Questões Contemporâneas

COSMOVISÕES E VÁCUO EXISTENCIAL NA CONTEMPORANEIDADE – UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA.

Enidio Ilario
Mestre em Filosofia e Doutor em Psicologia;
Pesquisador do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da UNICAMP e Professor da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP;
Médico do Centro de Referência em Reabilitação de Campinas.


Resumo: Através de uma abordagem semiótica e da premissa de que o cinema é capaz de expressar de forma evidente as cosmovisões prevalentes no seu tempo, o presente ensaio pretende contribuir para a reflexão sobre o sofrimento mental contemporâneo.
Palavras chaves: Cosmovisões, cinema, niilismo, semiótica, desrealização, despersonalização.

Cosmovisions and existential vacuum in the contemporaneity – A semiotics approach

Abstract: Through a semiotic approach and the premise that the cinema is able to clearly express cosmovisions prevalent in his time, this paper aims to contribute to the reflection on the contemporary mental suffering.
Keywords: Cosmovisions, cinema, nihilism, semiotics, derealization, depersonalization.

Introdução

O tema aqui tratado tem sido alvo de muitíssimas teses, ensaios, artigos em diversas áreas das ciências humanas. O vazio existencial na contemporaneidade, em outras palavras, a crise existencial coletiva, cultura de alto risco, mal de época e tantas outras denominações para um fenômeno sentido e ao qual Freud já se referira explicitamente no início do século passado, como mal estar na civilização. Ora, o que temos de novo para falar sobre o assunto? Poderíamos em nosso favor dizer que há muito ainda a se dizer e, de fato, o assunto é inesgotável pelas suas múltiplas dimensões, fato que torna a abordagem interdisciplinar irrefutável necessidade, pois qualquer outra forma de aproximação seria insuficiente. Em nossa opinião o que torna o tema sempre atual e com potência a exigir renovada originalidade é o fato de ser único em cada época, o Espírito de Época (Zeitgeinst). Afinal, tratamos do mal de época e a nossa é outra época, não àquela da qual tratou Freud em “O Mal-Estar na Civilização” e “O Futuro de Uma Ilusão” (1927-1931), somente para citar um autor seminal no campo da psicologia, o criador da Psicanálise. Com isso não queremos dizer que a página foi virada, que o nosso é outro mundo, completamente diferente daquele de um século atrás, ao contrário, o nosso tempo também é aquele tempo, aliás, é todo o tempo pretérito, mas acrescido do tempo que nos separa daquele, o tempo presente. Daí, a pergunta pertinente é: O que nos liga ao tempo pretérito, a esses tempos? A cultura, sim é ela no sentido mais amplo, ou seja, quase tudo o que nos singulariza enquanto espécie e enquanto indivíduos. Essa construção que teve seu nascedouro juntamente com a nossa espécie, pois que a humanidade emergiu juntamente com a cultura, dizemos, a partir do momento em que saímos da segurança do puro instinto.

Em que tempo e em qual dimensão imanente ou transcendente se deu essa emergência é sempre alvo de conjecturas e não é escopo dessa abordagem. Basta-nos, como na lógica formal, apelarmos para um axioma, aliás, o axioma fundador. Tudo o mais deve advir desse axioma, não há cálculo sobre a condição humana que dele não derive, não há conjecturas que não se desmanchem na ingenuidade pueril ou no obscurantismo, por dele ter se afastado. Eis o axioma: A cultura é a manifestação propriamente humana, é o legado do passado sempre atualizável no presente e promessa, ainda que vaga, de um futuro. Quanto ao futuro, se foi adjetivado, como o fez Freud, uma ilusão, esclarecemos não compartilhar tal ponto de vista, ainda que deva ser reconhecido o contexto no qual se expressou o Pai da Psicanálise, quase profeticamente antevendo a culminância da grande crise da utopia iluminista se aproximando, a Segunda Grande Guerra.  E o nosso tempo? Se vivemos um mal de época, qual é esse mal? Arriscamo-nos a dizer que o mal de nosso tempo não se circunscreve a crise da utopia iluminista, mas, antes, a crise de todas as utopias.

