ARTIGOS
A dimensão ética da psicanálise na clínica da atenção psicossocial
The ethic dimension of psychoanalysis in the psychosocial care clinic
Simone Mendonça Delgado
Supervisora Clínica
e Institucional do Centro de Atenção Psicossocial Artur Bispo
do Rosário (Jacarepaguá, Rio de Janeiro)
Membro da Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro
RESUMO
A experiência de trabalho num CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), dispositivo clínico-político que fundamenta a mudança do modelo assistencial no campo da Saúde Mental no Brasil, interrogou-nos quanto a uma suposta antinomia entre a prática da Psicanálise e a prática dos cuidados psicossociais. Intencionamos com este artigo apontar a posição do analista como possibilidade de sustentação, neste campo da atenção psicossocial, da inclusão social e do resgate da cidadania enquanto vetores de um campo clínico ampliado no qual a dimensão do sujeito, operada pela ética da psicanálise, é o orientador do trabalho na direção da responsabilidade e da implicação do sujeito com suas vicissitudes. É o desejo do analista que marca posição e efeitos neste campo clínico. Ao tomarmos em análise, no interior do CAPS, um dispositivo de ação clínica chamado “grupo de referência”, pretendemos investigar como uma experiência de trabalho coletivo, norteada pela ética da psicanálise, distancia-se de um mero apaziguamento do sintoma, e visa o sujeito em seu desejo. Propomos, com isso, indicar como um certo modo “versátil” de operar, mas não por isso sem rigor ou sem ética produz efeitos clínicos: opera-se, num mesmo espaço, desde agenciamentos sócio-sanitários, remanejamentos medicamentosos, à intervenção que aponta para a construção de anteparos frente à tentativa de aniquilamento exercida pelo Outro e, assim, experimentada pelo sujeito.
Palavras-chave: Psicanálise, Atenção psicossocial, Ética do desejo.
ABSTRACT
The work experience in a CAPS (Center for Psychosocial Care), clinical-political device which underlines the change of the assistance model in the field of Mental Health in Brazil, has questioned us in regards to the assumed antinomy between psychoanalysis practice and the practice of psycho-social care. With this article we have intended to point out the analyst position as a support possibility, in this field of psycho-social care, social inclusion and citizenship rescue as vectors of a broadened clinical field in which the subject dimension, operated by the psychoanalysis ethics, is the guide of the work towards responsibility and the subject implication with its contingency. It is the analyst’s desire that marks position and effect in this clinical field. In taking into analysis, inside CAPS, of a clinical action device called “reference group”, we have intended to investigate as a collective work experience guided by psychoanalysis ethics, it goes far ahead of a mere appeasing of the symptom, and aims at the subject in his desire. We have proposed with this to point out as a certain “versatile” way to operate, but not therefore with neither rigor nor ethics, brings about clinical effects: in the same space are operated from partnership sanitary agencies, medicament changes, to the intervention that points out to the construction of bulkheads before the attempt of annihilation played by the Other and thus, tried by the subject.
Keywords: Psychoanalysis, Psycho-social care, Ethics of desire.
A DIMENSÃO ÉTICA DA PSICANÁLISE NA CLÍNICA DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
1. Introdução:
A experiência de trabalho num CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), dispositivo clínico-político que fundamenta a mudança de paradigma no campo do cuidado em Saúde Mental no Brasil, provocou-nos certas inquietações. Esta transformação indica a necessária mudança de um modelo assistencial centrado no hospital psiquiátrico, como forma privilegiada de tratamento (modelo hospitalocêntrico), para estratégias de cuidados mais capilarizados. Constitui-se, desta forma, uma rede ampliada de dispositivos clínicos de atenção psicossocial extra-hospitalares, na qual o CAPS é um instrumento estratégico. Sua função de ordenação da demanda do território supõe a interconexão com diversos serviços: ambulatórios ampliados de Saúde Mental com Oficinas Terapêuticas, Centros de Convivência, Serviços Residenciais Terapêuticos, Leitos para Urgência e Emergência Psiquiátrica em Hospital Geral, recursos sócio-culturais comunitários, etc. Os CAPS apresentam diversas práticas clínicas constituídas por múltiplas disciplinas e saberes (médicos, psicológicos, psiquiátricos, sociais, etc.), coabitantes deste campo. Para além das convergências e impasses que esses encontros puderam e podem produzir, e de uma suposta antinomia existente entre a prática da Psicanálise, de um lado, e a prática dos cuidados psicossociais, do outro, propomo-nos, com esta análise, sustentar que a Teoria e a Clínica Psicanalíticas, enquanto balizadoras da posição do analista, constituem o aporte que, neste campo da atenção psicossocial, pode contribuir para o redimensionamento das diretrizes políticas intrínsecas a este campo. A inclusão social e o resgate da cidadania não são, na perspectiva analítica, meros objetivos reabilitadores a serem alcançados, mas sim vetores integrantes de um campo clínico ampliado. Nesta perspectiva é a dimensão do sujeito o operador que deve orientar o trabalho na direção da assunção da responsabilidade e da implicação, por cada um, com suas vicissitudes. Considera-se, desta forma, que a loucura não pode ser “enquadrada” ou o louco “adaptado” ao socius. Cada sujeito encontrará, a seu modo, suas possibilidades de compartilhar com o outro da vida social.
