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RESENHA
“LE TEMPS HYPERMODERNES”
THE HIPERMODERN TIMES
Marília Antunes Dantas*
A
obra de um dos mais pertinentes filósofos e sociólogos franceses,
Gilles Lipovetsky, 59, marca profundamente a interpretação
da modernidade e da pós-modernidade, mais especificamente, a exploração
da noção de “indivíduo”, empreendida
por uma descrição e por uma arqueologia minuciosa das múltiplas
facetas do individualismo contemporâneo: o culto da moda e do luxo,
as transformações no plano da ética, as metamorfoses
da sociedade de consumo e da economia dos sexos.
Em seu primeiro
livro intitulado “L`Ère du Vide” [A Era do Vazio, Ed.
Gallimard, 1983], Lipovetsky analisa os efeitos da passagem da modernidade
para a pós-modernidade, cuja transição teria se dado
entre os anos 60/70, partindo do ponto capital característico da
sociedade pós-disciplinar: a autonomia do indivíduo pós-moderno
em ruptura com o mundo da tradição e suas estruturas de
normalização.
Entretanto,
como afirma o autor, essa liberação não engendrou
o desaparecimento dos mecanismos de controle; estes foram adaptados de
tal modo a se apresentarem de forma menos diretiva e impositiva ao indivíduo.
Ao invés da disciplina, entendida como um conjunto de técnicas
e de regras particulares cuja finalidade básica era a de submeter
os indivíduos a uma padronização de suas condutas,
a era pós-moderna opera segundo o processo de personalização,
uma nova modalidade de organização da sociedade e do gerenciamento
dos comportamentos, “não mais pela tirania dos detalhes,
mas com o mínimo constrangimento e a máxima possibilidade
de escolhas privadas possíveis, com o mínimo de austeridade
e o máximo de desejo possível, com o mínimo de coerção
e o máximo de compreensão possível”. (LIPOVETKSY,
1983, p. 2)
Desta forma, a
pós-modernidade se apresenta sob a forma de um paradoxo, ao revelar
a coexistência nem sempre harmoniosa entre duas lógicas:
uma que estimula a autonomia do indivíduo e, outra, que o convida
à dependência.
Em seu segundo
título “L’Empire de L´Éphémère”
[O Império do Efêmero, Gallimard, 1987], Lipovetsky examina
o papel crucial da moda na contemporaneidade, pois, com a difusão
da lógica da moda - cujas características principais se
revelam através do consumo de massa e dos valores por ele veiculados,
a todo o conjunto do corpo social, teríamos enveredado da modernidade
à pós-modernidade, mutação evidenciada a partir
dos anos 60.
A extensão
desse princípio aos múltiplos aspectos da vida social conferiu
uma reestruturação e uma nova dinâmica à própria
sociedade, baseadas nos pilares estruturantes da lógica da moda,
isto é, na importância do efêmero, da sedução
e da diferenciação marginal.
A apropriação
e a difusão da lógica da moda pelo conjunto da vida social
possibilitaram uma desqualificação do passado e dos valores
tradicionais, através da afirmação do reino do novo,
do desejo de novidade, do efêmero sistemático e da vontade
de sedução tocando indistintamente o domínio público
e o privado.
Em seu mais
recente livro, escrito em colaboração com Sébastien
Charles, filósofo e professor da Universidade Sherbrooke, Canadá,
“Le Temps Hypermodernes” [Os Tempos Hipermodernos, Ed. Grasset,
2004], Lipovetsky nos convida a uma discussão acerca da pertinência
do próprio conceito “pós-modernidade”, além
de se ater, pela primeira vez, na descrição, em seus traços
mais evidentes, daquilo que há de melhor e de pior na hipermodernidade.
O autor defende
a idéia de que o uso do termo “pós-modernidade”,
para a descrição e análise dos tempos atuais, seria
ambíguo, problemático e mesmo incorreto, uma vez que engendra
um sentido de um para além da modernidade, marcando uma evidência
de ruptura em relação aos modelos que alicerçavam
a noção de individualismo moderno. A pós-modernidade
foi, segundo o autor, no máximo uma fase de transição
ocorrida entre os anos 60/80 que fez entrar em cena uma figura inédita:
a do indivíduo autônomo, liberto dos freios institucionais,
das ideologias políticas e das normas da tradição,
característicos da modernidade.
Tal
como descrito em “A Era do Vazio”, o individualismo narcísico
pós-moderno seria marcado pelo hedonismo, pelo gosto das novidades,
pela promoção do fútil e do frívolo, pela
vontade de expressar uma identidade singular, “uma revolução
na representação das pessoas e no sentimento de si, tumultuando
as mentalidades e os valores tradicionais” (CHARLES, 2004, p. 21),
fazendo aparecer, desta forma, Narciso, ícone pós-moderno,
encarnado na figura do indivíduo cool, flexível
e libertário.
