Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. 03. doi:10.12957/epp.2021.62735
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Encontros e Desencontros de Judith Butler com a Psicanálise

 

Flavia Gaze Bonfim*; Paulo Eduardo Viana Vidal**
Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói, RJ, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

A proposta deste artigo é apresentar algumas considerações sobre o pensamento da filósofa Judith Butler, suas críticas à teoria de Lacan, bem como alguns contrapontos a seus argumentos críticos, com o objetivo de demarcar os encontros e desencontros de Butler com a psicanálise. Nesse percurso, identificamos que as críticas da autora se restringem ao primeiro ensino lacaniano, não levando em considerações os avanços das fórmulas quânticas da sexuação e a noção de sinthoma, como arranjo singular do falasser com o gozo. Além disso, constatamos também que seu questionamento em relação à psicanálise não impossibilitou que, para pensar o gênero, Butler se servisse do aparato conceitual da metapsicologia freudiana e lacaniana, especialmente da noção de pulsão. Concluímos que as críticas de Butler à psicanálise não precisam ser tomadas como um problema ou um entrave, visto que elas promovem uma exigência frutífera de precisão teórico-clínica, que irrompe na atualidade, para avançarmos no debate sobre as novas ordenações da sexualidade.

Palavras-chave: Judith Butler, psicanálise, gênero, heteronormatividade, sexuação.


 

Judith Butler's Matches and Mismatches with Psychoanalysis

 

ABSTRACT

The purpose of this paper is to present some considerations about the philosopher Judith Butler's thinking, her criticisms of Lacan's theory, as well as some counterpoints to her critical arguments, aiming to demarcate Butler's possible matches and mismatches with psychoanalysis. Within this course, we identified that the author's criticism is restricted to the first lacanian teaching, disregarding the advances of the sexuation formulas and the notion of sinthome, as a singular arrangement of the falasser with the jouissance. Besides that, we verified that her question about psychoanalysis didn't exclude that, to think about gender, Butler would use the conceptual apparatus of Freudian and Lacanian metapsychology, especially the notion of drive. We concluded that Butler's criticism of psychoanalysis does not need to be taken as a problem or an obstacle, since it promotes a fruitful requirement for theoretical and clinical precision that is emerging nowadays to advance in the debate on the new orders of sexuality.

Keywords: Judith Butler, psychoanalysis, gender, heteronormativity, sexuation.


 

Encuentros y Desencuentros de Judith Butler con el Psicoanálisis

 

RESUMEN

El propósito de este artículo es presentar algunas consideraciones sobre el pensamiento de la filósofa Judith Butler, sus críticas a la teoría de Lacan, así como algunos contrapuntos a sus argumentos críticos, para demarcar encuentros y desencuentros de Butler con el psicoanálisis. De esta manera, identificamos que la crítica de la autora se limita a la primera enseñanza lacaniana, sin considerar los avances de las fórmulas cuánticas de sexuación y la noción de sinthoma, como un arreglo singular del falasser con el goce. Además, también notamos que su pregunta sobre el psicoanálisis no impidió que, para pensar sobre el género, Butler utilizara el aparato conceptual de la metapsicología freudiana y lacaniana, especialmente la noción de pulsión. Llegamos a la conclusión de que la crítica de Butler al psicoanálisis no debe ser tomada como un problema o un obstáculo, ya que promueve una fructífera demanda de precisión teórica y clínica que surge hoy para avanzar en el debate sobre los nuevos órdenes de sexualidad.

Palabras clave: Judith Butler, psicoanálisis, género, heteronormatividad, sexuación.


 

 

A sexualidade é uma temática inerente às teorizações psicanalíticas. Atualmente, porém, esse tema tem sido atravessado pelas discussões em torno da noção de gênero a partir dos Gender Studies e da Teoria Queer. Sendo assim, hoje em dia é impossível discutir sobre a sexualidade sem levar em consideração tais movimentos. Ainda que a noção de gênero seja um termo ausente na obra de Freud e no ensino de Lacan, enveredar-se por esse caminho revela sua importância, visto que Judith Butler - um dos nomes mais proeminentes nesse campo de estudos - tem criticado a psicanálise, especialmente a de viés lacaniano, como defensora das normas de gênero. Isso, portanto, requer dos psicanalistas uma aproximação conceitual a esse campo para um posicionamento mais rigoroso frente a essa discussão. Cientes do desafio que nos interpõe, a proposta deste trabalho é apresentar algumas considerações sobre o pensamento de Butler, suas críticas à psicanálise, bem como alguns contrapontos a seus argumentos críticos, para assim demarcar os encontros e os desencontros da filósofa com a psicanálise.

Judith Butler: Considerações sobre o Gênero e a Matriz Heterossexual

Judith Butler é uma filósofa feminista que, segundo Falbo (2016), conseguiu fazer emergir no campo social questões que estavam limitadas por uma visão da natureza, como o corpo, o sexo, o masculino e o feminino. De forma potente, ela vem trabalhando as temáticas referentes a gênero, sexualidade, poder e subjetividade. A partir das contribuições de Foucault, Butler propõe pensar o gênero e o sexo como construções sociais, históricas e culturais não determinadas por nenhuma verdade natural nem ontológica (Falbo, 2016). De acordo com Cossi e Dunker (2017), a filósofa toma a noção de gênero como especialmente problemática, não devendo ser articulada sem um aporte performativo da linguagem e sem uma discussão sobre políticas que possam produzir mudanças nas relações de poder que existem entre os gêneros.

É digno de nota que a análise realizada por Butler mostra-se produtiva no que se refere à criação de estratégias políticas de autodeterminação daqueles que não respondem ao padrão das sexualidades entendidas como hegemônicas, fazendo, assim, frente a situações de opressão. Cossi e Dunker (2017) consideram que a originalidade da obra de Butler está na investigação do gênero, justamente pelo referencial do que foge à norma sem, contudo, considerá-los pela via da pura transgressão. A partir da noção de gêneros não-inteligíveis - conceito que apresentaremos ao longo do texto -, Butler coloca em suspenso as bases que constituiriam uma ordem normativa para apontar, então, que existe uma anomalia no próprio processo social.