Neste sentido é a ética da psicanálise, cujo motor é o desejo, o que possibilita indicar a direção do tratamento. É importante definirmos do quê se trata quando nos referimos à ética da psicanálise e sua relação com o desejo. Freud e Lacan afirmam que o sujeito do inconsciente é atravessado por uma falta estruturante – a castração. Falta que articula o desejo e suporta o movimento desejante. Freud ([ 1925 ], 1994) circunscreve as primeiras experiências de satisfação do sujeito interconectando-as ao chamado objeto perdido para sempre. Este objeto perdido aponta para a impossibilidade de retorno a uma dimensão mítica de plena satisfação do Desejo. Neste contexto é importante destacar a íntima articulação entre desejo e lei. Ao situarmos a diferença entre ética e moral, esta última apresenta em seu horizonte um Bem a seguir e se mantém circunscrita ao “Serviço dos bens”, enquanto que a Ética aponta para a dimensão da singularidade do desejo. Diante desta distinção, como entender este aparente paradoxo afirmado por Lacan no qual a moral nasce enraizada ao desejo (LACAN, [ 1959-1960 ], 1997)? O que a proibição moralista estabelecida pela Lei contra o Incesto encobre é a impossibilidade ética de realização da satisfação absoluta e plena do desejo. Lacan nos propõe acerca da íntima relação entre desejo e responsabilidade nos Escritos em A Ciência e a Verdade: “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” (LACAN, 1998, p.873), e nos adverte no Seminário, livro 7: “Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo” (LACAN, 1959-1960/1997, p. 382). Ambas, proposição e advertência, estão intrinsecamente articuladas sob a égide da responsabilidade: poderíamos afirmar que não ceder do seu desejo é se responsabilizar.
Ao sustentarmos a efetividade do discurso analítico numa instituição como o CAPS, indicamos que a verdade, que é a castração, só pode ser a do sujeito, e é sempre não-toda, está referida ao saber do inconsciente. Desta forma, o desejo do analista, enquanto desejo de saber – diferente de desejo de curar – faz com que o analista se recuse em ocupar o lugar do Outro, do discurso do mestre, e possibilite o encontro do sujeito com seu desejo. O deciframento, portanto, está do lado do sujeito e as conseqüências que ele tirará dessa revelação é sua prerrogativa, enquanto analisante, ao decidir que destinos dará ao seu desejo. Lacan sublinha que o desejo do analista não é puro, mas é um desejo prevenido: o analista sabe que não pode desejar o impossível; trata-se de um desejo atravessado pela castração. Neste ponto citamos Guyomard que traça o desejo do analista como “um desejo separador. É um desejo de diferença, um desejo que sustenta a análise, um desejo de analisar – e não de ser analista” (GUYOMARD, 1996, p.99). Desta forma, o que norteia a função do analista é o desejo ligado a um vazio de saber, a um não saber.
Situaremos como essa experiência de trabalho coletivo, norteada pela ética da psicanálise, distancia-se de um mero apaziguamento do sintoma visando, assim, o sujeito em seu desejo. Para tanto, consideremos o alerta feito por Lacan (1959-1960/1997):
Se a análise tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta o tema inconsciente, a articulação própria do que faz com que nos enraizemos num destino particular, o qual exige com insistência que a dívida seja paga, e ele [ o destino ] torna a voltar, retorna e nos traz sempre de volta para uma certa trilha, para a trilha do que é propriamente nosso afazer (p. 376).
