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“AMO(R)-TE!”: SOBRE O AMOR ROMÂNTICO, A ORALIDADE E O OBJETO IMPOSSÍVEL DA MELANCOLIA

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Ana Cleide Guedes Moreira
Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Psicologia, Pesquisadora do Hospital Universitário João de Barros Barreto, Diretora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental UFPA, Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações de Gênero - GEPEM. Pesquisadora-Visitante do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social PUC-Rio. Chercheur associé à l’ Université Paris 7 Denis-Diderot. Membro da Réseau Internacional de Psychopathologie Transculturelle.  acleide@uol.com.br

Ronildo Deividy Costa da Silva
Psicólogo e Mestre em Psicologia, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia – PPGP/UFPA. Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental – UFPA. Tem experiência em Psicologia Clínica e Psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas: Complexo de Édipo, Melancolia, Poder e Modernidade. Bolsista da CAPES. ronildosilva010@yahoo.com.br
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Resumo: Este trabalho é uma tentativa de reflexão acerca daquilo que a problemática do objeto na melancolia pode oferecer para análise das relações amorosas e sexuais contemporâneas. Partindo da concepção de Freud de experiência amorosa como mal-estar, o texto busca debater as possibilidades e as vicissitudes da constituição do objeto de desejo na psicanálise e, toma a oralidade e o modo de subjetivação melancólico como fio norteador da discussão. À guisa de conclusão, propõe-se que a regressão narcísica que leva o objeto perdido para o interior do Eu e, a ambivalência decorrente do conflito entre o Eu e o Supereu, demonstram o seu caráter de impossibilidade constitutiva já que este objeto só existe na perda, ou seja, é pura idealidade que tenta recuperar aquilo que nunca existiu. Nesse sentido na experiência do amor romântico é preciso reconhecer que o objeto é sempre um objeto impossível porque, ele só é o que é, pelo fato de jamais poder ser.
Palavras–chave: amor romântico; oralidade; objeto; melancolia.

AMO(R)-TE”: ABOUT THE ROMANTIC LOVE, ORALITY AND THE IMPOSSIBLE OBJECT IN MELANCHOLIA

Abstract: This paper attempts to reflect upon what the concept of the object in melancholia can offer for the analyses of romantic and sexual contemporaneous relationships. Starting from Freud’s conception of love experiences as a discontent, this article seeks to debate the possibilities and the vicissitudes of the object of desire constitution in psychoanalysis and takes orality and the melancholic modes of subjectification as guiding thread of the discussion. In conclusion, it is proposed that the narcissistic regression which leads the lost object in to the Self and the ambivalence from the conflict between the Self and the Superego, demonstrate its impossibility constitutive character since this object exists only in the loss, that is, is pure idealism that tries to recover what never existed. In this sense, in the experience of romantic love is necessary recognizing that the object is always impossible because it only is what it is for the fact that it can never be.
Keywords: romantic relationship; orality; object; melancholia.


Neste trabalho propõe-se que há naquilo que se convencionou chamar de pós-modernidade um duplo movimento que se relaciona com um excesso no que se refere ao amor: ou à sua completa desqualificação enquanto projeto que possibilite um engajamento existencial ou à suposta existência de um amor que assegure a inexistência de sofrimento.

Se, por um lado, vemos uma espécie de nova sociedade liberal em que a ideologia do consumo do prazer parece ter se tornado uma regra onde tudo aquilo que se  inscreve no âmbito do “sexual” é permitido e incentivado, enquanto o projeto de amar e ser amado, de extração romântica, tornou-se obsoleto e, às vezes, até obsceno. Por outro lado, assistimos a um novo slogan moderno que se insere nesse duplo movimento, que pressupõe a existência de uma espécie de amor securitário, ou seja, um amor que proporcione, sobretudo, a segurança de um relacionamento sem riscos e sem dor, em suma, um amor sem transtornos.

O que parece ser negado pela ideologia do consumo do prazer e reafirmado pelas reflexões de Freud acerca do tema é a noção de amor profundamente marcada por uma impossibilidade insuperável: a esfera dos relacionamentos amorosos são marcados, de maneira indelével, pela perda do objeto de amor, e, consequentemente, pelo sofrimento inerente a essa condição dolorosa. Entretanto, longe de defender uma espécie de niilismo amoroso cabe-nos apontar que essa impossibilidade reafirma, de maneira quase estoica, o valor sublime, audacioso e também absurdo, da intenção de reconciliar o provisório e o permanente em um ideal que, geralmente, atende por aquilo que conhecemos como “amar e ser amado”.

A experiência amorosa como mal-estar

Não se constitui um exagero afirmar que na contemporaneidade é lugar comum entre as pessoas a esperança de que em algum lugar haja alguém que, de alguma maneira, vai poder proporcionar-lhes toda a felicidade que sempre lhes pareceu negada desde sempre. Embora essa afirmação aponte para toda uma tradição filosófica e literária no que concerne ao fenômeno amoroso, sem dúvida, ela encerra também um aspecto interessante desse movimento que merece nossa consideração: a singular importância do objeto na experiência do amor.

Nesse sentido, o fenômeno amoroso configura-se como uma nebulosa, pois remete sempre a algo estrangeiro, a uma experiência que nos atravessa e que nos pertence sem, no entanto, pertencer-nos de fato, devido à presença do outro naquilo que nos é mais fundamental – nós mesmos. Mas afinal o que caracteriza o fenômeno amoroso? O que lhe confere esse caráter avassalador que, não raras vezes, encontra a saída dos seus descaminhos nos recônditos da melancolia ou mesmo da morte? Existiria então algo de impossível nas relações amorosas ou as desventuras do amor são provenientes de fatos isolados e meramente contingenciais?

Freud (1905), em seu texto Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, já expressava a ideia de que para os humanos o amor se configurava como a via privilegiada para se chegar à felicidade plena quando faz menção à “(...) fábula poética da divisão do ser humano em duas partes – homem e mulher – que aspiram a unir-se de novo no amor.” (FREUD, 1905, p. 128-129). Mesmo no texto capital sobre a pulsão de morte, Além do Princípio do Prazer (1920) ao afirmar que “a libido se liga à satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que têm uma parte nesse processo” (FREUD, 1920, p. 113 – 114) é à relação amorosa que atribui valor essencial. Ou seja, até aqui vemos o texto freudiano ressaltar o caráter de complementaridade absoluta aos envolvidos no processo de enamoramento.

Entretanto, é em Mal-estar na Civilização que Freud (1930) vai contundentemente afirmar o caráter de desassossego que o amor pode produzir. Dentre as fontes que causam o sofrimento humano, Freud atribui aos laços entre os homens o mais penoso de todos. Afirma ele que

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução (...); do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, dos nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. (FREUD, 1930, p. 84 – 85).

E por que o sofrimento proveniente dessa fonte é o mais penoso? Porque, como afirma Freud, o que está em questão é a “modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em amar e ser amado” (FREUD, 1930, p. 89). Muito embora o amor seja o modelo pelo qual se procure obter felicidade, Freud adverte que há uma incompatibilidade entre o amor e a civilização já que “por um lado, o amor se coloca em oposição aos interesses da civilização; por outro, esta [a civilização] ameaça o amor com restrições substanciais” (FREUD, 1930, p. 108).

Depreende-se daí, dessa incompatibilidade entre amor e civilização, uma questão fundamental no que concerne ao fenômeno amoroso: um quê de impossível inerente às relações amorosas. Nesse sentido, afirma Paz que “Freud, portanto, nos indica que o fato não é um bom encontro com o objeto; não é, portanto, a unidade eu-tu. Ele nos indica sobremaneira que há algo que, no amor, de dois, não pode fazer um” (PAZ, 2009, p. 83). Essa impossibilidade, portanto, é que aproxima o fenômeno amoroso da experimentação de um intenso mal-estar: aquela conquista amorosa nunca é definitiva, a veracidade do amor que supostamente me é dirigido é constantemente colocado em xeque. Nesse sentido haveria um esforço quase sobre humano para que o eu permaneça na situação de estar amando. Como afirma Flanzer (2004)