Nessa mesma linha, Leguil (2016) chama a atenção para os avanços epistemológicos produzidos por Butler no sentido de um progresso ético e político. Ao tomar o gênero como seu objeto de estudo, ela promoveu a denúncia da homofobia na sociedade, alimentada através de estereótipos degradantes que geram sofrimento e estão a serviço da exclusão. Assim, o movimento queer,endossado por Butler, conseguiu subverter o insulto destinados a gays, lésbicas, transexuais e bissexuais para afirmá-lo como uma nova posição política, inserido como um movimento de força social.

Reconhecer o valor das teorizações de Butler não impede, contudo, que suas críticas à psicanálise sejam problematizadas. Sendo assim, nossa proposta é tentar avançar no debate sobre a questão da sexualidade sem que isso implique na diminuição da importância de um movimento político e social.

Em meio à denúncia contra as normas de gênero, Butler propõe uma crítica à diferença sexual em Lacan por considerá-la pautada no binarismo heteronormativo. De acordo com Porchat (2015), a análise de Butler aponta para o fato de que o dismorfismo corporal foi utilizado na psicanálise como parâmetro para pensar a diferença sexual, excluindo, assim, outros corpos que são tomados como excessos e devem ser eliminados - os corpos abjetos. Esses são corpos não inteligíveis - nos termos de Butler. Sua existência não tem legitimidade e representatividade, conferindo maior vulnerabilidade a essas pessoas. Vale então dizer que os corpos abjetos não o são em função apenas da heteronormatividade, visto que cada sujeito, cada grupo, cada sociedade, com sua matriz de inteligibilidade, produz exclusões e determina onde são localizados os excessos a serem eliminados (Porchat, 2015).

Essa matriz de inteligibilidade é sustentada, de acordo com Butler, por meio das noções binárias de sexo. Em seus termos: "Gêneros ‘inteligíveis' são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantém relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo" (Butler, 1990/2016, p. 43). Nesse sentido, Butler considera que práticas reguladoras fomentam identidades coerentes à medida que estão de acordo com a matriz heterossexual. Inclusive, Butler adverte que a própria discussão sobre "identidade pessoal" é afetada pela identidade de gênero, de modo que esta é anterior à primeira. As características internas que estabelecem uma continuidade e autoidentidade de uma pessoa ao longo de um espaço de tempo são questionáveis caso o gênero seja tomado como incoerente e descontínuo (Butler, 1990/2016).

Segundo Arán e Peixoto Junior (2007), Butler pensa o processo de sujeição e a regulação do gênero a partir da teoria de poder construída por Foucault. Para o autor, o poder não atua de forma simplista oprimindo ou dominando subjetividades, mas opera em sua própria construção. Nesse sentido, no entendimento de Butler, os discursos reguladores que formam o gênero do sujeito são os mesmos responsáveis pela produção de sua sujeição, entendendo, assim, que o gênero é uma forma de regulação social. Não se trata, portanto, de uma separação entre regulação e gênero, no qual a primeira atuaria sobre o sujeito sexuado. A questão é mais complexa: o sujeito só passa a existir conforme sua própria sujeição às regulações. Dizendo de outro modo, as regulações de gênero constituem-se como uma modalidade de poder específico que acarreta efeitos constitutivos sobre a subjetividade. Mais ainda, tais regulações estabelecem a um só tempo uma heterossexualidade compulsória e uma hierarquia entre masculino e feminino (Arán & Peixoto Junior, 2007).

O preço para que "mulher" e "homem" se tornem inteligíveis se dá a partir da impossibilidade de existência de outros tipos de identidades, sendo essas tomadas como falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas, tais como as intersexuais. Ou seja, sujeitos cujo gênero não coincide com o sexo ou cujas práticas de desejo não se apoiem nem no sexo nem no gênero estão fadados à invisibilidade ou à patologia. Butler (1990/2016), porém, aposta que a persistência e a proliferação de gêneros não inteligíveis geram possibilidades críticas e subversivas nessa matriz heterossexual reguladora.

Diante disso, sua estratégia consiste na promoção de uma política pós-identitária e desconstrucionista dos gêneros. Butler entende que o desvio e anomalia constituem a regra universal quando o assunto é o gênero. Isso, então, rompe com qualquer noção de desvio ou patologização, promovendo o direito à cidadania e uma legitimidade de existência aos sujeitos que não estão aderidos às normas de gênero. Portanto, trata-se de um deslocamento da patologia à política (Cossi & Dunker, 2017).

Para questionar o padrão heteronormativo e pensar o gênero, Butler (1990/2016) serve-se de transexuais e travestis para demarcar como tais figuras encarnam uma subversão desse padrão na medida em que mesclam e desconstroem a ilusão de que há dois sexos diferentes. É nesse sentido que ela pensa a noção de gênero performativo, fruto de uma repetição de signos, atos e gestos, advindos do âmbito cultural, que reforçam a construção de corpos masculinos e femininos. Butler argumenta que o gênero não deve ser entendido como uma identidade estável, pois ele é constituído no tempo, instituído por meio de uma "repetição estilizada de atos", na qual gestos, movimentos e estilos corporais "constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero" (Butler, 1990/2016, p. 242).

De acordo com Cossi e Dunker (2017), Butler entende que não há essência por trás do gênero - o que temos é uma instabilidade e uma a-naturalidade das identidades. Por conseguinte, não há uma estrutura binária estável, pois o gênero é um ato intencional, performativo e repetitivo. Foi, então, a partir desses atos repetitivos e imitativos de corpos tão distintos que se produziu uma ontologização dos gêneros, justificando a crença na existência do binarismo homem-mulher como uma aparência fixa e estável. Dizendo de outro modo:

A repetição imitativa pode ocorrer como paródia, como citação ou como iteração, organizando atos performativos que criam a ilusão de substância, unidade, coerência e identidade. A ilusão de um modelo original, que não existe fora dessa repetição, explicaria o sentimento social frequentemente presente de inadequação de gênero, ou de inadequação corporal (Cossi & Dunker, 2017, p. 3).

