Questões Contemporâneas




O PROJETO DE HOMEM CARTESIANO COMO FUNDAMENTO DA PRÁTICA PSICOLÓGICA CONTEMPORÂNEA

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Paulo Victor Rodrigues da Costa

Mestrando e bolsista da CAPES do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UERJ (PPGPS-UERJ), com orientação da Profª Drª Ana Maria Lopes Calvo de Feijoo. Especialista em Psicologia Fenomenológico-Existencial pelo Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN). Graduado em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, graduando em Filosofia (bacharelado) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ.
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Resumo: O presente artigo tem em vista tematizar as origens cartesianas das práticas psicológicas contemporâneas. De início será preciso delimitar, com tanta clareza quanto for possível, o próprio pensamento cartesiano; seus preceitos e suas principais características. Posteriormente será mostrado como a psicologia contemporânea baliza suas práticas no projeto de homem cartesiano; reproduzindo e operacionalizando conceitos presentes na aparelhagem teórica do filósofo francês, como a noção de domínio e controle irrestrito dos entes em geral. Feito isso, ficará evidente por meio de uma breve análise daquilo que o DSM representa, que o “sonho” da psicologia praticada nos dias de hoje é justamente ser porta voz de um mundo no qual o homem possa ser amplamente posicionado e classificado, tal qual qualquer mero objeto.
Palavras-chave: Psicologia Contemporânea, Descartes, DSM.

 

THE CARTESIAN’S PROJECT AS BACKGROUND OF CONTEMPORARY PSYCHOLOGY PRACTICE

Abstract: This article aims to thematize the cartesian origins of contemporary psychological practice. At first time will be needed to define, as clearly as possible, the cartesian thought, its precepts and its main features. Later will be showed how contemporary psychology makes its practices in a cartesian’s man project; reproducing and operationalizing concepts in theoretical apparatus of the French philosopher, like the sense of ownership and unfettered control of entities overall. That done, it will be evident by a brief analysis of what the DSM is that the "dream" of psychology as practiced today is precisely to be the spokesperson for a world in which man can be widely indexed and ranked, like any mere object.
Keywords: Contemporary Psychology, Descartes, DSM.

1 RENÉ DESCARTES

René Descartes nasceu em 31 de março de 1596 em La Haye, na França. Foi filósofo, físico e matemático. Notabilizou-se por seu trabalho na filosofia e na ciência, mas também obteve reconhecimento como matemático, principalmente por sugerir a fusão da álgebra com a geometria, fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva o seu nome. Em suma, foi uma das figuras mais importantes de seu tempo.   
                                                          
Descartes, por vezes chamado de fundador da filosofia moderna e pai da matemática moderna, é considerado um dos pensadores mais importantes e influentes da história do pensamento ocidental. Inspirou contemporâneos e várias gerações de filósofos posteriores. Boa parte da filosofia escrita a partir de então foi uma reação às suas obras ou a autores influenciados por ele.

Para Descartes a filosofia teria o fim prático de propiciar o bem-estar de todos os homens: bem-estar físico, em relação ao corpo; bem-estar material, em relação aos ganhos originados da aplicação correta da ciência, estabelecendo a noção de que tais comodidades tornariam a vida menos difícil e segura. O conhecimento visaria o bem coletivo, de modo que se pudesse em algum momento tornar-se dominador de qualquer tipo de fenômeno. Foram tais noções que nortearam o pensamento cartesiano e as práticas de seu tempo: a ideia de que o pensamento se encontrava a serviço da ciência e esta forneceria conhecimento e avanços capazes de tornar a vida totalmente dominável e segura.

Sua obra mais conhecida é O Discurso do Método, (2006) na qual procura estabelecer e desenvolver as bases de um pensamento sólido e universal na intenção de fundar uma nova maneira de se pensar e interpretar os fenômenos do cotidiano. Seria a partir de suas bases que seria possível manter uma relação estável e segura com todas as informações e pensamentos que fossem perscrutados pelo homem. É em vista, principalmente, da obra citada que será apresentado o pensamento do filósofo francês.

            1.1 A CONJUNTURA HISTÓRICA DO SÉCULO XVII
           
            Descartes deu novo impulso à filosofia que se encontrava estagnada por volta do final do século XVI. A Filosofia (que surgira no século VI a.C. na Grécia antiga) após Aristóteles ingressou em um período negro de aproximadamente vinte séculos no qual poucos pensamentos originais se fizeram presentes. Incontáveis filósofos surgiram durante esse período, com destaque para Santo Agostinho (aperfeiçoou o platonismo a ponto de ser aceito pela Igreja) e São Tomás de Aquino (tornou parcialmente aceitável, também para a Igreja, o pensamento aristotélico), no entanto nenhum deles promoveu uma filosofia propriamente nova. Seus trabalhos foram essencialmente de comentários e elaborações das obras de Platão e Aristóteles. Dessa forma tais pensadores gregos tornaram-se, indiretamente, os fundamentos da escolástica, e com o passar do tempo seus pensamentos foram soterrados por comentários cristãos, até o ponto em que a filosofia, como era entendida originalmente, se esgotou.

