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TRAJETOS PROFISSIONAIS EMANCIPATÓRIOS

EM UM MUNDO SOCIALMENTE DESIGUAL: DE WEBER A BOURDIEU

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Joana Gomes de Almeida

Doutoranda bolsista da Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal) em Sociologia: Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo na Faculdade de Economia/Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Mestre em Intervenção Social, Inovação e Empreendedorismo pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação e pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. 2€uada em Serviço Social pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. e-mail: joana.g.almeida1708@gmail.com
http://www.ces.uc.pt/doutoramentos/trabalho/estudantes.php?action=info&id_investigador=775
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Resumo: Sendo o desemprego um problema social de inegável gravidade, várias são as tentativas para minorar este fenômeno. O incentivo ao empreendedorismo, através da criação do próprio emprego, tem-se mostrado como uma via promissora, embora com complexa eficácia, no âmbito das políticas ativas. O empreendedorismo de necessidade, conforme é apelidado na literatura da especialidade, associado a desempregados que criam o seu próprio emprego, surge comumente ligado na literatura a um perfil de baixo capital cultural e ao abandono precoce dos projetos por conta própria. Neste sentido, importa problematizar que questões sociológicas gravitam em torno deste fenômeno. O presente ensaio procura questionar esta associação através dos contributos teóricos de Weber e Bourdieu para problematizar como a desigual distribuição de recursos materiais e não materiais levam à reprodução de oportunidades desiguais e a limitações nas escolhas destes empreendedores. Termina-se com um breve apontamento ao pensamento de Sen, que nos traz novos contributos.
Palavras-Chave: desemprego, empreendedorismo, estrutura, agência.


PROFESSIONAL EMANCIPATORY PATHWAYS IN AN INEQUITABLE WORLD: FROM WEBER TO BOURDIEU

Abstract: Unemployment, being a social problem of undeniable severity, is faced within several attempts to minimize it. Encouraging entrepreneurship through self-employment, it has been shown as a promising route, albeit with complex effectiveness in the context of active policies. Necessity entrepreneurship, as it is called in the literature, associated with unemployed who create their own jobs, arises commonly in the literature connected to a low-profile cultural capital and the early abandonment of the autonomous projects. It is therefore important to discuss sociological issues around this phenomenon. This essay seeks to question this association through the theoretical contributions of Weber and Bourdieu in order to discuss how the unequal distribution of material and non-material resources lead to reproduction of unequal opportunities and limitations in the choice of these entrepreneurs. Finally, the thought of Sen is briefly highlighted as a promising venue in this field.
Keywords: unemployment, entrepreneurship, structure, agency.


Introdução
Quando pretendemos compreender trajetos profissionais emancipatórios relativamente a um mercado de trabalho onde a desigualdade social reina, como o caso de pessoas desempregadas que criam o seu próprio emprego, Max Weber e Pierre Bourdieu se afiguram como nomes a colocar em referência. De fato, começando por Weber, este é um autor incontornável no conhecimento do como o individual se incrusta no social, nomeadamente, quando este é desigual.

Weber se revela, deste modo, particularmente importante porque a sua problematização da conduta de vida ajuda-nos a reivindicar a importância da agência e da estrutura social na compreensão da forma como as desigualdades no âmbito do desempenho de uma atividade produtiva valorizada são geradas. Weber (1978) estudou condutas de vida para explicar como os indivíduos contribuem ativamente para a reprodução social do status de grupo, e a sua distinção dos restantes grupos através de códigos de vestuário, padrões de casamento, etc. A maior contribuição do trabalho de Weber para uma compreensão crítica dos estilos de vida foi o reconhecimento de que as escolhas que os indivíduos fazem são constrangidas por recursos materiais e normas da comunidade ou status do grupo a que pertencem, reconhecendo assim, aspetos materiais e não materiais da estrutura.

