Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e63575, doi:10.12957/epp.2024.63575
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
Escrever, Elaborar e Experienciar: O Estatuto da Escrita na Clínica Psicológica
Writing, Elaborating and Experiencing: The Statute of Writing in Psychological Clinic
Escribir, Elaborar y Experimentar: El Estado de la Escritura en Psicología Clínica
Fabio Scorsolini-Comin a, Manoel Antônio dos Santos a
a Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Embora a escrita seja uma dimensão fundante na formação em Psicologia e atravesse de modo constante a atuação profissional, essa vertente tem sido frequentemente negligenciada ou debatida em seu caráter mais automatizado e técnico, como ocorre na escrita científica, na produção de relatórios e na construção de laudos psicológicos, por exemplo. Tal enfoque posiciona a escrita a serviço de uma lógica instrumental, um produto. Ainda é incipiente a discussão acerca da escrita enquanto produção de cuidado e como espaço potente, que tem uma função organizadora tanto para o desenvolvimento profissional como para a promoção de uma atuação compromissada com a defesa da vida. Discutindo a função constitutiva da escrita a partir do método Bick de observação da relação mãe-bebê na família e do registro de atendimentos psicoterápicos, este ensaio, construído a partir da perspectiva psicanalítica, problematiza a escrita como um espaço articulador do pensamento clínico e não meramente como instrumento mediador da atuação profissional. Endereçamentos acerca desse argumento são apresentados e tensionados.
Palavras-chave: escrita, linguagem escrita, habilidades para escrita, métodos de observação, clínica.
ABSTRACT
Although writing is a founding dimension in Psychology training and constantly crosses professional performance, this aspect has been frequently neglected or debated in its more automated and technical character, as occurs in scientific writing, in the production of reports and in construction of psychological reports. Such an approach places writing at the service of an instrumental logic, a product. The discussion about writing as a production of care and as a powerful space is still incipient, which has an organizing function both for professional development and for the promotion of a performance committed to the defense of life. Discussing the constitutive function of writing using the Bick method of observing the mother-baby relationship in the family and the recording of psychotherapeutic care, this psychoanalytical essay problematizes writing as an articulating space for clinical thinking and not merely as a mediating instrument for professional performance. Directions about this argument are presented and tensioned.
Keywords: writing, written language, writing skills, observation methods, clinic.
RESUMEN
Si bien la redacción es una dimensión fundamental de la formación en Psicología y permea constantemente la práctica profesional, este aspecto a menudo ha sido descuidado o debatido en su carácter más automatizado y técnico, como en la redacción científica, en la elaboración de informes y en la construcción de informes psicológicos, por ejemplo. Este enfoque pone la escritura al servicio de una lógica instrumental, un producto. La discusión sobre la escritura como producción asistencial y como espacio poderoso, que tiene una función organizadora tanto para el desarrollo profesional como para la promoción de una acción comprometida con la defensa de la vida, es aún incipiente. Al discutir la función constitutiva de la escritura desde el método Bick de observación de la relación madre-hijo en la familia y el registro de la atención psicoterapéutica, este ensayo psicoanalítico problematiza la escritura como un espacio articulador del pensamiento clínico y no como mero instrumento mediador de la actuación profesional. Se presentan y tensan las direcciones sobre este argumento.
Palabras clave: escritura, lengua escrita, habilidades de escritura, métodos de observación, clínica
Este estudo teórico se propõe a refletir sobre o processo de escrita no quadro da ciência psicológica, perspectivado a partir do pertencimento de seus autores a esse universo de referência e de produção de conhecimentos. Para iniciar a argumentação do presente ensaio, recorreremos a um episódio da vida da escritora Clarice Lispector (1920-1977) bastante divulgado em suas biografias. Tal ancoragem mostra-se importante no percurso argumentativo que será explorado ao longo do presente estudo, costurando as narrativas sobre a escrita e o tornar-se autor(a). Essa passagem em específico refere-se à construção do processo de autoria de Clarice ainda durante a infância, em suas primeiras produções textuais (Scorsolini-Comin, 2019).
Clarice Lispector, durante a sua infância, produzia textos que eram encaminhados a um jornal da cidade do Recife, onde vivia com a família: o Diário de Pernambuco. Esse jornal mantinha uma coluna semanal na qual eram publicados os melhores textos produzidos por crianças da cidade. Muito interessada no universo da escrita desde a infância, a autora destacou em diversas entrevistas que todos os textos que encaminhou a esse jornal quando menina foram sumariamente recusados (Gotlib, 2009).
Ao ler os textos que eram efetivamente publicados, Clarice destacava a diferença em relação ao que ela produzia: os textos veiculados eram essencialmente concretos, descrevendo aspectos da vida dessas crianças e suas experiências dentro de um universo particular de referência e do que se esperava de uma criança. Tratavam-se de relatos descritivos de coisas que essas crianças conheciam, experiências que viviam e que podiam ser facilmente desenvolvidas em uma narrativa. A frustração de Clarice acabaria, anos mais tarde, sendo substituída por uma compreensão daquilo que se esperava de uma escrita produzida por crianças, à época, de modo que a então menina se mostrava à margem dessa tendência ou do que era passível de publicação para esse público.