E, entre um amor e outro, o que ele encontra é a repetição do fracasso. É o mal-estar. Por isso amar é mal-estar. Embora o sujeito possa contar (e como conta!) com todo bem-estar promovido pelo amor. “Amar é mal-estar” na medida em que o sujeito nunca está suficientemente “bem” no amor, e pelo fato de que, por ser o amor um “episódio episódico”, mal ele está no amor, ele já não está mais. (FLANZER, 2004, p. 142)



Pode-se dizer, portanto, que o mal-estar inerente dos fenômenos amorosos é perceber que há um impossível inerente ao amor, embora seja na melancolia que esse mal-estar característico das relações amorosas, esse impossível do amor, seja deflagrado de forma mais violenta, precipitando àqueles que dela padecem nos abismos da morte. Nesse sentido, o ideal romântico de amor como possibilidade de encontro da completude narcísica frente ao objeto encontra na melancolia o seu desmentido. Ademais, o próprio discurso do melancólico é caracterizado pela existência de uma certa palavra insubmissa que resgata as tensões fundamentais entre o sujeito que ama e o objeto do seu amor, historicamente reafirmadas pela tradição romântica como complementaridade idealizada.

Sobre a questão do objeto em psicanálise

Certamente, escrever sobre o tema do objeto em psicanálise e, mais especificamente sobre a relação entre o objeto e a melancolia, não é tarefas das mais simples porque esta temática, por não ser uma especificidade da psicanálise embora nela se inscreva de maneira específica, aponta, de certa maneira, tanto para uma longa tradição filosófica e poética do ocidente, quanto para o debate psicanalítico em torno das vicissitudes do objeto do desejo na constituição do eu.

No que se refere à psicanálise, esse problema toma outros contornos: como Freud não formulou uma definição única e final em termos conceituais sobre o tema do objeto, este debate é marcado, sobretudo, pela presença de uma riqueza de usos desse termo. É nesse sentido que Andre Green (2000), afirma que, para Freud, o objeto é “(...) polissêmico, existe sempre mais que um objeto e, como um todo, eles cobrem vários campos e realizam funções que não podem ser abarcadas por um só conceito.”. (GREEN, 2000, p. 9).

Em virtude da inflação no uso desse termo, que de certa maneira decorre da própria noção de pulsão em Freud (Laplanche & Pontalis, 2001, p. 321), escolhemos usar a noção de objeto perdido: primeiramente porque este termo aponta necessariamente para as relações de amor e ódio do eu total com seus objetos e, segundo, porque abre para o trabalho com o tema da melancolia, onde Freud o encontrou primeiro, desde o Manuscrito N, datado de maio de 1897 (MOREIRA, 2002).

Dito isso, portanto, podemos agora apresentar a hipótese que norteia nossas reflexões acerca do objeto na melancolia: a regressão narcísica que leva o objeto “perdido” para dentro do próprio eu e a ambivalência decorrente do conflito entre o eu e o supereu demonstram o seu caráter de impossibilidade constitutiva já que este objeto só existe na perda, ou seja, é pura idealidade que tenta recuperar aquilo que nunca existiu.

A oralidade e a melancolia

Para examinarmos mais de perto a questão do objeto perdido, é necessário relacionar a melancolia com a oralidade na medida em que esta aponta para uma modalidade mais arcaica, mais primitiva de relação do eu com o objeto, caracterizada sobretudo, por uma espécie de equivalência entre a ingestão alimentar e a atividade sexual. Nesse sentido, afirma então Freud (1938) que a boca seria o primeiro órgão a surgir como zona erógena que necessita de satisfação e “esforça-se, todavia por obter prazer independentemente da nutrição e, por essa razão, pode e deve ser denominada de sexual. Durante esta fase oral, já ocorrem esporadicamente impulsos sádicos, juntamente com o aparecimento dos dentes.” (FREUD, 1938, p.179).

