Relato de Experiência
PIVETES: uma Singular Experimentação
PIVETES: a Singular Experimentation
Cecilia M. B. Coimbra *
Estela Scheinvar**
Lygia S. M. Ayres***
Maria Lívia do Nascimento****
Nas últimas décadas do
século XX, com a consolidação do capitalismo em escala planetária, assiste-se
ao fortalecimento de práticas que produzem profundo apartheid social. No
Brasil, tal fato vem se alastrando, tendo como efeito o empobrecimento de
contingentes cada vez maiores, que se expressa através de variadas estratégias
de sobrevivência. Junto a isso vem-se afirmando a estreita associação de pobreza como sinônimo de perigo, barbárie,
crime e não como um dos perversos efeitos da estrutura sócio-político-histórica1.
No Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF) tais questões têm produzido inquietações,
fazendo com que docentes, técnicos e discentes, de diferentes áreas do
conhecimento, se reúnam para analisar o cotidiano brasileiro em suas diversas
faces, embarcando em novos desafios ético-políticos. De tal movimento, emergiu
em 1993, o Projeto MENINAR – Meninos (as) nas ruas. Sua proposta era
desenvolver dois tipos de intervenção: atuação direta com crianças moradoras de
rua em Niterói, por meio de oficinas e encontros, e uma pesquisa no Juizado da
Infância e da Juventude desta cidade visando analisar os mecanismos produtores
das “subjetividades meninos-de-rua”2.
A constante colocação em
análise desse projeto problematizou o que denominamos de instituição
“meninos-de-rua” e, nessa medida, o próprio sentido da pesquisa4.
Dessa forma, foi sendo forjada uma outra proposta, onde diferentes equipamentos
sociais se projetaram como engendradores das tramas, dramas e histórias dessas
crianças. O foco se redimensionou e, em nossas análises, à instituição “meninos
de rua” outras se juntaram, fazendo emergir, em 1995, um novo projeto, o
PIVETES - Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de
Exclusão Social.
Desde então, no âmbito desse
programa, vem sendo estudada a emergência de diferentes instituições que
produzem no tecido social processos de subjetivação em relação a crianças e
jovens pobres engendradores de formas de sentir, pensar, agir, perceber e
desejar. Nesse sentido, temos trabalhado questões tais como: a produção de
especialismos e seus efeitos no cotidiano de crianças, jovens e famílias no
espaço do judiciário, os direitos da infância e da juventude, assim como as
políticas públicas voltadas para o segmento infanto-juvenil.
O PIVETES tem ousado percorrer
caminhos que afirmam outros saberes, recusando os já prontos e arrumados, com
suas verdades disponíveis e seus planejamentos e metodologias que preservam e
garantem territórios livres das misturas e das incertezas. Percorrer esses
outros caminhos é embarcar em travessias que têm como bagagem ferramentas
buscadas nos trabalhos de filósofos como M. Foucault e G. Deleuze, de
sociólogos como G. Lapassade, de pedagogos como R. Lourau, de
militantes-psicanalistas como F. Guattari, dentre outros.
Dessa forma, o PIVETES se lançou ao
questionamento de determinadas categorias habitualmente tomadas de forma des-historicizada
e descontextualizada, nos
levando a buscar nos arquivos do Juizado da Infância e da Juventude a
produção histórico-institucionalizada dessas categorias.
O encontro
com os processos do Juizado nos possibilitou perceber como as práticas dos
especialistas no território do judiciário vão constituindo e institucionalizando
categorias sociais como família desestruturada, meninos de rua, criança
carente, menor, infrator, etc., que pouco a pouco são transformadas em
naturezas, como se sempre tivessem existido, como se correspondessem a uma
essência. Um dos efeitos dessas práticas é a afirmação de modelos “certos”, a
partir dos quais todas as demais formas de vida são vistas sob o prisma da
irregularidade e/ou patologia.
Entendemos a
pesquisa como um processo permanente de experimentação, de criação e de
ruptura, como um campo de possibilidades que pode promover conexões em
múltiplas direções e sentidos. Ou seja, é uma intervenção em nós, no mundo e,
nessa medida, no objeto pesquisado. Esse movimento foi vivido por nós quando
entramos em contato com os processos a serem pesquisados e fomos tecendo nossos
percursos, trajetórias e objetos de pesquisa. Sem dúvida, as categorias
trabalhadas e as periodizações históricas foram se constituindo ao longo de
nossos encontros, a partir de nossas leituras, ferramentas, envolvimentos;
enfim, de nossas implicações. Dessa
forma, em nossa primeira pesquisa se delinearam três períodos históricos:
1936/1945, período da implementação no Brasil, em 1927, do Código de Menores;
1975/1984, período sob ditadura militar, do boom da psicologia e da
psicanálise e, em 1979, da revisão do Código de Menores e, por fim, o período
de 1985/1994, época que abarca o processo de discussão e criação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) e os primeiros anos de sua implementação. Em
função dos objetivos da pesquisa, em cada um deles levantamos a presença de
diferentes especialistas (comissário de vigilância, assistente social e
psicólogo) e algumas de suas práticas.
