. Essa investigação evidenciou que o uso do alfabeto mnemônico foi mais eficaz no ensino do nome das letras para as crianças, sugerindo que a utilização de materiais que associam a forma visual da letra com o seu nome no contexto de sala de aula é uma estratégia que garante melhores resultados no aprendizado do alfabeto.

No segundo artigo, Maria Abigail Aguilar Quirin, Francis Ricardo dos Reis Justi e Cláudia Nascimento Guaraldo Justi conduziram um estudo longitudinal com estudantes do 4° ano do Ensino Fundamental com o intuito de examinar a associação entre processos cognitivos e motivacionais, por um lado, e a leitura, por outro. Os resultados demonstraram uma importante contribuição dos processos cognitivos, isto é, da consciência fonológica, da memória de trabalho fonológica, da consciência morfológica e da nomeação seriada rápida para a leitura, denotando que a alfabetização pode tornar-se um processo mais fácil se levarmos em conta a estimulação dos preditores cognitivos da leitura.

O terceiro estudo, de Jane Correa, Fraulein Vidigal de Paula, Alina Galvão Spinillo, avança no entendimento dos preditores cognitivos da leitura ao examinar a contribuição da consciência morfológica e do processamento morfológico implícito para a velocidade de leitura entre alunos do 3° ano do Ensino Fundamental. As autoras enfatizam que leitores iniciantes podem se beneficiar do processamento morfológico implícito para o seu desempenho em leitura, sem ter ainda desenvolvido a consciência morfológica.

O quarto artigo encerra o grupo de estudos que explora a leitura sob o viés da pesquisa básica. Nesse trabalho, Adriana Satico Ferraz, Thatiana Helena de Lima, Adriana Setsumi Higa e Acácia Aparecida Angeli dos Santos atestaram que o modelo de dupla rota é adequado para explicar como estudantes brasileiros do 3° ao 5° ano do Ensino Fundamental leem e compreendem a leitura.

Qualquer discussão sobre alfabetização e linguagem não pode ser dissociada da escola. Os três próximos artigos que integram esse dossiê apresentam intervenções que de forma efetiva ajudaram a melhorar o desempenho em leitura das crianças. No trabalho conduzido por Cláudia Margarida Brito Freire, Maria Isabel Ferraz Festas e Marcelino Arménio Martins Pereira, o programa Ainda Estou a Aprender (AEA) mostrou-se eficaz no ensino da fluência de leitura para crianças com dificuldades de aprendizagem. No artigo de Elaine Doroteia Hellwig Braz e Sandra Regina Kirchner Guimarães uma proposta de intervenção pedagógica apresentou impactos positivos no desenvolvimento da compreensão leitora de estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental. Resultados semelhantes foram encontrados no artigo de autoria de Helena Vellinho Corso e Luciane da Rosa Piccolo. Nesse estudo um programa de intervenção mostrou-se efetivo no desenvolvimento da compreensão de leitura e das funções executivas de crianças com baixo nível socioeconômico.

Finalmente, os dois últimos estudos incluídos no dossiê abordam outra questão fundamental para o sucesso na alfabetização: o letramento. Não é possível ler e compreender um texto escrito sem entender seus usos e funções. O letramento é um processo essencial para o bom desempenho em leitura. É preciso lembrar que o professor tem um papel importante no letramento de seus estudantes, uma vez que atuam como mediadores de sua aprendizagem. Diante disso, Lilian Maria Carminato Conti, Lidia Maria Marson Postalli e Deisy das Graças de Souza examinaram o conhecimento dos professores sobre os comportamentos de letramento emergente dos seus alunos. Os resultados apontaram que os professores superestimam as competências de letramento emergente dos alunos com potencial para o êxito no processo de alfabetização. Por outro lado, as competências de letramento emergente dos alunos em risco para apresentar dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita são subestimadas pelos professores. Dada a importância do professor identificar precisamente o desempenho dos seus alunos e de utilizar práticas pedagógicas adequadas às suas necessidades, políticas específicas para alfabetização devem incluir formação de qualidade para os professores.

O último texto dessa coletânea discute um assunto que ainda merece mais aprofundamento: os gêneros digitais textuais. No texto Alfabetização e Letramento: Uma Discussão sobre Gêneros Textuais Digitais, Paula Tamyris Moya, Luciana Figueiredo Lacanallo Arrais e Maria Angélica Olivo Francisco Lucas levantam questões sobre o letramento sob a ótica desse novo gênero de texto. Embora as discussões sobre essas formas de se comunicar não sejam novas, ainda há necessidade de reflexões e mais pesquisas sobre os impactos das mídias sociais no desenvolvimento da linguagem oral e escrita.

Esperamos que os interessados no tema linguagem, leitura e escrita apreciem a leitura do dossiê e que os resultados dos diversos estudos aqui incluídos fomentem a elaboração de boas práticas de alfabetização no Brasil.

 

Referências

Brasil (2020a). Resultados SAEB 2019: Testes amostrais. Brasília, DF: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

Brasil (2020b). Brasil no Pisa 2018. Brasília, DF: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

Brasil (2020c). Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências. Brasília, DF: MEC/Sealf.

Cardoso-Martins, C. (2019). Prefácio. Em M. J. dos Santos & S. D. Barrera (Orgs). Aprender a ler e escrever: bases cognitivas e práticas pedagógicas. São Paulo: Vetor.

Moats, L. C. (2020). Teaching reading is rocket science: what expert teachers of reading should know and be able to do. Retrieved from http://www.aft.org/sites/default/files/Moats.pdf

Morais, J. (2013). Criar leitores: para professores e alfabetizadores. Barueri, SP: Minha Editora.

Seidenberg, M. (2017). Language at the speed of sight: how we read, why so many can't, and what can be done about it. New York: Basic Books.

 

 

Endereço para correspondência
Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota
Rua São Francisco Xavier, 524, 10° and., bl. B sl. 10.019, Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. CEP 20550-900
Endereço eletrônico: mmotapsi@gmail.com
Marcela Fulanete Corrêa
Av. José de Sá Maniçoba, S/N, Centro, Petrolina - PE, Brasil. CEP 56304-917
Endereço eletrônico: marcela.correa@univasf.edu.br

 

 

Notas

* Professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Salgado de Oliveira. Membro da Society for the Scientific Studies of Reading e bolsista de produtividade nível 2 do CNPq.
** Professora adjunta da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), pesquisadora membro do Laboratório de Desenvolvimento-Aprendizagem e Processos Psicossociais (LDAPP) e coordenadora da Liga Acadêmica de Desenvolvimento Humano (LADH).

 

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