Nunca ganhei nada. Depois de muito pensar encontrei o porquê: todas as histórias vencedoras relatavam fatos verdadeiros. As minhas somente continham sensações e emoções vividas por personagens fictícias. 1
As outras crianças eram publicadas e eu não. Logo compreendi por que: elas contavam histórias, uma anedota, acontecimentos. Ao passo que eu relatava sensações... coisas vagas. Mas sou teimosa e não fiz ao longo da minha vida senão perseverar na mesma trilha, suprimir os fatos e privilegiar as sensações. Com o risco de não ser publicada. 2
Ao contrário dessa tendência consagrada, utilizada para seletividade da escrita "adequada" para assumir posição de destaque no jornal, a menina Clarice escrevia sobre as suas experiências de vida, suas sensações e impressões diante dos fatos da realidade. Assim, a autora trabalhava com a dimensão experiencial, que parte do pressuposto de que o autor não é aquele que faz uma narrativa exata, linear e essencialmente descritiva de uma dada realidade, mas se aventura no risco de uma experiência que pode refletir sobre a realidade, em vez de refletir a realidade. Nessa vertente não naturalística, a escrita passa a ser não um modo de relatar sobre a concretude das experiências, mas de articular as ressonâncias do universo experiencial que organiza a vida da pessoa. Essa era uma característica de escrita que não apenas diferenciava Clarice das demais crianças, como também separava o que poderia ser considerada uma escrita de um universo infantil e um estilo de escrita próprio do contexto adulto.
No trato com as palavras, Clarice fazia uma sondagem interior. Embora essa característica da autora fosse considerada, segundo a sua própria percepção, uma barreira que impedia a publicação dos seus textos enquanto criança, tal marca narrativa a transformaria em uma das escrituras mais originais do século XX em língua portuguesa (Gotlib, 2009; Scorsolini-Comin, 2019).
Essa metáfora da escrita, pinçada na biografia de Clarice Lispector, oferece um ponto de ancoragem para o argumento que será defendido no presente estudo. Trabalhando com a dimensão da escrita em uma perspectiva essencialmente psicológica, é lícito refletir sobre o modo como temos abordado, operacionalizado e situado a escrita em nossa produção e no nosso fazer, notadamente da Psicologia Clínica, como destacado no presente ensaio. Di Persia (2019) sustenta que, ao formular um caso clínico, por exemplo, os psicoterapeutas utilizam diversos critérios implícitos, simultaneamente aos seus referenciais teóricos. Desse modo, na perspectiva da formação do terapeuta é importante identificar e explicitar esses fatores considerados como dimensões subjacentes ao processo psicoterapêutico e que têm origem em aspectos interpessoais. A produção da escrita, em uma perspectiva de construção clínica, sustenta-se em uma argumentação semelhante, como abordaremos a seguir.
Para iniciarmos, um exemplo torna-se oportuno: quando tratamos do processo de registro clínico de um determinado atendimento no contexto psicológico, por escrito, diversas são as possibilidades de construir um documento que possa não apenas atestar que um atendimento ocorreu, como também funcionar como um registro relevante para estudos e investigações acerca do processo psicoterápico. E como isso pode se dar em termos de seleção do que será narrado, de planejamento e estruturação do texto e, por fim, de reflexões oportunizadas a partir do produto dessa escrita? Como essa autoria pode ser elaborada e problematizada?
Na contemporaneidade, alguns estudos têm se dedicado a refletir de modo mais direto sobre a construção do processo de escrita como uma competência relacionada à Universidade e que deve ser potencializada a partir do reconhecimento do fenômeno escrita como essencial a toda e qualquer formação profissional. Também são reportados estudos que partem de uma perspectiva mais crítica acerca da escrita, refletindo sobre os processos políticos e identitários de resistência que a atravessam, assim como convidam à adoção da escritura como ferramenta que possibilita posicionamentos, negociações e articulações sociais (Oliveira et al., 2019; Silveira Lemos et al., 2016).
Ainda que se reconheça a importância da escrita a partir de diferentes prismas, este estudo põe em destaque as reflexões produzidas pela Psicologia e a partir da Psicologia. Uma possibilidade de cotejamento da escrita na prática psicológica, em uma perspectiva mais tradicional, diz respeito aos documentos produzidos, por exemplo, em contextos de avaliação psicológica. Uma dessas referências é o manual de orientações para elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional, elaborado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2019). Em seu primeiro artigo, refere a necessidade de fornecer "subsídios éticos e técnicos necessários para a produção qualificada da comunicação escrita". O documento propõe a utilização das "técnicas da linguagem escrita formal", incluindo uma expressão "precisa" e objetiva, com frases e parágrafos escritos com coesão e coerência, representando "o nexo causal resultante de seu raciocínio", "escritos de forma impessoal, na terceira pessoa", além de não apresentar "descrições literais dos atendimentos realizados, salvo quando tais descrições se justifiquem tecnicamente".