Desde os anos
80, estaríamos ainda submetidos a este mesmo modelo de individualismo
narcísico? Esta é a indagação que Lipovetsky
nos propõe em “Le Temps Hypermodernes”. Inúmeros
indícios nos conduzem a pensar que entramos na era onde tudo se
tornou “hiper”, hipercidades, hipermercados, hiperpotências,
hiperterrorismo, hipercapitalismo, uma cultura do excesso, cujos pilares
se assentam nas noções de hipermodernidade, hiperconsumo
e hipernarcisismo.
Após
a transição cultural proporcionada pela pós-modernidade,
entra em cena a hipermodernidade, uma sociedade marcada pelo signo do
excesso, pela cultura da urgência e do sempre mais, pela hiperfuncionalidade,
pelo movimento, pela fluidez e pelo declínio das tradicionais estruturas
de sentido, onde os grandes sistemas de representação de
mundo são tomados como objeto de consumo, sendo cambiáveis
de modo tão efêmero como um automóvel ou um apartamento,
num processo de permanente reciclagem do passado: “Chegamos ao ponto
em que a comercialização dos modos de vida não encontra
mais resistências estruturais, culturais ou ideológicas,
e onde as esferas da vida social e individual são reorganizadas
em função da lógica do consumo”(LIPOVETSKY,
2004, p. 41).
Hiperconsumo,
sustentado por uma lógica hedonista e emotiva que produz em cada
sujeito o desejo de consumo, muito mais em função do prazer
que este pode lhe proporcionar do que propriamente como meio de avaliação
e de comparação com os demais indivíduos. O hiperconsumo
emocional dita a especificidade das relações que estabelecemos
com nossos afetos, com os objetos, com os outros, com a vida. O império
do princípio do hiperconsumo se evidencia na busca de emoções
e de prazer, no cálculo utilitarista das relações
sociais e de trabalho, na superficialidade e frivolidade da expressão
dos afetos.
Hipernarcisismo,
época de um Narciso que se toma por maduro, responsável,
organizado, eficaz, rompendo com o modelo de Narciso típico dos
anos pós-modernos.
Mas, como pensarmos em Narciso maduro, se o indivíduo hipermoderno
insiste em permanecer como um eterno adolescente, os “adultescentes”,
como que se recusando a assumir a idade adulta e revelando o medo de envelhecer.
E o que dizer
de Narciso responsável, se a cada dia observamos a consolidação
e multiplicação de comportamentos irresponsáveis,
evidenciados pelo fato de as declarações de intenção
não serem mais seguidas de qualquer efeito? Em outras palavras,
progridem as condutas responsáveis ao mesmo tempo em que há
a acentuação da irresponsabilidade.
Narciso organizado
e eficaz? E o que dizer da ascensão de comportamentos disfuncionais,
expressos nas formas de compulsões e adições, de
sintomas psicossomáticos, de quadros depressivos, engendrados paradoxalmente
particularmente no universo funcional da técnica?
Em recente
entrevista publicada em 14 de março de 2004, ao “Caderno
Mais!”, da Folha de São Paulo, Lipovetsky afirma ser a sociedade
hipermoderna uma
sociedade esquizofrênica em que convivem,
de um lado, uma sociedade hiperfuncional, funcionalidade da técnica,
da ciência, que trabalha cada vez mais critérios mensuráveis,
de eficácia e operacionalidade. Paralelamente, assiste-se
à ascensão de comportamentos disfuncionais e os dois
existem juntos (...) Logo, tem-se de um lado uma sociedade em que
cada vez mais impera a ordem e, de outro, a desordem – no
fundo, um quadro de patologia e de caos.
A situação
paradoxal da sociedade hipermoderna, dividida entre a apologia do excesso
e o elogio à moderação traz como conseqüência
uma inquientante desestabilização emocional e fragilização
do indivíduo. Face à desestruturação das formas
de controle social, tem-se o direito a decidir e fazer escolhas no âmbito
de um contexto cada vez mais plural e liberal, mas também nos cabe
a capacidade para o exercício do autocontrole e do comportamento
individual responsável. Desta forma, o indivíduo hipermoderno
revela-se inquieto e amedrontado diante de um futuro incerto e ambivalente:
por um lado é estimulado à valorização de
princípios como a saúde, o equilíbrio e a prevenção;
por outro, levado pela lógica do excesso, revela comportamentos
extremamente excessivos, como por exemplo, no âmbito da alimentação,
onde podemos observar a proliferação de comportamentos anoréxicos,
indicadores de uma patologia no nível do excesso de controle e
de comportamentos bulímicos, reveladores de uma patologia do excesso
de consumo.