Tomaremos em análise um dispositivo de ação clínica, integrante do menu de recursos ofertados no CAPS, chamado “grupo de referência”. Pretendemos discutir como um certo modo “versátil” de operar, mas não por isso sem rigor ou sem ética, produz efeitos clínicos, para além do “terapêutico”, na dimensão mesma analítica. O que aqui afirma-se como “versatilidade” é a possibilidade de operar formas de intervenção que considerem estilos particulares dos analistas, no entanto sem perder de vista a orientação do método psicanalítico. Neste sentido, determinadas condições devem ser preservadas. Citamos Elia (2004), que nos indica os parâmetros constitutivos do campo analítico: “o acesso a esse saber [ inconsciente ] exige um trabalho (o trabalho analítico), que se realiza através de um determinado método (o método da psicanálise), que estabelece um dispositivo (o analítico) e requer uma função operante (o psicanalista)” (p. 8-9).
Voltando ao dispositivo “grupo de referência”, tencionamos demonstrar como, num mesmo espaço, pode se operar desde agenciamentos sócio-sanitários (encaminhamentos para dentistas, nutricionistas, atividades de lazer, etc.), remanejamentos medicamentosos, à intervenção que pode apontar para a construção de anteparos frente à tentativa de aniquilamento exercida pelo Outro, cuja intensidade é assim experimentada pelo sujeito, especialmente, na estrutura psicótica. Para circunscrevermos a categoria do Outro na teoria psicanalítica, tomemos a indicação de Elia (2006):
O sujeito do inconsciente não é, em si mesmo, pobre ou rico, branco ou negro, tampouco – e aí se situa talvez o ponto mais escandaloso da descoberta freudiana, homem ou mulher. É em sua relação com a alteridade em que para ele consistem a linguagem, a família, a sociedade, enfim, todos os elementos do que Lacan denominou o Outro, que o sujeito vai sexuar-se, definir-se homem ou mulher, e definir também seus demais atributos (p.25).
Na estrutura psicótica a dimensão da alteridade, e, portanto, do Outro, pode assumir, muitas vezes, o contorno de uma invasão sem limites no psiquismo do sujeito, experimentada, por ele, como intencionalidade de destruição advinda desse Outro.
A experiência descrita a seguir, indica que o dispositivo clínico nomeado “grupo de referência” pôde levar os sujeitos a construírem respostas que possibilitaram manejos singulares dessa experiência de “invasão” por parte do Outro.
2. A construção de um ponto de ancoramento a partir de um espaço-tempo de referência estruturante : o “grupo de referência”
A clínica exercida nos Centros de Atenção Psicossocial tem sido objeto de pesquisa por psicanalistas e autores informados pela psicanálise, em nosso país, há alguns anos. Múltiplas influências teórico-clínicas, desde a Psicoterapia Institucional Francesa e seu principal expoente Jean Oury (VERZTMAN; GUTMAN, 2001), aos paradigmas que afirmam a potência da transdiciplinaridade (VASCONCELOS, 1997), como forma diferenciada de intervenção no coletivo, foram desenhando estes dispositivos clínicos ao longo dos últimos 15 anos. E o quê a Psicanálise tem a ver com essa “clínica”?
É a partir do ensinamento de Lacan acerca da descoberta freudiana que construímos essa experiência, buscando respostas a essa questão.
A prática institucional é necessariamente coletiva. E no CAPS ela também se organiza em grupos. Alguns autores apontam o coletivo como estratégia de resposta frente a situações de impasse clínico. Zenoni (2000) nos indica: “[ ... ] a clínica, às vezes, exige uma estrutura coletiva de resposta. É a clínica que exige respostas que não podem ser dadas por um só (p.17).
2.1- História e funcionamento do “grupo de referência”:
O dispositivo que, em especial, queremos tomar em análise recebeu, ao longo do tempo, mandatos sócio-terapêuticos pré-determinados: de início foi-lhe direcionada a função de ser um “grupo de família” – determinação logo desconstruída por nós, mediadores do grupo. Consideramos que este seria um espaço de acolhimento às famílias, incluindo o sujeito psicótico e os demais com sofrimentos psíquicos de outras magnitudes. Acolhimento do quê? Da demanda que pudesse ser endereçada ao Outro, sem, necessariamente, ter que dar-lhe uma resposta. Estamos atentos, portanto, ao que Soler (1977) nos adverte: “[ ... ] A demanda supõe o Outro. Ela o procura como bom entendedor e como lugar suposto de solução [ ... ]. O clínico quando cede à sugestão-sedução da demanda, reduz-se à função do terapeuta (p.110)”. Compreende-se terapeuta, aqui, como aquele que não trabalha com o pressuposto do sujeito do inconsciente.