Em outras palavras, se a cultura é fundadora da condição humana, eis que a utopia dela se nutre daí, se vivemos uma crise de todas as utopias, poderíamos conjecturar que vivemos uma crise da própria cultura. Mas, se a crise é da própria cultura também o é da própria condição humana. É tal condição que está ameaçada e é nela e dela que promanam as demais crises, eis a nossa tese. Se a modernidade se esgotou parindo a pós-modernidade ou se o que vivemos é uma hipermodernidade, pouco importa, pois tal como uma doença, nosologicamente, pode ter duas denominações sem que deixe de ser a mesma, afinal, os sintomas são os mesmos e a etiologia também.  Aliás, será que essa espécie de mal estar pós-moderno bem poderia ser traduzida como sintoma de uma “doença” chamada “projeto humanista” (Humanismo e Iluminismo) o que incluí o Racionalismo?

Não nos escapa o fato de que entre as duas formas de se referir ao mesmo mal, frequentemente há diferenças de fundo, diríamos, ideológicas e que aqui se explicitam ainda que em formas hiperbólicas. Para os profetas da “Nova Era” (New Age), adeptos da noção de que a crise advém dos excessos do humanismo e racionalismo, a pós-modernidade é um movimento de reação, benéfico, ainda que com inevitáveis efeitos colaterais. Uma febre que antecipa a cura no processo de convalescença, o retorno ao equilíbrio, à “Mãe Terra”, à utopia russoniana do “bom selvagem”. Não um inocente escape primitivista, mas semente de puro irracionalismo, ou seja, o remédio é aquele que mata a cultura e destrói a própria condição humana.

Para tais profetas, não há dignidade especial em tal condição, não há natureza humana, antes, haveria um ultraje à “Mãe Natureza” e o remédio, o retorno subserviente e suplicante a ela, eis no que teria resultado a utopia iluminista. É verdade que na história humana já vimos esse filme na forma do Romantismo, mas esse com o brilho e beleza, dos grandes clássicos da filosofia, falando para sujeitos concernidos no debate cultural sempre pleno de controvérsias. E o que dizer de nosso tempo, no qual a tendência do debate cultural é a submersão no oceano das irrelevâncias que populam a web? Do ponto de vista semiótico é na estética cinematográfica que encontramos uma excelente forma de prospectar (uma semiologia) os sintomas desse mal de época. Partimos da premissa de que o cinema pode expressar melhor do que qualquer outra arte, o espírito de época, na medida em que atinge de forma impactante, para além de um público restrito, a grande massa, mesmo que na forma puramente caça-níquel dos chamados blockbuster. Há nessa arte uma democratização da estética capaz de abarcar todas as outras, seja a música, a pintura, o teatro, a literatura e assim por diante, dessa forma, exemplificamos com um filme de produção recente e de reconhecida qualidade cinematográfica, do ponto de vista de uma estética formal do cinema, enfim, aquilo que se convencionou denominar de “cult”. O Melancolia, do diretor Lars Von Trier (2011) expressa exatamente esse estado de espírito, uma espécie de núpcias, conjunção carnal, com a “mãe terra”, aliás, presente em outras obras do diretor, como no caso do polêmico “Anticristo”. Obra bela e instigante, com riquíssimas citações de autores clássicos niilistas e que reatualiza essa tendência no pensamento filosófico de forma primorosa, o filme “Melancolia” já traz no próprio título o espírito que o habita. 