Observa-se, a partir desse documento, uma tentativa de padronizar a escrita desses registros, sempre tendo em consideração o respeito à ética profissional. Como escrita eminentemente técnica e que prima por pretensa impessoalidade ou neutralidade, haveria espaço para pensarmos na construção da autoria? Para além desse padrão técnico almejado diante do fazer psicológico, quais as possibilidades de se produzir uma escrita mais autoral nesse campo?
As relações com a literatura estão presentes desde o início da psicanálise, sendo esse um terreno sobre o qual Freud também se dedicou com afinco. A psicanálise tem produzido um vasto conhecimento nesse campo, pensando a escrita e a literatura tanto como possibilidade estética como de fruição e de conhecimento de si e de contato com o outro (Junqueira & Scorsolini-Comin, 2021). Para Safra (2013), esse percurso se relaciona com a possibilidade de um fazer em psicanálise fora do consultório, buscando "compreender o fenômeno intersubjetivo pela fala, texto ou discurso, ou abordar o fenômeno transferencial pela noção de campo, ou pela noção de espaço potencial" (p. 22). É o caso de diversas intervenções com pessoas em sofrimento psíquico que empregam a escrita não apenas como um recurso, mas como uma possibilidade de construção de si e de reconhecimento da alteridade (Freitas & Bastos, 2019; Rickes & Gleich, 2009).
A construção da narrativa dos casos clínicos, por exemplo, dá-se na passagem da escuta à escrita, impondo uma transformação, pois são dois momentos distintos de produção da subjetividade, separados no tempo e na posição que o analista ocupa na cena analítica (Figueiredo, 2004). Outro exemplo é a narrativa, que permite a transmissão de experiências. Ao valorizar a experiência, a narrativa deixa de se comprometer com qualquer tentativa mais estrita de explicar os fenômenos, permitindo a fruição (Rodrigues, 2018; Vasconcelos, Oliveira, & Rodrigues, 2023). A escrita de si é outra possibilidade de particular interesse da Psicologia. Em uma perspectiva foucaultiana, o trabalho da escrita de si oferece uma oportunidade de recriação das experiências cotidianas e de reinvenção do vivido. Na medida em que encontra a alteridade, o vivido pode ser ressignificado, tornando-se outro, resistindo ao poder e criando, assim, novas possibilidades de ser e agir no mundo (Vieira, 2010).
Diversas experiências exitosas empregando a narrativa e a escrita de si podem ser mencionadas. Algumas delas, por exemplo, partem da escrita autobiográfica para pensar a formação docente (Costa, 2021), a escrita de si em diário cartográfico para refletir sobre processos de subjetivação das relações raciais na formação da(o) psicóloga(o) (Félix-Silva et al., 2022), bem como os processos de criação e autoria nas práticas acadêmicas de estudantes de graduação (Zonta & Zanella, 2021). Essas experiências também visam, em alguma medida, promover a desestabilização de sentidos naturalizados, como no caso da escrita acadêmico-científica, centralizada em uma perspectiva de objetividade-neutralidade-universalidade, propondo escritas de si polifônicas e descolonizadas (Oliveira et al., 2019).
Para além da psicanálise, encontramos, na contemporaneidade, arcabouços teóricos que consideram, por exemplo, a escrita militante, como observamos na obra de Cecília Coimbra, em que são indissociáveis os atravessamentos ético-estético-políticos e a experiência narrada (Coimbra, 2021). A escrita, amalgamada à experiência vivida, ultrapassa o tom memorial, incluindo, a partir desse registro, um posicionamento que é eminentemente político e humanizador. Podemos mencionar ainda a escrita clínica na abordagem de escrevivências, na confluência com a obra da escritora Conceição Evaristo. O termo escrevivência, cunhado pela autora (Evaristo, 2011), permite o protagonismo da voz feminina negra, considerando as ressonâncias da "condição diaspórica africana no Brasil e seus desdobramentos estruturais" (Cruz, 2012, p. 2). Nesse sentido, encontramos experiências exitosas e provocadoras que "convocam o artefato poético para desatar experiências subordinadas em prol de criativas e pertinentes" soluções (Gomes et al., 2022, p. 39). Vemos, a partir dos arcabouços aqui recuperado, que a escrita, na ciência psicológica, tem ampliado seu escopo e suas ressonâncias, ultrapassando usos e recursos mais tradicionais, em direção a desconstruções e desestabilizações que retratem a experiência de si, o que envolve assumir posicionamentos éticos, políticos e estéticos.
Essas diferentes possibilidades de pensar a escrita dialogam com os estudos de Bakhtin (2010). Para este filólogo russo, a autoria não pode ser compreendida em uma perspectiva individualista, ligada às características pessoais e de personalidade daquele que exercita a escrita, mas a partir de um posicionamento que recupera as condições nas quais ela foi produzida, ou seja, em referência aos contextos e às coletividades que atravessam essa produção, alimentando as polifonias e polissemias que atravessam a linguagem. Concordando com os pressupostos bakhtinianos, partimos da consideração de que a escrita, a despeito do que se poderia supor, não consiste em uma atividade individual e solitária, mas se ancora fundamentalmente na coletividade, no espaço discursivo habitado pelas diferentes vozes narrativas que produzem os diversos eus, assim como pelas ressonâncias sociais, pela dimensão coletiva da experiência.
Para discutirmos o processo de registro escrito em uma perspectiva psicológica empregaremos duas vinhetas que tratam da escrita em Psicologia. A escolha dessas vinhetas tem como pressuposto a necessidade de disparar reflexões e problematizações acerca da escrita, não se resumindo a uma análise desses registros, mas os empregando como condutores da narrativa deste ensaio e dos endereçamentos que pretendemos tensionar. A primeira vinheta refere-se aos registros das visitas às residências das famílias que ocorrem por ocasião da aplicação do método Bick de observação da relação mãe-bebê. A segunda vinheta remete ao processo de registro de atendimento clínico em psicoterapia.
A escrita no método Bick
O método Bick de observação da relação mãe-bebê na família foi criado pela psicanalista inglesa Esther Bick em 1948 na Clínica Tavistok, em Londres. Foi desenvolvido a partir de pressupostos da psicanálise inglesa e tendo como norte o argumento de que, ao observar de forma sistemática a relação estabelecida pela mãe ao longo dos primeiros meses de vida do bebê, seria possível ter acesso ao modo singular como o desenvolvimento tanto do bebê quanto da mãe poderia se estruturar (Caron et al., 2012; Mélega, 2001). No Brasil, este método tem sido empregado com frequência, ainda que pesem as diferentes formas com que é registrado na literatura científica, o que envolve mudanças e adaptações em relação aos pressupostos originais de Bick (Sampaio et al., 2019; Scorsolini-Comin et al., 2011).
Em linhas gerais, este método de observação pressupõe a presença do observador in loco, ou seja, instalado na casa da família, na qual uma mãe acabou de dar à luz um bebê. Na literatura científica há relatos de observações que se dão a partir dos primeiros dias de vida e das interações primárias entre mãe e bebê (Sampaio et al., 2019). O método pressupõe que o observador possa desenvolver uma rotina de visitas e de observações do cotidiano dessa família, com foco na observação da relação entre mãe e bebê.
Nessas visitas, o observador é orientado a estabelecer um relacionamento com a família que permita observar o vínculo estabelecido pela díade sem que possa interferir diretamente nas situações observadas. Embora não possamos falar de neutralidade do observador, haja vista que a presença de alguém estranho a essa relação já é uma interferência direta nas situações que serão observadas, orienta-se que o observador desenvolva uma postura que lhe permita relatar aquilo que vê, ouve e sente não de maneira distanciada, mas reflexiva, com base no modo como ele se sente afetado por essa experiência. Isso permite pensar a respeito dessa observação de um ponto de vista clínico e a partir de um referencial de análise que, no caso, considere a singularidade da produção de conhecimento em psicanálise.
Uma das questões mais enfatizadas pelo método Bick é o registro dessas observações para que, posteriormente, tal documento possa ser lido e discutido em uma supervisão clínica. É nesse espaço de escuta, juntamente com outros profissionais da psicanálise ou orientados psicanaliticamente, que se podem construir inteligibilidades acerca dessa escrita e da experiência da formação do observador e do clínico (Scorsolini-Comin et al., 2011).
As supervisões ocorrem não a partir do relato verbal do observador, mas do registro que ele elaborou imediatamente após o término do momento de observação. Recomenda-se que esse registro possa ser produzido o mais próximo possível da observação, a fim de que as impressões não se percam ao longo do tempo. Mais do que o processo de observação ou da supervisão clínica que são pressupostos do método, nossa análise irá debruçar-se sobre o processo de escrita dessa observação, que não se limita a um registro naturalístico ou descritivo do que ocorreu no campo empírico.
Na formação do psicanalista, é importante discutir que esse processo de escrita não é algo neutro e executado apenas a partir de um relato sistemático, sequenciado e que pretensamente corresponde à realidade ou ao que se observou de modo o mais fidedigno possível. Assim, é importante que o observador compreenda que o processo de relatar o que observou não passa pela necessidade de construir, junto ao seu interlocutor, uma cena que possa ser descrita em todos os seus aspectos, permitindo que o leitor, na supervisão clínica, compreenda ou se aproxime da narrativa que é apresentada. Não se trata, pois, de uma tentativa de representar a realidade com precisão. Mais do que isso, o registro de observação pretende ser um documento útil ao observador, tal como um instrumento de formação no qual ele possa destacar não necessariamente aquilo que observou, mas o que o afetou no decorrer do processo de observação e na visita domiciliar.