A
Pesquisa: Trajetória do Encontro Entre a Psicologia e o Judiciário
Apresentamos aqui apenas
dois momentos dessa pesquisa: o primeiro refere-se a algumas análises das entrevistas
realizadas. Levando-se em consideração a multiplicidade de acontecimentos que
se deram no espaço da pesquisa e, em virtude da impossibilidade de darmos conta
de todos os atravessamentos que a constituíram, optamos por destacar alguns
temas que mais atraíram nossos olhares. Ou seja, a formação do psicólogo e o
homem como objeto de estudo da psicologia, as amarras e os lugares do psicólogo
no judiciário, a análise do seu cotidiano e das demandas produzidas e, ainda, a
relação dos psicólogos com as políticas públicas ligadas à área dos direitos da
infância e da juventude.
Sobre o primeiro deles,
podemos apontar sinteticamente algumas questões referentes à forma como o homem
é pensado na Psicologia a partir da idéia de uma natureza que caracterizaria
todos os seres da espécie. Considera-se o desenvolvimento do homem de forma
apriorística, a partir de um percurso linear e evolutivo. A concepção de
fenômeno psicológico, nesta perspectiva, se refere à intimidade, ao privado, a
uma essência do que seria humano, pretensamente neutra e despolitizada. As
questões sociais são psicologizadas, reduzidas à questão individual-familiar.
Nesse sentido, a relação com as políticas públicas é distanciada, pois a
prática psi é produzida como uma área técnica, acima das questões políticas.
Sobre as amarras e o lugar do
psicólogo no judiciário, podemos destacar que uma das atribuições dele esperada
é definir e predizer o comportamento do indivíduo, ou seja, ser um perito da
subjetividade. Com relação às demandas produzidas, cabe perguntar se tem sido
possível analisá-las como efeitos histórico-sociais das próprias práticas dos
especialistas presentes no judiciário; se tem sido possível ouvi-las e
pensá-las em função das trajetórias de exclusão e violação de direitos daqueles
que ali aportam.
O segundo momento aqui
referido diz respeito à ferramenta da restituição. De acordo com a Análise Institucional,
a restituição é um procedimento intrínseco à pesquisa visto ser um dispositivo
que permite à população pesquisada escapar do lugar instituído de “objeto” e ao
pesquisador sair da posição de “neutralidade” instituída como científica.
Finalizando a pesquisa, realizamos um encontro de restituição com alguns
psicólogos entrevistados, outros profissionais do judiciário, estagiários do
Juizado e do Conselho Tutelar de Niterói6 e pesquisadores do PIVETES. Enviamos
a todos os participantes do encontro o relatório final da pesquisa,
convidando-os para uma discussão coletiva sobre os quatro pontos acima
levantados. Destacamos esse momento como um importante analisador7, pois colocou em evidência a riqueza
das experiências desses psicólogos, apontando que os vários matizes de seus
trabalhos não podem ser facilmente apreendidos. Além disso, essas análises
também nos mostraram a presença de padrões rígidos de discursos, onde o saber
acadêmico muitas vezes se coloca no lugar de produtor de verdades.
Essa experiência teve
fortes efeitos em nossas práticas ao percebermos como podemos ser facilmente
capturados no processo de afirmação de verdades. O encontro de restituição
evidenciou o quanto nosso relatório tratava, por vezes, os discursos e práticas
dos psicólogos como fechados, como coisas em si, ao invés de considerá-los como
possibilidades.
Ao tomarmos o relatório
de pesquisa como algo em construção, deixamos em aberto a possibilidade de
novos atravessamentos e da colocação em análise de algumas das linhas duras que
nos atravessam, como a instituição formação e a psicologia com suas marcas
intimizantes, privatistas e posicologizantes.
Essa singular proposta de
trabalho-experimentação tem produzido em todos nós estranhamentos, descobertas
e a interrogação de nossas práticas, tendo como critério “uma ética voltada
para o fortalecimento da vida” (Baeta Neves e Coimbra , 2002).
Notas
2 Por produção de subjetividade entendemos, como Guattari e Rolnik (1986), formas de existir produzidas histórica e socialmente, situando-se no campo da produção social e material.
3 Instituição entendida como práticas sociais historicamente produzidas, datadas e localizadas e não como uma natureza em si, fixa e universal.
4 Este processo está registrado em Coimbra e Nascimento (1993).
5 A
implicação inclui a análise do sistema de lugares: o lugar que ocupamos
enquanto especialistas, que buscamos ocupar e que nos é designado ocupar. Fazer
análise de implicações é colocar em xeque o lugar de saber-poder instituído do
especialista.
6 Esses
dois estágios têm estreita relação com a proposta do PIVETES.
7 Conceito-ferramenta
da Análise Institucional que fala de objetos e situações que acionam e
possibilitam análises.
COIMBRA, C. M. B. Operação Rio. O mito das classes perigosas.
Rio de Janeiro: Oficina do Autor/Intertexto, 2001.
COIMBRA, C..M.B.; NASCIMENTO, M.L. A instituição “meninos-de-rua” e
alguns de seus efeitos. Anuário LASP, Niterói,
Departamento de Psicologia, UFF, Ano 2,
v. 2, p. 74-85, 1993.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica- cartografias do desejo.
Petrópolis: Vozes, 1986.
Recebido
em: 20/03/2005
Aceito
para publicação em: 22/09/2005
Endereço: lygiayres@ig.com.br
*
Professora Doutora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade
Federal Fluminense
** Professora Doutora do Departamento de Educação da Faculdade
de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Socióloga do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense
*** Doutora em Psicologia Social, Psicóloga do Serviço de Psicologia
Aplicada da Universidade Federal Fluminense
**** Professora Doutora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense