LUTA E RESISTÊNCIA: POLÍTICA E AUTONOMIA DA ARTE
CAMILA DAMICO MEDINA
Estudante de graduação em Produção Cultural na Universidade Federal Fluminense/UFF; monitora do projeto audiovisual Imagem e palavra em jogo, ministrado pela professora Tania Rivera no Instituto de Artes e Comunicação Social.
Resumo: A noção de política da arte, em especial seus gestos pela garantia de determinados espaços na vida pública e particular do sujeito político, foi transversalizada de acordo com diversas implicações de projetos de vanguarda tanto artísticas quanto políticas. A partir das teses expostas por Patrícia Galvão nos anos 40 sobre a autonomia da arte, serão articuladas as suas ressonâncias no trabalho de artistas contemporâneos no circuito das artes para, então, dar lugar ao pensamento dos possíveis gestos da arte na reestruturação da percepção da subjetividade política sobre o imaginário coletivo e a experiência sensível compartilhada, de acordo com o proposto de Jacques Rancière.
Palavras-Chave: Autonomia da arte; política da arte; imaginário coletivo; partilha do sensível.
STRUGGLE AND RESISTANCE: POLICY AND AUTONOMY OF ARTS
Abstract: The notion policy of art, especially his actions by ensuring certain spaces in public and private life of the political subject, was permeated according to several implications of cutting-edge projects both artistic and political. From theses expounded by Patrícia Galvão in the 40s on the autonomy of art, will be articulated their resonances in the work of contemporary artists in arts circuit to then give way to thoughts of possible gestures from art in restructuring the perception of subjectivity policy on the collective imagination and sensory experience shared, according to the proposed by Jacques Rancière.
Keywords: Art autonomy; policy of art; collective imagination; sensory share.
A noção de política da arte caracteriza-se por ser transversalizada por diferentes atribuições discursivas. O recorte proposto irá se identificar com o debate inicialmente estabelecido, na década de 40 do século XX, em que se pontuam as possibilidades de realização da autonomia do artista e a relevância de sua concretização. A partir da análise desse programa, serão observadas as suas ressonâncias à configuração atual do entendimento dos potenciais sociais da arte.
Em relação ao pensamento da efetividade da autonomia do artista, é necessário destacar o percurso sem o qual não se sucederia o contexto em estudo. Em progressiva reestruturação histórica dos meios de visibilidade da arte e das formas de sua produção, em especial pela transformação dos critérios de recepção, tal desencadeamento promoveu reverberações nas significações dos saberes e fazeres, entre os artistas contemporâneos, como a noção de política da arte e o compromisso social da produção artística.
Para destacar a comunicação dessas reconfigurações discursivas ao longo do tempo, será realizada a comparação dos escritos de Patrícia Galvão na revista Vanguarda Socialista entre 1945 e 1946 com a fala corrente dos artistas contemporâneos, concedida através de entrevistas em 2013.
Patrícia Galvão, usualmente chamada de Pagu, figura emblemática do feminismo que se organizava na época, foi musa do Modernismo, em especial do casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, e inspiração dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, fundadores da poesia concreta. Adepta ao Partido Comunista de 1931 a 1940, foi motriz da promoção da autonomia da classe intelectual paulista, estando a par de iniciativas inovadoras para provocar o debate e a crítica reflexiva das artes como o projeto do Suplemento Literário do Diário de São Paulo, em conjunto com Geraldo Ferraz, alterando os padrões convencionais de recepção do gênero pela sociedade paulista (ler NEVES, Juliana, 2005). Além disso, contribuiu à consistência da tese defendida pela revista Vanguarda Socialista, organizada especialmente por Mário Pedrosa, que rejeitava a filiação imediata ao Partido Comunista como fundamental para se reconhecer de vanguarda intelectual.
Seu posicionamento se consolidou graças ao seu rompimento com o Partido Comunista, após anos de intensa dedicação, em explícita decepção com a incompatibilidade entre o artista e o militante pelas estratégias da inteligência da vanguarda política vigente. Em linhas gerais, Pagu assegura a importância da arte dentro de suas próprias regras e códigos, em uma função ainda por vir. Apresenta a primazia do distanciamento e da marginalização do artista em garantia da promessa de liberdade de sua produção artística, dependente de um tempo e de um espaço outros aos imediatos impostos pela vanguarda política. Em alinhamento à noção de belo kantiana, para Pagu é preciso que a arte resista a qualquer determinação conceitual preexistente.
Em uma proposta de contraposição crítica, é apresentada a composição de discursos de artistas contemporâneos sobre o tema. A seleção desse composto foi estabelecida para trabalhar com artistas emergentes que não identificassem o seu trabalho como amplamente reconhecido, estando a sua posição dentro do circuito das artes não estabelecida de forma consistente ainda, principalmente, por ter uma produção ainda em ascensão (em sua concepção conceitual). Portanto, não desponta, nesse composto, uma performance estabelecida para garantir a própria autonomia. Aos artistas que se disponibilizaram a entrevista foram dezessete (17). Devido ao acesso de contato à realização da pesquisa, dez (10) residem no Rio de Janeiro, sendo um (01) de Petrópolis, três (03) de Niterói e um (01) de Uberaba, Minas Gerais; cinco (05) residem em São Paulo, sendo um (01) de Recife, Pernambuco; um (01) residente de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, formado em Brasília; e, finalmente, um (01) de São Luís, Maranhão. Aproximadamente estão entre os 20 e 40 anos de idade. São três (03) mulheres e quatorze (14) homens. Graças aos moldes de produção artística contemporânea, em que não se deterá o texto, não é possível definir com pleno juízo quais são as técnicas principais de cada artista entrevistado, de acordo que, ao classificar os gêneros em que suas produções se desenvolvem, é observada uma multiplicação de referências: para performances e intervenções, se encontram cinco (05) casos – necessariamente explorados e distribuídos de formas acentuadamente distintas; para desenho e pintura, treze (13) casos, em que foram detidas também as configurações do grafite; para esculturas e instalações, sete (07) casos; e para fotografia, seis (06) casos – os registros fotográficos de performances, de intervenções e de instalações, desde que realizados tendo como objetivo a produção fotográfica em si, foram reconhecidos.
Mesmo que Pagu, em seu exercício analítico exposto em seus escritos, tenha se encontrado como crítica de arte, as suas atribuições, ocupações e relações sociais dentro da estrutura de produção e de distribuição das artes assemelham-se às posições dos artistas contemporâneos dentro do sistema vigente das artes. Em uma interpretação livre de seu discurso e das preferências temáticas e técnicas da crítica de arte atual, suas referências sociais são distintas. Portanto, foram identificadas nas demandas, nas condições e nas funções estabelecidas dos artistas contemporâneos as implicações das noções e dos sentidos dos ensaios de Pagu, sendo possível uma comunicação muito mais estreita entre as duas esferas.
A formação de uma nova arte de viver
Em circunstâncias brasileiras emergentes da universalização do mercado no circuito das artes, se apresenta como fundamental a análise dos modos em que se estruturam as possibilidades de reconfiguração do sensível, de refuncionalização dos usos sociais, de reestruturação das relações de produção vigentes potenciais da arte. Os projetos e os consensos entre intelectuais e artistas sobre o regime que configura a política da arte são evocadas nas teses de Pagu, em que se observa o delineamento das formas de garantia da liberdade de produção artística. Em ressonância, é possível identificar suas implicações nas práticas atuais do circuito das artes, e mesmo nas maneiras em que os artistas caracterizam suas atividades e seu processo de produção.
A partir desse contexto de novas demandas atribuídas à arte, se pretende localizar como o próprio artista compreende o seu processo de autonomização e como se articulam as possibilidades políticas de sua produção artística dentro das determinações de sua função social e dentro da rede de relações de legitimação.
Antes de se debruçar no primeiro contexto histórico que será analisado, espaço em que Pagu se afirmará, é preciso pontuar que a posição do artista havia sido descentralizada de uma hierarquia que classifica maneiras de fazer arte e de sua apreciação (período posteriormente identificado de “belas-artes”). Deste modo, as representações, os gêneros e os temas a que a arte se propunha se desvinculavam das competências preestabelecidas de recepção. Esta revogação se faz política por apresentar a produção artística a um indiscriminado processo de legitimação, proporcionando autonomia às artes a uma ordem geral de relações sociais.
Como sintetiza Jacques Rancière sobre esse primeiro momento da revolução do regime das artes, denominado regime estético das artes:
(...) é aquele que propriamente identifica a arte no singular e desobriga a arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes. Mas, ao fazê-lo, ele implode a barreira mimética que distinguia as maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras da ordem das ocupações sociais. Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destrói ao mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade. (RANCIÈRE, 2009, pgs. 33 - 34)
A arte retira, a partir de seus critérios de julgamento e de contemplação, sua distinção social, visto que pretende atingir a configuração do sensível comum (coletivo e comunitário). Ou seja, esteve em suspenso, para sua refuncionalização, aquilo que a arte representa frente à sociedade e aquilo que a definiria como arte.
