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ARTIGO 2
FAMÍLIA E VIOLÊNCIA NA ÓTICA
DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES VITIMIZADOS
WHAT CHILDREN AND ADOLESCENTS VICTIMS OF DOMESTIC VIOLENCE THINK ABOUT
FAMILY AND VIOLENCE
Fabiola Perri Venturini*
Marina Rezende Bazon**
Zélia Maria Mendes Biasoli-Alves***
RESUMO
O presente estudo exploratório tem por objetivo estudar o fenômeno
da violência doméstica pela ótica de crianças
e adolescentes vitimizados, investigando suas concepções
de família e violência, e comparando-as com as de um
grupo de jovens não-vitimizados. Os 44 participantes, com idades
entre 10 e 16 anos, responderam a 3 instrumentos complementares entre
si: uma entrevista estruturada, um questionário composto por
“sentenças incompletas” e uma entrevista semi-estruturada.
A análise de dados permitiu algumas conclusões: 1) não
foram encontradas diferenças significativas entre as concepções
dos dois grupos e houve uma tendência a respostas de caráter
convencional; 2) houve um grande número de respostas evasivas,
sendo a freqüência maior no grupo dos jovens abrigados;
3) observou-se uma tendência à “naturalização”
da violência em ambos os grupos, porém mais freqüente
no grupo de não vitimizados e 4) um desejo dos jovens abrigados
de estarem com suas famílias.
PALAVRAS-CHAVE
Família; violência doméstica; crianças
e adolescentes.
A
violência não é fenômeno social exclusivo de
nossa época, mas sim resultado de uma cultura que vem se estabelecendo
ao longo da história, na qual as relações de poder
desempenham papel fundamental, são intensamente permeadas por questões
de gênero e de hierarquia, chegando-se a uma sociedade preponderantemente
adultocêntrica e machista em que, segundo se pode deduzir, o segmento
social mais frágil é o da mulher-criança (SAFFIOTI,
1989).
Outrossim,
no tocante à vitimização de crianças e adolescentes
dentro dos lares, diz-se que esta seria inerente a relações
subjetivas, interpessoais e hierárquicas, em que há um abuso
do poder característico, por parte do adulto responsável
(OLIVEIRA, 1989). Em outras palavras, a violência doméstica
poderia ser a expressão do excesso do poder disciplinador e coercitivo
dos pais ou responsáveis, que faz da vítima um objeto, desrespeitando
seus direitos fundamentais, à vida, à liberdade, à
integridade física e a segurança. Em termos operacionais,
ela compreenderia
(...) qualquer dano físico ou psicológico
não acidental contra um menor de dezesseis ou dezoito anos
– segundo o regime de cada país -, ocasionado por seus
pais ou cuidadores, que ocorre como resultado de ações
físicas, sexuais ou emocionais, por omissão ou comissão,
e que ameaçam o desenvolvimento normal, tanto físico
como psicológico da criança (Fuster & Ochoa, 1995,
apud Bringiotti, 1999a, p. 40).
Especialistas
da área (GUERRA, SANTORO & AZEVEDO, 1992) costumam enfatizar
que essa sujeição de jovens a diversas formas de maus-tratos
no ambiente familiar pode ter duração indefinida, devido
à sacralidade dessa instituição e à autoridade
que os pais exercem sobre seus filhos, impondo-lhes um pacto de silêncio
e, por vezes, de cumplicidade.
Por outro
lado, as conseqüências decorrentes deste tipo de vivência
parecem ser inúmeras, porém há certa dificuldade
em descrevê-las de modo sistemático, porque, dependendo do
caso, as seqüelas são agravadas ou amenizadas com o tempo,
podem se manifestar tardiamente ou, ainda, nunca aparecerem e se ter a
situação da pessoa considerada como “assintomática”
(CEREZO, 1995).