Nessa fase da organização pré-genital da libido, também chamada de canibalesca, a incorporação do objeto de amor teria de ser necessariamente feita através da devoração deste objeto para “assimilá-lo” ao ego. Segundo Magtaz (2008), “a introjeção do objeto de amor constitui uma incorporação do mesmo, acompanhando a regressão da libido ao nível oral canibalesco”. (MAGTAZ, 2008, p. 71). Caso haja a instalação de um conflito e a criança “(...) sucumba aos encantos do objeto, ela sofre o risco ou é obrigada a destruí-lo. A partir daí, a ambivalência reina na relação do eu com o objeto.” (ABRAHAM, 1966, p. 277).

É justamente neste aspecto que a oralidade parece manter um diálogo com a questão do objeto perdido na medida em que, na melancolia, há um paradoxo referente à incorporação do objeto de amor: ao mesmo tempo em que há um movimento de incorporação deste objeto por meio da devoração e a sua, consequente, destruição, há também um movimento no sentido oposto já que “(...) introjetando o objeto perdido, o melancólico na realidade está chamando-o à vida instalando-o em seu ego” (MAGTAZ, 2008, p. 71). Ou seja, a ambivalência em relação ao objeto está presente desde sempre.

Em seu texto O Canibal Melancólico, Fédida (1999) já sustentava essa ideia quando afirma que “em nome de uma identidade ilusória do mesmo, ele [o melancólico] tem a vocação imaginária de nunca perder o outro – ou seja, que somente uma destruição por devoração poderia impedir para sempre que nos abandone.” (FÉDIDA, 1999, p. 65). Em outra passagem desse texto, ele afirma que a ambivalência do canibal melancólico é decorrente da angústia pela possibilidade da perda do seu objeto: “essa ambivalência significa que o meio mais seguro de se preservar da perda do objeto é destruí-lo para mantê-lo vivo.” (IDEM, p. 67).

O próprio Freud (1921) ressaltou esse caráter ambivalente da identificação estar presente desde o início no texto Psicologia das massas e análise do Ego quando afirma que esta é decorrente da primeira fase de organização da libido, a fase oral: “o canibal, como sabemos, permaneceu nesta etapa; ele tem uma afeição devoradora pelos seus inimigos e só devora as pessoas de quem gosta.” (FREUD, 1921, p, 115).

Essa citação é importante porque permite observar que o problema da perda do objeto no melancólico parece ser tratado por Freud também de maneira paradoxal, ou melhor dizendo, como a identificação é ambivalente desde o início o objeto parece ter um estatuto paradoxal: da mesma maneira que algo foi perdido nessa perda, por outro lado, há também o “ganho” de algo relativo à essa mesma perda – e “ganho” significa aqui a recuperação de algo mais arcaico e primitivo e que é constituinte do próprio eu.
Para ilustrar esse aspecto obscuro da perda do objeto, podemos observar que em Luto e Melancolia (1917), Freud afirma categoricamente que a perda na melancolia é uma perda inconsciente e que, devido à identificação do eu com esse objeto perdido, a perda desse objeto traduz-se em perda do eu. (FREUD, 1917, p. 181). Essa afirmação freudiana parece ir em direção a uma relação de equivalência entre o eu identificado com o objeto amado e a perda desse objeto, ou seja, essa equivalência aponta para uma dimensão constitutiva do eu relacionada à perda.

O que queremos dizer com isso é que há no processo de constituição do eu melancólico uma dimensão relacionada à perda de algo que não se constituiu e que por isso assume um caráter de pura idealidade constitutiva. Esse é o sentido da argumentação apresentada anteriormente, com Freud (1917), Magtaz (2008) e Fédida (1999), de que a destruição do objeto por devoração não o destrói completamente e o convida novamente à vida dentro do próprio eu.

Assim como o enlutado, o melancólico também obedece aos desígnios da realidade, entretanto, a realidade deste é diferente daquele na medida em que ele não reconhece o seu objeto como perdido; ao contrário, o seu objeto de amor ainda vive e vive de uma maneira mais viva do que nunca, pois estando para sempre perdido, seu objeto vive nessa perda.

O objeto do melancólico como impossibilidade constitutiva

Até aqui tentamos circunscrever de maneira breve como a oralidade e seu modo de relação objetal marcado pela devoração/destruição está relacionada com a perda do objeto na melancolia. Agora tentaremos mostrar que este objeto, supostamente destruído assume uma dimensão de indestrutibilidade porque sua incorporação busca recuperar um estatuto mítico de completude narcísica.