Diante disso, o que Butler (1990/2016) busca ressaltar é a existência, sobre os corpos, de uma produção disciplinar que promove uma falsa estabilização de identidade e cuja finalidade é a construção e regulação de uma sexualidade heterossexual com objetivos reprodutivos. Em sua conceituação, o gênero é uma fabricação e, portanto, não existe gênero verdadeiro ou falso. A ideia do gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos. O que existem são os gêneros performados (Butler, 1990/2016).

Ao comentar o pensamento de Butler, Arán e Peixoto Junior (2007) apontam que o gênero verdadeiro é uma ficção reguladora e, para que a mesma se mantenha, é necessária uma repetição reiterativa. Contudo, isso nunca ocorre de forma totalizadora, pois os corpos nunca obedecem completamente às normas através das quais sua materialização é fabricada. Por outro lado, ao passo que a instabilidade de gênero requer uma repetição, isso permite que a lei reguladora possa ser reaproveitada numa repetição diferencial, de modo que as noções de masculino e feminino possam ser desconstruídas e desnaturalizadas. Assim sendo, Butler procura apontar que, se o gênero é uma norma, ele é também fonte de resistência. Tal noção se vincula com o próprio entendimento foucaultiano a respeito do poder. Para Foucault, no cerne das relações de poder encontra-se também uma insubmissão constitutiva, ou seja, na própria engrenagem do poder é possível encontrar uma força de resistência com potencial transformador (Arán & Peixoto Junior, 2007). Essa é a aposta de Butler.

Críticas de Butler à Psicanálise

Após situarmos algumas bases teóricas do pensamento de Butler, seguiremos com as críticas propriamente ditas à psicanálise. Em seu artigo "Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo", Butler (2000) questiona a noção de "assunção do sexo" que Lacan apresenta especialmente no texto "A significação do falo", de 1958. Sua leitura interroga que "assumir o sexo" cria a ideia de que existe uma "escolha altamente reflexiva" do próprio sujeito, contudo, considera que se essa "assunção do sexo" é imposta pelo aparato regulatório de heterossexualidade, isso a torna problemática já desde início (Butler, 2000).

Esse questionamento é central para entender a origem das críticas de Butler. É, entretanto, no livro Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade (1990/2016) que tais críticas se desdobram e podem ser encontradas de forma explícita e taxativa. Nele, Butler trava um debate com Lévi-Strauss e Freud para questionar a lei universalizante da proibição do incesto para, então, destacar um outro tabu, a saber: o tabu da homossexualidade. Sua intenção é questionar a ideia de matriz heterossexual do desejo no qual a psicanálise estaria apoiada, ainda que tenha incluído a bissexualidade e a homossexualidade como possibilidades de expressão sexual. Segundo Cossi e Dunker (2017), Butler critica as teorizações freudianas por entender que as descontinuidades entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais são tomadas de modo patologizante na medida em que foram desenvolvidas por meio das noções de fixação pulsional, inversão do objeto sexual, regressão a uma organização pré-genital, escolha narcísica do objeto e alteração do objetivo sexual.

Butler (1990/2016) contrapõe-se à tese freudiana que afirma que a homossexualidade seria um desvio no processo de identificação do Édipo, no qual a criança não se identificaria com o genitor do mesmo sexo. Ela afirma, assim, que a formação do gênero e do sexo se dá pela proibição da homossexualidade, primordialmente, e não pela proibição do incesto. Portanto, para ela, na base da sexualidade está o desejo homossexual proibido. Vale dizer que temos aqui uma formulação teórica bastante inusitada e nos interrogamos como podemos acompanhá-la em termos clínicos.

De acordo com Porchat (2015), as críticas de Butler ao conceito de diferença sexual, à noção de parentesco de Lévi-Strauss, bem como à ideia de simbólico seguem o mesmo caminho, a saber: interrogar como os conceitos psicanalíticos dificultam a aceitação de corpos abjetos e como a psicanálise parece impedir a transformação social. Pois, para Butler, ao importar o estruturalismo de Lévi-Strauss, Lacan formulou um conceito de simbólico que naturaliza noções de poder em torno dos gêneros.

No entendimento de Butler, a psicanálise lacaniana, ao invés de contestar a matriz heterossexual, formula uma teoria que ratifica esse pensamento. Na psicanálise, as noções de ordem simbólica e diferença sexual sustentam mecanismos de inteligibilidade cultural que foram tomados como transcendentais e refratários às transformações sociais, tais como as oposições fálico/castrado e ativo/passivo. Então, para Butler, isso colocaria um impedimento para a psicanálise repensar novos tipos de famílias (como aquelas que são frutos da união entre homossexuais), novas formas de parentesco, bem como práticas sexuais e gêneros indiscerníveis, como a transexualidade. Ao pensar a sexualidade em termos binários, a psicanálise, no pensamento da filósofa, está fadada a negligenciar outras possibilidades de existência e a reproduzir regimes de poder (Cossi & Dunker, 2017).

No livro Deshacer el gênero (Butler, 2004/2006), a crítica direcionada a Lacan se coloca, sobretudo, em torno da associação entre Édipo e estrutura familiar (casal heterossexual-criança). Como pano de fundo desta crítica está o fervoroso debate que se colocou na França em torno da parentalidade de casais gays. Alguns filósofos, antropólogos e psicanalistas franceses se manifestaram contra a adoção realizada por casais homoparentais utilizando como justificativa a necessidade da diferença sexual dos progenitores como garantia de uma subjetivação não patológica. Convém aqui destacar que, quando se critica a psicanálise e os psicanalistas, é preciso levar em conta que não há uma "única psicanálise", um conjunto homogêneo de analistas, nem mesmo quando nomeados "psicanalistas lacanianos", haja vista a possibilidade de fazer uso do ensino de Freud e Lacan de maneiras distintas.