Identificando a arte como um processo de formação da vida e das relações e ocupações sociais - tal como é apontado na referência schilleriana à educação estética do homem, em que se trata da revolução política “como realização sensível de uma humanidade comum” (RANCIÈRE, 2009, p. 39) -, o posicionamento do artista ante a uma tendência social de sua produção artística tornou-se imprescindível ao seu reconhecimento. O primado seria identificar “ao lado de que” o artista se posiciona a fim de efetivar o projeto de vida perscrutado em sua obra.
Eis que se apresenta o contexto da formulação dos escritos de Pagu, pois é apontado que a falência da vanguarda artística e do projeto da arte como formação da vida se deu graças ao projeto da vanguarda política. Não teria sido possível alinhar ambas as ideias de vanguarda por se tratarem de subjetividades políticas diferenciadas. Se, por um lado, a concepção de revolução da vanguarda artística pretende deslocar as experiências sensíveis a camadas inovadoras do próprio sentido de existência e de presença em comunidade, o projeto da vanguarda política concentra a inteligência revolucionária em condições sociais de trabalho, determinando de forma secundária o papel da poética estruturante de novas situações de compartilhamento do sensível e da experiência. É possível apontar que apenas queriam ilustradores dos feitos sociais:
É que na decorrência construtiva do socialismo stalinista, já não se tratava mais de liquidar os remanescentes prejuízos supostos de classe, mas de cristalizar em castas, sofregamente, os despojos da conquista de poder, por uma ditadura em adaptação totalitária. (GALVÃO, 1985, p. 157)
Eis o fracasso sugerido pela Pagu sobre a vanguarda artística aliada a vanguarda política corrente. Ao ter em vista o projeto da vanguarda artística como educação da humanidade por vir, Pagu direciona-se para tratar de uma estética além do regime da lei e da ação politizada, sendo identificada, em linhas gerais, a seguinte constatação redigida por Rancière:
O livre jogo estético e a universalidade do julgamento de gosto definem uma liberdade e uma igualdade novas, diferentes das que o governo revolucionário quis impor sob a forma da lei: uma liberdade e uma igualdade não mais abstratas, mas sensíveis. A experiência estética é a de um sensorium inédito, em que se abolem as hierarquias que estruturavam a experiência sensível. É por isso que a experiência estética traz consigo a promessa de uma “nova arte de viver” dos indivíduos e da comunidade, a promessa de uma nova humanidade. (RANCIÈRE, 2007, pgs. 7 e 8)
Ela irá comprometer que, à realização de uma revolução que transforme as hierarquias correntes, é preciso estar a uma sensibilidade própria do projeto artístico em um contexto livre de produção. Ela preconiza a marginalização do artista, visto que, a partir dessa participação social, ele efetivará sua autonomia à crítica e ao controle imparcial do regimento corrente político. Este papel, apesar de amplamente reconhecido nos regimes burocrático-democráticos, não é adotado pela estratégia de esquerda, como é constatado no trecho redigido abaixo:
Há de preferir o escritor, em muitos casos, antes de isolar-se, gozar a liberdade que lhe dá a ordem das coisas democrático-burguesa, onde ele é considerado pura e simplesmente “poeta” ou “idealista”, e quando pioneiro incompreensível “um sujeito de gênio mas sem nada de prático”, ou um excêntrico... Esse marginal então goza de liberdade, da liberdade que não lhe sabem conferir os homens de esquerda (GALVÃO, 1985, p. 161)
Sua argumentação circunscreve a pontual frase de Adorno: “a função social da arte é a de não ter função”, investindo na potência transformadora da arte por seu distanciamento às tarefas, às normas e às condutas. Como discursa Rancière a respeito desta sentença adorniana,
O potencial de emancipação da obra se encontra inteiramente na sua ociosidade, isto é, no seu distanciamento com relação a todo “trabalho” social, a toda participação em uma obra de transformação militante ou em toda tarefa de embelezamento do mundo comercial e da vida alienada. (RANCIÈRE, 2010, p. 51)
O artista encontrará o seu potencial político na rejeição de qualquer demanda própria ao trabalho, que requer resultados imediatos. Sua transformação política se daria pela possibilidade de um lugar à margem, marginalizado. Em outra publicação na revista Vanguarda Socialista, ela discorre:
Povos, soldados, estadistas, poderosos homens do dia passam por aquelas áreas e esmagam e espalham as tentativas de germinação. Indiferente, ou interessado, conscientemente ou não, o pensamento livre do escritor trabalha entretanto alimentando a sementeira, prodigalizando com a eloquência e a grandeza de suas insinuações vitalizadoras, elementos novos, forças fertilizantes das sementes perdidas, arrastadas pelas vorazes das guerras, dos conflitos, da covardia e do temor, da opressão e do ódio... Os escritores revolucionários do passado e do presente não trabalham pelo imediatismo dos resultados efêmeros e passageiros. Eles estão muito adiante do esforço trivial, suas necessidades são muito profundas e suas sondagens estão esburacando os horizontes que cercam a visão dos contemporâneos. (GALVÃO, 1985, pgs. 150 e 151)
Não é possível, entretanto, garantir a autonomia do artista, pois este delineamento distintivo da qualidade do trabalho artístico marca a divisão das ocupações e das possibilidades sensíveis comuns consideradas próprias ao intelectual e ao produtor, reafirmando a estrutura vigente que opõe aqueles que devem pensar e decidir, participando do domínio público e cidadão, àqueles destinados aos trabalhos materiais, participando da vida privada, o que promove impossibilidades de sua participação ao coletivo, ao comum.
É preciso denotar também a promoção de Pagu ao distanciamento do artista, gesto que se diferencia da sua marginalização. Seu distanciamento refere-se aos embates contemporâneos, às demandas imediatas próprias da vanguarda política e da luta. Apesar de nunca utilizar o termo, a crítica acentua a distinção fundamental entre luta e resistência em que a arte precisamente articula potência política ao resistir; entretanto, resistir é assumir a postura de quem se opõe à ordem das coisas, rejeitando ao mesmo tempo o risco de subverter essa ordem.
Distanciamento como resistência, eis o principal ponto de Pagu. Seu projeto se formula devido a uma experiência sem igual com o partido comunista, que, inevitavelmente, articulará o fundamento do distanciamento do artista frente aos seus contemporâneos. Ao se distanciar, não seria possível cristalizar o intelectual na propaganda de temas estruturantes da dominação política, mas o artista também se abstém de promover mudanças estruturais. Ao atingir o papel de “alimentar a sementeira”, o artista não terá, entretanto, em suas obras e em seu modo de produção a função organizadora que vise o povo por vir e o novo regime de partilha do sensível (ler RANCIÈRE, 2009).
Como irá dissertar Walter Benjamin, a partir de iniciais formulações de Döblin, o artista irá se encontrar ao lado do proletário, mas:
Que lugar é esse? O lugar de um protetor, de um mecenas ideológico. Um lugar impossível. E assim voltamos à minha tese inicial: o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo. (BENJAMIN, 1994, p. 127)
O artista não poderá ser considerado a partir de suas convicções, mas de seu relacionamento com toda a estrutura do trabalho, e de seu posicionamento nessa rede:
(...) somente a superação daquelas esferas compartimentalizadas de competência no processo da produção intelectual, que a concepção burguesa considera fundamentais, transforma essa produção em algo politicamente válido; além disso, as barreiras de competência entre as duas forças produtivas – a material e a intelectual -, erigidas para separá-las, precisam ser derrubadas conjuntamente. (BENJAMIN, 994, p. 129)
A distância não lhe garante autonomia, mas uma localização especializada na rede de distribuição própria ao valor corrente de significação do trabalho, em que seria mantido, em pauta ao seu lugar de intelectual, o lugar do proletário, sem possibilidades de colaboração no entendimento sensível coletivo. A distinção de papeis entre o produtor e o intelectual provocaria o atrofiamento sensível comum ao qual a vanguarda artística se propunha em primeiro plano a refuncionalizar, tal como pretendia Pagu.
Ao retirar as partilhas comuns estruturantes de condições predeterminadas, que definem os lugares, os domínios e as experiências sensíveis tanto do intelectual quanto do produtor, é definida uma nova relação entre o fazer e o saber, como pontuará Rancière sobre a possibilidade política da arte de supressão das oposições e das ocupações estabelecidas pelo trabalho. O projeto de vanguarda artística, ele sintetiza, necessita “suprimir a arte enquanto atividade separada, devolvê-la ao trabalho, isto é, à vida que elabora o seu próprio sentido.” (2009, p. 67) Enquanto produtor o artista viabiliza e efetiva novos modos de sensibilidade e reestrutura funções.