Contudo, a
literatura vem apontando já há algum tempo (AZEVEDO, 1989)
a presença de uma série de problemas em crianças,
que poderiam ser decorrentes dos maus tratos familiares e que englobam
desde comprometimentos orgânicos até emocionais e/ou psicossociais,
destacando-se os danos ao desenvolvimento neurológico, intelectual,
social, a baixa auto-estima, os comportamentos agressivos, o isolamento,
as dificuldades de relacionamento, depressão, ideação
de homicídio e de suicídio, dificuldade de adaptação
sexual, sentimento de culpa, abandono da escola, prostituição
e rejeição familiar; e, é importante enfatizar, com
conseqüências que estariam sendo observadas a curto e a longo
prazo.
Focalizando mais
especificamente aspectos psicossociais, Bringiotti (1999b) afirma que
uma relação de violência na infância produz
problemas que certamente se manifestarão frente a outras pessoas.
Assim, esses jovens, comparados aos que não sofreram maus tratos,
apresentam um número alto de vínculos inseguros e têm
mais condutas de esquiva diante de adultos não familiares. Por
outro lado, nas relações com pares, as crianças maltratadas
tendem a exibir maior agressividade e menor tolerância à
frustração, o que sugere terem elas dificuldades em assumir
as perspectivas do outro e em discriminar suas emoções para
poder desenvolver um modelo de relação simétrico,
baseado no sentimento de igualdade e de confiança, visto que suas
experiências são caracterizadas pela exploração,
submissão e violação.
Quanto às
representações de si mesmas, ainda segundo Bringiotti (1999b),
essas crianças carecem de confiança nelas próprias,
suas perspectivas de futuro são incertas, além de expressarem
mais freqüentemente sintomas de tristeza e depressão. Também
é comum que se observem atrasos no desenvolvimento cognitivo, decorrente
de uma lenta aquisição de habilidades acadêmicas,
concorrendo assim para a repetência e atraso escolar.
No que
diz respeito ao desenvolvimento moral, embora esta dimensão ainda
necessite ser mais estudada, Fuster e Ochoa (1995) sugerem que as crianças
maltratadas manifestam uma compreensão deficiente de regras sociais
e, citando alguns estudos, destacam que as vítimas de maus-tratos
constroem seus juízos morais e sociais a partir de suas experiências
e, portanto, podem internalizar padrões de conduta que refletem
as normas/valores subjacentes à vivência de abuso/negligência.
Por outro
lado, Aber, Allen, Carlson e Cicchetti (1989) fizeram um estudo comparativo
entre crianças vitimizadas e não-vitimizadas, com idade
entre 4 a 8 anos, com o objetivo de verificar os efeitos dos maus-tratos
no desenvolvimento, e verificaram que não havia diferenças
significativas entre os dois grupos. Contudo, apesar dessa constatação,
os autores consideram que pouco se sabe sobre o impacto da violência
intrafamiliar sobre as crianças e destacam a importância
de ser elaborada uma teoria do desenvolvimento diretamente voltada às
que são maltratadas de forma a guiar as intervenções,
tanto clínicas quanto sociais e políticas, e a verificação
de sua eficácia.
Mas um outro ponto precisa ser enfatizado, no que tange ao que a literatura
traz até o momento: é que as investigações
nesse campo têm privilegiado a ótica dos adultos envolvidos,
sejam os pais/responsáveis ou os agentes que assumem o cuidado
no lugar da família e isto não deixa de ser uma visão
parcial.
Nessa direção,
cumpriria ressaltar que a ajuda prestada diretamente às crianças
e aos adolescentes requer, para além do conhecimento sobre as seqüelas
deixadas pela violência, um aprofundamento sobre as considerações
que esses jovens fazem a respeito de suas vivências, para se ter
uma compreensão mais ampla de seu desenvolvimento psicossocial,
que leve em conta a relação entre os problemas detectados
e as formas de elaboração e integração psicológica
de que lançam mão, quando se deparam com as situações
de maus tratos.
Nesse sentido,
o presente estudo, de caráter exploratório, foi empreendido
com o objetivo geral de estudar o fenômeno da violência doméstica
pela ótica de crianças e adolescentes vitimizados. Para
tanto, foram investigadas suas concepções de Família
e Violência Doméstica, comparando-as com as de um grupo de
jovens não-vitimizados, buscando identificar semelhanças
e diferenças entre eles.