Ao entrar nesse debate, a posição de Butler nesse livro chega a ser ambígua. Ela insiste na crítica da noção de ordem simbólica, proposta por Lacan, ao mesmo tempo que rebate os argumentos da filósofa Sylviane Agacinski utilizando-se da própria psicanálise. Agacinski se colocou firmemente contra a parentalidade homossexual, afirmando que ela não é natural e que ameaça a Cultura e o simbólico por não colocar em evidência a diferença sexual como fundamento das bases geracionais. Diante de tal justificativa, Butler afirma que, na psicanálise, o pai e a mãe não precisam existir concretamente, podendo constituir-se como posições estruturantes (Butler, 2004/2006).

Apesar de possuir essa leitura, Butler insiste em denunciar que, assim como Freud, Lacan ratifica o Édipo enquanto uma formação normativa e neurotizante na qual sexualidade, gênero e família compõem a estrutura fundamental da socialização. Sua recusa está em pensar o complexo de Édipo, a introdução do Nome-do-Pai, a introdução do falo no campo do Outro - cujas consequências são a formação da identificação de gênero -, a escolha de objeto e a neurotização do desejo pela fantasia. Mais precisamente, Butler recusa o falo como único estruturador da sexualidade (Cossi & Dunker, 2017). Arán e Peixoto Junior (2007) afirmam que o questionamento de Butler circunscreve-se à exclusão recíproca entre identificação e desejo, na qual, a partir das tramas do Complexo de Édipo e de Castração, a criança torna-se menino ou menina, passando a desejar o sexo oposto. Nisso, Butler reconhece uma forma de reiteração da norma sexual reforçada pela psicanálise.

Em relação à função do Édipo e ao modo como Lacan propõe pensar a estruturação sexual, Butler (1990/2016) interroga também as posições sexuais binárias em torno da noção de "ter" o falo (posição masculina) e "ser" o falo (posição feminina). Em seus termos: "‘Ser' o falo é ser o ‘significante' do desejo do Outro e apresentar-se como esse significante. Em outras palavras, é ser o objeto, o Outro de um desejo masculino (heterossexualizado), mas é também representar e refletir esse desejo" (Butler, 1990/2016, p. 85). Concluindo, Butler (1990/2016, p. 88) escreve: "Assim, ser o falo é sempre ‘ser para' um sujeito masculino que busca reconfirmar e aumentar sua identidade pelo reconhecimento dessa que ‘é para'". Sua compreensão da teoria lacaniana pressupõe que as mulheres estão no lugar de refletir e confirmar o poder masculino.

Além disso, Butler (1990/2016) aponta que Lacan extrai conclusões sobre a homossexualidade feminina - consequência de uma "heterossexualidade desapontada" -pautadas em seu ponto de vista masculino e heterossexual. Não podemos negar que Lacan era um homem e, se isso pode ter consequências em sua produção teórica, do mesmo modo as encontramos na posição militante de Butler que, assumidamente homossexual, parece procurar firmemente garantir sua representatividade através de duras críticas à heterossexualidade. Seguir o debate por esse viés nos parece muito improdutivo e, por isso, apostamos em outra via, pois não se trata de privilegiar uma forma de parceria sexual em detrimento de outra, a questão mais importante é como elas podem coexistir.

Apesar de toda crítica de Butler endereçada à psicanálise, em uma entrevista concedida a Porchat, a filósofa deixa claro uma posição bastante interessante em relação à teoria psicanalítica que nos indica melhor seu posicionamento. Retomamos aqui:

Para mim é uma teoria muito importante, uma prática muito importante. [...] Mas sinto também que ela [a psicanálise] precisa ser posta em contato com a Teoria Cultural e a Política Cultural, de um modo mais geral. Então eu me vejo arranjando um encontro ou alguma espécie de reunião entre psicanálise e movimentos sociais mais amplos, políticas culturais e questões relativas a gays, lésbicas, bi, trans, intersexo. [...] a psicanálise pode fornecer uma crítica vigorosa da normalização, uma crítica vigorosa da regulação social, pode nos proporcionar uma teoria da fantasia, pode colocar em questão o corpo natural, pode observar o modo como o poder social toma forma na psique, há várias maneiras de se fazer isso. E acho que os movimentos sociais preocupados com isso podem entender melhor sua própria situação a partir de uma perspectiva psicanalítica (Porchat, 2010, pp. 166-167).

Dos encontros (e desencontros) entre a psicanálise e a Teoria Queer possibilitados por Butler, o que se está de acordo é que não há nada que evidencie que o sexo biológico garanta ser um homem, uma mulher ou amar o sexo oposto. O que temos é a leitura da natureza, sob a forma de semblantes: "é menino" ou "é menina", na qual o discurso do Outro incidirá sobre tais definições com consequências na produção de certas identidades - sempre inconsistentes, vale dizer.

Extrações do Ensino Lacaniano a partir das Críticas de Butler

Consideramos que os questionamentos de Butler podem ajudar os psicanalistas a avançar e aprofundarem-se em suas teorizações. O feminismo, sem dúvida, tem esse efeito. A partir de um espaço de tensão que se instala, queremos inicialmente mencionar que teoria e clínica são indissociáveis na psicanálise - o que implica dizer que somente no caso a caso surge a possibilidade de confirmar ou refutar as hipóteses psicanalíticas. Por serem pontos indissociáveis, isso impõe dificuldades para que Butler consiga assimilar a radicalidade dos conceitos psicanalíticos. Tal dificuldade se reflete em seu texto, sobretudo em Problemas de Gênero, com suas inúmeras interrogações que se debatem com a psicanálise e no qual muitas vezes só lhe resta produzir uma série de conjecturas no nível do "se, então". Sendo assim, é importante salientar que a teoria psicanalítica não pode ser tomada da mesma maneira que uma corrente filosófica.

Mas o problema não para por aí. No seu livro Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, Butler (2005/2017) problematiza a questão da narratividade de si mesmo na medida em que só podemos nos conhecer de forma incompleta. Em torno dessa discussão, ela descreve a prática analítica de tal forma que chega a ser difícil reconhecer a vivacidade da psicanálise no modo como ela apresenta seus conceitos e sua prática clínica, sobretudo no que concerne à orientação freudiana e lacaniana da qual somos herdeiros. Em seus termos:

Dentro de alguns círculos, doutrinas e práticas psicanalíticas, um dos objetivos declarados da psicanálise é oferecer ao cliente a chance de formar um história sobre si mesmo, de relembrar seu passado, entrelaçar os eventos ou as vontades da infância com eventos posteriores, tentar dar sentido, por meio narrativos, à vida que passou, aos impasses encontrados vez ou outra e ao que ainda está por vir. Com efeito, argumenta-se que o objetivo normativo da psicanálise é permitir que o cliente conte uma história única e coerente sobre si mesmo, de modo a satisfazer a vontade de conhecer a si próprio, ou melhor, de conhecer a si próprio em parte por meio de uma reconstrução narrativa na qual as intervenções do analista ou terapeuta contribuem de diversas maneiras para recriar e retramar a história (Butler, 2005/2017, pp. 71-72, grifo nosso).

Ao lermos essa descrição da prática analítica há ainda que se perguntar sobre as fontes utilizadas por Butler. Segundo Leguil (2016), Butler transmite seu ensino transformado pela versão americana da psicanálise e na forma de um saber universitário. Partindo do pressuposto de que o sujeito é sempre dividido, seria impossível ao paciente (e não "cliente") recontar "uma história única e coerente sobre si mesmo". Não é a isso que se propõe uma análise. Qualquer pretensão de coerência só pode ser sustentada por uma exigência egóica. O mais curioso é que, ao tomar como referencial a clínica psicanalítica americana, Butler pensa estar teoricamente distante da psicanálise, ao passo que poderia encontrar aproximações em certos pontos de sua teoria caso se servisse mais do ensino lacaniano ao qual faz tanta objeção.

No que concerne à sustentação de um binarismo heteronormativo na psicanálise, podemos perceber que a crítica de Butler leva em consideração o caminho das identificações, negligenciando os avanços de Lacan a partir da introdução das fórmulas da sexuação, sobretudo no que diz respeito à sexualidade feminina. Fajnwaks (2017) argumenta que, para a psicanálise lacaniana, há um real na sexuação do sujeito, de modo que nem tudo é apenas uma questão de identificações nem de identidades na qualidade de repetição de modelos sociais e culturais - como inicialmente propõe Butler. Esse real não faz referência ao corpo anatômico em si, mas diz respeito à relação mais íntima e singular que o ser falante construiu com o gozo.

Vale então ressaltar que as críticas butlerianas se localizam em um momento datado do ensino lacaniano, que vai de 1953 a 1960, configurando o que chamamos de "primeiro Lacan" ou "primeiro ensino". De modo esquematizado, podemos situar os tempos do ensino lacaniano da seguinte forma: 1) Primeiro Lacan: do Discurso de Roma (1953) ao Seminário 10 - A angústia; 2) Segundo ensino: do Seminário 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964) ao Seminário 19 - ... Ou pior (1971-72); 3) Último Lacan: do Seminário 20 - Mais, ainda ao Seminário 23 - O Sinthoma (1975-76); 4) Ultimíssimo Lacan: do Capítulo IX - Do inconsciente ao real, do Seminário 23 - O Sinthoma (1975-76) ao Seminário 26 - Topologia e o Tempo (1978-79) (Henriques, 2017).

Butler, assim como outros teóricos queer, critica a psicanálise a partir de um mal-entendido por crer que Lacan reduz o campo da sexualidade a uma abordagem normativa, edipiana da sexualidade. Há aqui também uma confusão ao se igualar Édipo e família (pai-mãe-criança), bem como uma "fixação" no conceito de "ordem simbólica" - uma noção da década de 1950, construída a partir da influência do pensamento de Lévi-Strauss, mas, posteriormente, abandonada por Lacan.

Convém destacar também o lugar de esvaziamento que o ensino lacaniano confere ao Édipo. Em 1958, Lacan afirma que o Édipo é o sonho de Freud. Fajnwaks (2017) nos chama atenção para o remanejamento instaurado por Lacan já no Seminário 6 - O desejo e sua interpretação, de 1958-59. Na contracapa desse seminário, Miller faz um comentário que nos parece bastante oportuno para nossa discussão. Ele argumenta que o desejo não tem um objeto natural, visto que o objeto é fantástico. O desejo é algo que nos desorienta ao mesmo tempo que constitui nossa bússola. Até pouco tempo atrás, nossas bússolas tinham o mesmo norte: o Nome-do-Pai, o Édipo. Esse foi, inclusive, o ponto de partida de Lacan. Contudo, no Livro 6, uma virada começa a se anunciar: o Édipo não é a solução única do desejo, de modo que não esgota o destino desejante, ele é apenas uma forma normatizadora que assegura a manutenção de certa ordem social. O patriarcado foi tomado como uma invariante antropológica, mas Lacan reconhece que estamos em outro momento de inovação do lugar da tradição (Miller apud Lacan, 1958-59/2016).

Quase dez anos depois, Lacan (1967/2003) situa o Édipo como um ponto de fuga, um problema para a psicanálise. Em seus termos: "Abri-lo [o Édipo] permitiria restaurar ou mesmo relativizar sua radicalidade na experiência" (Lacan, 1967/2003, p. 261). Seguindo, Lacan fala inclusive em "ideologia edipiana", que, ao associar o Complexo de Édipo à família pequeno-burguesa, conferindo-lhe um "valor", identifica as funções simbólicas com os personagens parentais. Portanto, podemos concluir que se trata, sobretudo, de relativizar o Édipo. Frente a estas considerações, como supor uma abordagem normativa presente no ensino lacaniano ou, ainda, uma defesa do patriarcado como universal?