Apresentado isso em pauta,
Assim, a prática artística não é a exterioridade do trabalho, mas sua forma de visibilidade deslocada. A partilha democrática do sensível faz do trabalhador um ser duplo. Ele tira o artesão do “seu” lugar, o espaço doméstico do trabalho, e lhe dá o “tempo” de estar no espaço das discussões públicas e na identidade do cidadão deliberante. (RANCIÈRE, 2009, p. 65)
Justamente a um artista, contudo, não se deve alocar um lugar de trabalho e de discurso; é preciso que ele esteja à margem, precisamente. Neste limite dos moldes, porém, o artista estaria nas fronteiras, em comunicação com a estética e a política, o ócio e o trabalho, a não-função e a função. Através desse estatuto duplo, o artista possui a capacidade de ressignificar o lugar do trabalho na estrutura social, embaralhar ocupações e feições ditas apropriadas a cada domínio de atividade. Ao artista coube um espaço especializado quando este tem a potência de desvirtuar a ordem do espaço e da espécie.
A partir desta análise crítica, instiga como se estrutura esse conhecimento e esses projetos de arte no circuito atual de artes, caracterizado pela universalização do mercado. É preciso identificar os frutos do dilema sobre a refuncionalização do artista e da arte, pautado pela observação do discurso diferido pelos artistas contemporâneos sobre suas próprias condições de trabalho.
O povo que veio
Os artistas contemporâneos entrevistados mencionados no início do presente artigo foram interpelados com duas perguntas objetivas e generalizantes: qual a posição do artista diante de seu tempo, de sua geração e como esse posicionamento se relaciona com o seu trabalho ou com seu processo criativo. Assim, pretendiam gerar debate sobre o conceito de vanguarda artística e sobre os seus manifestos no contexto moderno, sobre a qualificação da função do artista na estrutura social e sobre o valor da arte como política (se há na produção artística, de acordo com as suas falas, uma realização política).
As questões foram sucintas quanto a sua meta, usualmente colocando os entrevistados a uma compreensão desarvorada sobre o tema da pesquisa. Apesar do desconcertar inicial, graças a essa premissa foi possível dar lugar para que o artista identificasse sua própria interpretação sobre os papeis atribuídos a sua produção e sobre a sua função à configuração da sociedade. Aqui é fundamental perceber a partir do discurso do artista, de acordo com as interrogações de Walter Benjamin em seu O autor como produtor (ler BENJAMIN, 1994), como ele se situa dentro das relações de produção que formulam o circuito das artes, não apenas como o texto inerente a sua produção artística se posiciona diante destas relações.
Em sua maioria, as entrevistas enveredavam a três eixos temáticos: sobre a noção de política da arte, de arte política e de resistência da arte; sobre as ações pertinentes a garantia de reconhecimento e de legitimidade do trabalho; e as suas expectativas de troca e de recepção das propostas artísticas, em que é insinuado o contexto de possibilidades de potências da arte.
Para aprofundar sobre o tema da política da arte, à comunicação serão atribuídas as dimensões apresentadas por Jacques Rancière, que afirma:
Ela [a arte] é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão. Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política. (RANCIÈRE, 2010, p. 46)
A política da arte está mais à identificação de arte e política, caracterizando suas potencialidades de reconfiguração do espaço do imaginário coletivo, de reestruturação das ocupações e das relações sociais, além de promover as possibilidades de subjetivação política.
A partir da fala dos artistas se testemunha, entretanto, que as funções sociais demandadas à arte e à política não se assemelham. Devido a diversos gestos históricos, em que se pontuará a questão do processo vivido por Pagu em seus escritos, o projeto de vanguarda artística e o projeto de vanguarda política se tornaram excludentes. De acordo com o senso estabelecido entre os artistas contemporâneos, situar o pensamento sobre a política da arte é estar à arte política, à arte engajada politicamente, ou seja, a uma noção de ação política como a efetiva interferência sobre o social.
É preciso ressaltar que alinhar arte e política não lhes provoca interpretações otimistas, sendo observado que todos se precipitam a classificar que a sua produção não é política. Quando lhes são apresentados ao debate a oposição entre ação política e sujeito político, afirmam que há algo de político na arte, inevitavelmente, pelo seu potencial transformador da percepção sensível do sujeito, mas não se identificam como indivíduos conscientemente políticos de forma plena para atender a sua produção como política, portanto.
Não propondo uma linha histórica causal, de todo modo, se percebe indícios das afirmações e das preocupações quanto à autonomia do artista dos escritos de Pagu. Apesar de identificar que não são efetivos os fundamentos de distanciamento e de marginalização do artista, o circuito atual das artes resguarda em sua estrutura os traços da falência da aliança entre a vanguarda artística e a vanguarda política, distinguindo, em um plano discursivo, as atividades de domínios diferenciados.
Em um primeiro plano de seus processos de trabalho artístico, é apreendido que a obra de arte não precisa de uma função social, como admite a tese adorniana, que tanto se alinha às afirmações de Pagu. Que o lugar do artista e da arte esteja no díspar da disfuncionalidade, do ócio, da incompetência antes de tudo – como se fosse necessário se desvincular em absoluto da primazia da significação tão dominante na construção da linguagem e da língua.
Aos artistas contemporâneos, há a necessidade de estabelecer a configuração de um regime de arte que se estruture a partir de si mesmo, interpelando as suas próprias demandas. O artista afirma a sua autonomia ao não estar em nenhuma posição preestabelecida, em garantir que não está previamente comprometido a corroborar nem a romper com qualquer paradigma cultural, inclusive a um paradigma sobre o que é ser um artista. Permitir-se ao esquecimento das implicações estruturantes da comunicação e da linguagem.
Todos citam que esse gesto de descompromisso absoluto é impossível, contudo, necessário para estabelecer condutas apropriadas em um plano discursivo com os outros, isto é, com os outros códigos de produção para que estes não intervenham com as suas estruturações sobre o dito uso apropriado de espaço e de tempo do imaginário coletivo do sujeito. Paradoxalmente, o que se encontra latente é a constatação de que, ao promover este gesto de distinção, uma recusa da estrutura do trabalho e do utilitário, se realiza seu reconhecimento e sua consolidação, possivelmente reafirmando a dicotômica significação do trabalho e, portanto, das atribuições e das competências da experiência sensível comum, tal como se encontra no debate sobre a noção de marginalização desenvolvida por Pagu.
No segundo tempo da comunicação, as compreensões dos artistas contemporâneos sobre o regime do circuito das artes se evidenciam, assim como que ações são reconhecidas como apropriadas para atingir legitimidade no meio.
Não garantindo qualquer certeza sobre a economia dos gestos para realização do reconhecimento do trabalho artístico apresentado, o artista é incitado (ou, ainda, não se habilita) a não se estabelecer nem a ser considerado socialmente apenas na qualificação de artista. A ele não é mais possível, à efetivação de sua obra frente ao circuito das artes, estar em apenas uma posição de discurso. O artista precisa se tornar autoridade em diversas esferas do discurso para consolidar sua posição; é identificado nessa estrutura posições tanto no campo intelectual – em que se aponta a produção literária e acadêmica, além de títulos próprios da participação em programas de pós-graduação universitários –, como no campo comercial – em que se aponta a produção, gestão e/ou financiamento da circulação e da distribuição de sua própria obra. Portanto, o artista não é mais um artista, pelo menos, não como aquele sujeito capaz de estar marginalizado dos entraves imediatos das relações de trabalho, como reivindica Pagu.
Graças a esse contexto, todos os artistas afirmaram que não há como estar para além de seu próprio tempo, além das necessidades e das questões inerentes aos seus conterrâneos. Ser reconhecido como um ser que goza de plena liberdade por ser considerado “de gênio” não é mais possível, assim como não é mais almejado. Os artistas apontam essas ações múltiplas como fundamentais para consolidar suas intenções de relacionamento e de produção do regime das artes – para que não se encontrem abafados pelo mercado da arte e por suas respectivas demandas.
As ações identificadas para realização de seu reconhecimento e de sua legitimação no circuito das artes não necessariamente irão proporcionar sua autonomia, ressalta-se. Em vista deste programa, alguns artistas pontuam que há um movimento interessante atualmente: uma inversão da partilha sensível comum a partir da subversão das regras do mercado de artes, manipulando os próprios termos dessa rede. Esse projeto (que sequer pode ser nomeado apropriadamente como um projeto intencional) foi identificado como pauta de ações à garantia de autonomia, situando exemplos como Jeff Koons e Damien Hirst.
Jeff Koons atua no limiar fronteiriço entre arte e consumo, utilizando referências como o kitsch e a pop art para provocar temas como a saturação do ícone e a descartabilidade do fetiche. As apropriações das relações de mídia e cultura de massa situam este artista, à fala de determinados entrevistados, como gesto de autonomização, justamente porque esgarça qualquer possibilidade de separações entre esses domínios apropriados ao artista e à função da arte.
Damien Hirst destaca-se por expor até o insuportável a indústria cultural. Os valores de sua obra e todo o circuito de distribuição de sua produção e de seu discurso beiram o espetáculo. Sua obra circunscreve, sobretudo, a produção de esculturas icônicas. Sua absoluta destreza em utilizar os mecanismos do mercado das artes não o submete a este sistema, porém. Graças a essa posição, por muito considerada finalmente zombeteira, este artista é declarado como autônomo por seus pares.
O novo estabelecido sobre a autonomia da arte provoca a compreensão de novos sentidos e de novas dinâmicas sobre a potencialidade política da arte. A subversão do mercado das artes a partir da articulação dos meandros que situam essa rede de relações está como proposta nodal de reconfiguração das competências e dos valores do comum e do privado, o que incita o último tema da entrevista.
A caracterização deslocada do artista em suas relações de legitimação pontua atualmente a necessidade de encontrar formas inesperadas de contato com o outro. Os espaços consagrados à troca de experiência estética não mais atende de forma plena os anseios dos artistas que pretendem, antes de tudo, a quebra de expectativas sobre o que é vivenciar tal experiência e sobre quais seriam suas implicações na formação do sensível, propondo, portanto, transformações sobre o entendimento de si mesmo enquanto sujeito assim como de sua ocupação pública apresentada em sociedade.
A difusão dita por diversos artistas como alternativa da produção artística (performances, instalações, panfletos, livros, projeções audiovisuais, etc) vem acompanhada com uma pulsão pela disfunção da arte, a ser disposta de forma que, além de proporcionar uma outra experiência do imaginário coletivo e da subjetividade política, possa proporcionar a possibilidade de ser configurada simbolicamente a todos os olhares, a todas as situações – ou seja, sem um contexto prévio de entendimento.
Essa insistência no uso indiscriminado dos espaços e dos tempos apropriados aos imaginários sobre o público e o doméstico é capaz de se configurar ao que disserta Rancière sobre a fotografia, a seguir:
(...) a utilização neutra do meio (medium) aparece então como uma dupla fidelidade: fidelidade à ideia de uma obra que não busca fazer arte, a mostrar a arte do seu autor, mas que, ao contrário, sai do mundo da arte pura, para fazer um trabalho de pesquisa reveladora de um mundo social e de suas contradições; mas também a fidelidade ao imperativo que comanda à obra não fazer política, ou melhor, de fazê-la indiretamente: pela sua recusa de toda efusão sentimental e de todo engajamento militante como de todo embelezamento do mundo industrial e comercial; pelo fato mesmo que a imagem não trai nenhuma intenção subjetiva e não vai na direção de nenhuma outra subjetividade; que ela permanece estritamente insignificante e não afetada, aprisionada na sua moldura, como a superfície do quadro na teorização modernista da pintura. (RANCIÈRE, 2010, p. 56)
Pela ferocidade da interpelação incessante de vivências estéticas retira-se, em mais um momento, critérios estabelecidos dos processos de legitimação e de recepção da arte, em que, na supremacia da comunidade por vir, a arte é suprimida.
A assimilação indiscriminada
A isso muitos classificaram como liberdade. Atingir por todos os ângulos o tato do espectador traria como projeto a própria alteração dos lugares propostos à experiência estética sobre o passivo e o ativo, da distância daqueles que estão habilitados a uma outra ordem do sensível, capazes de proporcionar significações, àqueles que devem compreender esta distância de sua sensibilidade de sentido comum a magnâmica plenitude de sentidos do artista.
Walter Benjamin apresenta que a possibilidade de estabelecer novos sentidos de relações sociais é através da colaboração última e absoluta de todos, da disfunção da especialidade, que determinava os limites de experiência de cada um tanto na esfera pública quanto na particular, à autoridade coletiva de discurso e de formação de sentido. Sobre a superação dessas oposições de ocupação sensível, ele apresenta Sergei Tretiakov, russo que trabalha sobre as novas condições sociais nos meados do governo soviético, em especial no contexto da produção jornalística que, contudo, aponta sobre a pauta deste artigo:
Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada dos leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. (...) Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, descrever e prescrever. Como especialista – se não numa área de saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções -, ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a palavra. A capacidade de descrever esse mundo passa a fazer parte das qualificações exigidas para a execução do trabalho. O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica, e com isso transforma-se em direito de todos. Em suma, é a literalização das condições de vida que resolve as antinomias, de outra forma insuperáveis, e é no cenário em que se dá a humilhação mais extrema da palavra – o jornal – que se prepara a sua redenção. (TRETIAKOV apud BENJAMIN, 1994, pgs. 124-125)
Com o intuito de produção do trabalho artístico a explorar todos os seus pretextos possíveis, especialmente em caráter técnico e material, e de sua distribuição a todos os contextos possíveis, ao observador é necessário que este assuma alguma linguagem por ele próprio instituído, se empoderando da formação de sentido da troca ali estabelecida pelo contato inesperado.
É fundamental ressaltar que esta consideração reside junto a uma relutância em propor política na arte, de acordo com a constatação que a proposta da arte luta, de fato, a um novo estar político do entendimento de fazeres e saberes em comunidade, a novas possibilidades de subjetividade política. Apesar de não se identificarem propriamente como uma classe, o que proporia uma totalidade de intenções e de supressão de individualidades – algo que contradiz em absoluto a proposta estética contemporânea observada -, fazer arte visa a um povo por vir, se propondo a uma função organizadora de um novo regime de “partilha do sensível”.
A autonomia do artista contemporânea não repousa sem propósito no embaraçamento entre arte e mídia, estética e consumo: está à supressão, sobretudo, do lugar do artista como intelectual a uma nova noção sobre os aspectos do produtor, do artesão e do operário, visto que confunde a origem da significação do transmitido, da autoridade do discurso, da legitimidade do que se nomeia. À existência da arte é preciso a colaboração de sentido de todos, desconstruindo os papeis distribuídos como apropriados às possibilidades de experiência de cada indivíduo. Para tanto, se produz de forma indiscriminada até esgotar o material, inclusive no terreno da função da obra de arte, e se distribui de forma indiscriminada, de modo a não mais distinguir o espaço designado à experiência estética.
Em uma possibilidade dos projetos à autonomia da arte,
A experiência estética deve realizar sua promessa suprimindo sua particularidade, construindo as formas de uma vida comum indiferenciada, onde arte e política, trabalho e lazer, vida pública e existência privada se confundam. Ela define portanto uma metapolítica, isto é, o projeto de realizar realmente aquilo que a política realiza apenas aparentemente: transformar as formas da vida concreta, enquanto a política se limita a mudar as leis e as formas estatais. (RANCIÈRE, 2010, p. 50)
Mesmo que não seja mais considerada a efetividade de um projeto de vanguarda artística em comum, é anotado que, tanto na consideração da autonomia como a capacidade de confundir funções simbólicas e sociais da arte, quanto na intenção de encontrar formas inesperadas de contato com o outro, os artistas ressoam a renegada noção de política da arte, da arte enquanto política, sobretudo, por configurar as partilhas das funções e dos saberes, em pauta no contexto histórico de Patrícia Galvão.
Por se referirem a ela, à articulação desta noção sobre a posição do artista e sobre o sujeito político que o artista promove em suas relações com a sociedade, é repercutido entre os artistas contemporâneos o programa pela autonomia e pela liberdade à disfunção e à confusão do papel do artista e da autoria para que ele possa ser distribuído indiscriminadamente, contribuindo, na supressão crítica da arte, novos entendimentos das possibilidades de experiência do sujeito.
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NEVES, Juliana. Geraldo Ferraz e Patrícia Galvão: a experiência do Suplemento Literário do Diário de S. Paulo, nos anos 40. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005.
PINHEIRO, Jair. O sujeito da ação política: notas para uma teoria. Disponível em: http://www.pucsp.br/neils/downloads/v3_artigo_jair.pdf ; acesso em 01/06/2013.
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______________. Política da arte. Urdimento: Revista de Estudos em Artes Cênicas. Florianópolis: UDESC/ CEART; v. 1, nº 15, out. 2010.
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Recebido em: 04/06/2013
Aceito em: 06/11/2013