MÉTODO
Participantes
Participaram
deste estudo crianças e adolescentes com idades entre 10 e 16 anos.
A escolha dessa faixa etária baseou-se no fato de esse período
ser o mais profícuo em relação às questões
da pesquisa, visto que nessa fase o processo de desenvolvimento da identidade
pessoal é bastante intenso e, em virtude de ganhos cognitivos,
o jovem passa a ser capaz de integrar elementos de suas experiências
passadas, projetar de algum modo o que pretende no futuro, e faz sínteses
de sua própria história de vida (FIERRO, 1995).
Os sujeitos
foram divididos em dois grupos:
a) O grupo
1 ficou composto por 17 crianças e adolescentes (10 do
sexo masculino e 7 do feminino), com idades entre 10 e 16 anos (idade
média aproximada de 14 anos), todos freqüentando a escola,
considerados em situação de vitimização (avaliação
técnica) e, por conseqüência, retirados da guarda de
seus pais e/ou responsáveis, estando, no momento da pesquisa, sob
medida de proteção, acolhidos em instituições
de abrigo, tendo como forma mais recorrente de maus-tratos a negligência,
e um tempo médio de abrigamento de aproximadamente quatro anos
e sete meses.
A família
de origem desses jovens, no momento da vitimização, era
muito variada em termos do número de pessoas vivendo na mesma casa
(2 a 13 pessoas), a maioria ligada por algum grau de parentesco, com exceção
de um caso em que não se verificou qualquer parentesco entre os
adultos e a criança focalizada. Quanto à ocupação
dos pais e ou responsáveis, 11 participantes relataram que pelo
menos uma pessoa da casa trabalhava fora, cinco se referiram a trabalho
doméstico (cuidar da casa), e um não forneceu esse dado.
Com respeito à escolaridade dos responsáveis, aparece uma
concentração no Ensino Fundamental, com apenas uma referência
de Ensino Médio; importante assinalar que cinco entrevistados relataram
que pelo menos um dos adultos responsáveis nunca estudara e dois
alegaram não saber.
b) O grupo
2 ficou composto por 27 crianças e adolescentes (13 do
sexo masculino e 14 do feminino), com idades variando entre 10 e 15 anos
(idade média aproximada de 12,8 anos), identificados através
de uma escola da Rede Pública Municipal, situada na periferia da
cidade de Ribeirão Preto - SP, todos residindo com sua família
no momento da coleta de dados.
A família
de origem desse grupo de jovens, no momento da coleta de dados, era também
variada em termos do número de pessoas vivendo na mesma casa (3
a 13), todos os participantes ligados a eles por algum grau de parentesco,
sendo que, em sua maioria (17 famílias) há a presença
de ambos os pais, três caracterizam-se como família estendida
(primos, avós, etc.), quatro são monoparentais (o pai é
falecido ou divorciado da mãe) e seis são reconstituídas,
tendo o pai ou a mãe novos companheiros. Quanto à questão
do trabalho, em todas as famílias pelo menos um dos adultos possui
emprego. Com respeito à escolaridade dos responsáveis, a
maioria teria completado o Ensino fundamental (31 adultos), oito foram
até o Ensino Médio, havendo a indicação de
um adulto cursando o Ensino Superior e em cinco casos não se obteve
essa informação.
PROCEDIMENTOS
PARA OBTENÇÃO DOS PARTICIPANTES
Para
a efetivação desse estudo, os cuidados éticos (incluindo
sigilo quanto aos dados obtidos, a anuência e assentimento das próprias
crianças e responsáveis, suporte à criança,
pelo pesquisador, quando necessário) assumiram grande importância.
No que tange
às instituições de abrigamento, o procedimento consistiu
em estabelecer um primeiro contato para a apresentação,
aos responsáveis, dos objetivos da pesquisa e de uma cópia
dos instrumentos que seriam empregados para coleta de dados junto aos
jovens.Obtida a anuência, no caso dos abrigos, a seguir solicitava-se
aos agentes institucionais que apresentassem à pesquisadora os
jovens que se enquadravam na faixa etária de 10 a 16 anos, havendo
depois uma conversa, em um local mais reservado, com cada um dos possíveis
sujeitos, para explicar o projeto de pesquisa, garantindo-lhes o sigilo,
o anonimato e a possibilidade de desistirem da participação
em qualquer momento.