No Seminário 10 - A angústia, começamos a ter notícias de um modo distinto de abordar a castração, com desdobramentos para pensar a feminilidade. A noção da mulher como castrada, tendo que lidar com a falta de pênis, sofre uma reviravolta nesse livro, pois, na verdade, é o homem que se confronta de forma mais radical com a angústia de castração - a possibilidade do "não poder", do seu instrumento falhar. Miller (2005) assinala que há, no Seminário 10, um novo status da angústia de castração na medida em que ela não se refere tanto à ameaça do pai, não se inscrevendo a partir daí somente no Édipo. O que se delineia é uma falta, enquanto separação, apontando para a impossibilidade de um gozo absoluto. Diante disso, Lacan (1962-63/2005) mais uma vez assegura que não falta nada à mulher. Por conseguinte, podemos encontrar nesse seminário uma forma inédita de apresentar a feminilidade na psicanálise, o que se reflete de forma nítida no Seminário 20 - Mais, ainda.

Assim, é possível verificar como no próprio ensino de Lacan há todo um desdobramento além Édipo que Butler ignora em seu livro Problemas de Gênero. Fajnwaks (2017) comenta que antes da autora começar a trabalhar essas questões, assim como a maioria das teóricas de gênero (Monique Witting, Gayle Rubin e Eve Kosofsky-Sedgwick), os últimos seminários de Lacan ainda não tinham sido transcritos - o que justificaria seu desconhecimento.

Apesar disso, no livro Cuerpos que importan - Sobre los límites materiales y discursivos del "sexo",de 1993, Butler (1993/2002) faz uma pequena referência em nota de rodapé ao Seminário 20 - o que indica o contato da autora com o livro. Ainda assim, sua crítica permanece estruturada da mesma forma, ou seja, em torno do binarismo homem e mulher, visto que Lacan apresenta dois modos de gozo diferentes, os quais ele denomina "masculino" e "feminino", enquanto para a filósofa trata-se de desfazer o gênero (Butler, 2002/1993). É digno de nota que, por meio das modalidades de gozo todo-fálico (gozo masculino) e não-todo fálico (gozo feminino), Lacan está propondo pensar o sexo para além do simbólico, para além das identificações, como já ressaltamos, trabalhando a noção de sexuação.

Cossi e Dunker (2017) sustentam que, ainda que Lacan se sirva da noção de "lado homem" (esquerdo) e "lado mulher" (direito) para designar a repartição de gozo em seu Seminário Mais, ainda, é necessário lembrar que as categorias homem e mulher são puros semblantes. Lacan (1972-73/1985) deixa claro que essa divisão não corresponde à distinção anatômica entre os sexos, pois se trata de uma posição sexuada determinada no próprio discurso do sujeito, muitas vezes não compatível com sua anatomia. Lacan, inclusive, localiza o místico São João da Cruz do lado não-todo, apontando para uma experiência de gozo feminino. Assim, Santiago (2017) destaca que, sob a perspectiva da sexuação, a diferença entre sexos mantém pouca relação, de fato, com os Gender Studies.

A repartição operada por Lacan se colocará em torno da função fálica, F(x). Aqui, é preciso registrar que o falo não é o pênis, mas um significante no qual a psicanálise, desde Freud, teorizou sua abordagem da sexualidade. A função fálica deve ser entendida como modos de lidar com o campo do gozo. A partir do seu segundo ensino, o interesse de Lacan será precisar como homens e mulheres se distribuem a partir dessa função, como a cumprem, a objetam, a satisfazem ou a negam. É, portanto, um momento de virada teórica onde "ter" e "não ter o falo" já não são categorias suficientes para abordar o campo sexual.

Aqui, outro contraponto pode ser levantado em torno da ideia de que a psicanálise lacaniana, através do par homem-mulher, estaria reforçando o padrão heteronormativo. Uma análise mais cuidadosa das fórmulas da sexuação permitirá concluir que não se trata de dois termos, dois conjuntos, dois polos, dois gêneros, nos quais se confirmaria a norma da relação heterossexual. Existe, de um lado, um conjunto fechado - lado homem - e, do outro lado, um conjunto que tende ao infinito. O lado das mulheres comporta um caráter plural, no qual poderíamos incluir várias possibilidades de expressão da sexualidade.

O subversivo em Lacan está em designar o fracasso da relação entre homens e mulheres a partir do seu famoso aforismo: "A relação sexual não existe". Qualquer relação só subsiste, diz Lacan (1971/2009), a partir do escrito, como "a aplicado sobre b". A relação sexual, por outro lado, não é passível de ser escrita, pois ela fracassa ao ser enunciada pela linguagem. Não se pode atribuir um homem a uma mulher e vice-versa. A partir disso, poderíamos dizer, com Cossi e Dunker (2017), que a teorização de um par heterossexual se dissolve. A noção do binarismo repousa na ideia de que as categorias de homem e mulher são complementares e que estabelecem relações de reciprocidade - sendo justamente isto que Lacan procurou, de diferentes maneiras, apontar como impossível.

Quando Butler (1990/2016) realiza sua crítica sobre as imposições sociais da matriz heterossexual, ela demarca o fato de que se espera do sujeito uma unidade de experiência entre sexo, gênero e desejo, de modo que um refletisse o outro e desembocasse num desejo diferenciador pelo gênero oposto. Diante disso, Butler (1990/2016, p. 52, grifo nosso) pondera: "A coerência ou a unidade interna de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exige assim uma heterossexualidade estável e oposicional". Falar em binarismo, então, não implica somente afirmar a existência de apenas dois gêneros, mas também suporia a defesa de que a relação sexual se opera somente entre homem e mulher. Com o aforismo "Não há relação sexual", Lacan equivoca, portanto, à sua maneira, esse binarismo.