Tudo parece
indicar que realmente estamos passando de uma era “pós”
à era “hiper”, onde uma das questões mais importantes
aponta para a necessidade de se repensar a socialização
no contexto hipermoderno, isto é, quais são os desdobramentos
éticos engendrados por uma mutação dessa natureza?
A hipermodernidade
nos revela, segundo Lipovetsky, mais uma vez um paradoxo: Por um lado,
numerosos são aqueles que denunciam o aumento da violência
e da barbárie em nossa sociedade. O hedonismo individual, ao minar
as instâncias tradicionais de controle social, indica favorecer
o relativismo desenfreado dos valores, permitindo o livre curso de toda
sorte de elucubrações e de ações possíveis.
Reveladas por uma ética e por um espírito de irresponsabilidade
e incapaz de resistir tanto aos apelos externos como aos impulsos internos,
o indivíduo hipermoderno revela comportamentos e modos de vida
irresponsáveis, tais como cinismo generalizado, recusa de empreendimento
de esforço e de sacrifício frente às adversidades
da existência, comportamentos compulsivos, violência gratuita,
tráfico de drogas e toxicomanias. Por outro lado, como efeito da
ética da responsabilidade, temos de admitir que os direitos do
homem jamais foram vividos de modo tão consensual como hoje e que
os valores como a tolerância e respeito às diferenças
jamais foram tão vividamente manifestados e defendidos como atualmente.
Ao se
repensar a futuro da hipermodernidade, devemos analisar sua capacidade
em fazer triunfar a ética da responsabilidade sobre os comportamentos
irresponsáveis, e o fato de nossa sociedade ser capaz de produzir
tal ou qual efeito depende obviamente da consciência de cada indivíduo
sobre a importância de sua responsabilidade neste processo: “Jamais
uma sociedade favoreceu uma autonomia e uma liberdade individuais tão
amplas em seu exercício, jamais seu destino se encontrou tão
estreitamente ligado aos comportamentos daqueles que a compõem”.
(CHARLES, 2004, p. 65)
Em “Le
Temps Hypermodernes”, Lipovetsky nos aponta a lógica contraditória
da sociedade hipermoderna, acentuando o fato de que esta contradição
ter sido introjetada pelos indivíduos, que revelam-na através
de seus conflitos e de seu medo diante da incerteza, da complexidade e
da imprevisibilidade do presente.
Mas
sua análise não se atém tão somente à
interpretação da hipermodernidade, revelando seus paradoxos.
O autor nos convida à reflexão fundamental acerca de nosso
papel nesta sociedade, conclamando a todos a se responsabilizarem frente
ao futuro. E, fazemos nossas as palavras de seu interlocutor, Sébastien
Charles:
Lipovetsky propõe uma interpretação
de hipermodernidade que se pretende cada vez mais racionalista e pragmática,
e segundo a qual a responsabilização é a pedra
angular do futuro de nossas democracias. Sem responsabilidade verdadeira
e autêntica, as declarações de intenção
virtuosas, mas vazias de efeitos, não serão suficientes.
São imperiosas a valorização da inteligência
dos homens e a mobilização das instituições,
a fim de que sejam preparadas nossas crianças para os problemas
do presente e do futuro. A responsabilização deverá
ser coletiva e se exercer em todos os domínios do poder e do
saber, mas também deve ser individual, pois temos o dever de
assumir esta autonomia que a modernidade nos deixou como legado.
NOTAS
*Professora Assistente da Faculdade de Psicologia da Universidade
Católica de Petrópolis
Professora Auxiliar da Universidade Estácio de Sá –
UNESA
Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica – PUC-RJ
Mestre em Psicologia Social – Universidade Gama Filho – UGF
Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - PPGPS - UERJ
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LIPOVETSKY, G. L´Ère du Vide. Gallimard:
Paris, 1983.
LIPOVETSKY, G. L´empire de l´éphémère.
La mode et son destin dans les sociétés modernes.
Gallimard: Paris, 1987.
LIPOVETSKY, G. & CHARLES, S. Le Temps Hypermodernes.
Paris: Editions Grasset, 2004.
LIPOVETSKY, G. Entrevista. Folha de São Paulo,
São Paulo, 14 mar. 2004. Caderno Mais!
Recebido em: 06/04/04
Aceito para publicação em: 27/04/04
E-mail: mariliad@compuland.com.br
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