            Após a redescoberta do homem e da natureza no Renascimento e na Revolução Científica (com destaque para as contribuições de Galileu à astronomia e Newton à física) aconteceu uma consequente mudança de paradigma em relação aos caducos conceitos escolásticos, houve a necessidade de reunião dos novos pensamentos em um único sistema filosófico.

            Com a morada do antigo pensamento desmoronando, um novo método deveria se mostrar como início de um novo saber em condições de impedir uma série desordenada de observações sem coesão interna. Estava difundida a confiança no homem e no seu poder, também estava bastante difundida a incerteza sobre o caminho a se tomar para garantir um rumo bem definido com relação às escandalosas e novas descobertas. A filosofia medieval não conseguia mais se sustentar, já se tomava como medida aquele conjunto de novas teorizações e descobertas, tornadas possíveis muito em função de instrumentos técnicos que, potencializando ou corrigindo os sentidos, eram capazes de apresentarem “universos” até então inexplorados. Era urgente uma filosofia que justificasse a confiança no homem. Com relação a isso Descartes estava bastante atento, e suas teorizações se movimentavam na busca incessante por tais bases e métodos seguros para o correto desenvolvimento de um novo tipo de mundo que se anunciava.

            De maneira bastante condensada este era o panorama filosófico durante o século XVII: um mundo em nítida transformação e que clamava por uma forma de organizar os conhecimentos e as descobertas adquiridas durante seu desenvolvimento.

1.2 AS REGRAS DO MÉTODO

De início o que devia ser feito era a rearrumação do solo a partir do qual o novo conhecimento deveria erigir-se. Descartes entendia que uma das prioridades para tal empresa seria desconsiderar todo o legado fornecido pelos antepassados e predecessores de sua geração; uma vez que a única coisa da qual seriam realmente capazes de fornecer era a falta de entendimento quanto ao que deveria ser buscado, estudado e entendido. Para Descartes todo o conhecimento antigo só fazia contaminar o puro entendimento que a filosofia tinha a obrigação de buscar.

Assim sendo, o projeto cartesiano de procura por bases sólidas para a sustentação e suporte de um novo mundo começa por negar toda a tradição que a precede, tida na maior parte das vezes como enganadora:


A postura decisiva é a de apostar no novo e esquecer-se do passado. Para isso, Descartes procura oferecer regras simples e fáceis que, se corretamente observadas, levam ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que é possível ser conhecido. No Discurso do Método asregras são quatro:

  1. A evidência(1) racional, que se alcança mediante um ato intuitivo que se auto-valida.
  2. A análise, uma vez que para a intuição é necessária a simplicidade, que se alcança mediante a decomposição do complexo em partes elementares bem simples.
  3. A síntese, que deve partir de elementos absolutos ou não dependentes de outros, e proceder em direção aos elementos relativos ou dependentes, dando lugar a uma cadeia de nexos.
  4. O controle, efetuado mediante a enumeração completa dos elementos analisados e a revisão das operações sintéticas. Em suma, para proceder com retidão em qualquer pesquisa, é preciso repetir o movimento de simplificação e concatenação, típico do procedimento matemático.

Inúmeras regras poderiam ser elaboradas para a condução de seu método, porém, como o que se busca é a simplicidade na maneira dessa condução se estabelecer, as regras se reduzem a quatro:

Assim, é necessário recompor os elementos em que foi decomposta uma realidade complexa, dando lugar a um encadeamento que ilumina os nexos do conjunto.
A quarta, e última regra, é a de impedir que qualquer precipitação resulte em erro, e para isso é necessário que se faça uma revisão dos passos dados em direção à evidência a partir de enumerações completas e revisões gerais a ponto de atingir a segurança de que não se esqueceu de nada. Trata-se de uma espécie de “prova real” das etapas da “equação filosófica”.

1.3 DÚVIDA HIPERBÓLICA

Estabelecidas as regras metódicas, Descartes passa a aplicá-las aos princípios sobre os quais o saber de seu tempo se fundamentava e, como condição da aplicação, exige não aceitar como verdadeira nenhuma asserção que esteja poluída pela dúvida. Neste sentido não há setor do saber que se sustente, porque nada resiste, em última instância, à dúvida. Mas para Descartes algo deve se pronunciar como realmente indubitável.

Para responder a isso René aplica suas regras ao saber vigente para ver se nele está contida alguma verdade de tal forma clara e distinta que se subtraia a qualquer razão de dúvida. Se o resultado for negativo, no sentido de que com essas regras não é possível chegar a nenhuma certeza e a nenhuma verdade que tenham as características da clareza e da distinção, então será preciso rejeitar semelhante saber e admitir sua esterilidade. Ao contrário, se, a aplicação de tal regra leva a uma verdade indubitável, então deve-se assumi-la como o início da longa cadeia de bases sólidas e raciocínios seguros.

Em princípio, boa parte do saber da época tinha como base a experiência sensível. Entretanto, como é possível considerar certo e indubitável um saber que tem sua origem nos sentidos, se é verdade que estes por vezes se revelam enganadores? Além disso, se boa parte do saber se baseava nos sentidos, parte não se baseava, tinha como base a razão, que por seu turno, muitas vezes também não parecia imune a incertezas e obscuridades. Nesse momento Descartes apela para a dúvida hiperbólica, a dúvida que se estende até setores que se presumiam fora de qualquer suspeita: “Quem pode garantir que não existe um gênio maligno, astuto e enganador que brinca com os homens e os faz considerar evidentes coisas que não são?” (DESCARTES, 2006, p.68). Portanto não há setor do saber que se mantenha de pé, nem mesmo a experiência dos sentidos e nem mesmo o encadeamento racional dos fatos; tudo desmorona; nada resiste à força corrosiva da dúvida e ao procedimento de elevá-la à máxima potência.

1.4 A CERTEZA FUNDAMENTAL

Após o estabelecimento das regras metódicas, Descartes passa a aplicá-las aos princípios sobre os quais o saber de seus predecessores e contemporâneos se fundamentavam; e como condição de aplicação exige não aceitar nada como verdadeiro ou que possa estar contaminado pela dúvida. Como foi visto, nenhum setor se sustenta mediante tal tipo de questionamento.

No entanto, é a partir da dúvida de tudo que é mais evidente que se pode alcançar as verdades mais inquestionáveis acerca do homem e das bases universais para qualquer tipo de saber. Para Descartes esse nível de certeza absoluta é a proposição “penso, logo existo” (DESCARTES, 2006, p.70) uma proposição que é uma intuição pura (ponto de chegada que toda investigação deve atingir).

No trecho citado fica evidente que enfatiza-se a razão do homem em detrimento às percepções sensíveis, que vez por outra são enganadoras e devem ser deixadas de lado para que aquilo que é mais próprio ao homem se anuncie claramente, ou seja, a razão; o “eu” pensante. Esta certeza não pode ser minada de nenhum modo por nenhum gênio maligno, uma vez que, ainda que tal gênio exista, o “eu pensante” deve existir para ser enganado. Portanto, a proposição“penso, logo existo” se tornaria verdadeira, porque até sua dúvida mais extremada a confirma.

A prova do novo saber filosófico e científico, portanto, é o sujeito humano; o “eu”; a consciência racional. É a partir do homem que tudo pode se tornar conhecido e determinado, desde que seja atentamente obediente a seu método de acesso.
Descartes, portanto, aplicando as regras do método, defronta-se com a primeira certeza fundamental: a do “eu penso”. Esta, porém, não é apenas uma das verdades que se alcança através das regras explicitadas anteriormente, mas sim a verdade mais essencial que, uma vez alcançada, fundamenta tais regras. Qualquer outra verdade só será acolhida na medida em que se adequar ou aproximar de tal evidência.Aquilo no que todo o método se fundamenta é a razão humana ou o “caminho reto da razão” (Descartes, 2006, p. 61), que pertence a todos os homens e que, como é explicitado no Discurso do Método, “é a coisa mais bem distribuída do mundo” (Descartes, 2006, p.37), resultando na ideia de que a unidade última dos homens se dá pela razão, se bem guiada e desenvolvida.

Em suma, a razão, que surge a partir da dúvida universal, a ponto de nenhum gênio maligno poder negá-la e nenhum engano dos sentidos obscurecê-la, faz com que o saber deva basear-se nela e repetir sua clareza e distinção, que são os únicos postulados irrenunciáveis do novo saber. Além disso, se a tentativa de estabelecer novos saberes com base na razão cair em erro, isso se deve ao fato de não se ter usado a razão e seu método próprio de maneira correta, pois estas são as duas únicas certezas que a empreitada da filosofia e da ciência encontram.

            1.5 A CERTEZA EM DEUS

            Como foi visto, a certeza fundamental alcançada foi a de que o homem é um ser pensante. A reflexão de Descartes concentra-se agora no penso e no seu conteúdo, e com isso algumas questões fundamentais surgem: será que as regras do método abrem-se verdadeiramente para o mundo e são adequadas para fazer conhecer o mundo? O mundo evidentemente está aberto a essas regras? As maneiras de acessar o mundo, com clareza e evidência, atingem com certeza plena aquilo que não é identificável com uso apenas da consciência individual?
            Como ser pensante, o “eu” revela-se o lugar de multiplicidade de ideias, que Descartes considera atentamente. Se o “eu” é a primeira verdade auto-evidente, que outras ideias se apresentam com o mesmo caráter? Além disso, como todo o fundamento do saber está na consciência, como é possível sair dela e reafirmar a validade do mundo?
            Antes de tais perguntas serem respondidas deve-se ter em vista que Descartes pensa na existência de três tipos de ideias presentes no exercício da consciência do homem; as ideias inatas (as que são encontradas dentro de si mesmo, nascidas juntamente com a consciência), as ideias adventícias (as que são de fora e que remetem a coisas completamente diferentes de si), e ideias factícias (aquelas que são construídas pela própria consciência).
            Aqui um grande problema se apresenta: Descartes pensa nas ideias factícias como sendo de caráter ilusório, uma vez que são construídas arbitrariamente por si mesmo e não possuem nexo algum com a realidade, seja ela interna ou externa. Diz-se com isso, ao mesmo tempo, que as ideias anteriores são definitivamente objetivas e válidas, na mesma medida em que as factícias não são. A pergunta que se faz é quem poderia ser capaz de garantir tal objetividade? A resposta, para Descartes, é Deus.
            É com confiança em Deus que Descartes garante a validade do pensamento e do mundo, encontrando a derrota radical da ideia do gênio maligno ou de uma força corrosiva que pode enganar ou burlar o homem. E isso porque, sob a proteção de Deus, as faculdades internas do homem não podem enganar, já que nesse caso, o próprio Deus, que é seu criador, seria responsável por tal engano. E Deus, sendo sumamente perfeito, não pode ser mentiroso.
            Depara-se aqui com clareza que até aquele antigo Deus medieval, capaz de bloquear a expansão do novo pensamento emergente, agora garante e estimula tal acontecimento. Dessa forma, a dúvida é ultrapassada e o critério da evidência é finalmente alcançado: Deus impede que o homem seja portador de um princípio sem fundamentos dentro de si, ou que suas faculdades não estejam em condições de cumprirem suas funções. Deus, que outrora se mostrava como o fim de toda e qualquer investida filosófica, agora se reduz a ideia de um “fiador” do projeto moderno de domínio amplo e irrestrito do mundo.

            1.6 A DICOTOMIA HOMEM X MUNDO

            Além dos pontos tratados, outro ponto também se faz bastante importante para a discussão que se desenvolve no presente trabalho: a dicotomia entre homem e mundo. Para o entendimento do filósofo francês, ao contrário de todos os outros seres, no homem encontram-se juntas duas substâncias claramente distintas entre si: a res cogitans e a res extensa. O homem seria uma espécie de ponto de encontro entre dois mundos, nele há o encontro entre alma e corpo. A alma é uma realidade inextensa, ao passo que o corpo é extenso. Trata-se de duas realidades que nada têm em comum: uma delas é a razão, essencialmente um poder de entender e dominar tudo o que se apresenta no caminho do homem; e o outro é o mundo sensível, que serve de base para que o homem aplique seu conhecimento. Teoricamente o homem paulatinamente irrompe em direção a conhecimentos cada vez mais precisos e exatos, a ponto de finalmente atingir as verdades últimas daquilo que é investigado e que a princípio não se apresentava à razão, mas fora possibilitada pelo método e o correto uso da capacidade mais própria do homem, segundo ele, a de raciocinar.

            No entanto, a experiência atesta uma interferência constante entre essas duas vertentes, como comprova o fato de que os atos voluntários movem o corpo, e as sensações, provenientes do mundo externo, se refletem sobre a alma, modificando-a. Mas de que modo, e por qual razão, a alma move o corpo e age sobre ele?

            Descartes imagina que Deus tenha formado uma estátua de terra semelhante ao corpo humano, com os mesmos órgãos e as mesmas funções. É uma espécie de modelo ou de hipótese com que tenta a explicação de nossa realidade biológica com especial atenção para a circulação do sangue e para a respiração. Na sua descrição do funcionamento do corpo é dada atenção especial para uma pequena glândula, de localização central no arranjo cerebral e de suma importância para o esclarecimento da relação entre corpo e alma. Tal glândula recebe o nome de glândula pineal e é entendida como sede da alma no corpo. Seu estudo passa a receber grande importância por promover novas contribuições para o entendimento do corpo em interconexão com a alma que o governa.

O tema do dualismo cartesiano e do possível contato entre a res cogitans e a res extensa foi aprofundado ainda mais no tratado As paixões da alma. Nele Descartes oferece um quadro bastante complexo e sutil de análise das ações, movidas pela vontade, e das alterações, que são percepções, sentimentos ou emoções provocadas pelo corpo e captadas pela alma.

                       
1.7 A POSSIBILIDADE DO ERRO

Como foi visto, o homem agora é detentor da capacidade de atingir a verdade escondida “por detrás” do mundo a partir de suas faculdades internas e de seu método específico de proceder com relação à investigação do ente. Apesar disso, também é extremamente plausível que o homem com muita frequência erra e se engana com seus pensamentos e com o mundo. Como essa possibilidade do erro se encaixa no sistema cartesiano? Caso seja certo que Deus é verdadeiro e não enganoso, como é possível errar?

Como é de se esperar o erro não é imputável a Deus, mas sim ao homem, porque nem sempre ele se demonstra fiel à clareza e distinção de suas ideias e fundamentos. As faculdades do homem funcionam, mas cabe ao homem fazer bom uso delas, não confundindo como claras e distintas as ideias que são aproximativas e confusas. O erro se dá no juízo. Para Descartes, pensar não é julgar, porque no juízo intervêm tanto o intelecto como a vontade. O intelecto, que elabora as ideias claras e distintas, não erra. O erro brota da pressão indevida da vontade sobre o intelecto.

Portanto o homem, possuidor do livre-arbítrio, se encontra diante da possibilidade de buscar por sua conta a verdade e o conhecimento garantidos por Deus, e se não o faz é por razão ou da falta de um método seguro, ou do domínio da vontade frente à razão, que segundo o trecho “a luz natural” garante que deve ser seguida. É no domínio da vontade pela razão que o homem evita o erro e afirma, outra vez mais, a sua essência de “coisa que pensa”. Em suma, o homem possui todas as capacidades internas necessárias para descobrir o caminho certo, mas se não o encontra cabe a si mesmo a culpa pelo fracasso, pois demonstra com isso que não sabe utilizar suas faculdades internas para encontrá-la.

1.8 ÚLTIMAS DELIMITAÇÕES

Não há dúvidas de que um novo tipo de filosofia passa a ser feito depois de Descartes. As amarras ao desenvolvimento de um novo pensar e de um outro tipo de investigação, de bases científicas, vão sendo gradualmente desfeitas e as mudanças de visão de mundo juntamente com os avanços das tecnológicos, promovidos pelo renascimento e revolução científica, permeiam cada vez mais a vida, as práticas e os entendimentos cotidianos.

Aquilo que deve ser destacado é que, como regras do método de pesquisa, a clareza e a distinção já são bem fundamentadas. Mas fundamentadas em que? Tais regras se fundamentam na certeza adquirida de que o “eu” ou a consciência de si mesmo como “coisa pensante” se apresentam como certezas últimas.

A existência enquanto res cogitans passa a ser aceita como indubitável. Dessa forma toda outra verdade só poderá ser acatada se exibir os traços dela. Para alcançá-la, é preciso seguir o itinerário da análise, da síntese e da verificação, sabendo-se que uma afirmação com tais características não estará mais sujeita à dúvida. Desse modo, o pensamento humano passa a ser entendido como a ciência do conhecimento verdadeiro que se estabelece a partir da garantia de um acesso seguro e indiscutível ao que se pretende pensar.

Essa é a reviravolta que Descartes imprime à filosofia, que passa a se orientar no sentido de encontrar ou fazer emergir, no que tange a qualquer proposição, os dados da clareza e da distinção, que, alcançados, tornam desnecessários outros suportes ou outras garantias. Assim como a certeza da existência enquanto res cogitans necessita da clareza e da distinção, da mesma forma qualquer outra verdade não terá necessidade de outras garantias fora dela.

           

O pilar do novo saber filosófico e científico é, portanto, o sujeito humano; a consciência racional, e em todos os ramos do conhecimento, a ideia sólida de um “eu” capaz de dominar, pelo uso correto da razão, qualquer tipo de fenômeno:
           
              

           

2 A PSICOLOGIA COMO É ENTENDIDA HOJE
           
Como foi visto, o pensamento cartesiano se alastra e se faz presente em diversas frentes de atuação humana, muito em função de sua novidade e dos grandes desenvolvimentos que possibilitou durante seu curso. Pode-se afirmar, com plena certeza, que a Psicologia Moderna, desde o seu começo, também trabalha em termos predominantemente cartesianos, seja no que diz respeito à aceitação de uma internalidade capaz de posicionar e fundamentar o mundo a partir dela (reducionismo psicologizante), ou da busca por uma verdade que não se encontra imediatamente acessível, e que necessita de um caminho correto de investigação para o acesso de sua verdadeira forma.

A presente etapa de investigação da psicologia atual nem de longe é capaz de esgotar a complexidade e a riqueza temática que envolve os seus estudos, apenas tem em vista a indicação das bases gerais que apoiam o desenvolvimento de suas práticas. Como aponta Garcia Roza (1986) “a psicologia designa um espaço de dispersão do saber, cuja coerência interna é um ideal provavelmente inatingível”, a par disso é válido dizer que há pouquíssima coesão interna entre aquilo que é estudado em suas diversas linhas de estudo e áreas de atuação e o caminho que as une, seja de ordem terminológica ou temática. Como completa o mesmo Garcia Roza “[...] sua história não é contínua e evolutiva, mas descontínua.”, com isso fica claramente dificultada a tarefa de falar “da” psicologia de maneira unificada, mas torna-se possível falar de psicologias específicas e suas práticas mais significantes. Para tanto será trabalhada uma das principais cartilhas de referência na classificação das chamadas doenças mentais: o DSM-IV (tendo em vista sempre suas relações íntimas com a visão de homem estabelecida pelo pensamento cartesiano).

1.2.1 DSM
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) é um manual para profissionais da área da saúde mental que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los. De acordo com a APA, (American Psychiatric Association) é usado ao redor do mundo por psicólogos, clínicos e pesquisadores, bem como por companhias de seguro e indústrias farmacêuticas. Em termos de pesquisa em saúde mental, o DSM continua sendo a maior referência da atualidade. Existem quatro revisões para o DSM desde sua primeira publicação em 1952.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais foi publicado em 1952 pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), ele foi desenvolvido a partir de um antigo sistema de classificação adotado em 1918 para reunir a necessidade do Departamento de Censo Americano de uniformizar estatísticas vindas de hospitais psiquiátricos; vindas de sistemas de categorização usados pelo exército norte-americano; e vindas dos levantamentos dos pontos de vista dos membros da própria APA. De acordo com informações do site oficial da APA (www.apa.com), o primeiro manual contém 130 páginas, que mostram 106 categorias de desordens mentais. O DSM-II foi publicado em 1968, listando 182 desordens em 134 páginas, esses manuais refletiam a predominância da psicodinâmica psiquiátrica, no entanto o conhecimento biológico e sociológico também foram incorporados. Em 1974, a decisão de se criar uma nova revisão do DSM se fez. Uma das metas era aumentar o leque de diagnósticos psiquiátricos, já que as práticas de profissionais em saúde mental, especialmente em diferentes países, não era uniforme. O sistema de critério e classificação do DSM-III foi baseado num processo de consultas e reuniões de comitês. Havia a tentativa de se construir uma base de categorização em descrição ao invés de pressupostos etiológicos fundamentados na distinção entre o normal e o anormal.

No primeiro projeto do DSM-III muitas novas categorias de transtornos foram introduzidas. Vários ensaios patrocinados pelo governo americano foram conduzidos entre 1977 e 1979 para testar a fidelidade dos novos diagnósticos. Em 1980, o DSM-III foi publicado, com 494 páginas e listando 265 categorias diagnósticas. O DSM-III rapidamente se espalhou a nível internacional, sendo usado por muitos profissionais e tendo sido considerado uma revolução ou transformação da psiquiatria e da atividade psicológica. Em 1987 o DSM-III foi republicado contendo 292 diagnósticos com 567 páginas.

Um comitê diretor, incluindo psicólogos, foi apresentado em 1994, data de publicação do DSM-IV, dessa vez listando 297 transtornos em 886 páginas! Uma revisão do DSM-IV, conhecida como DSM-IV-TR, foi publicada em 2000. As categorias diagnósticas e a vasta maioria dos critérios específicos para diagnósticos permaneceram inalteradas. Cada seção dá informações extras em cada diagnóstico, que foi atualizado, assim como alguns códigos diagnósticos devido à manutenção de sua consistência com o CID-10, outra referência nos estudos atuais acerca da classificação de doenças mentais.

2.1 DIAGNÓSTICOS
Tendo em vista um manual como o DSM-IV, alguns apriorismos, que necessariamente se fazem presentes, precisam ser esclarecidos. Primeiramente para ser possível falar em “doença mental” há de estar em voga a pressuposição de uma internalidade previamente dada em detrimento de um mundo também simplesmente dado, de modo que se possa falar em um funcionamento anômalo da internalidade.  Além disso, é preciso comungar da ideia de que há algum parâmetro para designar o que se configura como saudável, ou não, nessa internalidade. Portanto, para entender propriamente o que se procura e se busca nas classificações das doenças mentais é preciso assumir de início muitas das posturas preconizadas pelo pensamento moderno, como a dicotomização sujeito-objeto e postura científica e explicativa dos fenômenos em geral (tal como foi visto em Descartes).
                                            
Será trabalhado um diagnóstico muito atual nas classificações das doenças mentais e que está constantemente presente no nosso cotidiano: a “patologia” da depressão. A mesma sempre será relacionada com a visão moderna de homem no sentido da dicotomização entre homem e mundo, internalidade e externalidade; e também de acordo com a proposta fundamental de asseguramento e domínio de todos os fenômenos (inclusive do próprio homem), como já fora explicitado no tema anterior.

2.2 DEPRESSÃO
A visão de homem estabelecida pelas ciências médicas e psicológicas é, predominantemente, a de um homem bio-psico-social. Tal visão atribui ao homem uma tripla determinação dinâmica em meio a qual ele se estabelece e que, como foi dito, não poderia ser ao menos imaginada sem o paulatino desenvolvimento e refinamento do pensamento cartesiano.

Sua porção biológica diz respeito ao seu funcionamento fisiológico e material genético, que por sua vez possibilita ou não a expressão de uma determinada característica genotípica. Segundo a teoria da genética, todas as caracterísitcas do organismo, incluindo as “mentais”, possuem origem nos filamentos de proteína hereditários. No entanto para se manifestarem precisam de um ambiente que sirva como estímulo disparador de determinado comando genético, aqui vale a clássica fórmula genótipo + ambiente = fenótipo.

A esfera do social se refere ao espaço no qual o indivíduo se insere, captando suas influências. O espaço aqui é responsável pela manifestação e seleção de determinadas informações imanentes a cada indivíduo, fazendo-o agir e manifestar-se de acordo com suas possibilidades genéticas.                                                                                  
Depressão, em uma postura bio-psico-social, é entendida como um acometimento que atinge a interioridade do homem, podendo ter origens “internas” (biológicas) ou “externas” (sociais) para o seu acontecimento, no entanto considera-se que seus sintomas sempre se dão no âmbito psíquico. Estando em voga esse homem de essência tripla, cabe ao psicólogo a tarefa de identificar corretamente a origem dos sintomas; tratá-lo e curá-lo com a maior rapidez possível, para que esse mal nunca mais retorne.

Como já foi visto, diz-se muito nos cursos de ciências humanas, e mais notadamente nos de psicologia, que o homem é um ser "bio-psico-social". Seu lado biológico seria explicado por uma perspectiva naturalista, evolucionista, experimental e quantitativa, já o lado social seria explicado por questões culturais, históricas, relativas ao lugar específico no qual o indivíduo se encontra. Mas quanto à especificidade psicológica, como se explicaria?                                                                    
O problema remete, para não citar outros, a Auguste Comte, filósofo do século XIX. A psicologia como projeto de ciência tem numa de suas principais inspirações o positivismo. Mas Comte, em seu Curso de Ciência Positiva (1963), negara categoricamente a possibilidade de uma psicologia científica. Para ele, enquanto indivíduo, o ser humano poderia ser explicado pela biologia e por observações externas, enquanto ser cultural, o homem poderia ser explicado pela sociologia, portanto nada que poderia garantir a autonomia de uma ciência dita "psicológic".Portanto, um objeto que fosse digno da psicologia deveria ser criado. E, para isso, numa série de manobras que vão do século XIX ao XX, criou-se a noção de consciência como categoria especificamente psicológica. O que está em jogo é, de um lado, a razão tal como é debatida na filosofia de Descartes, como critério a partir do qual todo conhecimento é possível e de outro, a necessidade de um objeto mensurável, que legitime uma "ciência" do homem. A tradição mostra muito bem o caminho percorrido na tentativa de tornar a psicologia uma ciência, e a consciência ou razão, mensuráveis: a psicofísica de Fechner, e o introspeccionismo de Wundt. A lei de Weber-Fechner demonstra como se poderia relacionar um quantum de estímulo com um grau de sensação e as aplicações introspeccionistas de Wundt visavam analisar a consciência em seus elementos constituintes.
Um panorama muito curioso advém disso: aquilo mesmo que confere a especificidade de uma “ciência psicológica” é um campo de questões cuja natureza provém de uma discussão essencialmente filosófica (a natureza da consciência, a origem do conhecimento, seu caráter determinado ou a priori, e assim por diante). Em outras palavras, a psicologia moderna surge como disciplina debitária do saber filosófico e da ideia de razão e sua possível quantificação e domínio; sendo esse elemento provido de natureza e de projetos que se entrelaçariam, de maneira não muito clara, com a esfera social e biológica.
                                                                                           
Quando um psicólogo diz que o homem é um ser bio-psico-social, está enunciando a justaposição de três universos de questões díspares, reunidos para dar conta do homem como objeto de conhecimento de si mesmo. No entanto, precisamente por esse mesmo motivo, a expressão "bio-psico-social" deixa uma questão em aberto: como relacionar essas três ordens de modo que a passagem de uma à outra seja algo consistente e não uma mera abstração?

Mesmo que as respostas às questões que inevitavelmente são levantadas nunca tenham surgido, resta frisar que, de maneira geral, é dessa forma que a psicologia hoje encara fenômenos como o da depressão: como um acometimento que reúne elementos sociais, biológicos e psíquicos, de uma maneira restrita a cada uma de suas partes, mas sempre em conexão umas com as outras, cabendo ao especialista na mente humana revelar os principais pontos problemáticos e lançar mão das “chaves” capazes de solucionar os problemas presentes na interioridade humana.
           
Cabe ressaltar que esse tipo de visão de homem só pode ser concebida a partir do momento em que se olha para o homem numa visada predominantemente científica e reducionista, permeada por preceitos já discutidos no início do presente trabalho, inaugurados por René Descartes e pelas exigências de seu tempo. É em vista dessa perspectiva que se insere o manual DSM: um guia para classificar todos os acometimentos psíquicos e psiquiátricos, reuni-los e dar conta de todo e qualquer tipo de problema que o homem possa enfrentar. Seu procedimento tende para uma simplicidade cada vez maior no intuito de não se tornar de difícil compreensão tanto para quem é profissional tanto para quem é paciente, em um procedimento que é notadamente intimo do método cartesiano: o de reduzir o complexo a partes cada vez mais simples e claras para poder melhor explicá-lo.



Nota-se, portanto, que o caminho iniciado por Descartes atinge níveis notórios. A essência de seus pressupostos e bases são seguidos até hoje em praticamete todos os níveis de atuação humana. Toda e qualquer ação tem como arcabouço teórico, velado ou não, os preceitos da modernidade, dentre os quais pode-se citar a dicotomia homem-mundo, a pretensão ao total domínio e a busca incessante por certezas últimas e irredutíveis. As metas aqui citadas podem ser reconhecidas tanto no pensamento cartesiano quanto na psicologia atual e também naquilo que se busca com a criação de algo como o DSM.                                                                                              

Levando-se em conta tudo o que foi explicitado até aqui, é nítida a inserção do conceito de depressão como algo que se presentifica como uma doença interior do homem e que faz muito mal ao seu projeto de bem-estar no mundo, sendo para ela necessária uma solução de alguém apto para restaurar o ritmo normal dos acontecimentos, eliminando a “doença” do organismo e promovendo a saúde. Para tanto, o psicólogo se insere nesse campo de demandas e, de maneira geral, se prõpoe a identificar e solucionar as causas e origens desse acontecimento. O DSM se encontra ancorado justamente na postura de identificação e cura das ditas “doenças mentais”.                      