Estamos aqui situados na discussão realizada no Seminário 20, mas é preciso ir além com Lacan. Fajnwaks (2017) argumenta que, nesse livro, Lacan fala em duas modalidades de gozo, porém tal perspectiva se modifica a partir do Seminário 23 - O Sinthoma. O sinthoma refere-se ao arranjo singular do falasser com o gozo em sua forma de lidar com o real, o simbólico e o imaginário. "As soluções que o falasser pode encontrar para lidar com o gozo são da ordem de uma bricolagem, de um saber-fazer, e nenhuma norma saberia regular essa relação" (Fajnwaks, 2017, p. 33). Portanto, toda concepção normativa da sexualidade é uma concepção alheia à psicanálise. O gozo sempre escapa a qualquer enquadramento e é por essa dimensão que a práxis psicanalítica se interessa. Santiago (2017) delineia que a psicanálise leva em conta que a diferença sexual se apoia sob o real pulsional - reduzido por Lacan à função de furo, de vazio -, o que nos permite pensar a sexuação como a infinitude dos corpos sexuados. Em suas palavras: "a sexuação é uma escolha do sexo condicionada por uma montagem pulsional própria, única, e, nesse sentido, um sujeito indeterminado faz-se sexuado, com Um corpo, à revelia do binário homem/mulher" (Santiago, 2017, p. 18). O gozo no falasser é subversivo, pois pode romper com as posições instituídas pela civilização.

O Encontro do Pensamento de Butler com a Psicanálise

Segundo Porchat (2015), apesar da crítica violenta à psicanálise, Butler, no livro Deshacer el gênero, se servirá do conceito de pulsão para pensar a potência que emana do corpo, sendo tomada como uma condição para a transformação social. Portanto, podemos perceber, conforme indicam Cossi e Dunker (2017), que a crítica de Butler em relação à psicanálise não impossibilitou que a filósofa se utilizasse do aparato conceitual da metapsicologia freudiana e lacaniana. Em Problemas de gênero, Butler entendia que a noção de diferença sexual era uma teoria da heterossexualidade, porém, em Deshacer el gênero, a filósofa toma o conceito de pulsão para acomodar tal diferença, recusando que o gênero é apenas uma construção social. A diferença sexual passa ser entendida como um conceito-limite, tal como é a pulsão na obra freudiana.

Precisamente, em Deshacer el gênero, Butler (2004/2006) tem um capítulo no qual se interroga se podemos falar em um fim para a noção de diferença sexual. Ela conclui que essa pergunta deve manter-se aberta, bem como afirma que não possui nenhuma definição sobre o que é a diferença sexual. Por outro lado, ao longo do texto, ela dá algumas indicações ao escrever que essa diferença tem dimensões psíquicas, somáticas, sociais e discursivas que não se sobrepõem, não são claramente distintas nem se pode localizar onde começam nem onde terminam. Entende que se trata, assim, de um conceito fronteiriço - tal como a pulsão - no qual se coloca e recoloca o questionamento sobre o biológico e o cultural (Butler, 2004/2006).

A partir da noção de pulsão, o corpo não fica reduzido à sua descrição pela linguagem nem à materialização pelo discurso. O corpo não é totalmente obediente às normas que impõem sua materialização em corpos-homens e corpos-mulheres, ele resiste às intenções do sujeito e às normas sociais. A pulsão será encarada por Butler como um lugar de densa convergência que não se reduz à biologia nem à cultura - motor desconhecido que guiará o sujeito (Porchat, 2015). Ou seja: "A pulsão carrega, portanto, uma potência transformadora e outra que faz resistência, o que a torna uma noção interessante aos propósitos políticos de Butler" (Cossi & Butler, 2017, p. 2).

Ainda nesse livro, Butler (2004/2006), inclusive, diz compartilhar do ponto de vista da crítica literária Shoshana Felman sobre o corpo, cuja influencia teórica é lacaniana. De acordo com Butler, Felman afirma que o corpo dá lugar à linguagem e essa atua sobre os corpos de maneira que nem sempre pode ser compreendida pela lógica da consciência. Butler entende que o corpo não pode ser reduzido à linguagem, mas considera que a linguagem surge do corpo. Precisamente, o corpo é aquilo sobre o qual a linguagem hesita, gagueja. Ele tem seus próprios signos e significantes que permanecem, em sua maioria, inconscientes. Para ela, sempre existe uma dimensão da vida corporal que não pode ser completamente representada. Ao falar, pretendemos dizer algo, mas também fazemos algo com nossa fala e atuamos sobre o outro com nossa linguagem para além do significado que conscientemente transmitimos. Sendo assim, as significações do corpo excedem as intenções do sujeito (Butler, 2004/2006).

De acordo com Porchat (2015, p. 49, grifo nosso), será no livro Relatar a si mesmo que Butler "parece encontrar um ponto de descanso nessa interlocução de tantos anos com a psicanálise", no qual "parece satisfazer-se com a psicanálise no que diz respeito a uma concepção teórica sobre o corpo". Voltaremos a esse comentário antes de encerrar. De fato, o tom empregado por Butler para discutir com a psicanálise é absolutamente outro quando comparado à sua obra mais conhecida Problemas de gênero, sendo muito mais ameno e cuidadoso. No livro Relatar a si mesmo, Butler aponta para a impossibilidade do Eu produzir uma narrativa,visto que não pode contar seu próprio surgimento em função de seu desconhecimento sobre a repressão e a opressão advindas do outro que esteve na base de sua constituição. Por outro lado, ela é clara ao não subestimar a importância de uma análise - dispositivo equivalente a um "trabalho narrativo", em seus termos - em casos de eventos traumáticos e "sofrimento que pertence às condições de dissociação", "fragmentação e descontinuidade" (Butler, 2005/2017, p. 72). Vale destacar, contudo, que, em Problemas de gênero, o debate era com Freud e Lacan, já no livro Relatar a si mesmo, as teorias psicanalíticas citadas são provenientes de outros nomes, nomeadamente de Christopher Bollas e Jean Laplanche.

O "descanso" de Butler será então encontrado, de acordo com Porchat (2015), no pensamento de Laplanche sobre a teoria da sedução generalizada. Segundo essa elaboração teórica, a linguagem é abusiva. A presença do outro é, para o sujeito, sempre excessiva e enigmática porque se dá por um endereçamento através de um discurso hegemônico antes mesmo que a criança tenha capacidade de compreender (Porchat, 2015). É digno de nota que esse "outro" não corresponde ao Grande Outro proposto por Lacan, mas diz respeito aos adultos que assumem a função de cuidar da criança. Segundo Butler (2005/2017), para Laplanche, não existe a necessidade de associar esses cuidadores em termos edípicos (pai e mãe). Esses adultos suscitam impressões sexuais opressoras e enigmáticas nas crianças - o que Laplanche teoriza em termos de produção de "significantes enigmáticos", fonte de uma "sedução primária".

A partir da relação com o outro, o circuito pulsional é engendrado e, logo, um objeto, que em sua origem é externo, coloca-se como fonte das pulsões sexuais. Assim, temos um Eu que é estrangeiro para si próprio no que concerne aos impulsos mais elementares. Porchat (2015) entende que Butler encontra em Laplanche a origem das pulsões, conseguindo articular sua teoria de gênero com um construto teórico da psicanálise. Por este viés, a noção de gênero vem do outro, assim como aquilo que em nós é incoerente e indizível. A partir do outro, construímos nosso Eu corporal, o que faz, em certa medida, que o nosso corpo seja um outro, estranho a cada um de nós. Ou seja, segundo Butler (2005/2017), os significantes enigmáticos passam também a atuar na vida sexual adulta, no desejo, sem que o Eu possa propriamente identificá-los. Assim, constitui-se um Eu descentralizado pela vida infantil.

Em extensa nota de rodapé, Butler (2005/2017) explica que o conceito de significante enigmático de Laplanche surge como uma "alternativa" à teorização lacaniana de simbólico. Portanto, entendemos que, ao desviar da noção de primazia do Édipo e, consequentemente, da lei parental, a questão da construção da sexualidade em termos de uma suposta identificação binária de homem e mulher também é esvaziada - o que se afina mais com o pensamento butleriano. O Édipo, nessa perspectiva, passa a ser secundário, não universal e, portanto, torna-se culturalmente contingente.

Ainda sobre o conceito de pulsão, Butler entende que esse é a condição para uma transformação social. Entretanto, sua concepção sobre esse conceito não se fundamenta em uma única fonte teórica, de modo que recolhe tanto elementos de Freud quanto de Deleuze e Laplanche. Por exemplo, ela extrai do texto freudiano "A pulsão e suas vicissitudes" a ideia de pulsão enquanto um conceito-limite no qual se prefigura um limiar entre corpo e representação. Isso, então, implica que a pulsão não seja completamente capturada pelas ideias, assim como que também não seja redutível ao biológico, ao mesmo tempo em que existe um ponto de sobreposição entre eles. De Deleuze, ela extrai a noção de pulsão como algo que está em constante deslocamento. Contudo, o que Butler mais considera é a perspectiva sobre a pulsão apresentada no livro de Laplanche Vida e morte na psicanálise, no qual o psicanalista propõe que as pulsões sexuais não apresentam um objetivo último, que seria a reprodução, visto que elas estão sempre desviando do objetivo social ao qual são direcionadas e sua regulação é impossível (Porchat, 2010). Essa proposição é extremamente útil para o modo como Butler busca pensar a sexualidade, fundamentando assim seu pensamento. Convém dizer, contudo, que, apesar de Butler conceder créditos a Laplanche por esse modelo de teoria pulsional, tais formulações já se apresentavam na obra de Freud.

Por fim...

São no mínimo curiosos os termos empregados por Porchat, "ponto de descanso" e "satisfazer-se", para se referir a Butler e sua relação com a psicanálise - tal como foi sublinhado em citação anterior. Sua posição inicial estaria baseada em uma insatisfação? Por um deslizamento, isso nos faz lembrar a expressão "querela do falo" - termo provocativo empregado por Lacan para se referir ao debate introduzido pelos pós-freudianos entre os anos de 1927 e 1935 a respeito da primazia fálica em ambos os sexos e do desconhecimento da vagina por parte das mulheres. Vale assinalar que o contexto social da época era atravessado pelo crescente movimento de contestação quanto à hierarquização dos sexos denunciada pela primeira onda do feminismo. Tais contestações ecoaram no circuito psicanalítico, nas formulações dos pós-freudianos, com suas variações e particularidades.

Para Lacan (1958/1998), foi um período de furor na psicanálise. Mas também podemos afirmar que foi um momento bastante fecundo na história psicanalítica. Arriscamos ainda dizer que, se não fosse esse debate, Lacan não teria trabalhado de forma tão precisa a noção de falo como significante, com desdobramentos importantes para a teorização sobre a sexualidade. Parece que esse período da história da psicanálise está sendo renovado com as novas nuances advindas da terceira onda do feminismo, na qual a Teoria Queer se faz tão eminente. Eis que novamente o movimento feminista agita os psicanalistas e nos convoca a trabalhar, intimando-nos a revisitar os conceitos lacanianos com rigor exemplar, tal como Lacan o fez em seu retorno a Freud. Assim, para além de um entendimento das críticas de Butler à psicanálise como um problema ou um entrave, consideramos que ela provoca uma exigência frutífera de precisão teórico-clínica, que irrompe na atualidade, para avançarmos no debate sobre as novas ordenações da sexualidade.

 

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Recebido em: 17/02/2020
Aceito em: 15/07/2020

 

 

Notas

* Psicóloga. Psicanalista. Doutoranda em Psicologia pela UFF. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ.
** Psicanalista. Professor da UFF. Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Membro aderente da Seção Rio da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio).

 

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