Quanto à
Escola Pública, o procedimento foi praticamente o mesmo. À
pesquisadora foi propiciado o contato com algumas classes compostas por
jovens com idade variando entre 10 e 16 anos, dando a ela a possibilidade
de fazer a eles a proposta da pesquisa, e deixar com os alunos interessados
um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, dirigido aos pais e/ou
responsáveis, sendo que só os que trouxeram este assinado
puderam participar da pesquisa, num momento subseqüente. Por fim,
procurou-se junto a agentes da instituição escolar, verificar,
a partir dos nomes dos sujeitos, se em meio ao grupo havia algum com história
familiar de intervenção do Conselho Tutelar, de modo a excluí-los,
visando controlar o fato de não vivenciarem, reconhecidamente,
problemas em seus lares; isto não foi detectado, mantendo-se o
número total de respondentes.
MATERIAL
O material utilizado para a realização desse estudo foi
composto de 3 instrumentos complementares.
a) Um roteiro de Entrevista Estruturada, composto por itens de
caracterização como idade, sexo, composição
familiar, grau de escolaridade e profissão dos familiares, grau
de escolaridade do próprio participante;
b) Questionário baseado na estratégia “Jogo das
Sentenças Incompletas”, conforme o proposto por Koller,
Raffaelli, Bandeira, Reppold, Kuschik e Dani (1997), especialmente composto
para esta pesquisa, incluindo as sentenças: 1) Família
é... 2) Uma família feliz é aquela que... 3) Uma
família infeliz é aquela que... 4) Eu queria que minha família...
5) Eu acho que quem cuida de criança ou de adolescente deveria...
6) Uma criança/adolescente para ser bem educado precisa... 7) Quando
uma criança apanha...8) Quando uma criança é xingada...
9)Uma criança maltratada sente...10) Um adulto maltrata uma criança
porque...
c) Um roteiro com duas questões abertas baseado em procedimentos
propostos por Sanches (2001), visando uma investigação direta
das vivências do participante em relação a sua família
1) Você se lembra de alguma coisa legal que aconteceu com você
e sua família? Conte como foi....;2) Você se lembra de alguma
coisa ruim que aconteceu com você e sua família? Conte como
foi ...
PROCEDIMENTO
DE COLETA DE DADOS
Tanto
nas Casas Abrigos quanto na Escola houve a designação de
uma sala reservada, para onde participantes eram conduzidos individualmente
pelo pesquisador para a coleta de dados. Depois de ele estar devidamente
acomodado, iniciava-se pela aplicação da Entrevista Estruturada;
terminada esta, dava-se prosseguimento com o Jogo de Sentenças
Incompletas, informando ao participante que o pesquisador iria ler para
ele algumas sentenças que ele deveria completar com a primeira
frase que lhe viesse à cabeça, sem preocupações
com a forma da resposta, ou sua exatidão, porque não havia
respostas certas ou erradas. Para finalizar a sessão era aplicado
o Roteiro de Duas Questões Abertas, sinalizando antes ao participante
que ele agora estava livre para falar tanto quanto quisesse ao responder
a cada uma das perguntas.
PROCEDIMENTO
DE ANÁLISE DE DADOS
As
informações obtidas com a aplicação desses
instrumentos foram tratadas inicialmente de forma quantitativa ou quantitativa
interpretativa, na dependência das características de cada
um deles. Assim, a Entrevista Estruturada serviu para serem caracterizados
aspectos objetivos dos dois grupos de participantes, procedendo-se a uma
contagem direta de freqüência; já os dados obtidos com
Jogo de Sentenças Incompletas e a Entrevista de Duas Questões
foram submetidos a um sistema de análise denominado por Biasoli-Alves
(1988) de quantitativo-interpretativo e que consta de dois momentos:
um levantamento de todas as respostas obtidas de forma a compor uma lista
que dará origem, a seguir, a uma categorização de
acordo com a proximidade de sentido e depois de uma análise minuciosa
do significado que pode ser atribuído a cada resposta. Essa análise
tem um princípio qualitativo (BIASOLI-ALVES & DIAS DA SILVA),
quando o sistema de categorias é construído (infere-se o
sentido), passando a seguir a quantificar, contando a freqüência
com que as categorias aparecem (LÜDKE & ANDRÉ, 1986),
verificando as respostas iguais ou semelhantes, para ponderar a prevalência
das categorias em cada grupo de participantes.