Com isso, é mister reconhecer que o registro não se refere apenas àquilo que ocorreu ao longo de, aproximadamente, uma hora de observação, mas de todo o processo que pode incluir a construção da visita, recuperando aspectos acerca da preparação do observador para iniciar a observação, bem como aspectos considerados importantes após a finalização do encontro e da observação, de fato. Isso significa que a escrita deve permear todo o processo que envolve a observação, de modo que o registro não se refere apenas à hora observada, mas a todos os momentos anteriores e posteriores que permitiram que aquele contexto de observação fosse sustentado e também que a observação atingisse um objetivo mais amplo, ligado à construção e à formação clínica do observador.
Nesse registro, normalmente, orienta-se o observador a registrar aquilo que, de fato, foi observado durante a visita, como, por exemplo, gestos, comportamentos, falas, silêncios, expressões, sequência de ações, interações e demais elementos que permitam ao leitor reconhecer a experiência vivenciada pelo observador. Para além desses aspectos, o que poderia se dar, por exemplo, a partir de outras formas de registro possivelmente empregando mídias, imagens e áudios - permitindo, talvez, um acesso mais próximo da realidade -, o método pressupõe que o registro da observação por meio de texto escrito é um espaço privilegiado para que determinados aspectos possam ser refletidos, o que não se relaciona apenas à díade observada, mas, também e fundamentalmente, ao processo de construção analítico do observador.
Assim, sugere-se que, nesse registro, também haja espaço para reflexões do observador acerca de todo o itinerário de observação, tais como impressões, dificuldades, sentimentos despertados em função daquilo que foi observado, impressões a partir do contexto em que se deu a observação, bem como toda a afetação do observador ao longo do seu percurso. Segundo Mélega (2001), a afetação do observador é um elemento essencial nessa técnica, haja vista que a sua presença, não sendo neutra, pode produzir efeitos de subjetivação no campo observado e na dinâmica emocional de seus personagens, assim como ressonâncias que podem ser discutidas em termos da contratransferência.
A atitude de abertura para afetação em campo é discutida por vários autores, especialmente os da antropologia. Favret-Saada (2005) descreve a importância de um antropólogo, durante o seu trabalho de campo conduzido na etnografia, poder abrir espaço para registrar em diário todos os sentimentos que foram mobilizados em função desse processo de estar - e de ser - em campo. Nessa acepção, o diário de campo não é uma narrativa organizada que visa a descrever uma cena que se passou diante dos olhos do antropólogo, mas de permitir reflexões que construíram, junto desse pesquisador, o campo da pesquisa. Por essa perspectiva, o campo não é algo essencialmente material que pode ser visitado, mas consiste em uma dimensão experiencial que é composta a partir do olhar, da presença, do calor e da resposta do pesquisador ao entrar em campo. O campo mostra-se, portanto, como algo construído a partir da narrativa do pesquisador.
Utilizando esse aporte, ainda que possamos estabelecer que o método Bick é composto a partir da perspectiva psicanalítica, o que pressupõe uma epistemologia particular em relação à presença do terapeuta em campo e da contratransferência, tal aproximação pode ser útil para os objetivos do presente ensaio. Assim, é lícito refletir que a escrita no registro da observação mãe-bebê é um espaço no qual o observador pode também construir esse campo. O registro envolve a construção de um campo observacional, que é, sobretudo, experiencial.
Trazendo novamente à baila as metáforas da emergência da autoria em Clarice Lispector durante a infância da autora, destaca-se que também o processo de escrita no método Bick requer não uma forma sistematizada, detalhada e essencialmente descritiva que narre aquilo que se observou em campo, mas justamente que se abra espaço para a exploração de percepções e ressonâncias importantes na construção não só da observação como do processo clínico mais amplo, o que é discutido posteriormente na supervisão clínica. O registro deve permitir que o psicanalista-observador encontre uma forma de dar contorno e expressão à sua afetação durante o processo de observação da relação mãe-bebê, dando origem a possíveis questionamentos. Como aquelas observações e interações têm repercutido na construção clínica do observador? Como a visita àquela família tem impactado na formação clínica do observador? Como o processo de registro dessa observação tem sido incorporado nessa construção clínica?
Embora o registro de observação não seja um relato ficcional, é importante que tal escrita esteja aberta a criações e recriações que permitam ao observador registrar de modo coerente e próximo ao seu universo experiencial aquilo que foi sentido em campo e a partir do campo. O registro, portanto, torna-se um espaço potente de formação, uma construção vincular que sustenta a experiência do olhar do psicanalista em formação. A escrita, desse modo, deixa de servir meramente a uma atividade mecânica de registro inerente ao método com vistas à apresentação em uma supervisão clínica e passa a ser um instrumento de construção do observador-psicanalista.
É por essa razão que situamos esse registro no método Bick como um convite à emergência da autoria, que se refere, no campo discursivo, à capacidade de o sujeito assumir a posição-autor, responsabilizando-se pelo seu dizer e produzindo um texto com coesão e coerência (Orlandi, 2007). Nesse processo, é importante que o autor tenha consciência de que esse registro não equivale à realidade, sendo ilusória a sua capacidade de retratar e exprimir a realidade sem que esteja submetido ao poder da ideologia e do inconsciente.
Essa compreensão de autoria a partir da análise do discurso proposta por Pêcheux (2009) nos ajuda a compreender que a posição-autor não é uma posição neutra. Desse modo, o registro de uma visita é um espaço para a elaboração da autoria a partir da consideração dos elementos de produção envolvidos nessa escrita e considerando não apenas a subjetividade daquele que escreve, do sujeito empírico, mas como este se revela assujeitado a condições como a ideologia e o inconsciente. Mas qual o espaço para a discussão da autoria na formação em Psicologia?
Na formação em Psicologia, em uma perspectiva mais tradicional, como apresentado anteriormente, nem sempre se trabalha a escrita de modo mais reflexivo ou problematizador (Oliveira et al., 2019). Nesse espectro, a escrita é compreendida como um instrumento de trabalho ou como algo que deve servir instrumentalmente para que algumas questões da ordem prática da profissão possam ser executadas, a exemplo dos registros de observações, atendimentos, relatórios e laudos técnicos. Nessa acepção, a atividade de escrever ocupa uma função instrumental, uma atividade controlada - ou pretensamente controlada se retomarmos os posicionamentos de Pêcheux (2009). Em contraposição a esse movimento, importantes rupturas têm sido evocadas, como já explicitado (Coimbra, 2021; Félix-Silva et al., 2022; Gomes et al., 2022). Em consonância com essa tendência, reconhecemos que a escrita deve ser trabalhada na formação em Psicologia como uma ferramenta para a construção do ser profissional, funcionando como uma dimensão capaz de levar o estudante a refletir sobre sua construção identitária (Scorsolini-Comin et al., 2011).
Assim, a formação deixa de ser um espaço no qual o supervisor ensina ao aluno sobre como ele deve se portar para exercer futuramente a profissão e passa a ser um campo potencial no qual a escrita assume uma função importante não apenas no treinamento do estudante in loco, mas em seu processo de amadurecimento emocional para que esteja, no futuro, a serviço do campo e que tenha condições e competências para permanentemente habitá-lo, corporificá-lo e pensar sobre ele. Assim, propicia a construção de um raciocínio clínico fundamental, o que é potencializado na experiência com o método Bick (Caron et al., 2012). Como defendido a partir da literatura vigente, é mister que essa escrita possa ser permanentemente revisitada, estando aberta à desestabilização dos sentidos e a movimentos de ruptura fundamentais a um fazer psicológico decolonial e implicado ética, estética e politicamente.
A escrita na clínica
A segunda vinheta que será explorada neste estudo também se refere ao processo de formação em Psicologia Clínica e recupera a necessidade de pensar o espaço do registro dos atendimentos em psicoterapia. Essa forma de registro pode variar bastante em função de diversos aspectos, tais como a abordagem clínica na qual o estudante realizará o estágio curricular, as características dessa abordagem clínica, da modalidade de atendimento em psicoterapia e até mesmo de atributos do supervisor de estágio ou do profissional responsável pela orientação e acompanhamento do processo formativo.
Assim, o estudante pode receber orientações essencialmente descritivas e automatizadas para formular essa escrita. Ele pode ser aconselhado a tomar notas para que se recorde daquilo que ocorreu durante o atendimento. Pode desejar trabalhar com estruturas de tópicos que condensem os eventos principais trabalhados na sessão de psicoterapia. Pode valorizar a exploração e rememoração dos diálogos que permearam o diálogo terapêutico, possibilitando que o supervisor tenha acesso a uma versão o mais próxima possível das falas que teriam sido vocalizadas e na sequência cronológica em que emergiram, a exemplo de uma transcrição literal.
Para além de uma estratégia de apenas registrar o que ocorreu, o que pode cumprir exigências para composição de prontuários, por exemplo, sustentamos a possibilidade de que a escrita de registro de um atendimento clínico possa ser também um espaço privilegiado para problematizar o desenvolvimento clínico do profissional. Em outras palavras, podemos pensar o registro de uma sessão de psicoterapia como uma operação de produção de sentidos e de emergência da autoria (Orlandi, 2007). Não se trata de apenas narrar retrospectivamente o que aconteceu na intimidade da relação terapêutica. Por conseguinte, sua função não é ser uma evidência ou indício rememorativo de que houve o atendimento, passando a ser um instrumento potente para o psicoterapeuta tanto em seu processo constante de aprimoramento, como para desenvolver o raciocínio clínico em relação aos casos que ele vem acompanhando.
No espaço da escrita, tecido posteriormente aos atendimentos, o psicólogo pode ter insights importantes acerca do caso e do modo como a psicoterapia vem se desenvolvendo. Essa escrita, portanto, não precisa ser relacionada exclusivamente ao que ocorreu no atendimento em si, mas pode evocar e ressignificar fatos clínicos que ocorreram antes, durante e após a sessão. A escrita, assim, funcionaria como uma extensão do espaço clínico, de modo que nesse fazer o psicólogo continuaria conversando com seus interlocutores a partir de memórias, reflexões sobre o caso e de afetações a partir do caso e da sua escuta. Ainda, em termos psicanalíticos, podendo registrar e refletir sobre processos transferenciais e contratransferenciais produzidos no e a partir do contato com o outro.
Nesse processo, é fundamental que o psicólogo esteja disponível para se colocar por inteiro em seu relato, assumindo a densidade da sua presença, encarnada na sua fala e na sua escuta. O espaço da escrita deve funcionar como um instrumento de reflexão a respeito do caso, explorando transferências, contratransferências e ressonâncias do atendimento e do caso acompanhado, respostas e comportamentos expressos pelo profissional, inclusive favorecendo insights para próximos atendimentos e futuras reflexões junto ao paciente. Em alguma medida, e em diálogo com a literatura aqui recuperada, exploramos um sentido mais amplo dessa escrita, ao permitir cotejar o acontecer de um sujeito complexo, ao qual escutamos, bem como o processo de escuta e a construção desse profissional.
Essa forma de registro, narrando não apenas os fatos, mas valorizando as experiências e afetações do psicólogo no setting terapêutico - vale dizer, no seu campo potencial - não tem sido uma recomendação recorrente na formação dos profissionais, exceto a partir de algumas abordagens que permitem tal forma de registro. Na prática, o profissional de Psicologia esbarra em diversas dificuldades para manter a disciplina de organizar esses registros, tais como a falta de tempo para elaborar esse documento, a necessidade de emendar atendimentos em sequência, bem como ausência de um espaço protegido de trabalho no qual possa dedicar-se a esse processo de escrita que não pode ser automatizado.
O fato dessa escrita ser automatizada, muitas vezes, revela o modo como essa dimensão acaba sendo ultrapassada por outras necessidades. No universo dos estagiários, por exemplo, a dedicação às horas de atendimento e de supervisão normalmente não consideram ou valorizam o espaço e o tempo da escrita para a formação do estudante e para o seu aprimoramento clínico. No universo dos profissionais essa dimensão pode estar desinvestida, sendo associada a um momento formativo prévio, como se psicoterapeutas não mais precisassem desse recurso. Obviamente que, ao procederem desse modo, acabam associando a escrita a um mero registro, favorecendo uma escuta que poderia ser potencializada também pela emergência da autoria nesse processo.
O exercício de registro e da escrita não pode ser considerado um trabalho que transcende os limites materiais do consultório, mas como uma atividade tão importante quanto a presença do profissional no momento da consulta. Embora seja um espaço posterior ao do atendimento, a escrita dá continuidade ao atendimento, funcionando como um espaço laboral, o que permite que a escuta ultrapasse os limites temporais do setting que foi construído junto ao paciente. Como há muitos desafios a serem superados para executar essa tarefa a cada atendimento realizado, e considerando o fato de que a escrita é um processo laborioso e que envolve competências que nem todos os profissionais de Psicologia dominam com segurança, sugerimos que a escrita seja fomentada junto aos profissionais como um espaço de aprimoramento perene, o que pode se dar ancorando-se em experiências de desconstrução, de ampliação de sentidos, amplificação de vozes, considerando pertencimentos e resistências.
Retomando as considerações de Bakhtin (2010), embora os aspectos aqui reunidos possam ser apreendidos, em uma primeira análise, como essencialmente ligados a questões individuais do sujeito, como repertórios linguísticos, escrita, experiência de registro e também proximidade com a linguagem escrita, há que se considerar que a dimensão da autoria não remete a um bem produzido exclusivamente pelo autor, a partir de escolhas conscientes e amplamente acessíveis ao psicoterapeuta. A autoria, nessa acepção, emerge como possibilidade de construção coletiva de espaços, posicionamentos e reflexões importantes no fazer dessa clínica. O conhecimento produzido é compartilhado, ainda que a escrita seja um ato individual. Assim, a atividade do registro, incorporando, no mínimo, a dimensão da experiência do terapeuta e do cliente, já assoma como uma perspectiva essencialmente coletiva.
Considerar as coletividades que atravessam essa escrita, relacionadas também às subjetividades de quem escreve, esboça-se um caminho não apenas analítico, mas também de emprego da escrita para além de uma função instrumental. Isso implica em posicionar o escrever a clínica como produção e formação clínica, como emergência da própria autoria do sujeito nos interstícios do que ele escreve, remetendo ao que ele produz e ao que ele experiencia.