Estrutura social e escolhas de trajetórias profissionais
Estes recursos e normas, a que aludimos atrás, fazem parte do que Weber chamou de oportunidades de vida – a parte estrutural dos processos de estilos de vida (Abel, 1991; Ruetter, 1995, apud Abel & Frohlich, 2012). Deste modo, as oportunidades de vida referem-se às probabilidades ancoradas à estrutura do indivíduo atingir os seus objetivos. Assim, o conceito de conduta de vida vai para além de comportamentos, focando o papel ativo dos indivíduos na resposta às exigências e oportunidades no dia-a-dia. No que respeita a comportamentos, Weber está mais preocupado, por um lado, com os processos sociais que ligam os constrangimentos estruturais e oportunidades (oportunidades de vida), e por outro, os comportamentos reativos dos indivíduos (conduta de vida).

O conceito de escolha nas atuais circunstâncias da vida exige uma reflexão crítica séria, nomeadamente quando situado no campo emancipatório da criação do próprio emprego (Almeida & Albuquerque, 2013). Esta discussão tem sido a raiz do discurso sociológico numa tradição weberiana ou bourdiana acerca de estilos de vida (Cockerham, Ruetten, & Abel, 1997, apud Abel & Frohlich, 2012). Contudo, é o dualismo das oportunidades de vida enraizadas na estrutura e das escolhas dos indivíduos baseadas na conduta de vida que oferece o terreno teórico fundamental de pensamento em termos de dualidade da estrutura e da agência no que respeita às desigualdades sociais, que se acumulam, transmitem e reproduzem ao longo da construção de trajetos profissionais por conta-própria. Isto é, a agência não será suficientemente poderosa ou emancipadora da reprodução das desigualdades sociais de partida, o que poderá levar em muitos casos ao insucesso dos projetos profissionais.

Bourdieu: o papel dos capitais no empoderamento de trajetos, ou na sua destruição
A visão de Weber acerca da ação recíproca entre escolhas de vida e oportunidades preparou o terreno para posteriores análises, como o trabalho de Bourdieu. Ao analisarmos os padrões das desigualdades no atual contexto social, a análise de Weber mostra-se insuficiente, embora se reconheça o seu valor histórico fundacional.

Weber estava preocupado com a formação de status dos grupos e a definição de oportunidades de vida (probabilidades ancoradas na estrutura), mas não define claramente quanta liberdade individual atua na seleção dos estilos de vida. Esta questão é abordada por Bourdieu, que argumenta a existência de uma forte ligação entre a detenção de diferentes formas de capital, o habitus específico de cada classe social, e as escolhas que os indivíduos têm. A pertinência do trabalho de Bourdieu para a presente questão é que nos permite analisar dimensões chave da desigualdade social diretamente relevantes para o papel da agência. O nosso argumento é que uma análise mais profunda das diferentes formas de capital e as suas interações abre o caminho para a compreensão do papel dos indivíduos na produção e reprodução de desigualdades no exercício de uma atividade produtiva digna emancipatória, fornecendo igualmente pistas para a superação destas situações de desvantagem.

Assim, o habitus é um saber agir aprendido pelo agente na sua integração num determinado campo. Cada campo tem uma lógica particular de funcionamento que estrutura as diversas interações que nele ocorrem, definindo objetivos específicos a serem alcançados para que os agentes possam manter ou melhorar as suas posições na luta concorrencial nesse espaço. Nesse sentido, cada campo funciona como um espaço de possibilidades onde as estratégias de cada ator estão diretamente relacionadas com os meios disponíveis (capitais) e os objetivos a alcançar (conservação ou transformação da posição que detêm no campo) (Brandão, 2010). Deste modo, tendo em consideração que o mundo dos negócios numa economia de mercado neoliberal é altamente concorrencial, um ator que não tenha tido a oportunidade de ser socializado num contexto (entendido como campo social) de trabalho autônomo, terá maior dificuldade em compreender as “regras do jogo” e, por conseguinte, estará menos preparado para desenhar a sua estratégia no sentido de atingir os seus objetivos emancipatórios. Sobre este tema, Bourdieu, a propósito do seu estudo acerca do processo de modernização na sociedade argelina, diz-nos que ser projetado num mundo social diferente do da origem social dos atores, significa uma dificuldade acrescida para os agentes “deslocados”. Assim, um indivíduo que tenha desenvolvido toda a sua trajetória profissional como assalariado, e que nunca tenha tido referências no domínio do trabalho por conta própria na sua socialização, terá certamente que fazer um esforço adicional para apreender as regras deste novo campo social. Portanto, estes agentes estão numa posição de desvantagem em relação aos “autóctones”, e somente se incorporarem o habitus próprio ao campo, estarão em condição de “jogar o jogo”. Assim, a trajetória social de cada agente é importante na definição da sua posição dentro do campo (Sá, 2011).