Visando validar
o procedimento de análise, categorizações foram realizadas
por dois juízes em separado, para, em seguida, serem confrontadas
e reformuladas, com base em um consenso.
RESULTADOS
E DISCUSSÃO
Tema I:
Família
No
que se refere ao conceito de família, observou-se que
os jovens, de modo geral, definem-na como algo preponderantemente positivo,
seja em atributos e/ou características que satisfazem às
necessidades do jovem; também fica claro o predomínio de
uma concepção “estática”, para ambos
os grupos.
Em contraposição
a essa tendência majoritária de atribuir características
positivas à família, há um subgrupo, tanto de vitimizados
como de não-vitimizados, que tende a uma descrição
assentada em aspectos concretos, desprovidos de valoração,
seja ela positiva ou negativa. Se no primeiro caso pode-se inferir que
existe uma espécie de idealização (possivelmente,
apoiada em idéias convencionais a respeito de família),
no segundo evidencia-se certa dificuldade em relacionar família
a sentimentos.
A única
diferença constatável entre os grupos diz respeito à
presença de dois tipos de respostas que os vitimizados dão
e os outros não: respostas evasivas e o conceito de família
associado a bens materiais. Relacionar bens materiais ao conceito de família,
talvez, faça sentido num contexto de institucionalização,
na medida em que muitos dos casos de abrigamento têm como pano de
fundo dificuldades financeiras, que findam por determinar a própria
dissolução da unidade familiar. Quanto às respostas
evasivas, pode-se pensar em dificuldade maior de alguns abrigados para
definirem família, porque a institucionalização concorreria
para um enfraquecimento desse referencial de origem para a criança.
Por
outro lado, quando indagados a respeito da concepção de
família feliz, notou-se uma clara tendência, em
ambos os grupos, em a relacionarem com aspectos positivos de convívio,
dando destaque à dinâmica do funcionamento familiar, sobretudo
os abrigados. Contudo, vale a ressalva referente de que os resultados
obtidos na sentença seguinte, sobre a concepção de
família infeliz, permitir uma associação
entre infelicidade e ruptura familiar (à falta de convivência),
que aparece apenas no grupo de jovens vitimizados.
Também
chama a atenção o fato de a categoria de respostas evasivas
concentrarem um número razoavelmente maior entre os jovens institucionalizados,
em comparação aos não, seja quanto à concepção
de família feliz (vitimizados = 23.5% e não vitimizados
= 0%) quanto infeliz (vitimizados = 23.5% e não vitimizados
= 3.7%).
Vale atentar
ainda para a presença de respostas que destacam os bens de consumo
como condição para a existência de felicidade familiar,
refletindo possivelmente aspectos do ideário do atual contexto
sócio-cultural.
Em contrapartida
a questão material e, na mesma linha, a necessidade de trabalhar,
só aparecem para os abrigados quando correlacionada à concepção
de família infeliz, de modo que se pode cogitar associar essa dimensão
e os problemas na base do abrigamento.
Quanto aos
desejos e/ou expectativas em relação à família
de origem, grande parte dos sujeitos dos dois grupos indica um desejo
de maior convivência ou proximidade física com os familiares
e de uma dinâmica familiar mais positiva, permeada por sentimentos,
que garantam a felicidade ou, pelo menos, evitem a infelicidade. De forma
isolada, alguns gostariam de alterações em aspectos concretos
da configuração familiar. Nas diferenças observadas
entre os dois grupos, entre os participantes que vivem com suas famílias,
há quem queira desde sua ascensão social até o de
que permaneça do modo que está. Já entre os institucionalizados
aparece a categoria de não respostas (não sabe=
11.8%), que pode apontar para uma possível dificuldade, dado o
momento em que se encontram, para identificarem com clareza suas expectativas
em relação à família de origem.