Considerações Finais
Neste estudo, partimos da questão da escrita inserida como estratégia organizadora no método Bick de observação da relação mãe-bebê na família e de considerações sobre a produção do registro de atendimentos psicoterápicos para problematizar a escrita como um espaço articulador do pensamento clínico. Reforçamos que a escrita é menos uma atividade e mais uma dimensão criativa/poética da experiência, com caráter formativo na clínica psicológica.
A escrita, na acepção na qual procuramos situá-la neste texto, tem sempre uma dimensão compartilhada. O ato de escrever, com um gesto generoso, envolve o outro em um enlace acolhedor. Nesse sentido, é produção de cuidado. Possibilita criar espaços de acolhimento e de novos agenciamentos de forças vitais para produzir um espaço contenedor para que as situações angustiantes possam ser pensadas e elaboradas. Assim, a escrita também pode ser vista, em sua dimensão existencial, como um ato de resistência contra o esquecimento e a indiferença em relação ao sofrimento alheio. Pode ser vista como resposta e contraface frente às invasões das diversas violências que debilitam o eu e aniquilam subjetividades.
Mencionamos anteriormente que Clarice Lispector, desde a infância, dedicava-se à produção de uma escrita que nunca se reduzia a um memorial descritivo, mas traduzia as ressonâncias que as coisas tinham para ela. Analogamente, sugerimos neste estudo uma noção de escrita na clínica psicológica como cuidado, à medida que o psicoterapeuta oferece um lugar de pertencimento ao outro que lhe permite organizar sua experiência de subjetivação. Como a literatura de Clarice, a escrita da clínica exige entrega a uma travessia sem mapa e sem bússola, em direção a algo que não sabemos, de antemão, o seu destino.
Embora nem sempre encontremos espaço para nos dedicarmos a ensinar os alunos a comporem as suas escritas nos rituais iniciáticos universitários - ao mesmo tempo em que refletem sobre esse processo -, é fundamental que a Universidade esteja aberta a incentivar seus estudantes para que a escrita seja constantemente desenvolvida e aprimorada enquanto um recurso imprescindível ao exercício da Psicologia. A Universidade não pode ficar aprisionada a uma concepção de que o desenvolvimento da escrita é um assunto técnico, essencialmente ligado a métodos, o que geralmente é trabalhado em disciplinas que ensinam metodologia de pesquisa. Tampouco a academia pode reificar uma concepção tradicional de escrita como algo ligado à formação anterior ao ingresso na Universidade, como os processos seletivos de vestibular que, normalmente, incluem a necessidade de elaboração de uma redação.
A Universidade, notadamente no que tange à formação em Psicologia, pode se mostrar mais porosa a uma perspectiva na qual a escrita não seja um elemento a ser desenvolvido de maneira técnica, mas estar a serviço do desenvolvimento do futuro profissional. Extrapolando o contexto de formação na Universidade, deve-se incentivar que os profissionais continuem desenvolvendo a sua escrita, sobretudo no contexto da psicoterapia, reconhecendo nesse processo um espaço potente de amadurecimento de reflexões que permitem construir uma clínica que, de fato, promova uma escuta não apenas do sujeito que busca ajuda, mas do profissional em seu permanente estado de fazer-se/tornar-se.
A escrita como experiência e a escrita da experiência ultrapassam a escrita como registro acerca da realidade. Escrever, nessa acepção criadora, corresponde a um ato organizador do processo formativo, reflexivo, experiencial e que, portanto, diz respeito ao humano em sua condição primeira de se constituir, de ser e estar em campo. Como conclusão, recomenda-se que a escrita deva ser valorizada como um exercício de formação permanente na clínica psicológica, ultrapassando sentidos que automatizam os registros, pressupondo um saber prévio de todo terapeuta acerca da forma de escrever, registrar e relatar. Desconstruindo os sentidos mais utilitários e técnicos dessa escrita, que normalmente atravessam a formação do profissional no Brasil, pode-se favorecer condições para a emergência da escrita como tecedura do próprio observador, do próprio terapeuta, em consonância com o argumento defendido, ou seja, da escrita como um espaço que deve ser habitado, corporificado, composto e permanentemente experienciado na atuação em Psicologia.
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Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin - fabio.scorsolini@usp.br
Recebido em: 18/11/2021
Aceito em: 09/05/2023
Notas
1 Entrevista concedida a Leo Gilson Ribeiro em 1969 e recuperada por Gotlib (2009, p. 82).
2 Entrevista concedida a Maryvonne Lapouge e Clelia Pisa e recuperada por Gotlib (2009, p. 83).
Agradecimentos: os autores agradecem ao CNPq pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa ao primeiro autor (PQ2) e ao segundo autor (PQ1A).
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