Segundo Bourdieu (1986), a desigual distribuição de recursos estruturais (capitais) podem ser compreendidos como parte integrante do sistema de desigualdade numa determinada sociedade; é, simultaneamente, o resultado e um mecanismo chave da reprodução social de poder e de privilégios. A sua conceptualização de capital baseia-se na distinção de três formas: capital social, econômico, e cultural. Estas três formas de capital estão intrinsecamente interrelacionadas. A consideração da interação entre estes três tipos de capital no dia-a-dia, e a forma como esse processo interacional contribui para a reprodução de desigualdades sociais e de distribuição de poder na sociedade, é fundamental para a compreensão das escolhas de vida dos indivíduos e das oportunidades de vida que dispõem para efetivar as mesmas.

Segundo Bourdieu (1986: 46), o capital “[…] é uma força inscrita em estruturas objetivas e subjetivas, mas também é o princípio que subjaz às regularidades inerentes ao mundo social”. Segundo o autor, nenhuma das três formas de capital pode, por si só, explicar a reprodução das desigualdades: são necessárias as três formas de capital e, acima de tudo, a interação entre as três, para a compreensão da manutenção das desigualdades ao longo do tempo.

O capital econômico, na forma de dinheiro e bens materiais (rendimento, propriedade, ações financeiras, etc.), é um fator decisivo na vantagem ou desvantagem social. É também a “raiz de todos os outros tipos de capital” (1986: 54). O capital social está localizado ao nível inter-individual. Como tal, refere-se a recursos materiais e não materiais que podem ser mobilizados no âmbito de diferentes tipos de relações sociais. Segundo o autor, a quantidade de capital social que o indivíduo pode deter depende da extensão de redes relacionais que ele consegue efetivamente mobilizar e da quantidade de capital econômico, cultural e simbólico que cada membro dessa rede possui. Assim, Bourdieu (1986: 51) definiu capital social como “o agregado de recursos efetivos ou potenciais, ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento ou reconhecimento mútuo”. No âmago da sua análise está o pressuposto de que a estrutura social é composta por campos de luta pelo poder. Para Bourdieu, o conflito está na base do capital social porque, tal como as outras formas de capital, é distribuído de forma desigual (Albagli & Maciel, 2002). O capital social desempenha um papel importante no processo de preservação e reprodução das estruturas de classe na sociedade, relação mediada pelo capital econômico (Ottebjer, 2005).

Finalmente, o capital cultural pode ser definido como os recursos simbólicos e informacionais para os indivíduos atuarem. O capital cultural existe em três formas: incorporado (e.g., competências, conhecimento), objetivado (e.g., livros, ferramentas), e institucionalizado (e.g., graus acadêmicos, certificados profissionais) (Bourdieu, 1986). É sobretudo adquirido através da aprendizagem social, onde as condições de aprendizagem variam ao longo das diferentes classes sociais ou status do grupo (Abel, 2007; Abel & Frohlich, 2012). O nível educacional de um indivíduo pode ser analisado como um indicador que representa o seu capital cultural. Contudo, o capital cultural é mais do que a educação formal que o individuo detém. Inclui igualmente diferentes conjuntos de competências culturais. A aquisição e uso desta parte da aprendizagem social (socialização) dependem muito da precoce e imperceptível aprendizagem dentro da família desde os primeiros anos de vida. Na forma de conhecimento e competências, o capital cultural é uma pré-condição para a maioria da ação individual e, como tal, é um fator chave na capacidade dos indivíduos para a agência (Abel & Frohlich, 2012), incluindo para o exercício de uma atividade produtiva valorizada.