Quanto aos resultados obtidos com as Questões Abertas, existem
certos destaques. Assim é que no item eventos positivos, chama
a atenção o fato de o grupo de jovens abrigados (e só
eles) ter uma grande concentração de respostas evasivas
(33.3%); também eles dão muitas respostas em que o evento
positivo exclui a presença de familiares, havendo inclusive quem,
de modo direto, o associe ao afastamento da família. Nesse sentido,
pode-se dizer que para mais da metade do grupo (66,5%) a tarefa de lembrar
eventos positivos envolvendo a família é bastante difícil,
ao passo que essa mesma característica, para o grupo 2 de crianças,
isto é menos intenso (girando em torno de 20%). Aqui, a lembrança
de coisas positivas envolvendo a família, sejam elas ligadas ao
lazer, a festas, passeios, acontecem com freqüência e mesmo
aspectos da rotina familiar são considerados prazerosos, como a
própria relação; e isto inexiste entre os abrigados.
Uma explicação
para essa diferença entre os grupos pode tanto ter um significado
psicológico profundo, quanto ser atribuível ao processo
de institucionalização e/ou ao tempo de afastamento da família,
interferindo na memória dos jovens.
Quanto
aos eventos negativos, houve um paralelo entre os dois grupos.
Contudo, os jovens abrigados se destacam dando um número maior
de respostas que evitam a associação entre evento negativo
e família, ou seja, há mais respostas nas situações
em que o sujeito está sozinho ou emite respostas evasivas de difícil
categorização (47.3%). Embora o grupo 2 também apresente
respostas desse tipo, o número é menor (16%), sendo que
a concentração nesse caso refere-se a perdas (morte de parentes
– 42%).
Vale
novamente a ressalva quanto ao fator institucionalização
para explicar tais diferenças.
Ainda
é preciso assinalar uma resposta que aparece somente nos abrigados,
mesmo não tendo alta porcentagem (5.2%), que trata das perdas materiais
da família.; no contexto brasileiro, isto pode ser decisivo para
a manutenção da família e, ainda, estar na base dos
motivos para abrigamentos, sobretudo, em casos de negligência.
Tema II:
Violência doméstica
Quanto
às idéias sobre as características de quem cuida
(educa) de crianças e adolescentes, há mais tipos de resposta
junto aos jovens institucionalizados. Os não institucionalizados
tendem, majoritariamente, a pensar em atributos pessoais positivos para
caracterizar essa figura (“ser paciente, cuidadoso, atencioso”),
ao passo que os primeiros, embora também o façam em proporção
ligeiramente menor, se destacam pelo fornecimento de uma quantidade relevante
de respostas evasivas, não conseguindo de fato caracterizar a figura
do cuidador (22.2% para os jovens vitimizados contra 7.5% para os demais),
havendo ainda quem, nesse quesito, fale do desejo de não ter contato
com essa figura.
Contudo,
pode-se interpretar que o cuidador, na medida em que as sentenças
não o especificam, para os abrigados, seriam os agentes institucionais,
e não só os pais.
Alguns sujeitos,
nos dois grupos, avançam nesse sentido, fornecendo respostas que
se referem à indicação concreta de quem deveria ser
o cuidador, ou seja, de quem deve desempenhar esse papel (“mãe,
babá, adulto”).
Em relação
às necessidades de crianças e adolescentes, a serem consideradas
ao longo do processo de acompanhamento educativo, observou-se que para
ambos os grupos a incidência do maior número de respostas
diz respeito à presença de adultos familiares e às
demandas sócio-afetivas (institucionalizados = 64% e não
institucionalizados = 67%). Por outro lado, tem-se, para ambos os grupos,
uma interpretação de educação no sentido formal,
ou seja, enquanto instrução acadêmica e que, portanto,
não permite verificar as concepções em relação
à criação de filhos (grupo dos institucionalizados
= 12%; grupo dos não institucionalizados = 22%). Na mesma linha,
há respostas evasivas que, novamente, aparecem somente no grupo
dos vitimizados (12%).