Um grande problema que isso acarreta é a inserção do psicólogo em um contexto que se resume a reconhecimentos vazios de padrões comportamentais, perdendo o essencial de vista. Ao estabelecer como prioridade tal prática, perde-se de vista a singularidade de quem passa por um período de depressão e, consequentemente, os sentidos ali em crise. Foca-se apenas se seus quadros preenchem determinados tipos de itens presentes em cartilhas e no que é possível ser feito para que tal fenômeno passe sem sequelas. A função do psicólogo passa a ser a de reinserir o paciente no ritmo do mundo o mais rápido possível, para que não deixe de ser produtivo ou “útil”, como aponta Cecília Coimbra:




A possibilidade de ocupar o lugar de especialista ronda constantemente os profissionais de psicologia. De uma maneira geral assume-se esse lugar sem pestanejo, na medida em que comunga-se da ideia de que o psicólogo é capaz de diagnosticar e solucionar problemas referentes a internalidade humana. No entanto, cabe a certa parte da classe uma constante luta cotidiana que visa deixar esse lugar vago, por mais que sejam incessantemente impelidos a ocupá-lo, seja por quem os procura enquanto clientes ou por quem os ensina.

Há também quem encerre a presente questão em termos de reserva de mercado, simplificando a atuação do psicólogo àquilo que lhe é entregue pelo mercado enquanto demanda. Nesse sentido há uma selvagem disputa por espaço em meio a qual o que mais permanece obsoleto é aquilo que evidentemente ser psicólogo poderia significar. Infelizmente tal desgraça assombra praticamente todas as áreas profissionais e é uma nuvem negra que assola o atual momento histórico atendendo sob o nome de “mercado”.                                                            
Portanto, não só a depressão, mas como todas as “enfermidades psíquicas” findam por estarem situadas em um jogo classificatório que envolve a criação de padrões e estabilização de determinados comportamentos tidos arbitrariamente como saudáveis. Também estão baseados na arbitrariedade do que pode ser encarado como normalmente aceito, bem como no que deve ser buscado enquanto “cura” ou meta terapêutica a ser atingida. Outro dado importante daí resultante é a clara equiparação entre homem e coisa: quando se permite entregar às mãos de especialistas (psicólogos/psiquiatras) o diagnóstico acerca de quem se é, perde-se por completo a autonomia sobre si mesmo e passa-se a existir como um objeto qualquer dotado de propriedades simplesmente dadas, tal qual um ente inanimado.

O que se busca evidenciar aqui é a íntima relação das práticas psicológicas atuais com os preceitos inaugurados por Descartes, ainda no século XVII, e suas consequências mais importantes. Foi na crença em desvendar, pelo método científico moderno, as verdades acerca do mundo, que o homem se inseriu como objeto de estudo e esquadrinhamento de si mesmo, possibilitando o surgimento de diversas ciências humanas: uma delas, a Psicologia Moderna. Projetos como cartilhas classificatórias psiquiátricas refletem a radicalização desse projeto moderno, no qual a psicologia se encontra completamente comprometida por meio de sua produção de certezas.

O homem se encontra no começo de um novo século e há muitas razões para que se encare esse tempo como o tempo da consumação de um processo histórico que invariavelmente e incessantemente vela ao homem sua condição mais básica: a de livre. Cabe à psicologia decidir qual papel lhe parece mais justo ocupar nesse cenário. Como aponta Larrauri:


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COIMBRA, Cecília. e LEITÃO, M.B.S.. Das essências às multiplicidades: especialismo psi e produções de subjetividades. Psicologia e Sociedade, 15(2), 6-17. 2003.
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2006.
DSM-IV. Manual diagnóstico y estadístico de los trastornos mentales. Tradução de Tomàs de Flores; José Toro; Joan Ronquillo; Josep Treserra e Claudi Abelló. Barcelona: Masson, S.A., 1995.

LARRAURI, Maite. Artigo publicado em Descartes, nº 11, novembro, Paris: Albin Michel, 1994. Verdade e mentira dos jogos de verdade. Tradução de Heliana de Barros Conde Rodrigues.


1     A evidência consiste na clareza e na distinção, mais precisamente, a evidência é alcançada mediante um ato intuitivo, que seria um conceito não dúbio da mente pura e atenta, que nasce apenas da luz da razão e é mais certo que a própria dedução. Em tal sentido, a evidência se auto-fundamenta e se auto-justifica, porque sua garantia deposita-se não em uma base argumentativa qualquer, e sim, unicamente na mútua transparência entre razão e conteúdo.
 

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Recebido em:
03/10/2013
Aceito em: 18/01/2014


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