O sofrimento do qual padece o melancólico é resultante de uma regressão da libido ao próprio eu que, em virtude da identificação com o objeto abandonado, passa a ser julgado por uma “instância especial” como o próprio objeto perdido: está instaurado o conflito entre o eue o supereuporque “a sombra do objeto caiu sobre o eu”.

No entanto, essa sombra que parece obscurecer o melancólico aponta para duas importantes questões: a identificação do Eu com o objeto perdido e a sua dimensão narcísica, pois além de dar conta do retorno ao Eu do investimento libidinal outrora dirigido ao objeto, aponta necessariamente para uma espécie de recusada perda desse mesmo objeto.

Como bem sabemos por Freud (1917), na melancolia a escolha de objeto é narcísica, ou seja, uma escolha que tem como modelo o próprio sujeito e na qual o objeto representa algum aspecto deste mesmo sujeito. Isso é importante para se pensar o problema do objeto do melancólico porque aponta para uma impossibilidade de renúncia ao ideal. Nesse sentido afirma Lambotte (2000) que

(...) incapaz de romper os laços que parecia ter tão fortemente instaurado, o melancólico não renunciou a um ideal tão selvagemente defendido e, em vez de deixá-lo esvanecer-se, devorou-o para conservá-lo para sempre. (...) O melancólico acha-se nesse caso, ele se obrigou a matar para mais bem conservar intacto o modelo ideal que ele havia colado no objeto de eleição. Uma vez morto e devorado, o ser amado revive na reminiscência, paramentado de todas as perfeições e protegido da renegação. (LAMBOTTE, 2000, p. 79).

É justamente essa impossibilidade do melancólico de renunciar ao ideal, conservando-o em si e atestando-lhe um estatuto de perfeição, que parece indicar uma tentativa de recuperação ao nível do seu próprio eu de um estado arcaico em que não havia a perda desse objeto nunca possuído, isto é, ao “importá-lo” para si, o melancólico torna-o indestrutível porque salva-o como pura idealidade que tem uma meta impossível – a restauração ôntica de um estado edênico para sempre perdido.

A partir disto, poderíamos dizer então, que o objeto do melancólico é sempre e necessariamente apenas um vislumbre de um suposto objeto mítico, ideal e perfeito. Pode-se então pensar que, nesse sentido estrito, para o melancólico, todo objeto serve mas nenhum satisfaz: serve para manter a ilusão de completude narcísica e, não satisfaz, porque a restituição dessa ilusão é efêmera.

Esse vislumbre de completude será o ideal que ele busca no impossível objeto de seu amor, que poderia trazer consigo uma dimensão restauradora do narcisismo ferido, de uma espécie de imagem de si que só pode ser constituída mediante a afirmação de sua sombra sobre o eu.

Fédida (1999, p. 67) ressalta que na melancolia há uma espécie de assassinato mítico do objeto que não consegue ser efetivado porque este mesmo objeto possui um encanto que toma o eu pelo movimento de mantê-lo sempre presente a partir de uma ausência. Que encanto seria esse? Seria a promessa de restituição de um estado mítico em que o melancólico retornaria ao paraíso do absoluto? Seria, então, por meio desse obscuro e mortal encanto que possui o objeto do melancólico que a formulação freudiana de que a sombra do objeto caiu sobre o eu poderia se efetivar?

Poderíamos dizer, portanto, que para o melancólico o objeto de desejo é aquele que está lá onde nunca poderá ser alcançado. Vive para além de qualquer possibilidade de concretude. Se expressa como uma nostalgia do absoluto nunca experimentado, incessante tentativa da recuperação de um estado edênico, de uma conciliação com um passado que não passa nunca, só realizado fantasisticamente nos abismos da morte. O melancólico busca no objeto uma projeção no futuro daquilo que nunca existiu no passado e, nesse sentido, é um objeto impossível porque ele só é o que é pelo fato de jamais poder ser.

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Referências
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Recebido em:
09/01/2014
Aceito em: 17/01/2014