Não é escopo deste ensaio aprofundar hermeneuticamente a abordagem da obra de Von Trier, daí, que nos seja permitido aqui e apenas a título de ilustração, situá-lo nessa singela classificação, como  um bom exemplar de cosmovisão niilista. A partir da premissa que o cinema é uma grande vitrine das cosmovisões, temos como contrapartida à premiada obra de Von Trier, outra obra cinematográfica, “A Árvore da Vida”, ganhadora da Palma de Ouro de melhor filme em Cannes. Curiosamente, também lançada em 2011, mesmo ano em que estreou Melancolia, a A Árvore da Vida, do diretor Terrence Malick (2011), tem caráter diametralmente oposto, diríamos antitético. Igualmente instigantes e primorosas, essas obras cinematográficas têm em comum um constante tangenciar de temas que confinam ciência e ficção, ou seja, ficção científica. Dois exemplares impactantes no mundo do cinema contemporâneo, premiados e polêmicos, atingiram um público apreciável, levando-se em conta a complexidade daquilo que tratam e deram e continuam dando o que pensar, para além da crítica profissional. Von Trier e Malick nos falam da mesma coisa, dos grandes temas de todos os tempos, da vida e da morte, do bem e do mal, de culpa e do arrependimento, mas nos falam a partir da percepção de nosso tempo, não do tempo de Shakespeare ou mesmo de Thomas Mann. Daí, a partir do que nos falam as manifestações culturais de nosso tempo, podemos pressentir o mal estar que o habita e esse tem expressão real, ainda que fluída, no sofrimento mental com características epidêmicas. 

Pois bem, aos terapeutas em geral, ousamos perguntar: Cabe permanecer em uma posição confortável de estetas, descompromissados com as evidências, com os sintomas e mesmo o diagnóstico do mal de nossa época, expresso na própria crise da crença em uma natureza humana? Em outras palavras, é desejável permanecermos expectantes diante de uma crise que acomete a própria cultura humana, aí incluída a ciência? Pensamos que não; não quando sob nossa responsabilidade, pessoas padecem de sintomas que podem estar expressando precisamente esse mal, como no caso da desrealização, da despersonalização e de seus mais graves correlatos em termos nosológicos, a desestruturação e desintegração da personalidade, os quadros bordelines, manifestações severas de ansiedade, automutilação, suicídio e abuso de drogas. Conjecturamos a partir de tantas evidências que por detrás de tal fenômeno se encontra uma exacerbação do conflito humano básico, aquele entre duas naturezas antitéticas, a natureza e a cultura. Lembrando o que nos ensinou Hegel em sua dialética do senhor e do escravo (Lima Vaz, 1991, pp. 55-60), que a identidade se funda no reconhecimento pelo outro, a nossa conjectura é que na sociabilidade pós-moderna não há densidade suficiente para que tal processo se estabeleça plenamente. Nela, o reconhecimento está severamente prejudicado e o paradoxo é só aparente, pois nesse mundo de ampliadíssimas redes sociais, “o outro” encontra-se demasiadamente afastado pela multitude, pela multidão, pelo intangível da virtualidade.

Podemos especular que em tal ambiente, o excesso de estímulos visuais e auditivos, não tem sua necessária contrapartida tátil e olfativa, eis aí uma sociedade onanista por excelência, um paraíso fetichista. Esse ser humano de frágil identidade tem dificuldade em estabelecer sínteses necessárias nas interações sociais inevitáveis, sem a mediação do outro. Esse outro não é capaz de conferir identidade, pois que é virtual apenas potência que muito raramente se atualiza nas relações presenciais, fato que torna o sofredor pós-moderno vítima indefesa de seus mais básicos conflitos internos, ou seja, entre a cultura e a natureza, entre o instinto e a razão e entre o bem e o mal. Aliás, outro filme magistral expressa bem o sofrimento do conflito entre duas naturezas e o risco da desintegração naquela vertiginosa dança em Cisne Negro, premiada obra de Darren Aronofsky lançada em 2010 (2010). Nessa obra de grande beleza, espécie de ode dionisíaca, a protagonista bailarina se automutila “sempre que necessita” e eis aí outra manifestação do poder semiótico de síntese entre o belo e o real, que somente o cinema possui. Da crise de identidade, do trágico conflito entre o bem e o mal de O Cisne Negro, nesse tempo tão falto de densidade ontológica, “a alternativa” de retorno à natureza, encontra-se magistralmente simbolizada no filme Melancolia. É no choque de “duas terras” destruindo-se mutuamente em uma núpcia hecatômbica, que a única fonte de vida no cosmo se finda, um vertiginoso convite ao fim do sofrimento, convite ao retorno definitivo ao pré-formal.