Interessante
observar que as práticas educativas punitivas, nos dois grupos,
aparecem relacionadas a sentimentos de tristeza, mágoa e humilhação,
situando as reações e/ou sensações despertadas
num contexto pessoal e íntimo. No grupo de jovens vivendo com suas
famílias houve, entretanto, um número considerável
de respostas, falando de sentimentos negativos e/ou de um desejo de revide/revanche,
além de uma identificação de características
negativas no autor da agressão.
Essa categoria
de resposta indica a possibilidade de crítica às ações
dos adultos e foi menos expressiva entre os vitimizados. Tal quadro, talvez,
seja devido ao fato de que a crítica aos adultos responsáveis
é mais aceita num contexto em que os problemas concretos são
menos intensos. Caso contrário, esse tipo de reflexão implicaria
numa fragilização muito grande das idealizações
das figuras parentais que, certamente, é acompanhada de um custo
emocional nem sempre suportável.
De modo aparentemente
paradoxal, é também para o grupo dos não vitimizados
que se nota uma recorrência de respostas que tendem à justificação
dos atos do agressor, contrariando, inclusive, indicações
feitas pela literatura especializada quanto a tendência mais forte
à naturalização dos atos do agressor pelas vítimas
efetivas de maus-tratos domésticos. De qualquer forma, ressalvas
devem ser feitas a esse tipo de resultado: de um lado, não é
possível afirmar com certeza absoluta que o grupo de crianças
não institucionalizadas não seja de vítimas de maus-tratos;
de outro lado, é preciso aventar que, em parte, as respostas tenham
sido dadas, tanto num grupo como no outro, a partir de uma interpretação
das sentenças abertas em que o autor dos atos em questão
não tenha sido associado à figura parental/adulta, mas a
um par, por exemplo.
Essa brecha
para interpretações variadas não é oferecida,
contudo, na frase subseqüente, em que os sujeitos são indagados
sobre “explicações” para a ocorrência
dos maus-tratos infantis, especificamente perpetrados por adultos. Neste
caso, uma parte considerável de respostas de ambos os grupos tende
a justificar o ato através de uma necessidade do adulto educar
e/ou corrigir a criança (grupo de institucionalizados = 44.5% e
grupo de não institucionalizados = 41%).
Porém,
de modo numericamente equivalente para ambos os grupos, outras considerações
são feitas no sentido de “desnaturalizar” a violência,
ou seja, concebendo-a como injustificável. Há um número
relevante de respostas que associam os maus-tratos a problemas do próprio
adulto, aos seus sentimentos negativos em relação à
criança, à sua própria experiência de maus-tratos
na infância ou à necessidade de extravasar emoções.
Por fim, há
aqueles que não respondem a essa questão ou o fazem de forma
evasiva, dando indícios de dificuldade para refletir sobre o tema,
o que acontece, entretanto, com um número bastante reduzido de
participantes (grupo de institucionalizados = 5.5% e grupo de não
institucionalizados = 3.5%).
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A
partir dos resultados apresentados e discutidos neste trabalho, há
algumas considerações finais.
Primeiramente,
é preciso dizer que, grosso modo, não foram detectadas grandes
diferenças entre os dois grupos estudados quanto às idéias/concepções
a respeito dos temas família e violência, existindo certa
tendência a respostas de caráter convencional.
Contudo, na
contramão disso, chama a atenção o fato de um grande
número de respostas evasivas que, embora apareçam em ambos
os grupos, é mais freqüente no dos jovens abrigados, o que
faz pensar nas dificuldades generalizadas de eles se expressarem verbalmente,
emitindo suas opiniões/reflexões sobre suas vivências.
Também se pode cogitar que os temas abordados mobilizam emocionalmente
determinados sujeitos, a tal ponto de não deixá-los falar
sobre.