Seguindo a descrição histórica do dispositivo, num outro momento do percurso institucional, tornou-se imperiosa a reformulação quanto à atenção medicamentosa, visto que a ela se atrelava a entrada do sujeito nos projetos clínicos do CAPS e, muitas vezes, a ela se reduzia o referido projeto do sujeito. Portanto, ao antigo “grupo de família” adicionou-se esta, também, pré-função: a de acompanhar os efeitos medicamentosos naqueles que faziam uso de anti-psicóticos, anti-depressivos, anti-convulsivantes, benzodiazepínicos, etc. Tornar-se-ia, então, um “grupo de medicação”?
Partindo da direção ética norteada pela Psicanálise, pudemos operar também sobre esta encomenda institucional, constituindo esse espaço nomeado enquanto “grupo de referência”. Espaço-tempo proposto para delinear a construção de ancoramentos no campo do Outro, em que, nós mediadores, apesar de estarmos orientados, rigorosamente, por uma mesma diretriz estratégica, permitíamo-nos uma certa “liberdade tática” (BAIO, 1999, p.67). no manejo deste trabalho.
Descreveremos a seguir alguns fragmentos de situações clínicas que denotam a sustentabilidade da posição analítica, neste espaço coletivo de intervenção, enquanto operadora de efeitos para além do terapêutico: efeitos analíticos e, portanto, da ordem do desejo.
3- A clínica operada no “grupo de referência”:
Neste trabalho coletivo encontramos um sujeito psicótico que, em muitos momentos de nossas intervenções, costuma nos lembrar: “Isso é uma questão de estratégia!”(sic). Consideramos que esta observação é extremamente pertinente sobre o que acontecia neste trabalho. São estratégias e agenciamentos de cuidados de toda ordem que ali são empreendidos em situações diversas: um movimento erotizado dirigido à vizinha que preocupa uma irmã temerosa, principalmente, pela integridade física do irmão psicótico, já que residem em território violento; um outro sujeito psicótico que se irrita, permanentemente, com a mãe, na medida em que ela não consegue aceitar sua decisão de não tomar banho pelo fato de afirmar “exalar um perfume próprio ”(sic); a irmã que não entende como seu irmão lhe exige a compra de várias fitas de vídeo cassete, sem nunca assistir a nenhuma delas, mas, no entanto, tomando muitas horas de seu dia ocupando-se em ordená-las sistematicamente numa determinada lógica singular – ele diz: “eu faço coleção”(sic). Pais, ausentes da vida de seus filhos por anos, são presentificados no desejo desses sujeitos em reencontrá-los, muitas vezes, com a apresentação de uma posição de recusa das mães de que este movimento seja realizado. Todo um trabalho, então, de implicação e engajamento desses sujeitos com seu desejo é operado. E os encaminhamentos dar-se-ão a partir da direção apontada pelo sujeito, levando-se em conta a importante parcela de responsabilização pelo que lhe acomete.
Determinados autores, como Zenoni (2000), afirmam que uma estrutura institucional pode ser conveniente ao sujeito psicótico, na medida em que descentralizaria a referência ao sujeito suposto saber, que no contexto transferencial circunscreve o analista como detentor da verdade do sujeito. O argumento do autor indica um saber suposto diluído no contexto institucional:
Essa posição de um sujeito suposto não saber [ já que não encarnado num só analista, mas diluído no âmbito institucional ] é uma posição favorável para encontrar um sujeito que sabe o que acontece com ele, que é ele mesmo a significação do que lhe é endereçado enigmaticamente [ resposta possível do sujeito psicótico ] (p. 11; p.20).
Desta forma, possibilita-se que o saber e o poder devastadores do Outro, assim, muitas vezes experimentados pelo psicótico, sejam descompletados, relativizados e, até mesmo, esvaziados.