Paradoxalmente, mas quiçá propositadamente, em Melancolia há uma mensagem, um alerta e com curiosa relação com a estética da obra de Terrence Malick Árvore da Vida, a esperança não reside na Terra, está para além dela, a permanência nela é o abraço lascivo e irrevogável da morte. E como se os autores, ambos, dissessem, alcemo-nos desse chão, sempre para além dele, mesmo que plantados nele, eis o fundamento do título de A Árvore da Vida, uma citação ao diagrama fundamental da cabala mística judaica, sempre na busca da transcendência. Das esferas (Sefirot) inferiores às esferas mais acima, um caminho para o alto e a semiótica muito tem a dizer acerca desse diagrama que não por acaso, encontra forte parentesco na simbologia do axis mundi e do totemismo, tais como as mandalas tibetanas, especialmente a Roda da Vida, mas também a própria Cruz Cristã e tantos outros símbolos tratados por diversos autores, em especial, no campo da psicologia, por Jung (1988).


A atitude constitutiva da natureza humana, a axialidade bípede e hierarquizada na própria configuração do aparato encefálico humano, manifesta-se fortemente na cultura e o cinema expressa mais uma vez tal tendência, através da premiada animação (Festival Anima Mundi) The Life, dirigida pelo sul-coreano Jun Ki Kim (2004). Nessa obra, a vida se manifesta na escalada alegórica e simbólica transgeracional do totem familiar, sempre para cima e é nesse trajeto e em seu fim, que estrutura-se a existência humana.  Não surpreende a utilização cada vez mais frequente dessa animação pelos profissionais que atuam na área da gerontologia em palestras e debates, pois o seu significado é de todo claro, independentemente das crenças pessoais. Isso aponta para uma tendência na qual a tomada de posição e escolha de referenciais estruturantes por parte dos terapeutas, pode significar mudança de prognósticos.


A teorização em psicologia, para além ou aquém de suas polêmicas interescolares, já conseguiu dar conta de fundamentar e disponibilizar técnicas adequadas para fazer frente ao desafio de atenuar os sintomas dessa crise que se expressa como desesperança e niilismo e que tem como pano de fundo a própria crise da identidade humana. As técnicas psicoterapêuticas são diversas, mas subjacente a elas, ou mesmo, apesar delas, deve se ter um fundamento ontológico senão compartilhado pela própria pessoa do terapeuta, mas que o torne apto a respeitar tal necessidade daqueles que estão sob seus cuidados. Falamos de uma psicoterapia capaz de resgatar a esperança, que do ponto de vista semiótico é uma virtude estruturante do psiquismo, ou seja, uma referência psicoterápica capaz de facilitar o estabelecimento de referenciais que atenuem essa errância humana contemporânea.

Referências Bibliográficas:

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  5. DAOLIO, E. R. (2012) Suicídio: tema de reflexão bioética. Revista Bioética, v. 20, nº. 3 (pp. 436-441 ), Brasília. Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/763
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  7. FREUD, S. (2000) Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
  8. ILARIO, E. (2011) Entre indivíduo-sociedade e natureza-cultura: a constituição do ser – uma modelagem para a psicologia. Tese de Doutoramento, Pós-graduação em Psicologia,  PUC-Campinas (202 p.). Disponível em: http://www.bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/tde_arquivos/6/TDE-2012-02-06T094237Z-1716/Publico/Enidio%20Ilario.pdf
  9. JUNG, C. G. (1988) Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 2ª edição. Petrópolis: Vozes.
  10. MELANCOLIA. Direção: Lars Von Trier. Alemanha/Dinamarca/França/Suécia: Distribuidora: California Filmes, 2011, 1 DVD (130 min.). Título original: Melancholia.
  11. O CISNE Negro. Direção: Darren Aronofsky. Estados Unidos: Distribuidora: Fox Film, 2010, 1 DVD (107 min.). Título original: Black Swan.
  12. VAZ, H. C. L. Antropologia filosófica I e II. 4ª ed. [1991 (corrigida março de 1998)]. São Paulo: Edições Loyola, 1991.

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Recebido em: 06/02/2013
Aceito em: 14/11/2013

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