Outro ponto
importante relaciona-se à detecção de respostas,
no grupo de jovens abrigados, que mostram o desejo intenso de estarem
com suas famílias. Esse dado suscita reflexões sobre as
razões subjacentes ao abrigamento e sobre as percepções
que os jovens têm delas. No caso de as vitimizações
serem inegáveis, estar-se-ia diante de jovens que podem se colocar
em situação de risco pela própria incapacidade de
fazer a crítica necessária à qualidade das práticas
de cuidado/educação a que são submetidos.
Também
parece importante salientar os resultados que indicam uma possível
“naturalização” da violência perpetrada
no ambiente doméstico. Contrariando o esperado, esse dado é
mais freqüente no grupo que teoricamente não está vivendo
(ou que não viveu) esta situação de vitimização.
Mas, é preciso lembrar que boa parte dos jovens abrigados o foi
por alegações de negligência, caracterizada mais pela
omissão de cuidados do que pelo cometimento de agressão.
Cumpre dizer,
ainda, que o fato de emergirem, nos dois grupos, respostas que expressam
um desejo de reagir à violência com violência, merece
mais atenção e investigação, uma vez que aí
pode estar a base de um tipo diferente de “naturalização
da violência”: a transformação da mesma
numa “moeda corrente”.
Levando em
conta a complexidade do tema e a necessidade de maior aprofundamento das
questões, pode-se dizer que o presente estudo, dado seu caráter
exploratório, tem o mérito de lançar muitas indagações
para novas pesquisas. E, nesta direção, assinala-se que
a metodologia empregada, apesar de poder concorrer para a produção
de certas respostas estereotipadas, mostrou-se muito útil, estabelecendo
um clima propício à coleta de dados, proporcionando uma
interação de caráter lúdico com os sujeitos.
As questões
abertas baseadas em eventos específicos, por sua vez, também
trouxeram dados interessantes, sobretudo num estudo que pretendia elucidar
questões relacionadas a risco psicossocial e desenvolvimento humano.
De maneira
geral, a melhor característica dos instrumentos empregados está
na praticidade, rapidez e facilidade de aplicação, além
de propiciarem uma escuta diferenciada dos jovens, apoiada no valor concedido
às suas opiniões/concepções, freqüentemente
desprezadas nas investigações científicas. Faz-se
importante reafirmar que há uma necessidade de serem realizadas
mais pesquisas que se preocupem com a ótica das vítimas
da violência, sobretudo as crianças e adolescentes, uma vez
que se quer considerá-los como sujeitos de seu próprio processo
de desenvolvimento.
NOTAS
* Psicóloga, mestranda no Programa de Pós-Graduação
em Psicologia do Departamento de Psicologia e Educação da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
da Universidade de São Paulo.
** Professora Doutora Assistente do Departamento de Psicologia e Educação,
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, da Universidade de São Paulo.
*** Professora Titular do Departamento de Psicologia e Educação,
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, da Universidade de São Paulo, Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia.
1 Nem sempre as informações sobre os motivos do
abrigamento são claras e precisas nas fichas das crianças
e adolescentes.
2 Por outro lado, não se deve descartar a influência da filosofia
educativa das instituições de abrigo, no caso, ambas de
caráter religioso, cujo teor pode veicular justamente um desapego
de coisas materiais e sua desvinculação da felicidade.
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p. 13–21.
ABSTRACT
The present exploratory study investigated the ideas about family
and violence of children and adolescents victims of domestic violence,
comparing these ideas with the ideas from a group composed of children
and adolescents who were not victims of domestic violence. The 44
participants with ages between 10 and 16 years old, answered to 3
complementaries instruments: a structured interview, a questionnaire
composed of “Incomplete Sentences” and a semi-structured
interview. The analysis allowed some conclusions: 1) It was not found
significant differences between the two groups and there was a tendency
to conventional answers; 2) There was a lot of evasive answers , with
a higher frequency in the victimized group; 3) There was a tendency
to the “naturalization” of violence in both groups, although
with a higher frequency in the non-victimized group and 4) a wish
of the victimized group of being (live) with their families.
KEY-WORDS
Family; domestic violence; children and adolescents
Recebido em: 17/03/2003
Aceito para publicação em: 27/04/2004
Endereço: fabiolapv@hotmail.com
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