No campo da atenção psicossocial, a dimensão social e/ou territorial são consideradas pontos de partida e, ao mesmo tempo, pano de fundo para toda e qualquer intervenção clínica. O conceito de território amplia-se para além da definição de área geográfica e se sustenta como suporte de referências de toda ordem (culturais, históricas,etc.) na vida do sujeito. Neste dispositivo clínico chamado “grupo de referência” é possível observarmos como o engendramento de diversos encaminhamentos de natureza sócio-sanitária, podem assumir o contorno de uma lógica clínica do desejo: atividades esportivas na Vila Olímpica do bairro são acionadas frente à demanda de ociosidade experimentada como danosa por alguns sujeitos, enquanto outros sustentam que a vida e este mundo já os impõem um “trabalho pesado e tremendamente desgastante”1, solicitando-nos, inclusive, com freqüência, que possamos poupá-los de vir com assiduidade ao CAPS. Isto nos faz considerar, na radicalidade, a insustentabilidade do chamado “contrato terapêutico” / “projeto terapêutico” naquilo que ambos incorporam de um impossível terapêutico: há algo da dimensão de um intratável nesta empreitada – a divisão do sujeito (BERENGER, 1997, p.49). Dimensão esta que o analista deve incluir e sustentar em sua prática clínica no CAPS. É a partir do um a um, do caso a caso, que a direção de trabalho deve ser tomada. As estratégias de “reinserção social” se não forem articuladas a partir da direção apontada pelo sujeito, podem tornar-se mecanismos adaptadores e empobrecedores do sujeito e de seus enigmas. Lembramos uma psicótica que passou vinte e sete anos ininterruptos de sua vida internada num grande manicômio. Chega ao CAPS depauperada, com o corpo e seu ser marcados pelas cicatrizes do abandono. Sua aparência expressa os longos anos de institucionalização: orelha parcialmente decepada, desdentada, marcha comprometida, fala desarticulada. Pôde, só depois de um certo tempo, formular seu desejo de “colocar dentes”, pois havia se enamorado de um cliente do CAPS, e passou a se preocupar com sua “ imagem”.
Em outros extratos clínicos a demanda de intervenção da Lei, de um ordenamento se apresenta: o Outro não barrado pela lei simbólica ordenadora, pode compelir o sujeito psicótico eroticamente na direção do Outro em alguns momentos e, em outros, produzir atitudes hostis do sujeito numa tentativa de defesa, frente a esse Outro gozador e invasivo. Entendemos que a posição do analista é a de não responder como Outro do saber e, portanto, não assumir uma posição prescritiva, mas possibilitar a emergência de respostas singulares construídas pelo sujeito.
4- Breves considerações finais:
Vimos, com a experiência de cuidado nesse espaço de referência, que amarrações significantes podem se constituir, a partir do discurso e posição do sujeito, construindo bússolas que poderão, mesmo que provisoriamente, fornecer algum norte frente ao percurso de errância do sujeito psicótico. E, neste contexto, lembramos Laurent (2000): “É esse tipo de instituição [ ... ] em que a psicanálise não se encontra exterior, transcendente (p.168)”.
A posição de “saber não saber” resultante do movimento clínico que aponta a impossibilidade do analista saber de antemão, indica que “cabe ao sujeito psicótico construir seu próprio saber” (BAIO, 1999, p.67). Ao considerarmos uma certa estruturação da rede intrainstitucional, constitutiva dos CAPS, prenhe de saberes especializados, formações e discursos diversos, há um importante desafio a ser enfrentado: os profissionais e cuidadores pertencentes à equipe devem sustentar a coletividade deste trabalho a partir da elaboração de um saber fazer que não se sabe a priori e que, portanto, não é suposto! Vale sublinhar que este saber não suposto se edifica na contratualidade de estratégias acionadas pela equipe, na medida em que são permanentemente revistas e reinventadas a partir da originalidade de cada caso.
É ao abrir espaço para o que insiste no real do sintoma e, portanto, de real no sujeito que o analista opera. É a ética do desejo, desejo de saber que, assim, norteia o trabalho do analista no dispositivo institucional como o CAPS. Afirmar a Psicanálise como um modo de operação na Clínica da Atenção Psicossocial é fazer face à dimensão do sujeito que não é redutível a enquadramentos adequáveis à ordem socializadora e aos ditames da cidadania.
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Endereço
para correspondência
Simone Mendonça Delgado
E-mail: simonemdelgado@terra.com.br
Recebido em: 11 de novembro de 2006
Aceito para
publicação em: 24 de setembro de 2007
Acompanhamento
do processo editorial: Deise Mancebo e Sonia Alberti
NOTAS
1 Fragmento do discurso de um sujeito psicótico frente à tentativa de um profissional da equipe técnica em construir, junto com ele, um projeto de tratamento.