Como pudemos constatar, a complexidade de interação entre as diversas formas de capital apresentam uma possibilidade de análise de como esta pode ser fator limitador da libertação que um trajeto profissional emancipatório pode significar, ou revertida como fator de sucesso.

Considerações finais: liberdade como desenvolvimento
Na luta pelo poder e privilégios, as oportunidades de adquirir e usar diferentes tipos de capital são estruturadas pelo habitus dos indivíduos: um conceito intangível, apenas observável através das práticas individuais e que não é por si só um atributo individual. O habitus depende da disponibilidade de diferentes tipos de capital para o indivíduo e para a sua família no passado e no presente. Vinculado (através da socialização) a diferentes formas de capital que o suportam, o habitus liga a estrutura e a agência através de estratégias coletivas – uma forma partilhada de atuar de grupos de indivíduos que pertencem à mesma classe social (Abel & Frohlich, 2012).

Se este enquadramento nos permite compreender as vicissitudes, também, como vimos, permite abrir portas para a superação de desigualdades sociais que atuam como barreiras ao desenvolvimento de trajetos profissionais autônomos.

Mas o caminho é longo neste campo e a necessitar de outros contributos reflexivos e de intervenção social. A perspectiva das capacitações de Amartya Sen (2003), de que só apenas com condições de liberdade e justiça social é possível o progresso individual e das sociedades, apresenta-se como uma via de futuro que deverá ser explorada neste contexto problemático. Esta perspectiva assenta em duas reivindicações essenciais: a primeira, é de que a liberdade para atingir o bem-estar é de importância moral básica; e a segunda, é de que a liberdade para atingir o bem-estar deve ser compreendida à luz das capacidades das pessoas, ou seja, as suas verdadeiras oportunidades para ser e fazer o que elas valorizarem. Assim, esta perspectiva acerca da ação coletiva para a mudança permite-nos ligar a perspectiva da capacitação ao discurso sociológico atual do papel da agência, apresentando-se uma ligação potencialmente útil entre a teoria da interação dos capitais e as medidas sociais que visem a redução de desigualdades sociais na criação do próprio emprego por desempregados de longa duração.

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Referências

Abel, R., & Frohlick, K. Capitals and capabilities: Linking structure and agency to reduce health inequalities. Social Science & Medicine. 2012.74: 236-244.
Abel, T. Cultural capital in health promotion. In D. C. McQueen, & I. Kickbusch (Eds.), Health and modernity. The role of theory in health promotion (pp. 43-73). Berlim: Springer. 2007.
Albagli, S., & Maciel, M. L. Capital social e empreendedorismo local. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2002.
Almeida, J. G., & Albuquerque, C. P. De Desempregados a Empreendedores: percursos e experiências. Viseu: Psicosoma. 2013.
Bourdieu, P. The forms of capital. In J. Richardson (Ed.) Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education (pp. 46-58). New York: Greenwood. 1986.
Brandão, Z. Operando com conceitos: com e para além de Bourdieu. Educação e Pesquisa. 2010; jan-abr 36(1): 227-241.
Ottebjer, L. Bourdieu, Coleman and Putman on Social Capital: Applications in literature and implications for public health policy and practice. Tese de mestrado em Ciência em SaúdePublica apresentada à Universidade de Karolinska na Suécia. 2005.
Sá, M. Feirantes: Quem são e como administram seus negócios. Recife: Editora da UFPE. 2011.
Sen, A. O desenvolvimento como liberdade. Lisboa: Gradiva. 2003.
Weber, M. Economy and society: An outline of interpretive sociology. Berkeley: University of California Press. 1978.

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Recebido em:
09/01/2014
Aceito em: 17/01/2014

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